Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1833/17.4T8FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: ARRESTO
JUSTO RECEIO
INDEFERIMENTO LIMINAR
CAUSA DE PEDIR
INSUFICIÊNCIA
APERFEIÇOAMENTO
Data do Acordão: 03/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.6, 391, 392, 590 CPC
Sumário: I - No arresto, o factualismo apto a preencher a previsão legal do requisito “justo receio” da perda da garantia patrimonial, pode assumir uma larga diversidade, nele cabendo casos como os de receio de fuga do devedor, da sonegação ou ocultação de bens, da situação patrimonial deficitária do devedor, ou qualquer outra conduta relativamente ao seu património, que, objectivamente, faça antever e temer o perigo de se tornar impossível ou difícil a cobrança do crédito.

II - Se a requerente alega, nuclearmente, que a requerida «por várias vezes assumiu a intenção de dissipação, ocultação ou extravio», termos jurídicos já do entendimento do homem comum, que «a requerida não possuiu quaisquer bens» e que «a requerida foge a todos e quaisquer contactos com a requerente» o requerimento não pode ser indeferido liminarmente, porque não é manifesta a improcedência do pedido já que com a prova de tais factos e de outros adjuvantemente alegados e provados, ele é susceptível de singrar.

III – Não obstante, em casos de dúvida quanto à bondade/suficiência dos factos invocados para a sustentação da pretensão, deve o juiz responsabilizar o requerente convidando-o a aperfeiçoar/completar/concretizar o alegado.

Decisão Texto Integral:








ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

I (…), Lda., instaurou contra M (…), procedimento cautelar de arresto.

Pediu:

Que seja arrestada a conta que esta é titular no G (...), até ao saldo de 49.800,00€.

Alegou:

Dedica-se ao exercício da actividade de angariação, mediação, administração e avaliação imobiliárias.

Tendo celebrado com a requerida, em 17/472017 um contrato de prestação de serviços mediante o qual esta se obrigou, enquanto angariadora imobiliária, a desenvolver acções de prospecção e recolha de informações que visassem encontrar os bens imóveis pretendidos pelos clientes da requerente, acções de promoção de bens imóveis sobre os quais os clientes da requerente pretendessem realizar negócio jurídico, designadamente, através da sua divulgação e publicitação, serviços de obtenção de documentação e informações necessárias à concretização dos negócios desenvolvidos pela requerente e, bem assim, todas as actividades e tarefas necessárias e convenientes ao cumprimentos desses deveres, em regime de exclusividade.

Vinculando-se, ainda, no prazo de 90 dias, após o termo do contrato, a não exercer  actividade de angariação imobiliária para qualquer outra sociedade de mediação imobiliária dentro da mesma zona geográfica.

A requerida estava impedida de celebrar os contratos em nome e por conta da requerente; efectuar atendimento ao público em estabelecimento próprio, cobrar e receber dos interessados na realização do negócio visado com o contrato de mediação quaisquer quantias a título de retribuição, devendo entregar de imediato à requerente todos os montantes recebidos dos interessados na realização do negócio.

A requerida recebeu formação específica da requerente e foi-lhe fornecido um telemóvel nomeadamente para promover a divulgação dos imóveis que a requerente tinha em carteira.

Porém, a requerida,  durante a vigência do contrato de prestação de serviços aceitou e desviou clientes oriundos da carteira da requerente, praticando actos de deslealdade ao arrepio das suas obrigações contratuais, beneficiando-se a si própria e usando os conhecimentos que tinha

adquirido enquanto angariadora da Requerente acerca da sua clientela e respectivo “know-how”, usurpando quer imóveis quer clientes, fazendo concorrência desleal à requerente e negócios paralelos;

Ademais, estando ainda vinculada à requerida (quereria dizer-se requerente), foi trabalhar para uma empresa da concorrência a F (…), sem rescindir o contrato.

Em resultado da violação das obrigações contratuais da requerida, a requerente deixou de auferir o valor de 14.376,29€ a título de comissões e pelo desvio da clientela sofreu prejuízo na ordem dos 14.000,00€, sendo que lesou a imagem da requerente, o seu crédito e prestígio perante os seus clientes, causando um prejuízo, que nesta data, contabiliza em 28.367,29€.

A requerida ainda no tempo em que trabalhava para a requerente, já havia passado para o nome de terceiros os seus bens (viatura e cartões multibanco) que continua a utilizar; oculta dissipa e extravia propositadamente o seu património, com o intuito de se eximir ao cumprimento das suas obrigações, o que já assumiu por várias vezes perante os sócios da requerente; não tem em seu nome qualquer património ou quaisquer outros bens, não sendo titular de imóveis veículos ou quaisquer outros; que foge a todos e quaisquer contactos com a requerente.

Conclui, aduzindo que a Requerida é titular de uma conta no G (...) para onde são feitas as transferências das comissões que recebe enquanto angariadora da F (…) tendo a requerente receio que aquela venha entretanto a usar de alguma artimanha para que não seja possível à requerente receber o seu crédito.

2.

Em ato contínuo foi proferida decisão na qual se plasmou:

«…ao abrigo do disposto nos art.s 590.º, n.º 1 e 266.º, n.º4, al. b), ambos do C.P.C., indefiro liminarmente o procedimento cautelar requerido, por manifestamente improcedente.»

3.

Inconformada recorreu a requerente.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Ilegalidade da decisão que indeferiu liminarmente o requerimento inicial por inexistência do requisito «justo receio»

5.

Apreciando.

5.1.

O arresto apresenta-se como uma providência cautelar especificada.

Uma das funções e finalidade, quiçá primordial, de todos os procedimentos cautelares é a obtenção de decisão provisória do litígio, quando ela se mostre necessária para assegurar a utilidade da decisão, o efeito útil da acção definitiva a que se refere o artigo 2.° n° 2, do CPC, ou seja, a prevenir as eventuais alterações da situação de facto que tornem ineficaz a sentença a proferir na acção principal, que essa sentença (sendo favorável) não se torne numa decisão meramente platónica - A. Varela, Manual de Processo Civil, pág. 23 e Ac. do STJ de 08.06.2006, dgsi.pt. p. 06A1532.

Efectivamente: «Os procedimentos cautelares constituem instrumentos processuais destinados a prevenir a violação grave ou de difícil reparação de direitos, derivada da demora natural de uma decisão judicial, donde que seja necessário, em primeiro lugar, que o requerente do procedimento cautelar justifique, mesmo de forma sumária, o seu direito»  - Ac. da Relação de Coimbra de  18-10-2005, dgsi.pt, p. 2692/05.

E de entre todos os procedimentos cautelares o arresto assume-se como aquele cuja natureza simplesmente conservatória mais sobressai.

Na verdade com o arresto visa-se apenas a conservação da garantia patrimonial do credor.

Ou seja, assume apenas uma função meramente garantística ou instrumental – porque não antecipatória dos efeitos a obter na acção principal, como acontece noutras providências, vg. restituição provisória da posse e alimentos provisórios - relativamente à acção definitiva.

Na verdade, o arresto de bens do devedor constitui a “garantia da garantia patrimonial”, assegurando que os bens apreendidos se irão manter na  sua esfera jurídica até que no processo executivo seja realizada a penhora e satisfeito o crédito.

Garantia esta que se revela mais eficaz do que outras – vg. impugnação pauliana ou acção sub-rogatória -  pois que, decretado o arresto, os actos posteriores de disposição são ineficazes em relação ao credor, repercutindo-se na esfera jurídica de terceiros - embora condicionado ao registo, quando incida sobre bens a ele sujeitos – artºs 622º e 819º do CC e artºs 2º nº1 al. n), 5º, 6º e 92º nº2 al.n) do CRP.

Derivando ainda a utilidade do arresto do facto de os efeitos da penhora retroagirem à data da efectivação daquele – artº 822º nº2 do CC e 762º do CPC.

5.2.2.

Nesta conformidade estatui o artº 391º nº1 do CPC:

«O credor que tenha fundado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito, pode requerer o arresto de bens do devedor.»

Prescrevendo, por seu turno, o artº 392º nº1:

«O requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos…».

Perante estes normativos  verifica-se que são dois os requisitos do arresto, a saber:

- A probabilidade da existência do crédito;

- O Fundado receio da perda da garantia patrimonial.

Quanto ao primeiro e conforme resulta da literalidade da lei, não é exigível a prova da certeza  e indiscutibilidade da dívida, designadamente que esta esteja assegurada por decisão judicial.

Bastando que o requerente prove que ocorrem grandes possibilidades ou probabilidades de ela existircfr. Ac da Relação de Coimbra de 25.03.1993, BMJ, 425º, 641.

Pois que no arresto – maxime porque de cariz meramente preventivo que não antecipatório – funciona o padrão de verosimilhança do direito invocado que é típico dos procedimentos cautelares.

Aliás, atenta a natureza e os objectivos do arresto, nem sequer  o crédito tem de ser exigível à data em que é requerida a providencia, «tanto se justificando o seu decretamento quando já exista incumprimento ou mora do devedor, como naquelas situações em que o devedor adopta comportamentos que colocam em perigo a garantia patrimonial, de tal modo que, com antecedência, se revele uma situação de impossibilidade ou de grave dificuldade na sua futura cobrança» - A. Geraldes, Temas, 2ª ed., 4º, 184.

No concernente ao segundo, a lei  - e contrariamente ao regime inicial do CPC de 1961 em que se exigia o justo receio da insolvência do devedor – contenta-se com o fundado receio da perda da garantia patrimonial.

Assim, para que tal requisito se verifique, basta que o requerente prove indiciariamente o temor de uma próxima perda da sua garantia patrimonial, em função dos atos já praticados, ou que provavelmente o virão a ser, do devedor sobre o seu (dele) património.

Certo é que tal temor não pode ser apreciado em função do seu subjectivismo pessoal, ie., com base nas suas convicções, desconfianças ou suspeições.

Antes ele tem de emergir de uma análise objectiva e crítica e prudente, operada sobre factos concretos que nesse sentido têm de ser alegados e provados pelo requerente.

Apenas se concluindo pela sua verificação se tal requisito for de aceitar relativamente ao homem comum, a qualquer pessoa de são critério, colocada no lugar do credor e perante o circunstancialismo envolvente, o qual, face ao modo de agir do devedor, e não se impedindo imediatamente este de continuar a dispor  livremente do seu património, também temeria vir a perder o seu crédito.

Sendo que o factualismo apto a preencher a previsão legal do conceito de “justo receio”, pode assumir uma larga diversidade, nele cabendo casos como os de receio de fuga do devedor, da sonegação ou ocultação de bens, da situação patrimonial do devedor, a qual, designadamente dado o seu cariz deficitário, faça temer por uma insolvência ou perigo de insolvência, ou qualquer outra conduta relativamente ao seu património, que faça antever e temer o perigo de se tornar impossível ou difícil a cobrança do crédito - cfr. Almeida Costa, Obrigações, 3ª ed. p.613, Acs. da RC de 13.11.1979 e de 02.03.1999,  BMJ, 293º, 441 e 485º, 491; Acs. do STJ de 20.01.2000 e de 01.06.2000, Sumários, 37º, 40 e 42º, 28.

Efectivamente, ainda que a actual ou iminente superioridade do passivo sobre o activo constitua certamente um nítido elemento através do qual se pode reconhecer uma situação de perigo para a satisfação do crédito justificativa do arresto, esta conclusão não exige necessariamente tal situação formalmente deficitária, antes se podendo sustentar na análise de outros factores de que a mesma possa objectivamente retirar-se, factores esses semelhantes, vg., aos factos índices constantes no artº 20º do CIRE, vg. a suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas, a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações – cfr. A. Geraldes, Temas, 2ª ed. p.188.

5.3.

Por outro lado urge atentar que, pelo menos desde a reforma processual de 1995,  alcandorou-se a  fito primordial  do processo a obtenção de uma decisão de fundo, que aprecie o mérito da pretensão deduzida, em detrimento de procedimentos que condicionam o normal prosseguimento da instância.

 Para o que, e conforme se alcança do relatório do DL 329-A/95 de 12/12, se consagrou, como regra, que «a falta de pressupostos processuais é sanável», tudo de sorte a «obviar-se a que regras rígidas, de natureza estritamente procedimental, possam impedir a efectivação em juízo dos direitos e a plena discussão acerca da matéria relevante para propiciar a justa composição do litígio».

Sendo que o processo civil - rectius as respectivas normas - não pode ser perspectivado, interpretado e aplicado como um fim em si mesmo, mas antes como: «um instrumento ou …mesmo uma alavanca no sentido de forçar a análise, discussão e decisão dos factos…»

A reforma de 2013 acentuou e, impressivamente, atribuiu maior cariz e acuidade  a este fito.

Assim ressuma do dever de gestão processual consagrado no artº 6º do CPC.

Perante este:

«1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.

2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo

Nesta conformidade, importa ainda atentar no disposto no artº 590º:

«1 - Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º

4 - Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.»

Da interpretação concatenada destas disposições retira-se a conclusão que, quando o juiz, por imposição legal ou por iniciativa própria, formule/tenha de formular um juízo liminar sobre o possível indeferimento da pretensão, quer por falta de requisitos formais, quer por insuficiência ou obscuridade na alegação factual, deve providenciar pelo seu suprimento, vg. através de convite à parte para o efeito.

Acresce ainda que o que interessa, do ponto de vista da apreciação da causa de pedir, é que o ato ou o facto de que o autor quer fazer derivar o direito em litígio esteja suficientemente individualizado na petição.

Na verdade, e na lição sempre atual do Mestre Alberto dos Reis, há que ter presente que:

 «Se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta.

Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente…quando…sendo clara quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstancias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta: o que então sucede é que a acção naufraga - Comentário, 2º, 364 e 371.

No seguimento destes ensinamentos, a jurisprudência tem, desde sempre, vindo a defender, em uníssono, que a insuficiência ou incompletude do concreto factualismo consubstanciador da causa petendi, não fulmina, em termos apriorísticos e desde logo formais, a petição de inepta, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a atendibilidade, a final, do pedido.

Efetivamente, causa de pedir obscura, imprecisa ou inadequada não é o mesmo que causa de pedir inexistente ou ininteligível.

No fundo só existe falta de causa de pedir quando o autor não indica o facto genético ou matricial, a causa geradora do núcleo essencial do direito ou da pretensão que aspira a fazer valer. – cfr. entre outros Acs. do STJ de 12.03.1974, BMJ, 235º, 310, de 26.02.1992, dgsi.pt, p.082001 e Acs. da RC de 25.06.1985 e de 01.10.1991, BMJ, 348º, 479 e 410º, 893.

Por conseguinte, verdadeiramente só haverá falta de indicação da causa de pedir determinante da ineptidão da petição ou do indeferimento liminar do pedido, quando, de todo em todo, falte a indicação dos factos invocados para sustentar a pretensão submetida a juízo, ou tais factos sejam expostos de modo tal que, seja impossível, ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar, qual o pedido e a causa de pedircfr. Acs. do STJ de 30.04.2003, 31.01.2007 e 26.03.2015,  p.03B560,  06A4150 e  6500/07.4TBBRG.G2,S2, in dgsi.pt,.

5.3.

No caso vertente o julgador decidiu não se encontrar presente o requisito do justo receio, com a seguinte fundamentação.

« …Segundo Abrantes Geraldes in “ Temas da Reforma do Processo Civil”, IV, pág.174, o justo receio “ pressupõe a alegação e prova, ainda que perfunctória, de um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito”.

Por seu lado, observa Jacinto de Rodrigues Bastos, in “ Notas ao Código de processo Civil, vol.II, pág. 191 que “ o receio do credor, para ser considerado justo, há-de assentar em factos concretos, que o revelem à luz de uma de uma prudente apreciação; não basta o receio subjectivo, porventura exagerado, de ver insatisfeita a prestação a que tem direito”.

Na esteira deste entendimento, escreveu-se no Ac. Rel .Porto de 26/11/2001 in WWW.DGSI.PT “ Para haver justo receio da perda de garantia patrimonial não basta um temor subjectivo do credor, não objectivado em comportamentos que, à luz das regras da experiência comum, “in casu” negocial, sejam plausíveis; importa que ao credor seja razoável recear que o risco de perder o seu crédito tem elevada probabilidade, em função da situação e comportamento do devedor”.

No caso vertente…não resultaram alegados factos concretos que evidenciem que a devedora intente, pela sua actuação, frustrar a garantia patrimonial da requerente.

Isto porque, no que se refere à matéria alegado no art.º 54.ºdo RI, trata-se de um comportamento já ainda no tempo em que a requerida prestava serviços para a requerente e anterior à ruptura contratual, sendo certo que a requerente não alega, em qualquer momento, que se tratou de qualquer acto preparatório da requerida para se eximir ao seu crédito.

No que tange ao vazado no art.º 55,º do RI, estamos perante matéria de direito, não assente em qualquer facto susceptível de incidir produção de prova.

Quanto à matéria vertida no art.º 60.º de que “A requerida não tem qualquer património ou quaisquer outros bens, não sendo titular de imóveis ou de veículos ou quaisquer outros”, tratam-se de factos perfeitamente estéreis à integração do requisito de justo receio da perda garantia patrimonial do devedor, pois que nenhuma relação tem com actos de ocultação, dissipação ou outros.

Por seu turno, a alegação de que a requerente por várias vezes assumiu perante os sócios essa intenção de dissipação ocultação ou extravia, é contraditório com a alegação acima referida, isto é, de que a requerida não possuiu quaisquer bens, sendo ainda contraditória com a alegação vazada no art.º 63.º “ que a requerida foge a todos e quaisquer contactos com a requerente”, alegação esta que, por si só, e sem qualquer outro elemento adjuvante, é insusceptível de fundar o juízo- mesmo perfunctório de que a requerida pela sua actuação intente frustrar a garantia patrimonial do credor.

Por fim, e no que se refere a alegação do art.º 68.º do RI : “ Receia a requerente que aquela venha, entretanto a usar de alguma artimanha, para que não seja possível à requerente receber o seu crédito”, tal factualidade revela um temor meramente subjectivo não alicerçado em factos reais e concretos e, como tal, inidóneo a preencher o requisito do justo receio da perda da garantia patrimonial.

Resumindo, para concluir, não se mostram alegada materialidade que revele qualquer comportamento que faça antever o justo receio de perda da garantia patrimonial do crédito da requerente, como seja sonegação e ocultação de bens ou ocorrência de procedimentos anómalos, mas tão-só materialidade inidónea ou mero receio subjectivo, não se mostrando alegado factos, que após produção de prova, estimulem o requisito do justificado receio da perda da garantia patrimonial e sem o qual não pode ser decretada a providência requerida.»

Já a requerente pugna, nos termos constantes nas conclusões, pela verificação do justo receio, ou, ao menos, que seja produzida prova para se aquilatar se ele está presente.

Perscrutemos.

A recorrente tem razão.

Na verdade ela alega factos, que, com maior ou menor acuidade, acutilância ou concretização, uma vez provados, ou suficiente indiciados, assumem, ou podem assumir, virtualidade bastante para se concluir pelo justo receio.

São, nomeadamente, os factos ou alegações vertidas nos artºs 53º e segs.

«53.º

Contudo, a Requerida não paga nem pagará á Requerente de forma voluntária e por iniciativa própria, qualquer quantia a títulos dos prejuízos que causou.

54.º

Até porque ainda no tempo em que a Requerida prestava serviço para a Requerente, já a mesma havia passado para o nome de terceiros, os seus bens (viatura, cartões MB), que continuava, contudo, a utilizar.

55.º

A Requerida oculta, dissipa e extravia propositadamente o seu património, com o intuito de se eximir ao cumprimento das suas obrigações, de forma a que se torne consideravelmente difícil promover a cobrança ativa de crédito.

56º Algo que a mesma, alias, várias vezes assumiu perante os sócios da Requerente.

57º

Conforme anteriormente alegado, A Requerida está agora a trabalhar como angariadora imobiliária da F (…), na x (...) .

58º

Para além desta não tem qualquer outra atividade.

59.º

O rendimento que a mesma recebe é incerto.

60.º

A Requerente não tem em seu nome qualquer património ou quaisquer outros bens, não sendo titular de imóveis ou veículos ou quaisquer outros.

61º

O montante do crédito que a mesma virá a ser condenada pagar á. Requente é elevado.

62.º

A Requerida sabe que deve entregar á Requerentes os valores que lhe subtraiu, com o desvio o dos clientes.

63.º

No entanto foge a todos e quaisquer contactos com a Requerente.»

As observações desvalorizantes que o julgador opera relativamente a tais factos não se assumem totalmente adequadas.

Relativamente ao facto vertido no artº 54º, ele releva, quiçá até mais do que se fosse uma atuação actual e posterior à cessação do contrato.

Considerando que a requerente alega que a requerida já estava a violar o contrato quando este ainda vigorava e esta para ela trabalhava, tal pode, a final, depois de produzida a prova, fixados os factos e, ademais, analisado todo o circunstancialismo envolvente, clamar a conclusão de que ela estava já a transferir para terceiros bens, com vista a eximi-los de eventuais pagamentos ou indemnizações que tivesse de efectivar para à requerente.

É, aliás, o que a recorrente parece significar, em função do que já anteriormente tinha dito.

Destarte, e em todo o caso, a não alegação, adrede,  por banda da requerente, de que tal constituiu um ato preparatório por banda da requerida para ulteriormente nada pagar, não justifica, porque não tem força e dignidade bastante, por si, ou, em função do que se dirá, em concatenação com os outros argumentos, o indeferimento liminar.

Assim.

Certo é que o alegado no artº 55 se assume, em pura tese dogmático-jurídica, como matéria essencialmente de direito.

Mas apenas em pura tese.

Efetivamente, como é consabido e aceite pela doutrina e jurisprudência, certos termos e conceitos jurídicos caíram já no domínio e no entendimento do homem comum pelo que, com algumas cautelas, não custa  - a bem da realização da justiça e da dessacralização do direito e da sua interpenetração e intercomunicação com a sociedade para quem  rege - admitir tal osmose e aceitá-los nas alegações argumentativas com o sentido que aquele cidadão, objectiva e materialmente, lhes concede.

Estão neste lote termos como «arrendar», e, convenhamos e no que para o caso releva, os termos alegados pela recorrente, «ocultar», «dissipar» e «extraviar».

Acresce que tal alegação é complementada/concretizada com a alegação- artº 60º - de que a requerida não tem em seu nome qualquer património ou quaisquer bens.

E aqui se discordando do entendimento do julgador de que o teor plasmado neste artigo se assume como estéril.

 Pois que, ainda que este facto, só por si, não prove o extravio ou descaminho dos bens, pode, ao menos, máxime se  concatenado/corroborado  por/com outros, prová-lo ou indiciá-lo suficientemente.

Finalmente,  não se alcança a contradição apontada pelo julgador.

Numa certa e possível definição, a contradição apenas emerge quando duas realidades ou quids não podem subsistir, simultaneamente, sem que uma, vg. por imperativos lógicos ou práticos, necessariamente, exclua a outra.

Ora não se vislumbra  como e em que medida o facto de ser alegado que «a requerente (quereria dizer-se requerida)  por várias vezes assumiu perante os sócios essa intenção de dissipação ocultação ou extravia» é contraditório, por incompatível, com a alegação de  que «a requerida não possuiu quaisquer bens» ou que  «a requerida foge a todos e quaisquer contactos com a requerente»

Antes pelo contrário.

Se a requerida, tinha referido, anteriormente, à requerente, que poderia extraviar os seus bens, tal até se mostra justificativo ou, pelo menos, fortemente indiciador, porque  percussor, da posterior, e efectiva, ocultação ou dissipação.

Assim se concluindo que o pedido não é, «manifestamente», improcedente.

Este termo inculca uma ideia de exigibilidade no que concerne aos fundamentos do indeferimento.

Ou seja, não é uma qualquer deficiente alegação, nem uma alegação que, mesmo com alguma substância, possivelmente, possa acarretar o indeferimento do pedido, mas apenas uma alegação oca e vazia de factos consubstanciadores do mesmo, de tal sorte que seja inequívoco, sem margem para quaisquer dúvidas, que ele naufragará.

Em todo o caso, e como se viu, a meio caminho entre a admissão, pura e simples, de requerimento deficiente que, provavelmente, descambará no soçobramento da pretensão – com trabalho e despesa  aqui sim estéreis –, e o radical, cerce e liminar indeferimento, sempre restará o tertium genus da sensata, razoável e responsabilizante (para o requerente) opção do convite ao aperfeiçoamento.

Decorrentemente, no caso vertente, e se o julgador tiver dúvidas quanto à bondade ou suficiência do invocado, deve ele, no cumprimento e substanciação do dever de colaboração e  com vista à consecução da almejada  justiça material, convidar a requerente e, assim, responsabilizando-a, a esclarecer, aperfeiçoar, completar ou  concretizar o alegado.

Em todo o caso, certo é que a pretensão não se apresenta, vg.  por infundamentada, como manifestamente improcedente, pelo que, sobre a versão original do requerimento inicial, ou, se assim for entendido, sobre a  versão aperfeiçoada, deve incidir a produção da prova apresentada e, depois sim, prolatada a decisão tida por ajustada aos factos apurados e à lei aplicável.

Procede o recurso.

6.

Sumariando – artº 663º nº7 do CPC.

I - No arresto, o factualismo apto a preencher a previsão legal do requisito “justo receio” da perda da garantia patrimonial, pode assumir uma larga diversidade, nele cabendo casos como os de receio de fuga do devedor, da sonegação ou ocultação de bens, da situação patrimonial deficitária do devedor, ou qualquer outra conduta relativamente ao seu património, que, objectivamente, faça antever e temer o perigo de se tornar impossível ou difícil a cobrança do crédito.

II - Se a requerente alega, nuclearmente, que a requerida «por várias vezes assumiu a intenção de dissipação, ocultação ou extravio», termos jurídicos já do entendimento do homem comum, que  «a requerida não possuiu quaisquer bens» e  que  «a requerida foge a todos e quaisquer contactos com a requerente» o requerimento não pode ser indeferido liminarmente, porque não é manifesta a improcedência do pedido já que com a prova de tais factos e de outros adjuvantemente alegados e provados, ele é susceptível de singrar.

III –  Não obstante, em casos de dúvida quanto à bondade/suficiência dos factos invocados para a sustentação da pretensão, deve o juiz responsabilizar o requerente convidando-o a aperfeiçoar/completar/concretizar o alegado.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso procedente e, em consequência, na revogação da decisão, ordenar a produção da prova apresentada sobre o factualismo alegado no requerimento inicial original, ou no aperfeiçoado, se assim for entendido.

Custas recursivas pela requerente a atender a final.

Coimbra,  2018.03.06.

Carlos Moreira ( Relator)

Moreira do Carmo

Fonte Ramos