Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
472/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: COMPRA E VENDA
GARANTIA DE BOM FUNCIONAMENTO
DEFICIÊNCIAS:REPARAÇÃO OU SUBSTITUIÇÃO DA COISA
Data do Acordão: 06/07/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SÃO PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 921º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - A garantia de bom funcionamento, prevista no artº 921º do Código Civil, importa para o vendedor uma de duas obrigações: a de reparar a coisa ou, se a reparação não for possível e a coisa for fungível, a de a substituir.

II – Se ocorrer algum defeito de funcionamento deve o comprador exigir a reparação ou a substituição, não podendo substituir-se ao vendedor, mandando ele fazer a reparação ou providenciando pela substituição da coisa perante terceiros, por conta do vendedor.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A... propôs, em 07/10/2002, pelo Tribunal da comarca de S. Pedro do Sul, acção com processo sumário contra B..., alegando, em síntese, o seguinte:
O autor adquiriu à ré um veículo automóvel usado, de cujo bom funcionamento aquela deu garantia pelo prazo de um ano.
Volvidos alguns dias sobre a referida aquisição, o veículo começou a evidenciar alguns problemas de funcionamento em vários dos seus componentes mecânicos e não mecânicos, sendo que alguns, após reclamação à ré, foram resolvidos, ao passo que outros ainda hoje se mantêm.
Não obstante sucessivas reclamações, a ré ainda não procedeu à reparação das deficiências subsistentes, nem pretende pagar a respectiva reparação, que orça em 4.000 euros.
Termina, pedindo que, na procedência da acção, se declare resolvido o contrato de compra e venda do veículo id. na p.i., condenando-se a ré a devolver ao autor a quantia de 16.460,33 € e este a devolver àquela o veiculo em causa, ou, caso se venha a entender que não há fundamento para resolução do contrato, devendo a ré ser condenada a pagar-lhe a quantia de 4.000,00 € para reparação do veículo, bem como a quantia de 40,00 € por cada dia em que este esteja parado para reparação.
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A ré contestou, sendo que por impugnação alega o desconhecimento dos invocados vícios e, a existirem, a sua origem. Ainda para a hipótese de os mesmos serem uma realidade, alega não comportarem aqueles uma gravidade tal que justifique a resolução do contrato, mas apenas concederiam ao autor o direito a pedir a reparação dos defeitos. Mais refere que o veículo dado à retoma pelo autor apresentava problemas de motor, que obrigaram à sua reparação, tendo, nesse sentido, a ré despendido a importância de Esc.:251.083$00, valor que requer seja tomado em consideração numa eventual declaração de resolução do contrato celebrado entre as partes.
Em reconvenção, deduzida para a hipótese de proceder o pedido de resolução do contrato (vide o artigo 40º da sua contestação) ou, mais abrangentemente, para a hipótese de serem julgados procedentes quaisquer dos pedidos formulados pelo autor (vide o petitório, a fl. 23), e alegando ter o autor circulado, durante um ano, com a viatura em causa, cerca de 60.000 Kms, veio a ré peticionar a condenação do autor a pagar o valor relativo à utilização que fez do veículo, ou o valor correspondente à desvalorização que sofreu, montantes esses que, porque a viatura se mantém em utilização pelo autor, requer que seja a sua concretização relegada para execução de julgado.
Conclui pela improcedência da acção, e a sua absolvição do pedido.
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Em resposta o A. conclui como na p. i., e bem assim pela ausência de fundamento do pedido reconvencional.
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Foi proferido despacho saneador, com selecção da matéria assente e da controvertida, que não foi objecto de qualquer reclamação.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo o tribunal respondido à matéria controvertida sem reclamações, após o que foi proferida a sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré a pagar ao autor a importância dos prejuízos para este sobrevindos da indisponibilização do veículo 64-87-QC, para reparação das anomalias referidas em 6 e 9 da factualidade apurada, a liquidar em execução de sentença.
A reconvenção foi julgada totalmente improcedente.
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Na 1ª instância foi dado como provado o seguinte:
1 - Em 12.10.01 o autor comprou à ré, pelo preço de 3.300.000$00, o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de marca Volkswagen, modelo Passat 3B - Turbo Diesel, com a matrícula 64-87-QC - (al. A) dos Factos Assentes).
2 - O autor, para pagamento do preço da compra, entregou à ré a importância de 1.700.000$00, bem como entregou o veículo de marca Opel, modelo Vectra, com a matrícula 72-07-DS, ao qual foi atribuído o valor de 1.600.000$00 – (al. B).
3 - No acto da venda a ré prestou garantia do bom funcionamento do veículo QC, pelo prazo de 1 ano – (al.C).
4 - A ré dedica-se à venda de veículos automóveis usados – (al. D).
5 - O autor tem circulado com o veículo QC – (al. E).
6 - Posteriormente à aquisição do QC, a partir de data não concretamente apurada, a embraiagem, com o motor ligado, vibrava – (resp. quesito 2º da Base Instrutória).
7 - Um dos cintos de segurança, dos bancos de trás, não recolhia – (q. 6º).
8 - A tampa do separador dos bancos da frente encontrava-se partida – (q. 7º).
9 - Posteriormente à aquisição do QC, a partir de data não concretamente apurada, o ar condicionado, quando ligado, provocava ruído em tom superior ao que seria normal – (q. 8º).
10 - O forro de uma das portas de trás encontrava-se solto – (q. 9º).
11 - O autor comunicou à ré, pela primeira vez em data não apurada, a existência de diversas anomalias no veículo QC – (q. 10º).
12 - Mantêm-se os problemas referidos em 6 e 9 – (q. 13º).
13 - O autor, por diversas ocasiões, reclamou da existência de diversas anomalias no veículo QC – (q. 14º).
14 - Para eliminação dos problemas referidos em 6 e 9 é necessário a realização de trabalhos e a colocação de peças que, no conjunto, ascenderá a um valor não concretamente apurado – (q. 17º).
15 - A execução dos trabalhos referidos em 14 durará um número de dias não concretamente apurado (q. 18º).
16 - A ré já vendeu o veículo DS – (q. 19º).
17 - Após um ano de utilização, o veículo QC teve uma desvalorização comercial, no mínimo, de 15% - (q. 24º).
18 - Após um ano de utilização o veículo QC percorreu cerca de 50.000 Kms – (q. 25º).
19 - O aluguer de um veículo com as características do QC ascende a um valor diário não concretamente apurado – (q. 26º).
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Interpuseram recurso da sentença o autor e a ré, tendo o desta última sido julgado deserto, por falta da respectiva alegação.
São do seguinte teor as conclusões da alegação do recurso do autor, apresentadas após convite do relator nesse sentido:
1ª- De acordo com os factos dados como provados a apelada não eliminou as deficiências que lhe foram denunciadas durante o prazo de garantia.
2ª- Pelo que o incumprimento parcial do contrato é imputável à apelada, o que confere ao apelante, nos termos do artº 802º do C.C., o direito de exigir daquela o cumprimento daquilo que for possível, o que, no caso, equivale ao valor que terá de gastar com a eliminação dos defeitos.
3ª- Pelo que o pedido de condenação da apelada no pagamento da quantia de 4.000,00 € para eliminar as deficiências denunciadas durante o prazo da garantia, que a apelada não quis eliminar, insere-se no direito a ser indemnizado naquele valor.
4ª- Pois não fazia sentido pedir a condenação da apelada a eliminar as deficiências quanto esta não o quis fazer extra judicialmente.
5ª- Perante o direito do apelante em pedir a reparação ou substituição e o direito a ser indemnizado é-lhe lícito optar por um deles.
6ª- A norma do artº 921º do C.C. não afasta o direito do apelante em pedir a condenação em quantia certa para ser indemnizado pelo incumprimento da apelada.
7ª- Nos termos do artº 562º do C.C. a apelada estava obrigada a reparar as deficiências que lhe foram denunciadas durante o prazo da garantia, reparação que pode ser natural, se for possível, ou por equivalente através de indemnização.
8ª- A sentença fez incorrecta aplicação da lei e do direito, em especial das normas dos artºs 921º, 802º, 562º e 483º do C.C.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal da Relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Por outro lado, se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas, uma vez que especifique no requerimento a decisão de que recorre (artº 684º, nº 2).
O apelante, na sua alegação de recurso, restringe o mesmo expressamente à parte da decisão que julgou improcedente o seu pedido subsidiário de condenação da ré no pagamento de 4.000,00 € para reparação do veículo identificado na petição inicial.
É, pois, sobre essa parte da sentença que versa o recurso em apreço.

Como vimos, o autor formulou, como pedido principal, a resolução do contrato de compra e venda que celebrou com a ré, tendo como objecto o veículo identificado na p.i., e, como pedido subsidiário, a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 4.000,00 € para reparação do veículo em causa.
Tais pedidos improcederam, sendo o último com o fundamento de que, não estando comprovada a impossibilidade da reparação das anomalias na embraiagem e no sistema de ar condicionado, cumpriria reconhecer e fazer condenar a ré no cumprimento de tal obrigação ou, na eventualidade de a mesma não ser viável, na substituição dos componentes em causa (artº 921º, nº 1, do Código Civil, diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência).
Alega o recorrente que o incumprimento parcial do contrato é imputável à apelada, o que lhe confere, a ele, nos termos do artº 802º, o direito de exigir daquela o cumprimento daquilo que for possível, o que, no caso, equivale ao valor que terá de gastar com a eliminação dos defeitos, pelo que o pedido de condenação no pagamento da quantia de 4.000,00 € para eliminar as deficiências denunciadas durante o prazo da garantia, que a apelada não quis eliminar, se insere no direito a ser indemnizado naquele valor, não afastando a norma do artº921º o direito do apelante a pedir a condenação em quantia certa para ser indemnizado pelo incumprimento da apelada.
Falece a razão ao recorrente, como procuraremos demonstrar.
O artº 921º que, no contrato de compra e venda, regula a garantia de bom funcionamento, estatui, no seu nº 1, que, “se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substitui-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador”.
Resulta deste normativo que a garantia importa para o vendedor uma de duas obrigações: a de reparar a coisa ou, se a reparação não for possível e a coisa for fungível, a de a substituir.
Assim, se ocorrer algum defeito de funcionamento, deve o comprador exigir a reparação ou a substituição, nos termos indicados.
Se o vendedor não proceder à reparação (ou substituição, se esta se mostrar necessária) voluntariamente, só resta ao comprador fazer a sua exigência em juízo, não podendo substituir-se ao vendedor, mandando ele fazer a reparação ou providenciando pela substituição da coisa perante terceiros, por conta do vendedor.
Com efeito, se a lei diz, expressamente que é ao vendedor que cabe reparar ou substituir, sendo caso disso, a coisa vendida, então o comprador tem de exigir em juízo tal reparação ou substituição e só em caso de incumprimento da condenação é que pode exigir, em execução de sentença, o seu cumprimento por outrem, de acordo com o disposto nos artºs 817º do Código Civil e 933º do Código de Processo Civil.
A impossibilidade de cumprimento só se verifica se a coisa não puder ser reparada ou substituída.
O artº 802º prevê e regula a impossibilidade parcial da prestação.

No presente caso, não se verifica a impossibilidade parcial da prestação, uma vez que não está demonstrada a impossibilidade da reparação das deficiências na embraiagem e no sistema de ar condicionado, ou da substituição do veículo.

É o próprio autor que, na petição inicial, reconhece a possibilidade da reparação, ao indicar os trabalhos e colocação de peças que é necessário realizar para que as deficiências de funcionamento do veículo sejam eliminadas, bem como o valor da reparação que, segundo ele, importa em 4.000,00 € (v. artºs 37º e 40º da p.i.).
Não havendo impossibilidade de cumprimento – mas, quando muito, mora da ré -, não restava ao autor outra alternativa que não fosse a de exigir a reparação (ou substituição) do veículo, em conformidade, aliás, com o por ele afirmado na p.i. (v. artºs 41º e 42º), de que a ré está obrigada a reparar o veículo, porquanto se mantém a garantia dada aquando da sua aquisição.
Por isso, não se compreende como pretende o autor - e assim formulou o pedido subsidiário - ter direito a uma indemnização (de 4.000,00 €) para reparação do veículo, estribada no artº 802º.

Não tendo exigido o cumprimento da garantia, mas sim uma indemnização destinada à reparação do veículo, é óbvio que tinha tal pedido que improceder, como improcedeu, não merecendo, pois, censura a decisão recorrida, que não fez incorrecta aplicação das normas indicadas pelo recorrente, ou de quaisquer outras.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente.