Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
425/08.3PBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: CRIME DE FURTO DE USO DE VEÍCULO
ELEMENTOS DO TIPO
RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
VALORAÇÃO DE PROVAS
REGIME ESPECIAL DOS JOVENS DELINQUENTES
Data do Acordão: 12/16/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 208º DO CP; 410º,412º,428º DO CPP E 4ºA 7º DO DECRETO-LEI Nº 401/82, DE 23 DE SETEMBRO.
Sumário: 1.Verifica-se o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a correcta solução de direito porque faltam elementos que podiam e deviam ter sido indagados.
2.Alegando o recorrente apenas a sua discordância quanto à valoração da prova produzida em audiência, é evidente que a invocação do vício mais não é do que um erro na qualificação da figura jurídica prevista no artº 410º, nº 2.
3.O recurso com base na reapreciação da prova assenta numa nova valoração, pelo tribunal de recurso, dos meios de prova (conteúdo) produzidos em audiência ou incorporados nos autos e discutidos em audiência, nos quais assentou a decisão recorrida e que o recorrente tem por indevidamente valorados. Daí que se exija ao recorrente que identifique os factos concretos tidos por incorrectamente julgados bem como o conteúdo da provas (no caso dos depoimentos gravados, as passagens concretas contendo afirmações diversas das supostas na motivação da sentença recorrida) capazes de, apreciadas à luz dos critérios legais em vigor, impor decisão diversa da recorrida — cfr. art. 412º, n.ºs 3, 4 e 6 do CPP —, devendo o recorrente substanciar os fundamentos do recurso, o mesmo é dizer, identificar o erro in operando ou o erro in judicando que aponta à decisão recorrida, bem como o conteúdo concreto dos meios de prova capazes de, numa valoração em conformidade com os critérios legais, impor decisão diferente da recorrida.(AC.RC de 25/11/09, Relator. Desembargador Dr. Belmiro Andrade).
4.Como resulta evidente das conclusões e também da motivação (stricto sensu), o recorrente não impugnou a decisão nos termos acima referidos, ou seja, não especificou, nos termos dos nºs 3, alínea b. e 4, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. - limitou-se a afirmar que o depoimento das testemunhas tinha que ser reapreciado, não especificando em que parte ou porque razões. Assim sendo, não pode esta Relação reapreciar a prova gravada.
5.A exigência do art. 355.º, n.º 1 prende-se apenas com a necessidade de evitar que concorram para a formação daquela convicção provas que não tenham sido apresentadas e feitas juntar ao processo pelos intervenientes, com respeito pelo princípio do contraditório, e não que tenham de ser reproduzidas na audiência, isto é, lidas ou apresentadas formalmente aos sujeitos processuais todas as provas documentais dele constantes. Assim o tribunal a quo procedeu de acordo com a lei quando valorou o exame lofoscópico
6.Embora a jurisprudência não seja unânime no sentido de que a ponderação do regime previsto no Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro apenas terá lugar quando for aplicada pena de prisão[ No sentido de que também deverá ser ponderada em casos de condenação em pena de multa, cfr. Acs. da Relação do Porto de 8 de Julho de 1992 (Relator: Dr. Baião Papão) e de 9 de Abril de 2008 (Relator: Dr. Artur Oliveira), ambos em www.dgsi.pt ], entendemos que só neste caso se poderá chamar tal regime à colação.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

Por sentença proferida nos autos supra identificados, decidiu o tribunal, para além do mais, condenar o arguido L…[[1]] como autor de um crime de furto de uso de veículo previsto e punido pelo artº 208.º do Código Penal na pena de 190 (cento e noventa) dias de multa à taxa diária de € 7,00 (sete euros) e absolvê-lo dos crimes de furto previsto e punido pelo artº 203.º, nº1 e 204.º, nºs 1, alínea b. e 4, ambos do Código Penal e de condução sem habilitação legal previsto e punido pelo artº 3.º, nºs 1 e 2 e de condução de veículo a motor sem habilitação legal, previsto e punível pelos arts. 3º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.

Inconformado com o decidido, o arguido L… interpôs recurso, onde apresentado as seguintes conclusões (transcrição):

“I

Há vício de Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do disposto no artigo 412°, nº 2, al. a) do C.P.P..

II

Pretendendo com o presente recurso que seja efectuada uma reapreciação da prova produzida em sede de Audiência de Julgamento, bem como uma reapreciação da Interpretação e Aplicação do Direito, que motivou a condenação do Arguido, e em consequência, que o Arguido seja absolvido da prática do crime de furto de uso de veículo, p. e p. no artigo 208° do Código Penal, de que vinha acusado.

III

O Arguido considera que, em face da ausência de depoimentos dos Arguidos, como consta dos Autos, do ofendido E… bem como as proferidas pelas testemunhas A.., L C, do facto de não ter sido exibidos os exames lofoscópicos em sede

IV

Com efeito, em face desses elementos probatórios, tais factos 1 e 3 deveriam ter sido dados como não provados.

V

Com a reapreciação da prova, e considerando-se estes factos 1 e 3 como não provados, deveria ter havido lugar à absolvição do Arguido pela prática do crime de furto de uso de veículo, p. e p. no artigo 208° do Código Penal.

VI

Não estão verificados os pressupostos da prática do crime de furto de uso de veículo.

VII

Se os exames lofoscópicos não foram exibidos em sede de Audiência de Julgamento, facto que resulta da Acta da mesma, e se ao Arguido não foi dada a possibilidade de se pronunciar sobre os mesmos, não podem tais exames serem validados nos presentes Autos, sendo por isso Nula a Douta Sentença que se alicerçou nos mesmos, nos termos do disposto no artigo 379°, nº 1, al. c) do C.P.P., que expressamente se invoca e com as legais consequências.

VIII

A ser verdade que o Arguido tenha estado dentro da viatura e tenha deixado a impressão digital no espelho retrovisor, não permite, por si só, que se conclua que o Arguido tenha usado a viatura.

IX

Não se pode concluir que, o facto de haver uma impressão digital que poderá ser do arguido, seja suficiente para que seja deduzido que o Arguido teve intenção de apropriação de coisa alheia, ou de usar coisa

X

Se não se provou que tipo de uso foi dado pelo Arguido à viatura, nem quem conduziu a aludida viatura, não pode, Salvo o Devido Respeito, considerar-se como preenchido o tipo legal de crime p. e p. no artigo 208° do Código Penal.

XI

Pelo que, tendo em conta os elementos probatórios já mencionados, que deverão ser novamente apreciados por Vossas Excelências, deveriam dar-se como não provados os factos constantes dos pontos 1 e 3 dos factos provados.

XII

A Douta Sentença não teve em conta a idade do Arguido à data da prática dos factos, que tendo nascido a 07-01-1989, tinha à data dos factos a idade de 19 anos, e como tal, tinha que aplicar-se o disposto no D.L. 401/82 de 23 de Setembro.

XIII

Ao não ter sido tida em conta a idade do Arguido, constitui motivo de Nulidade da Douta Sentença, por haver omissão de pronúncia quanto a essa matéria.

XIV

Pois tal implicaria sempre uma especial atenuação da pena, que teria reflexos na pena de multa em que o mesmo foi condenado.

XV

Há também aqui Nulidade da Douta Sentença nos termos do disposto no artigo 379°, nº 1, al. c) do C.P.P., que expressamente se invoca, com as legais consequências.

XVI

No seguimento do nosso raciocínio, consideramos que há Vício de Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; Erro na Apreciação da Prova e Erro na Interpretação e Aplicação do Direito.

XVII

Consideramos que foram violadas, entre outras, as normas constantes dos artigos 379°, nº 1, al. c), do C.P.P.; D. L. 401/82 de 23/09, artigo 3° do C.P.C.; e artigo 208° do Código Penal.

XVIII

Termos em que, nos Doutamente Supridos, deve ser proferido Douto Acórdão que dê provimento ao presente recurso, revogando-se a Douta Sentença, proferindo-se Douto Acórdão que tenha em conta a prova que foi efectivamente produzida, com reapreciação da mesma, e seja o Arguido absolvido da pela prática do crime de furto de uso de veículo, p. e p. no artigo 208º do C.P., ou se assim se não entender, anular-se a Douta Sentença nos termos do artigo 379°, nº 1, al. c) do C.P.P., quer por ter sido tido em conta na mesma os exames de fls. 142 a 148, que não foram exibidos em sede de Audiência de Julgamento, nem sujeitos ao exercício do direito ao contraditório pelo Arguido, quer por não ter sido tida em conta a idade do Arguido à data da prática dos factos, aplicando-se uma especial atenuação da pena, nos termos do disposto no D.L. 401/82 de 23-09, com a consequente repetição do Julgamento, assim fazendo Vossas Excelências a Costumada e Necessária Justiça!”

Respondeu o Ministério Público defendendo a manutenção da decisão recorrida.

O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Nesta instância a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no qual se manifesta pela procedência do recurso na medida em que o tribunal a quo não se pronunciou sobre a aplicação do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro quando o deveria fazer, ainda que o arguido, com 19 (dezanove) anos à data da prática dos factos, haja sido condenado em pena de multa.

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal o arguido nada disse.

Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.

Cumpre conhecer do recurso

Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.

É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).

Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.

Questões a decidir:

- Vícios da sentença e erro na apreciação da matéria de facto

- Aplicação do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro

Na 1.ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade (transcrição):

“1º - No dia …/…/2008, entre as 19h30 e as 23h00, o arguido L… em circunstâncias não apuradas, entrou para o interior do veículo de marca Rover 214 SI, de matrícula …, no valor estimado de € 5.000,00 (cinco mil euros), propriedade E.. que se encontrava na rua Bernardo Lopes, na Figueira da Foz, nele se dirigindo depois para Coimbra, local onde o veio a abandonar até ser recuperado no dia …/…/.2008, na Rua …, em Coimbra, mediante indicação do arguido R…

2º- O sobredito veículo foi abandonado, com diversos riscos na pintura e com o fecho da mala forçado, com os dois tampões das rodas, de valor não apurado, retirados, tendo sido levado um blusão impermeável de cores verde e branca, de marca “Adidas”, de valor não apurado.

3º- Agiu o arguido L… de forma livre, com o propósito de utilizar tal veículo, contra a vontade do ofendido, seu proprietário, o que representou, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

4º- No período compreendido entre as 22h00 do dia 11.06.2008 e as 8h00 do dia 12.06.2008, indivíduos não identificados, dirigiram-se à rua Alto do Viso, na Figueira da Foz, onde lograram abrir, por modo não totalmente apurado, as portas do veículo Nissan Sunny, de matrícula…. que aí se encontrava estacionado propriedade de F…, após o que entraram no mesmo, conduzindo-o por esta cidade, onde o vieram a abandonar na Avenida do Brasil, na zona da Ponte Galante, na Figueira da Foz, no dia …/…/ 2008.

 5º- No dia 15.06.2008, entre a 1h00 e as 6h00, indivíduos não identificados dirigiram-se à Praceta Pinheiro Manso, em Buarcos – Figueira da Foz, onde utilizando para o efeito uma gazua, abriram o veículo Mitsubishi, de matrícula … propriedade de C…, do qual retiraram um auto-rádio Denver, CAD-450, no valor de € 100,00 e 5 maços de tabaco SG Ventil.

6º- Tal auto-rádio veio a ser escondido pelos ditos indivíduos junto a uns arbustos existentes na Estação de Caminhos de Ferro da Figueira da Foz, local este onde veio a ser apreendido, mediante indicação do arguido R...

7º- o arguido B… é primário:

8º- o arguido R.. foi condenado em …/…/2008 pela prática em   …/…/ 2008 e em …/…/2008 de um crime de furto de uso de veículo, em cúmulo jurídico, na pena única de 190 dias de multa à taxa diária de € 8,00; em …/…/2008 pela prática em 13-06-2008 de um furto de uso de veículo na pena de 130 dias de multa à taxa diária de € 8,00.

9º- o arguido L… foi condenado em …/../2007 por um crime de condução ilegal praticado em …./.2006 na pena de 40 dias de multa à taxa de € 3,00; em …/.2007 por um crime de furto simples praticado em …/.2007 na pena de 120 dias de multa à taxa de 5,00; em …/.2007 pela prática no mesmo dia de um crime de condução ilegal na pena de 150 dias de multa à taxa diária de € 7,00; em 05.03.2008 pela prática em …./2007 de um crime de condução ilegal na pena de 95 dias de multa à taxa diária de € 5,00; em …/ 2008, pela prática em …/.2008 de dois crimes de furto de uso e dois crimes de condução ilegal, em cúmulo jurídico, os dois primeiros, na pena única de 240 dias de multa à taxa de € 8,00; os dois segundos, na pena única de 6 meses de prisão suspensa pelo período de 1 ano.

10º-o arguido R… integra um agregado familiar extremamente carenciado: o pai de 53 anos de idade recebe € 328,18 de subsídio de desemprego; o irmão de 32 anos, pedreiro a exercer trabalho ocasional, não comparticipa nas despesas da casa; a mãe de 52 anos é remunerada pelo apoio dado a uma vizinha, numa pequena mercearia da baixa; recorre ainda ao apoio alimentar de instituições locais; vivem na iminência de despejo com 11 meses de renda em atraso; o abandono escolar de R… intensificou o seu consumo de drogas, em particular cocaína; assume a liderança de grupos de delinquentes a que se associa; a sua experìência profissional é diminuta: trabalhou no …. no Dolce Vita: abandonou o trabalho, sem justificação 15 dias depois do seu início; toma inadequadamente a insulina de que depende desde os dois anos, o que já lhe causou dois comas diabéticos; não voltou à consulta de endocrinologia nos HUC onde deveria ser seguido;

11-º o arguido B.. tem vindo a ser seguido em consulta de intervenção psicológica; frequentou um curso profissional na área da mecânica com classificação de “Bom”; a separação dos pais contribui para alguns comportamentos desviantes; no interior da instituição (Quinta da Conraria) que frequenta, nunca teve qualquer comportamento anti-social reagindo bem à crítica.”

Quanto à factualidade não provada, consignou-se (transcrição):

“2- Factos não provados.

- que o arguido R.. se dirigiu à rua Bernardo Lopes na Figueira da Foz e que utilizando uma vareta de óleo, abriu a porta do veículo id no ponto 1º(dos factos provados)-, nele entrando para depois se dirigir no mesmo para Coimbra e o abandonar, no local aí descrito;

- que os arguidos R.. e L… retiraram deste veículo os objectos descritos no ponto 2º-(dos factos provados);

- que o arguido R.. agiu de forma livre, concertada, em comunhão de esforços com o arguido L.. e com o propósito concretizado de utilizar o veículo id no ponto 1º-(dos factos provados), contra a vontade do ofendido, seu proprietário, o que representou;

- que os arguidos R.. e L.. agiram de forma livre, concertada, em comunhão de esforços, com o propósito concretizado de fazerem seus os objectos descritos em 2º-(dos factos provados), contra a vontade do ofendido, o que representaram;

- que as condutas descritas em 4º-(dos factos provados) tenham sido praticadas pelo arguido R… na companhia de outros indivíduos;

- que agiu de forma de forma livre, concertada, em comunhão de esforços e com o propósito concretizado de utilizar o veículo id em 4º-(dos factos provados), contra a vontade do ofendido, seu proprietário, o que representou;

- que as condutas descritas em 5º-(dos factos provados) tenham sido praticadas pelo arguido R… juntamente com outros indivíduos;

- que o arguido R… agiu de forma livre, concertada, em comunhão de esforços e com o propósito concretizado de fazer seus os objectos descritos em 5º-(dos factos provados), contra a vontade e em prejuízo da ofendida, o que representou; e

- que o arguido R… e demais indivíduos tenha praticado os factos indicados no ponto 6º-(dos factos provados).

O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

“A convicção sobre os factos provados resultam dos vestígios lofoscópicos recolhidos no interior do veículo de marca Rover propriedade de E... De acordo com tal relatório, o vestígio palmar recolhido no “vidro retrovisor interior” desse veículo identifica-se com uma zona da mão direita do arguido L… , pelas razões melhor descritas no relatório de fls 142 a 148. 

E, levando-se em conta a localização de tais vestígios, a que acresce a circunstância de o L…, não ter apresentado qualquer razão para a existência, no vidro retrovisor daquele carro, das suas impressões digitais, nem ter posto em causa tal prova pericial, permite-nos concluir, sem qualquer margem para dúvidas, os factos descritos no ponto 1º e 3º acima descritos.

Com efeito, pese embora nenhuma das testemunhas tenha presenciado os factos e os agentes de autoridade, ouvidos, se tenham limitado, nesta parte, a fazer um relato das investigações, existe, porém, este outro elemento de prova que no caso se apresenta como muito relevante e que é determinante para a formação da convicção do tribunal.

É que, segundo as regras da experiência, o facto de serem encontradas impressões digitais de uma pessoa no interior de um veículo, significa que essa pessoa esteve de facto no seu interior e tratando-se de um veículo de serviço particular, em que o ofendido é pessoa desconhecida do arguido e relativamente à qual essa pessoa não tem qualquer ligação, profissional ou outra, é seguro concluir pela sua ilegítima introdução no seu interior. E, nesta parte, ainda que não se tenha apurado por que forma tal introdução se deu, nem a forma de contribuição deste arguido para o acto, sempre tal circunstância não relevará, conforme melhor se deixará explanado no enquadramento destes factos ao direito.

Além disso, segundo as declarações do próprio ofendido e dos agentes da PSP A…e LC o veículo em causa veio a ser recuperado em Coimbra, daqui podendo concluir-se a sua utilização por este mesmo arguido, ademais, atento o local em que se encontravam as impressões digitais.

Quanto à personalidade, condições de vida dos arguidos R…  e B.., valeu-se o tribunal, no relatório social juntos aos autos a requerimento do primeiro e no depoimento da testemunha C..  psicólogo clínico na Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra, indicada, em sua defesa, pelo segundo, únicos elementos de prova disponíveis, uma vez que os arguidos optaram por não prestar declarações.

Os seus antecedentes criminais resultam dos CRCs actualizados juntos aos autos.

Quanto aos restantes factos, pese embora todo o contributo prestado pelos ofendidos e agentes de autoridade no relato das diligências de investigação efectuadas, não foi possível alcançar a prova dos mesmos.

Com efeito, nada impede que as testemunhas sejam ouvidas, como foram, sobre outras diligências realizadas no inquérito para apuramento da verdade, designadamente sobre a reconstituição dos factos, meio de prova admitido no artigo 150.º do Código de Processo Penal.

Contudo, a circunstância de um dos arguidos ter participado na reconstituição dos factos não tem, nem o efeito de fazer corresponder esse acto a declarações suas para se concluir pela impossibilidade de valoração daquele meio de prova, nem o efeito de lhe atribuir mais valor do que isso mesmo.

Na verdade, a reconstituição dos factos, como meio de prova, tem por finalidade verificar se um facto poderia ter ocorrido nas condições em que se afirma ou supõe a sua ocorrência e na forma da sua execução - Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, pg. 196.

Ponto é que só sejam valorados como provas o que as testemunhas observaram, e não as revelações do arguido feitas durante a realização dessas diligências. [Veja-se neste sentido acórdão do STJ de 14/06/06. No sentido de que os agentes da Polícia Judiciária que procederam à reconstituição do crime podem depor como testemunhas sobre o que se terá passado nessa reconstituição, pronunciaram-se os acórdãos deste Supremo Tribunal de 11-12-1996, BMJ 462, pág. 299, de 22-4-2004, CJ, STJ, XII, tomo II, pag. 165].

Ora, no presente caso, uma vez que os arguidos não confessaram os factos, nem quiseram prestar declarações, por ausência de qualquer outra prova (directa / presencial), não pode a reconstituição dos factos feita por um dos arguidos servir para dar como provados quaisquer outros factos.

Isto para concluir que a acusação pública não poderá no mais proceder.”


******

Resulta das conclusões que o recorrente considera que o tribunal a quo deveria ter dado como não provada a factualidade constante dos pontos 1 e 3 da sentença, o que determinaria a sua absolvição.

Vejamos:

A impugnação da decisão sobre a matéria de facto pode ter dois fundamentos:

- verificação dos vícios previstos no artº 410º, n.º 2 do Código de Processo Penal[[2]] e

- erro na apreciação da prova produzida em audiência

O primeiro dos fundamentos, como resulta claro do corpo do nº 2, tem de emergir do texto da própria decisão por si só ou conjugada com as regras da experiência comum e o segundo assenta em erro do tribunal na apreciação da prova que perante si foi produzida.

Ora, a modificabilidade pela relação da decisão de facto da 1ª instância com base neste segundo fundamento só pode ter lugar quando se verifiquem os requisitos estabelecidos no art.º 431.º do mesmo diploma e que são:

a) se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base,

b) se a prova tiver sido impugnada, nos termos do art.º 412.º n.º 3 ou

c) se tiver havido renovação da prova.

Por sua vez, o referido n.º 3 do art.º 412.º impõe ao recorrente que impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o dever de especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas

Dispõe, ainda o n.º 4 que ”quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.

Temos assim que a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto é susceptível de modificação se, para além do mais, tiver sido impugnada nos termos do art.º 412.º nº 3 e 4[[3]].

Ora, os passos a seguir quanto à prova gravada estão claramente descritos na norma e são de fácil apreensão.

Contudo, não raramente, os recorrentes atropelam tais comandos e vêem defraudadas as suas expectativas.

Com efeito, como é jurisprudência uniforme[[4]], a apreciação do recurso da matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo mas, apenas e tão só, um remédio jurídico que visa despistar e corrigir os erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente[[5]].

Por isso, as alterações introduzidas no Código de Processo Penal pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto vieram clarificar determinados pontos da lei anterior que foram alvo de interpretações discrepantes.
É agora a lei muito mais clara ao impor ao recorrente que nas conclusões especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (e as concretas provas a renovar) e que, estando em causa a prova gravada, com referência o consignado na acta — quanto ao registo áudio ou vídeo das prova prestadas em audiência —, indique concretamente as passagens[[6]][[7]] em que se funda a impugnação pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nºs 4 e 6 do art.º 412º[[8]][[9]].

Ora, como diz Paulo Pinto de Albuquerque em “Comentário do Código de Processo Penal”, pág. 1135, a «especificação dos”concretos pontos de facto" só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado» e a «especificação das”concretas provas" só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida».

Aliás, como já se entendera no AcSTJ de 9 de Março de 2006[[10]], onde se pode ler que”se o recorrente se dirige à Relação limitando-se a indicar alguma prova, com referência a suportes técnicos, mas na totalidade desses depoimentos e não qualquer segmento dos mesmos, não indica as provas que impõem uma decisão diversa quanto à questão de facto, pois o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.

Acresce que ao determinar o n.º 6, do art.º 412º que “no caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas (…)”, se terá que concluir que as concretas provas terão de corresponder a segmentos das declarações ou do depoimento e não a toda a extensão dos mesmos.

Aliás, é esta a interpretação que a nosso ver corresponde à mens legislatoris, tal como resulta da proposta de Lei nº 109/X, onde consta que «no âmbito da motivação, para pôr cobro a uma das principais causas da morosidade na tramitação do recurso, elimina-se a exigência de transcrição da audiência de julgamento. O recorrente pode referir as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida indicando as passagens das gravações; não é obrigado a proceder à respectiva transcrição (artigo 412.º). O tribunal ad quem procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que, porventura, considere relevantes».

Temos assim, em resumo, que, como se explica no Acórdão da Relação de Coimbra de 25 de Novembro de 2009 em que é relator o Exmo. Desembargador Belmiro de Andrade, “o recurso com base na reapreciação da prova assenta numa nova valoração, pelo tribunal de recurso, dos meios de prova (conteúdo) produzidos em audiência ou incorporados nos autos e discutidos em audiência, nos quais assentou a decisão recorrida e que o recorrente tem por indevidamente valorados. Daí que se exija ao recorrente que identifique os factos concretos tidos por incorrectamente julgados bem como o conteúdo da provas (no caso dos depoimentos gravados, as passagens concretas contendo afirmações diversas das supostas na motivação da sentença recorrida) capazes de, apreciadas à luz dos critérios legais em vigor, impor decisão diversa da recorrida — cfr. art. 412º, n.ºs 3, 4 e 6 do CPP —, devendo o recorrente substanciar os fundamentos do recurso, o mesmo é dizer, identificar o erro in operando ou o erro in judicando que aponta à decisão recorrida, bem como o conteúdo concreto dos meios de prova capazes de, numa valoração em conformidade com os critérios legais, impor decisão diferente da recorrida.”

Posto isto, vejamos:

Diz o recorrente nas suas conclusões:

“Há vício de Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do disposto no artigo 412°, nº 2, al. a) do C.P.P..”

Sendo evidente que há lapso na indicação da norma (o recorrente queria referir-se ao artº 410º e não ao artº 412º), diremos que nenhuma razão lhe assiste.

Com efeito, como resulta evidente das conclusões — e também da motivação (stricto sensu) —, o recorrente fundamenta este seu entendimento no facto de considerar que o tribunal apreciou erradamente a prova produzida.

Porém, este vício verifica-se “quando da actualidade vertida na decisão em recurso, se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição” (Ac. do STJ de 97-05-08, Ac.s STJ V, 2, 200) pelo que, como explica o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 2009[[11]], “se os factos provados permitem uma decisão, (…), não existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada mas, eventualmente, se for o caso, erro de julgamento e de integração dos factos provados.”([12]).

Em suma, verifica-se este vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a correcta solução de direito porque faltam elementos que podiam e deviam ter sido indagados.

Ora, alegando o recorrente apenas a sua discordância quanto à valoração da prova produzida em audiência, é evidente que a invocação do vício mais não é do que um erro na qualificação da figura jurídica prevista no artº 412º, nº 2.

Apreciando agora a invocada discordância quanto à valoração da prova.

Como resulta evidente das conclusões e também da motivação (stricto sensu), o recorrente não impugnou a decisão nos termos acima referidos, ou seja, não especificou, nos termos dos nºs 3, alínea b. e 4, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.

Limitou-se a afirmar que o depoimento das testemunhas tinha que ser reapreciado, não especificando em que parte ou porque razões.

Ou seja, limita-se a fazer uma afirmação sem qualquer conteúdo válido para efeitos do disposto nas normas acima referidas.

Assim sendo, não pode esta Relação reapreciar a prova gravada.

Fica assim o objecto do recurso quanto à matéria de facto limitado à parte em que o recorrente considera que o tribunal não poderia ter valorado os exames lofoscópicos porquanto os mesmos não lhe foram exibidos durante a audiência de discussão e julgamento.

Sem deixarmos de anotar que o recorrente não indicou a norma que considera violada, que o exame lofoscópico era uma das provas apresentadas com a acusação e que não se vê como poderia o tribunal confrontá-lo com o referido exame uma que não quis prestar declarações, diremos que mais uma vez não tem razão.

Com efeito, tratando-se de um documento junto aos autos durante o inquérito e constando o mesmo da acusação como meio de prova, já se mostra cumprido o contraditório aquando da abertura da audiência.

É o que resulta claro da letra da lei.

Aliás, a jurisprudência e a doutrina são unânimes em considerar que os documentos juntos aos autos antes da audiência de julgamento e para os quais o interessado haja sido notificado, podem validamente ser usados em sede de fundamentação da sentença.

A este respeito é elucidativo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Setembro de 2009[[13]], o qual, para melhor entendimento, se transcreve parcialmente. Diz-se nele:

“(…), este problema há muito que tem solução estabilizada na jurisprudência deste Supremo Tribunal, de tal forma que basta ler qualquer código anotado, com destaque para o do Conselheiro Maia Gonçalves, o dos Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques e, actualmente, o de Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal), para imediatamente se encontrarem esclarecimentos a propósito da confusão que se tem gerado com a interpretação do referido art. 355.º, na exigência absurda de que todas as provas, incluindo as provas documentais constantes do processo, têm de ser reproduzidas na respectiva audiência de julgamento, se se pretende fazê-las valer e entrar com elas para a formação da convicção do tribunal. Inclusive o próprio Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a matéria no Acórdão n.º 87/99, de 09-02-99, que recusou a inconstitucionalidade da interpretação conjugada dos arts. 127.º, 355.º e 165.º, n.º 2 do CPP, no sentido de que a formação da convicção a partir de documentos juntos com a acusação, constantes dos autos, não lidos nem explicados na audiência, viola o princípio do contraditório.

A exigência do art. 355.º, n.º 1 prende-se apenas com a necessidade de evitar que concorram para a formação daquela convicção provas que não tenham sido apresentadas e feitas juntar ao processo pelos intervenientes, com respeito pelo princípio do contraditório, e não que tenham de ser reproduzidas na audiência, isto é, lidas ou apresentadas formalmente aos sujeitos processuais todas as provas documentais dele constantes. Basta que existam no processo com pleno conhecimento dos sujeitos processuais, que puderam inteirar-se da sua natureza, da sua importância e do seu conteúdo, bem como do seu valor probatório, para que qualquer desses sujeitos possa, em audiência, requerer o que se lhe afigurar sobre elas, examiná-las, contraditá-las e realçar o que, do seu ponto de vista, valem em termos probatórios. Neste sentido, tais provas são examinadas em audiência, sob a presidência dos princípios da imediação e do contraditório, podendo concorrer sem reservas para a convicção do tribunal.

Aliás, de acordo com o preceituado no art. 340.º, n.ºs 1 e 2 do CPP, o tribunal ordena, oficiosamente ou sob requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigurar necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, e se considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta. Isto, exactamente porque, nos termos do referido art. 355.º, só podem valer para a formação da convicção do tribunal as provas produzidas ou examinadas em audiência.

Ora, se as provas, nomeadamente as provas documentais, já constam do processo, tendo sido juntas ou indicadas por qualquer dos sujeitos processuais e tendo os outros sujeitos delas tomado conhecimento, podendo examiná-las e exercer o direito do contraditório em relação a elas, não se vê razão para que elas tenham de ser obrigatoriamente lidas ou os sujeitos processuais obrigatoriamente confrontados com elas em julgamento para poderem concorrer para a formação da convicção do tribunal. O sujeito processual que assim o requeira pode sempre fazer examinar esta ou aquela prova, chamando a atenção para este ou aquele aspecto, ou pôr em causa de qualquer forma o seu valor e mesmo a sua validade. Daí que o princípio da produção da prova na audiência de julgamento, tal como decorre do art. 355.º do CPP, se manifeste nestes casos, mesmo independentemente da sua concreta (re)produção ou da leitura do seu conteúdo em audiência, sendo essa leitura permitida (isto é, não proibida) – Cf. Acórdão do STJ de 23/2/2005, Proc. n.º 37/2005, da 3.ª Secção, in Sumários dos Acórdãos do STJ n.º 88, p.105 e Acórdão de 15/02/2007, Proc. n.º 4092/06, da 5.ª Secção, de que foi relator o mesmo deste recurso).”

Temos assim que o tribunal a quo procedeu de acordo com a lei quando valorou o exame lofoscópico, pelo que também nesta parte falece qualquer razão ao recorrente.

Vejamos agora se lhe assiste razão quando afirma que os factos em causa foram dados por provados porque o tribunal valorou inadequadamente o referido exame.

Como acima já foi aflorado e é jurisprudência unânime, a decisão da matéria de facto só é alterável se as provas apresentadas pelo recorrente impuserem decisão diversa, ou seja, não basta que a prova apresentada permita uma outra decisão, é necessário que imponha outra decisão. Se apenas permitir, vale a decisão do tribunal porquanto é este a entidade competente para decidir[[14]].

No caso dos autos, o tribunal a quo indicou os meios de prova em que alicerçou a sua convicção e procedeu ao seu exame crítico de forma a tornar compreensível o processo lógico-racional que conduziu a essa convicção, ou seja, as finalidades intraprocessuais de reexame da decisão e extraprocessuais de compreensão do sentido da decisão pela arguida (e demais sujeitos processuais e comunidade), mostram-se atingidas através da fundamentação.

Temos assim que, conhecendo-se pela fundamentação da matéria de facto consignada na sentença o caminho lógico que levou o tribunal a quo a considerar provado os factos postos em causa pelo recorrente, deveria este ter-se limitado a sindicar esse percurso e a indicar as provas que impunham uma decisão diversa[[15]].

No entanto, o recorrente nem sequer critica a fundamentação apresentada pelo tribunal.

Passa por ela como se a mesma não existisse e apresenta o seu próprio julgamento como se não fosse o tribunal a entidade competente para julgar.

Com efeito, no que respeita aos factos que impugna, enquanto o tribunal demonstra que fundamentou a sua convicção num conjunto de provas e explica o iter lógico e racional trilhado, o recorrente, embora afirme que os factos em causa não ficaram provados, limita-se, em defesa da sua tese, e passando rigorosamente ao lado da fundamentação do tribunal, a tecer comentários genéricos sobre o meio de prova em causa sem que explique qual foi o erro do tribunal e sem que desenvolva o seu pensamento no sentido de demonstrar que o tribunal teria que decidir em sentido contrário.

Ora, diz o tribunal na sua fundamentação:

 “A convicção sobre os factos provados resultam dos vestígios lofoscópicos recolhidos no interior do veículo de marca Rover propriedade de E…. De acordo com tal relatório, o vestígio palmar recolhido no “vidro retrovisor interior” desse veículo identifica-se com uma zona da mão direita do arguido L…, pelas razões melhor descritas no relatório de fls 142 a 148. 

E, levando-se em conta a localização de tais vestígios, a que acresce a circunstância de o L… não ter apresentado qualquer razão para a existência, no vidro retrovisor daquele carro, das suas impressões digitais, nem ter posto em causa tal prova pericial, permite-nos concluir, sem qualquer margem para dúvidas, os factos descritos no ponto 1º e 3º acima descritos.

(…)

É que, segundo as regras da experiência, o facto de serem encontradas impressões digitais de uma pessoa no interior de um veículo, significa que essa pessoa esteve de facto no seu interior e tratando-se de um veículo de serviço particular, em que o ofendido é pessoa desconhecida do arguido e relativamente à qual essa pessoa não tem qualquer ligação, profissional ou outra, é seguro concluir pela sua ilegítima introdução no seu interior. E, nesta parte, ainda que não se tenha apurado por que forma tal introdução se deu, nem a forma de contribuição deste arguido para o acto, sempre tal circunstância não relevará, conforme melhor se deixará explanado no enquadramento destes factos ao direito.

Além disso, segundo as declarações do próprio ofendido e dos agentes da PSP A., LC o veículo em causa veio a ser recuperado em Coimbra, daqui podendo concluir-se a sua utilização por este mesmo arguido, ademais, atento o local em que se encontravam as impressões digitais.”

Como se vê, para além de ter tomado em consideração o depoimento das testemunhas que indica, faz apelo às regras da experiência, ou seja, tendo o veículo desaparecido do sítio onde se encontrava estacionado na Figueira da Foz e tendo sido encontrado em Coimbra, é adequado concluir que se atribua essa deslocação ao arguido uma vez que, não tendo ele qualquer razão legítima para conduzir a viatura, a sua impressão palmar da mão direita no espelho retrovisor interior.

E esta impressão palmar é, segundo as mais elementares regras da experiência, a prova que o arguido, sentado no banco do condutor, ajeitou o espelho retrovisor com a sua mão direita, o que é característico do início de condução em viatura anteriormente conduzida por outrem.

Com efeito, é do conhecimento geral que ao iniciarmos a condução, se o veículo foi anteriormente conduzido por outra pessoa, o espelho retrovisor interior não se encontra na posição adequada à nossa estatura e posição de condução e por isso temos que encontrar a posição correcta para o mesmo.

Ora, tal operação é efectuada com a mão direita, pois que é esta que permite a quem está sentado no banco do condutor manobrar o espelho com maior facilidade.

Temos assim que nenhuma censura merece a decisão sobre a matéria de facto.

*****

Insurge-se também o arguido pelo facto de o tribunal a quo não ter ponderado a aplicação do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, no que é acompanhado pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta.

Pede por isso que a sentença seja anulada por força do disposto no artº 379º, nº 1, alínea c..

Também aqui não lhe assiste razão.

O arguido tinha dezoito anos (completos) à data da prática do crime (nasceu em 7 de Janeiro de 1989 e que os factos ocorreram em 10 de Junho de 2008), mas tal não basta para que obrigatoriamente o tribunal tenha que ponderar o regime do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro.

Com efeito, embora a jurisprudência não seja unânime no sentido de que a ponderação do regime previsto no Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro apenas terá lugar quando for aplicada pena de prisão[[16]], entendemos que só neste caso se poderá chamar tal regime à colação.

E este entendimento resulta, desde logo do preâmbulo do diploma onde é notório que o legislador apenas teve em mente a pena de prisão: não só porque apenas ela é ali referida, como também porque, explica-se, havia que “instituir um direito mais reeducador do que sancionador, sem esquecer que a reinserção social, para ser conseguida, não poderá descurar os interesses fundamentais da comunidade, e de exigir, sempre que a pena prevista seja a de prisão, que esta possa ser especialmente atenuada, nos termos gerais, se para tanto concorrerem sérias razões no sentido de que, assim, se facilitará aquela reinserção.”

Acresce que, como também resulta leitura do nº 7 do preâmbulo, sempre que no diploma aparece a expressão “pena de prisão”, o que está em causa é a espécie da pena a aplicar concretamente ao arguido (artº 4º) ou a própria pena concreta (artºs 5º, nº 1 e 6º, nº 1).

Resulta daqui que apenas quando for de aplicar pena de prisão a um jovem que tendo completado dezasseis anos mas não tenha atingido vinte e um anos, terá o tribunal que ponderar a aplicação do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro[[17]].

Ora, tendo o tribunal optado por aplicar ao arguido uma pena de multa, bem andou ao não fazer tal ponderação.

Improcede assim, também nesta parte, o recurso.

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Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso.

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Custas pelo recorrente, fixando-se em 7 UC a taxa de justiça.

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Coimbra, 16 de Dezembro de 2009

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[1] L...
[2] Diploma a que pertencerão, doravante, todos os normativos sem indicação da sua origem
[3]  [O facto de a alínea b. do art.º 431.º remeter para o n.º 3 do art.º 412.º não exclui o n.º 4 uma vez que este se limita a regular o modo de em sede de recurso apresentar as provas especificadas em b. e c. do n.º 3 que hajam sido gravadas, ou seja, o n.º 4 nada mais é do que uma extensão do n.º 3.]
[4] [Entre outros, v. Acs STJ de 20 de Novembro de 2008, de 29 de Outubro de 2008, de 15 de Outubro de 2008 e de 14 de Maio de 2008 (todos em www.dgsi.pt]
[5] «(…) O julgamento em 2.ª instância não é o da causa, mas sim do recurso e tão-só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa, em que estão presentes, face ao Código actual, alguns apontamentos de imediação (somente na renovação da prova, quando pedida e admitida) e da oralidade (através de alegações orais, se não forem pedidas e admitidas alegações escritas.» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 59/06, de 18/01/2006 – ACS. Do Tribunal Constitucional, 64.º Vol., p. 399)
[6] São estas e não a integralidade das declarações ou dos depoimentos que constituem as provas que impõem decisão diversa da recorrida
[7] Como se diz no Acórdão da Relação do Porto de 14 de Fevereiro de 2000, Relator Dr. Baião Papão: “A referência aos suportes técnicos aludida no n.4 do artigo 412 do Código de Processo Penal é a indicação das metragens da fita gravada que contenha as declarações, depoimentos ou acareações que o recorrente decide invocar, com referência ao número e ao lado da cassete em que se inscrevam.
É insuficiente para servir de base à transcrição a simples remissão para os números das cassetes.
A transcrição deve ser efectuada pelo próprio tribunal subsequentemente à apresentação da motivação do recurso.”
[8] Só esta maior exigência, ou seja, só o reconhecimento de que o recurso da matéria de facto, tal como está actualmente delineado, reivindica mais tempo para ser elaborado, poderá justificar o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias
[9] No mesmo sentido, v.g., AcTRC de 25 de Junho de 2008, in www.dgsi.pt
[10] In www.dgsi.pt
[11] In www.dgsi.pt 
[12] Em complemento e por serem linearmente claros, reproduzimos os sumários dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 1998 e de 18 de Novembro de 1998 (processos n.º 310/98 e 855/98), dizendo-nos o primeiro que “só existe insuficiência da matéria de facto provada para a decisão quando o tribunal deixa de investigar, podendo fazê-lo, toda a matéria de facto relevante, de tal forma que os factos declarados provados não permitam, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador” e o segundo que “a insuficiência da matéria de facto para a decisão, como vício previsto pela al. a) do n.º 2 do art.º 410.°. do C.P.P. verifica-se quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito. E só existe se o tribunal deixar de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídico-criminal, pressupondo a existência de factos constantes dos autos ou derivados da causa que ainda seja possível apurar, sendo este apuramento necessário para a decisão a proferir”.
[13] In www.dgsi.pt 

[14] Note-se que a lei refere provas que imponham e não provas que permitam decisão diferente da recorrida, o que quer dizer que nos “casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Fevereiro de 2005, in www.dgsi.pt).

[15] Neste sentido, v.g., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Novembro de 2008, in www.dgsi.pt
[16] No sentido de que também deverá ser ponderada em casos de condenação em pena de multa, cfr. Acs. da Relação do Porto de 8 de Julho de 1992 (Relator: Dr. Baião Papão) e de 9 de Abril de 2008 (Relator: Dr. Artur Oliveira), ambos em www.dgsi.pt 

[17] No sentido de que a opção pela pena de multa afasta a posterior ponderação do regime do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, v.g., Acórdão da Relação de Coimbra, de 12 de Novembro de 2003 (Relator: Dr. Jorge Dias), Acórdão da Relação do Porto, de 4 de Outubro de 2006 (Relatora: Drª Isabel Pais Martins) e Acórdão da Relação de Lisboa, de 12 de Dezembro de 2006 (Relator: Dr. Vieira Lamim), todos em www.dgsi.pt