Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
32/07.8GAFZZ-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
RECURSO
DIFAMAÇÃO
INTERESSES LEGÍTIMOS
Data do Acordão: 11/11/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE FERREIRA DO ZÊZERE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 180º, 1 ,2, 181º CP, 310º, 399º CPP
Sumário: 1. É irrecorrível a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Mº Pº.
2. Dizer que alguém praticou um crime de furto, por si só, não consubstancia a defesa de qualquer interesse legítimo
Decisão Texto Integral: A arguida E… não se conformando com o despacho de pronúncia, que a pronunciou pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art 180º do CPenal e dois crimes de injúrias, p. e p. pelo art 181º nº 1 do CPenal vem dele interpor recurso para este tribunal, sendo que na respectiva motivação formulou as seguintes conclusões:
A- A recorrente discorda com a douta decisão de pronúncia imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso real, de uma crime de difamação, p. e p. pelo art. 180º nº 1 do CPenal e dois crimes de injúria, p. e p. pelo artº 181º nº 1 do CPenal.
B- Tal pronuncia baseia-se no facto de a arguida ter dito a outrém que a assistente tinha furtado o ouro da residência da arguida e o tinha vendido e ter afirmado, em voz alta e publicamente, que os ofendidos lhe tinham furtado o ouro e 40 euros.

C - Da prova trazida aos autos, durante o inquérito e instrução resulta que a arguida terá feito as supra mencionadas afirmações.

D- Porém resulta, também, que corre termos pelo tribunal judicial da Comarca de Ferreira do Zêzere, o processo crime com o nº 44/07.1GAFZZ, no qual é assistente a ora arguida e arguidos os ora assistentes;

E - Por acusações pública e particular proferidas nesse mesmo processo, os ora assistentes foram acusados, para lá do mais, de terem furtado à ora arguida, ouro, bem como 40,00 €, de terem difamado a ora arguida, estando, ainda a ora assistente acusada de ter agredido a ora arguida, incorrendo assim, na prática em co-autoria, do crime de furto qualificado e a do crime de difamação e a assistente, ainda do crime de ofensa à integridade física.

F – Na verdade e como consta desse mesmo outro processo, os ora assistentes em Janeiro de 2007, dirigiram-se ao quarto de E..., abriram a gaveta da mesinha de cabeceira situada junto da cama do quarto e retiraram diversas caixas contendo diversos objectos cm ouro da assistente c dinheiro, sendo que, posteriormente, a assistente R... foi vender alguns desses objectos de ouro

G- Ta1 factualidade resulta, também no âmbito dos presentes autos, dos depoimentos das testemunhas M... e I... e das declarações da arguida.

H) Mas do depoimento de tais testemunhas, bem como da referida prova documental, resulta que a arguida ao fazer as imputações em causa, fê-lo quando tinha fundamento sério para, em boa fé as reputar como verdadeiras e fê-lo para realizar interesses legítimos;

I) Na verdade, a arguida, acreditando piamente que foram os assistentes que lhe furtaram os bens em causa, apenas os tentou recuperar.

J) Assim, a arguida praticou os factos de que vem acusada, ao abrigo da causa de exclusão de punibilidade, pois que as imputações foram feitas para realizar interesses legítimos e a arguida tinha fundamento sério, para em boa fé, reputar as imputações como verdadeiras.

L) Estando, então, reunidas as duas condições legalmente exigidas para afastar a punibilidade da difamação e da injúria – arts 180º nº 2 e 181 nº 2 ambos do CPenal.

M) O arguido só deve ser pronunciado se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.

N) No caso em apreço, tais indícios inexistem, pelo que, não pode a arguida ser pronunciada.

O) Face ao que dito fica, temos que a douta decisão violou o disposto nos artigos 180º, nº 2 181º, nº 2 do CPPenal e 308º nº 1 e 2ª parte do CPPenal.

Assim e revogando-se a mui douta decisão em recurso, far-se-á a acostumada Justiça

Respondeu o Digno Procurador Adjunto, manifestando-se pela improcedência do recurso.

Responderam os assistentes R… e C..., que entendem que a decisão é irrecorrível mas, a não entender-se, assim, pugnam pela manutenção da mesma.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta no sentido da recorribilidade da decisão e pugna pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

A questão que cumpre conhecer é a de saber se nos autos foram recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação à arguida de uma pena ou de uma medida de segurança que permita ao juiz proferir despacho de pronúncia pelos factos respectivos.

A instrução tem por fim a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art.286 do C.P.P.).
De acordo com o art. 308 do C.P.P:, se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena o juiz por despacho pronuncia o arguido.
É, pois, de concluir que o arguido só será responsabilizado se existirem “elementos que, logicamente relacionados e conjugados, formem um conjunto persuasivo, na pessoa que examina sobre a existência do facto punível, de quem foi o seu autor e da sua culpabilidade” ou “quando já em face deles seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.”
Portanto, o juiz só deve pronunciar o arguido quando atenta a prova recolhida nos autos formou a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido.

Sustentam os assistentes que a decisão instrutória é irrecorrível, nos termos do disposto no artº 310 nº 1 do CPP.

Dispõe este normativo:

A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artº 283º ou do nº 4 do artº 285º é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.

Quando, p. ex. o procedimento depende de acusação particular (como é o caso dos autos), a acusação do assistente pode ou não ser acompanhada pelo Mº Pº, ou seja, nestes casos, pode não haver acusação proferida pelo Mº Pº (artº 69 nº 2 al b) do CPP - compete em especial aos assistentes deduzir acusação independente da do Mº Pº e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza, artº 285).

Portanto, se o artº 310 restringe a irrecorribilidade da decisão instrutória aos casos em que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação do Mº Pº, é óbvio que na previsão da norma não cabe a situação de pronúncia por factos constantes da acusação que o Mº Pº não deduziu, nem acompanhou.

Assim, a decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação particular que o Mº Pº não acompanhou, com é o caso dos autos, não prevendo a lei a sua irrecorribilidade, é susceptível de recurso, de acordo com o estatuído no artº 399 do CPP – “É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja a irrecorribilidade não estiver prevista na lei”.

O Acórdão do TC de 17/4/96, publicado no DR II série de 6/7/96 refere:

“….o despacho de pronúncia é passível de recurso…quando a instrução foi precedida apenas de acusação particular e a sua abertura foi requerida pelo próprio arguido…

Apenas é irrecorrível, portanto, a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Mº Pº.

…este regime especial não é arbitrário, encontrando fundamento na existência de indícios comprovados, de modo coincidente, em duas fases do processo: pelo Mº Pº, dominus do inquérito, e pelo Juiz de Instrução. E o Mº Pª é configurado constitucionalmente como uma magistratura autónoma (art 771º nº2 da CRP), sendo concebido no processo penal como um sujeito isento e objectivo que pode, nomeadamente, determinar o arquivamento em caso de dispensa de pena, propugnar, findo o julgamento, a absolvição do arguido e interpor recurso da decisão condenatória em exclusivo benefício do arguido…”

Improcede, pois a questão prévia, levantada pelos assistentes.

A arguida E… foi pronunciada pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artº 180, nº 1 do CPenal e dois crimes de injúrias p. e p. pelo artº 181º nº 1 do mesmo diploma.

Entende a recorrente que não deve ser pronunciada pela prática de tais crimes uma vez que agiu ao abrigo de uma causa de exclusão de punibilidade.

Dos factos imputados à arguida e que esta não contesta resulta que:

- No dia 13/5/2007, cerca das 10 h, a arguida, deslocou-se à residência de O... e de D..., sita em C…, Ferreira do Zêzere.

- Uma vez ali chegada, afirmou a O… e à mulher D… que a R… tinha furtado o ouro da residência da arguida e tinha-o vendido em nome do filho daqueles, de nome S… .

- No dia 14/1/2007, cerca das 14 h 30 m, no interior do estabelecimento “F…”, sito em C… a arguida em voz alta e publicamente, dirigindo-se à ofendida R..., perguntou-lhe pelo ouro que tinha tirado da sua casa;

- Afirmando, ainda, que os ofendidos lhe tinham furtado o ouro e € 40.

- A arguida E… sabia que ao fazer as afirmações que fez quer na residência de O... e de D..., quer no Café F…, sobre os assistentes, pelo seu teor, local e pela forma como foram proferidas eram adequadas a ofender os assistentes na sua honra e consideração, o que quis.

A arguida não põe em causa que proferiu tais expressões apenas refere em sua defesa que proferiu tais expressões porque tal como resulta da prova trazida aos autos corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Ferreira do Zêzere o processo crime com o nº 44/07.1GAFZZ, no qual é assistente a ora arguida e arguidos os ora assistentes.

Por acusação pública e particular proferidas nesse mesmo processo, os ora assistentes foram acusados, para além do mais, de terem furtado à ora arguida, ouro, bem como € 40,00, de terem difamado a ora arguida, estando ainda, a ora assistente acusada de ter agredido a ora arguida, incorrendo, assim, na prática, em co-autoria, do crime de furto qualificado e do crime de difamação e a assistente, ainda do crime de ofensa à integridade física.

Como consta do referido processo, os assistentes, em Janeiro de 2007, dirigiram-se ao quarto de E... abriram a gaveta da mesinha de cabeceira, situada junto da cama do quarto e retiraram diversas caixas contendo diversos objectos em ouro da assistente e dinheiro que posteriormente, a assistente R... foi vender alguns desses objectos em ouro.

Sustenta a recorrente que ao fazer as imputações em causa, fê-lo quando tinha fundamento sério para, em boa fé, as reputar como verdadeiras e fê-lo para realizar interesses legítimos.

Na verdade, a arguida, acreditando que foram os assistentes que lhe furtaram os bens em causa apenas os tentou recuperar.

A arguida praticou os factos de que vem acusada, ao abrigo de uma causa de exclusão de punibilidade, pois que as imputações foram feitas para realizar interesses legítimos e a arguida tinha fundamento sério, para em boa fé, reputar as imputações como verdadeiras.

Dispõe o artº 180 nº 1 do CPenal:

Quem dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses, ou com pena de multa até 240 dias.

Por sua vez estatui o artº 181º nº 1 do mesmo diploma:

Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.

E o nº 2 dispõe:

Tratando-se da imputação de factos, é correspondentemente aplicável o disposto nos nºs 2, 3 e 4 do artigo anterior.

Ou seja:

A conduta não é punível quando:

a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e

b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.

No caso vertente, existem indícios suficientes que permitem imputar à arguida a prática de um crime de difamação e de dois crimes de injúrias.

Há, contudo, que analisar se se mostram preenchidos os requisitos exigidos no nº 2 do artº 180º do CPenal, a fim de se afastar a punibilidade da conduta.

Portanto, a difamação /injúria não é punível desde que se verifiquem, cumulativamente, as seguintes condições:

- a imputação de facto desonroso ser feita para realizar interesses legítimos e, para além disso,

- o agente provar a verdade da mesma imputação ou ter fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.

O Código Penal não faz distinção entre interesses legítimos públicos ou privados, pelo que se admite que se possa tratar de um interesse privado – neste sentido, Maria da Conceição S. Valdágua, in A Dirimente da Realização de Interesses Legítimos nos Crimes Contra a Honra, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, pág. 230.

Para a mesma autora, é mister interpretar a expressão interesses legítimos de modo a abranger, além do interesse público legítimo, todos os interesses privados juridicamente protegidos, ou seja, todos aqueles interesses privados que podem ser objecto de legítima defesa, pois mal se compreenderia que a imputação de um facto desonroso, mas verdadeiro, apesar de necessária para a tutela de um interesse privado juridicamente protegido (e, por isso, susceptível de legítima defesa), estivesse de antemão excluída do âmbito da dirimente da realização de interesses legítimos.

Refere mais a mesma autora que, ao contrário do que acontece na legítima defesa, na realização de interesses legítimos exige-se uma relação de proximidade entre o agente e o interesse por ele realizado, sendo que, “…quando o interesse em causa for de natureza privada, a sua realização, através de uma imputação de facto ofensivo da honra e consideração de outrem, só poderá fundamentar a impunidade do agente se este for o próprio titular ou outra pessoa que (por ser, por exemplo, parente, cônjuge, advogado, gerente, administrador ou procurador do titular, etc.) possa razoavelmente arrogar-se a qualidade de guardião desse interesse”. E é exigível também, embora não resulte expressamente da lei mas que não deve deixar de reconhecer-se, a prevalência do interesse a realizar sobre o interesse na tutela da honra, requisito que resulta do princípio da ponderação de interesses, a ela subjacente, e pressupõe, portanto, uma ponderação em concreto de todos os factores relevantes.

(AcRP 19/12/2007, processo nº 0746296 em www.dgsi.pt).

Ora, voltando ao caso concreto temos de concluir que não existe qualquer interesse legítimo, por parte da arguida ao proferir as expressões que lhe são imputadas.

Na verdade, dizer que alguém praticou um crime de furto, por si só, não consubstancia a defesa de qualquer interesse legítimo. Não se vê qual o benefício que a arguida tirou, qual o objectivo é que foi salvaguardado.

A única forma de a arguida tutelar o seu interesse, que nos parece que é a defesa da propriedade seria apresentar queixa perante as autoridades, o que a arguida fez. Com a imputação que a arguida fez esta não podia salvaguardar qualquer interesse.

Portanto, não se encontra preenchido o primeiro requisito exigido pelo disposto no artº 180 nº 2 al a) do CPenal, o que prejudica, desde logo, a apreciação do segundo requisito pois, a causa de justificação só funciona se se verificarem cumulativamente os requisitos acima referidos.



Assim, não merece qualquer censura o despacho recorrido.

Termos em que se nega provimento ao recurso.

Custas pela recorrente fixando-se a taxa de justiça em 7 ucs.

Coimbra

Alice Santos

Belmiro Andrade