Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
126/10.2TBSRE.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
MUDANÇA
SERVIDÃO
Data do Acordão: 11/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 1305, 1543, 1544, 1545, 1568 CC
Sumário: 1. O proprietário do prédio serviente pode, a todo o tempo, exigir a mudança de servidão para outro sítio no mesmo prédio, noutro prédio seu, ou em prédio de terceiro, com consentimento deste, devendo suportar o respectivo custo (art.º 1568º, n.º 1, do CC).

2. Emanando duma faculdade irrenunciável (n.º 4 do mesmo art.º), trata-se, na mencionada previsão legal, de uma alteração do sítio por onde a servidão primitivamente se exercia no prédio serviente e que se deverá basear em razões de equidade, considerada a função social da propriedade nas relações entre vizinhos, sendo que a justa ponderação dos interesses em presença passa obrigatoriamente por um critério de proporcionalidade entre a necessidade ou conveniência da diminuição do encargo sobre o prédio serviente e o prejuízo que a mudança de servidão possa acarretar para prédio encravado.

3. O direito de mudança é uma aplicação do princípio segundo o qual o dono do prédio serviente não está inibido de fazer no seu prédio as alterações (que considere convenientes), desde que não prejudique ou só prejudique pouco os interesses do dono do prédio dominante.

4. A mudança da servidão (rectius, mudança do locus servitutis), feita à custa do requerente fica sempre subordinada a um duplo requisito: a) é necessário que ela se mostre conveniente ao dono do prédio serviente; b) é ainda essencial que não se prejudiquem os interesses do proprietário do prédio dominante, sendo certo que o que conta para este efeito são os interesses dignos de ponderação (interesses sérios ou relevantes) e não os meros caprichos ou comodidade do titular da servidão.

5. Nada obsta à mudança da servidão envolvendo a utilização de um caminho/trilho preexistente - conhecido por “serventia de inquilinos” e afecto à passagem dos donos dos terrenos confinantes, permissivo de passagens a pé, de carro de bois e tractor há mais de 30 anos -, sem que ninguém se oponha ou tenha interesse em impedir a passagem, incluindo do Réu (proprietário do prédio dominante), quando este já necessariamente percorre 30 m desse caminho/trilho para aceder à servidão primitiva e no qual a autarquia local fez obras de arranjo e alargamento à custa duma faixa de terreno do prédio serviente, implicando a mudança do lugar de exercício da servidão, na ligação do prédio dominante a esse caminho, a utilização de idêntica faixa de terreno daquele prédio.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. MR (…) e marido MC (…), intentaram a presente acção declarativa sumária[1], no Tribunal Judicial de Soure, contra J (…) divorciado, pedindo que este seja condenado a reconhecer que a A. é proprietária do prédio rústico identificado no art.º 1º da petição inicial (p. i.); que seja decretada a mudança da servidão de passagem por destinação de pai de família identificada nos art.ºs 7º, alínea b) e 8º da p. i., que onera o prédio identificado no art.º 1º a favor do prédio do Réu identificado no art.º 4º do mesmo articulado, do local onde se encontra estabelecida para o local que indica no art.º 26º da p. i., condenando-se o Réu a abster-se de passar pela primeira.
Subsidiariamente, pedem que seja decretada a alteração do modo de exercício da servidão de passagem existente, por forma a que o Réu a possa usar para passagem com veículos destinados às finalidades agrícolas e não com veículos alheios a tal fim, designadamente automóveis ligeiros ou comerciais, condenando-se o Réu a abster-se de passar no local com outros veículos que não sejam os que forem permitidos ou a pé.
Alegaram, em síntese, que a A. é titular do prédio rústico identificado no art.º 1º da p. i., onerado com uma servidão de passagem a favor do prédio rústico identificado no art.º 4º, de que é titular o Réu; nos últimos anos o prédio serviente sofreu profundas alterações, por força de obras de urbanização nele realizadas, em virtude do que a referida servidão de passagem se interpõe agora entre as traseiras das casas de habitação e os anexos aí construídos; a manutenção da servidão no local em causa é-lhes prejudicial e inconveniente, porquanto tal local também é utilizado e fruído diariamente pelos AA., que habitam no prédio urbano referido no art.º 11º/1 da p. i., para depósito de lenha e para guardar objectos e pertences, tendo necessidade de atravessar várias vezes ao dia pelo local para se deslocarem aos anexos (referido em 11º/4 da p. i.), sendo que aí param, conversam e recebem visitas; tal situação torna-se perigosa, pela possibilidade de serem surpreendidos por veículos em trânsito para o prédio do Réu, e impede a sua neta de brincar no local; a manutenção da servidão conduz à perda de privacidade, recato e sossego no local por parte dos AA., impede-os de fazer obras de ligação entre os anexos e a sua casa de habitação e é indutora de conflitos; existe outra alternativa de passagem ao longo da estrema poente do prédio dos AA., propondo-se realizar as obras necessárias a permitir o acesso ao prédio do Réu por aquele local, sendo idênticas as distâncias a percorrer em cada um dos casos; o prédio dominante confronta de nascente com a casa de habitação do Réu, a qual confronta directamente com a estrada pública, podendo o Réu aceder, de pé ou tractor, ao referido prédio rústico pelo interior do zimbório da sua casa, como o fazia o antecessor proprietário; o prédio dominante encontra-se afecto exclusivamente a fins de cultura/semeadura, pelo que não se justifica que a servidão de passagem seja exercida com veículo automóvel; o Réu chegou a realizar passagens de tractor por um prédio dum vizinho, adjacente do lado poente à servidão que ora lhe é proposta.
O Réu contestou, excepcionando a existência de causa prejudicial, uma vez que se encontra pendente a acção sumária n.º 128/08.9TBSRE, sendo as mesmas as partes, ainda que em vestes opostas, e tendo por objecto a mesma servidão que serve de fundamento à presente acção; a ocorrência de abuso do direito, porquanto os AA. alicerçam a sua pretensão, além do mais, em factos a que os próprios deram causa, ao negarem a passagem do Réu através do prédio serviente; e a ofensa de caso julgado, por considerar que parte dos factos alegados repristinam a controvérsia subjacente aos processos n.ºs 541/03.8TBSRE e 128/08.9TBSRE, ofendendo a decisão que onerou o prédio serviente dos AA. com a servidão de passagem que ora pretendem ver alterada (processo 541/03.8TBSRE)[2]; não se verificam os pressupostos da mudança de servidão e alteração do seu modo de uso, por pretenderem os AA. alterar o leito da servidão para prédio de terceiros, sem demonstrar a existência de consentimento para o efeito; o percurso que propõem, no sentido sul-norte/norte-sul, não está aberto e a estrema poente do prédio dos AA. termina em declive em mais de 1 m relativamente ao prédio imediatamente confinante, pelo que qualquer passagem aberta imediatamente junto a tal estrema, à falta de talude sustentado, alagará ao peso da circulação de um tractor; o leito alternativo proposto no sentido nascente-poente/poente-nascente não tem, ao longo da sua extensão, uma largura uniforme de 3 m, não consentindo em determinados locais a passagem de ceifeiras e tractores de maior porte, o trilho é irregular e o terreno não está compactado; o percurso proposto implica um acréscimo correspondente a cinco vezes mais da distância a percorrer pelo Réu; mesmo em caso de procedência da acção, a responsabilidade por custas deve recair sobre os AA., por darem causa à acção, uma vez que nunca procuraram obter junto do Réu a mudança da servidão ou do seu modo de uso. Concluiu pela improcedência da acção.
Em reconvenção, pediu a condenação dos AA. no pagamento de uma indemnização no valor de € 3 500 por danos morais causados pelas perturbações ao direito de passagem judicialmente reconhecido.
Replicando, os AA. concluíram pela procedência da acção e a inadmissibilidade e improcedência da reconvenção; “ampliaram a causa de pedir”; concretizaram o traçado da servidão alternativa que propõem, bem como as obras a realizar, e alegaram que o caminho proposto integra o prédio de que são titulares, sendo que o próprio Réu já percorria cerca de 40 a 50 m daquele prédio para alcançar a estrada pública.
Treplicou o Réu, concluindo como na contestação/reconvenção.
Por despacho de fls. 289 e seguintes a reconvenção foi rejeitada por legalmente inadmissível e desatendeu-se toda a matéria de excepção, nomeadamente, a do caso julgado.
Foi proferido despacho saneador (tabelar) e seleccionada a matéria de facto (assente e controvertida), aditada na sequência do articulado superveniente de fls. 323 (fls. 332).
Efectuado o julgamento, o Tribunal julgou a acção procedente, e, consequentemente, condenou o Réu a reconhecer que a A. é proprietária do prédio rústico composto de terra de semeadura e vinha com um poço, eira, barracão e árvores de fruto, que confronta a norte com herdeiros de AS (...) e PM (...), a nascente com estrada pública, PM (...) e MF (...), a sul com JC (...) e a poente com herdeiros de MD (...), descrito na CRP de Soure sob o n.º w (...)/19881129, da freguesia de Vinha da Rainha, sito em Janeiras – Porto Godinho, inscrito na matriz sob o art.º k (...) rústico (1); e autorizou a mudança da servidão de passagem por destinação de pai de família do caminho descrito em 6)[3] para o caminho descrito em 20) e 28)[4] da factualidade assente, este último melhor identificado no croquis de fls. 35 dos autos – servidão de passagem com 3 metros de largura, percorrendo o prédio dos AA. ao longo da sua estrema poente, desde o prédio do Réu até entroncar, perpendicularmente, no trilho do caminho conhecido como “serventia de inquilinos”, que permite o derradeiro acesso à via pública –, devendo, para o efeito, os AA. realizar (caso ainda não o tenham feito), à sua custa, obras na estrema poente do seu prédio, de modo a que o leito da servidão mantenha no local uma largura de 3 metros, colocando talude sustentado na extrema poente da passagem, de modo a viabilizar a passagem pelo local em segurança a pé, com carro de bois, tractores agrícolas e automóveis ligeiros (2).
Inconformado, o Réu interpôs a presente apelação, formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:
1ª - A mudança da servidão não é feita por prédio ou prédios da propriedade dos AA. - os AA., por ser facto constitutivo do seu direito, alegaram que o servitutes itineris alternativo continuava a onerar prédio seu; todavia não lograram provar que era assim (resposta negativa ao quesito 13º).
2ª - Os AA. nunca alegaram que o servitutes itineris iria mudar para prédio de terceiros, não identificaram o prédio(s) que suportaria a mudança, os seus donos, e não alegaram, nem provaram, que havia consentimento desses terceiros.
3ª - O Tribunal a quo, adaptando acórdão proferido no processo 67/09.6TBSPS.C1, não atentou que ali eram os AA. donos do prédio dominante e os Réus donos do prédio serviente; no caso sub judice, ao contrário, são os AA. donos do prédio serviente e o Réus dono do prédio dominante.
4ª - A mudança para um prédio diferente não configura modificação objectiva da servidão existente, mas a sua extinção, pedido que não foi formulado pelos AA., pelo que foi violado o princípio do dispositivo.
5ª - O consentimento de terceiros, não intervenientes nos autos, tem de ser traduzido através de escritura pública (art.º 80º, n.º 1 do C. Notariado); não existe uma presunção legal de consentimento de terceiros, não há uma presunção de facto, estando em causa direitos reais sobre bens imóveis.
6ª - Nas servidões prediais é premente a determinabilidade do objecto, não compaginável com decisões genéricas ou difusas – não é possível a mudança para um prédio de terceiros sem menção da descrição predial do prédio onerado, dos seus donos, postergando a oponibilidade da decisão.
7ª - O Tribunal a quo mudou a servidão de itinerário certo para itinerário incerto, remetendo o Réu para ulteriores conflitos com terceiros que, por experiência comum e normalidade de acontecer, não aceitarão a passagem naquilo que é seu.
8ª - Adivinha-se o fracasso do registo da sentença - o Conservador será confrontado com a omissão de identificação do(s) prédio(s) de terceiros que suportarão a servidão ora mudada.
9ª - Não foi alegado ou provado que o trilho localizado a Norte do prédio mencionado em c) e identificado como caminho no croquis de fls. 35 integrasse o domínio público que, de toda a sorte, não admite a mudança de servidões privadas.
10ª - Não ficou provado que o troço do “caminho” que o Réu já tinha de percorrer integrasse o mesmo prédio e pertencesse ao mesmo dono(s) da parte para onde foi agora mudada a servidão.
11ª - A falta do consentimento de terceiro concerne a elemento integrante do direito dos AA., implica a falta do próprio direito e determina a absolvição do pedido.
12ª - Não ficou provado que a persistência da servidão no mesmo local afectasse intoleravelmente a qualidade de vida/privacidade dos AA. que, também eles, utilizam o terreno onerado para passagens próprias.
13ª - Na parte que segue no sentido Nascente-Poente e vice-versa as obras não foram feitas à custa dos AA. mas da Junta de Freguesia Vinha da Rainha, e na parte do leito alternativo que segue o sentido Sul-Norte e vice-versa nada foi feito pelos AA..
14ª - A inexistência de factos bastantes para alicerçar a decisão tomada - não estão preenchidos os pressupostos do art.º 1568º, n.º 1, do CC – não consubstanciará uma nulidade da sentença, antes erro de julgamento.
15ª - Se assim não se entender, sempre haverá nulidade por contradição entre a decisão e os seus fundamentos de facto – o Tribunal autorizou a mudança da servidão para um “caminho” que, a final, diz percorrer o prédio dos AA., quando havia dado por provado que esse mesmo “caminho” não integra o prédio daqueles.
Termina pedindo a revogação da decisão apelada, julgando-se a acção improcedente e mantendo a servidão no itinerário que a mesma vinha conhecendo.
Os AA. responderam à alegação do Réu pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, apenas, se se verificam, ou não, os pressupostos necessários à pretendida mudança de servidão de passagem.
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II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:
a) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial (CRP) de Soure sob o n.º x (...)/20020918, da freguesia de Vinha da Rainha, o seguinte prédio sito em Janeiras, Porto Godinho, inscrito na matriz sob o art.º y (...) rústico: terra de semeadura, poço e árvores de fruto, que confronta a norte com MF (...), a sul com JS (...), a nascente com JC (...) e MF (...) e a poente com herdeiros de MD (...). (A)
b) O referido prédio encontra-se inscrito em nome do Réu, por decisão judicial, mediante a apresentação n.º 16, de 19.9.2002. (B)
c) Encontra-se descrito na CRP de Soure sob o n.º w (...)/19881129, da freguesia de Vinha da Rainha, o seguinte prédio sito em Janeiras – Porto Godinho, inscrito na matriz sob o art.º k (...) rústico: terra de semeadura e vinha com um poço, eira, barracão e árvores de fruto, que confronta a norte com herdeiros de AS (...) e PM (...), a nascente com estrada pública, PM (...) e MF (...), a sul com JC (...) e a poente com herdeiros de MD (...). (C)
d) Mediante a apresentação n.º 1, de 24.3.2006, encontra-se inscrita sobre este último prédio doação a favor da A., tendo como sujeitos passivos M (…) e O (..). (D)
e) Em escritura pública de doações outorgada em 30.12.2005, constante de fls. 21 a 32, em que foram 1.ºs outorgantes M (…) e mulher, O (…), 2.ª outorgante a A., 3.º outorgante M (…) e 4.º outorgante I (…), disseram os outorgantes o seguinte, além do mais que aqui se dá por reproduzido:
(…)
Pelos primeiros outorgantes foi dito:
Que são donos dos bens que passam a identificar
TODOS SITUADOS NA ÁREA DO CONCELHO DE SOURE NA FREGUESIA DE VINHA DA RAINHA
(…)
NÚMERO DOIS – Prédio rústico composto de terra de semeadura e vinha com um poço, eira, barracão e árvores de fruto, com área de mil oitocentos e dezoito vírgula sessenta e sete metros quadrados, situado em “Janeiras” – Porto Godinho, inscrito na respectiva matriz rústica sob o artigo k (...), com o valor patrimonial de 58,49€, e o patrimonial tributário de 58,49€, e descrito na CRP de Soure sob o número mil duzentos e quarenta e quatro – VINHA DA RAINHA, com inscrição de aquisição a favor dos doadores registada pela cota G-5, e com um ónus de não fraccionamento pelo período de dez anos, a contar de 22.9.2003, registada pela cota F-2.
(…)
Que pela presente escritura, dos relacionados bens, para os quais adoptam valores iguais aos referidos e respectivos patrimoniais tributários, fazem as seguintes doações:
Que à segunda outorgante, M (…), sua filha, doam os bens identificados como verbas números UM e DOIS.
(…)
Que estas doações são feitas por conta das quotas disponíveis deles doadores, e apenas com reserva do usufruto do prédio urbano identificado como verba número um.
(…)
E pelos segunda, terceiro e quarta outorgantes foi dito:
Que aceitam as respectivas doações nos termos exarados. (…) (E)
f) Correu termos neste Tribunal sob o n.º 541/03.8TBSRE acção onde foram Réus os referidos M (…) e mulher, O (…) e A. o aqui Réu J (…)na qual foi proferida sentença constante de fls. 219 a 230, já transitada em julgado, com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julgo a acção procedente por provada e, consequentemente, condeno os Réus: a) a reconhecerem que o autor é dono e possuidor do prédio rústico sito nas Janeiras, limite do lugar de Porto Godinho, composto de terra de semeadura com poço e árvores de fruto, com área de 4737,33 m2, a confrontar do sul com JS (...), do norte com MF (...), nascente com JC (...) e MF (...) e do poente com herdeiros de MD (...), inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Vinha da Rainha sob o artigo n.º y (...) e descrito na CRP de Soure sob o n.º x (...) da dita freguesia, o que se declara; b) a reconhecerem que se constituiu, por destinação do pai de família, a favor do mesmo uma servidão de passagem, com as características aludidas no artigo 27.º da p. i. [servidão de passagem com três metros de largura, a pé, com carro de bois (ultimamente, desde 1988, com tractores agrícolas e automóveis ligeiros) e animais, que percorria o prédio, então fracção, dos Réus ao longo de toda a sua extrema nascente, entroncando, perpendicularmente, numa “serventia de inquilinos” também ali existente, esta última permitindo o derradeiro acesso à via pública] sobre o prédio identificado no artigo 25.º do mesmo articulado [prédio rústico sito nas Janeiras, limite do lugar de Porto Godinho, freguesia de Vinha da Rainha, composto de terra de semeadura e vinha, com poço, eira, barracão e árvores de fruto, com área de 2 368,67 m2, a confrontar de sul com JC (...), do norte com serventia de inquilinos, do nascente com estrada pública e urbano de MF (...) e do poente com herdeiros de MD (...), não inscrito na matriz e não descrito na competente CRP]; c) a, futuramente, se absterem da prática de quaisquer actos que possam perturbar ou impedir a passagem pela servidão referida em b). (F)
g) O prédio referido na dita sentença corresponde ao prédio mencionado em II. 1. c). (G)
h) Actualmente o prédio mencionado em II. 1. c) confronta do nascente com os seguintes prédios: (i) Casa de habitação de rés-do-chão, com 4 assoalhadas, cozinha, casa de banho, corredor, despensa, adega, currais, barracão e logradouro, com a superfície coberta de 250 m2 e logradouro com 44 m2, sita em Porto Godinho, freguesia de Vinha da Rainha, concelho de Soure, a confrontar do norte com MF (...), sul com o Réu, nascente com estrada pública e poente com serventia, prédio este que é habitado pelos pais da A.; (ii) Casa de habitação de rés-do-chão, com 8 divisões: cozinha, sala de jantar, 3 quartos, sala de costura, marquise e casa de banho, com área coberta de 103,55 m2 e sótão amplo, a confrontar do norte com MF (...) (actualmente com PM (...)), sul com prédio mencionado em H-1, nascente com estrada e poente com MF (...) (actualmente com os AA.), inscrito na matriz sob o art.º 1062º da freguesia de Vinha da Rainha, prédio estes que é habitado pelos AA.; (iii) Casa de habitação de rés-do-chão e cave edificada sob a parcela de terreno para construção, com área de 550 m2, sito em Porto Godinho, freguesia de Vinha da Rainha, a confrontar do norte com herdeiros de AS (...), nascente com estrada pública, sul e poente com parcela remanescente [prédio mencionado em II. 1. c) donde proveio e foi desanexado por destaque], inscrito na matriz sob o art.º 1681 e habitado pelo filho dos AA.;  (iv) Barracão de alvenaria para arrumações, celeiro e adega, telheiro, barracão de chapa, eira, currais e pátio anexos e ao serviço dos prédios mencionados em (i), (ii) e (iii). (H)
i) Actualmente, a servidão mencionada em II. 1. f) atravessa o prédio aludido em II. 1. c) do sul para norte, interpondo-se entre as traseiras dos prédios referidos nas alíneas (i), (ii) e (iii) e o terreno e os anexos indicados em (iv), de II. 1. h). (I)
j) Tanto os AA. como os pais da A. atravessam a passagem mencionada em I. 1. f) várias vezes ao dia para irem aos ditos anexos. (J)
k) O prédio mencionado em II.1 a) confronta do nascente com uma casa, de rés-do-chão e anexos, que constitui a habitação do Réu, a qual confronta directamente com a Rua Principal, do Porto Godinho. (K)
l) Os AA. e os pais da A. param e conversam no leito da passagem mencionada em II. 1. f) e aí depositam lenha para consumo nas habitações. (resposta ao art.º 1º)
m) Tendo a necessidade de realizar constantes travessias para os anexos supra mencionados sob a alínea (iv). (resposta ao art.º 2º)
n) A manutenção da servidão conduz a perda de algum recato e sossego no local, porque situada imediatamente junto das casas de habitação, impedindo a neta dos AA. de brincar naquele local à vontade. (resposta ao art.º 3º; 5º)
o) O Réu pode passar a pé[5] pelo interior do zimbório da casa mencionada em II. 1. k), desde a estrada directamente para o prédio referido em II. 1. a), sendo que o portão existente naquela casa que deita para este último prédio tem de abertura 2,40 m e de altura 2,40 m, e o que deita para a estrada tem de abertura 2,20 m e de altura 2,85 m. (resposta aos art.ºs 6º e 7º)
p) O antecessor proprietário, (…), passava pelo interior do zimbório para aceder ao prédio mencionado em II. 1. a), designadamente com carros de bois e/ou tractor. (resposta ao art.º 8º)
q) O Réu chega mais rapidamente da estrada ao prédio mencionado em II. 1. a) indo pelo interior do zimbório do que através da passagem mencionada em II. 1. f). (9º)
r) O prédio mencionado em II. 1. a) está afecto exclusivamente a fins de cultura/semeadura, impondo as suas necessidades apenas a entrada de máquinas agrícolas para trabalhar a terra e colher os frutos. (resposta ao art.º 10º)
s) Desde que o Réu o comprou até ao ano passado, o prédio mencionado em II. 1. a) não foi cultivado, encontrando-se em pousio. (resposta ao art.º 11º)
t) O trilho localizado a norte do prédio mencionado em II. 1. c) e identificado como caminho no “croquis” de fls. 35 era composto até Agosto de 2011 de terra batida, estando afecto à passagem dos donos dos terrenos confinantes e era conhecido por “serventia de inquilinos”. (resposta ao art.º 12º)
u) O trilho localizado a norte do prédio mencionado em II. 1. c) e identificado como caminho no “croquis” de fls. 35 permite passagens a pé, de carro de bois e tractor há mais de 30 anos, sem que ninguém se oponha ou tenha interesse em impedir a passagem, incluindo do Réu. (resposta ao art.º 14º; 15º)
v) Para aceder da estrada à passagem mencionada em II. 1. f) o Réu tem de percorrer 30 m do referido caminho. (resposta ao art.º 16º)
w) À data da propositura da acção até Agosto de 2011, o referido trilho na maioria do seu percurso tinha de largura cerca de 2 m, não permitindo a passagem de ceifeiras e tractores de maior porte, designadamente se acoplados com fresas[6], pás niveladoras ou reboques para carga de colheitas. (resposta ao art.º 18º; 19º)
x) O referido trilho, à data da propositura da acção, e até Agosto de 2011, apresentava-se em terreno irregular, não compactado, invadido por vegetação de crescimento espontâneo, propício ao tombo de tractores pela existência, na altura, de pronunciado declive. (resposta ao art.º 20º)
y) À data da propositura da acção, e até Agosto de 2011, na extrema poente, o prédio mencionado em II. 1. c) terminava em declive, com altura de cerca de um metro relativamente ao prédio (pinhal) imediatamente entestante. (resposta ao art.º 21º)
z) Qualquer passagem aberta junto a tal extrema, à falta de talude sustentado, alagará ao peso da circulação de um tractor, que tombará para o prédio vizinho. (22º)
aa) Os prédios mencionados em (i), (ii) e (iii) do ponto II. 1. h) encontram-se separados do leito da passagem mencionada em II. 1. f) por muretes[7], muros e paredes. (23º)
bb) Em Agosto de 2011, a pedido dos proprietários dos prédios aí existentes, a Junta de Freguesia da Vinha da Rainha, através de máquinas adequadas para o efeito, procedeu à realização de obras no trilho localizado a norte do prédio mencionado em II. 1. c), identificado como caminho no “croquis” de fls. 35 e referido em II. 1. u), tendo na parte poente da sua extensão onde mais se justificava, procedido ao seu alargamento para a largura entre 2,80 m e 3 m, bem como ao nivelamento do respectivo leito em terra batida e compactada. (resposta ao art.º 24º; 25º)
cc) Encontrando-se colocado “tout-venant” pelo leito do caminho[8], tornando-o mais resistente e firme. (resposta ao art.º 26º)
dd) O referido alargamento foi conseguido à custa do rasgo e inutilização duma faixa de terreno integrante do prédio mencionado II. 1. c), ao longo do seu topo norte onde margina com o trilho, de nascente para poente. (art.º 27º)
ee) O trilho referido em II. 1. u) encontra-se assim, presentemente, todo ele, em terreno regular, compactado, limpo e desimpedido, sem invasão de qualquer vegetação, totalmente permissivo da passagem de tractores, ceifeiras ou veículos. (resposta ao art.º 28º)
2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.
Decorre dos autos que os últimos anos do relacionamento entre as partes (e antecessores) têm sido marcados pela situação de litígio, tendo por referência o se e o como da servidão de passagem em análise.
Sendo agora inquestionável a existência de uma servidão de passagem constituída em benefício do prédio do Réu com a configuração e demais características aludidas em II. 1. f), supra, têm os autos por objecto, na presente “fase”, o problema de saber se estão reunidos os pressupostos/requisitos para a pretendida mudança da dita servidão por ser da conveniência dos AA. e não prejudicar os interesses do Réu, proprietário do prédio dominante.
Sem quebra do respeito sempre devido por entendimento contrário, afigura-se que a resposta deverá ser afirmativa.
3. O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem” (art.º 1305º, do Código Civil[9]).
A natureza absoluta dos direitos reais depreende-se da exclusividade reconhecida neste artigo ao proprietário, o qual vale como afirmação de que tais direitos são “jura excluendi omnes alios”; porém, isso não implica que o sistema não introduza cláusulas de limitação a esse poderes, além do mais, as decorrentes das chamadas relações de vizinhança, também subjacentes à matéria das servidões prediais.[10]
A servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente (diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia), sendo certo que o dono do prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão (art.ºs 1543º e 1568º, n.º 1).
O direito de servidão (predial) é um ius in re aliena, um direito real de gozo limitado (menor) - o encargo (sobre o prédio onerado/serviente) é imposto em proveito de outro prédio pertencente a dono diferente (prédio dominante), verificando-se, assim, uma restrição ou limitação ao conteúdo do direito de propriedade sobre o prédio onerado.[11]
Podem ser objecto de servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante (art.º 1544º).
4. O proprietário do prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão, mas pode, a todo o tempo, exigir a mudança dela para sítio diferente do primitivamente assinado, ou para outro prédio, se a mudança lhe for conveniente e não prejudicar os interesses do proprietário do prédio dominante, contanto que a faça à sua custa; com o consentimento de terceiro pode a servidão ser mudada para o prédio deste (art.º 1568º, n.º 1).
Decorre de tal preceito a admissibilidade da mudança da servidão, inclusive, para prédio de terceiro, desde que verificado o consentimento deste, o que constitui clara derrogação ao princípio segundo o qual as servidões são inseparáveis dos prédios (art.º 1545º).
A mudança da servidão (rectius, mudança do locus servitutis), feita à custa do requerente [no caso do n.º 1, do proprietário do prédio serviente], fica sempre subordinada a um duplo requisito: a) é necessário que ela se mostre conveniente ao dono do prédio serviente; b) é ainda essencial que não se prejudiquem os interesses do proprietário do prédio dominante, sendo certo que o que conta para este efeito são os interesses dignos de ponderação (interesses sérios ou relevantes) e não os meros caprichos ou comodidade do titular da servidão.
Emanando duma faculdade irrenunciável (cf. n.º 4 do art.º 1568º), trata-se, na mencionada previsão legal, de uma alteração do sítio por onde a servidão primitivamente se exercia no prédio serviente, que se deverá basear, principalmente, em razões de equidade.[12]
Caberá assim ao julgador apreciar das razões invocadas e dos reflexos da mudança sobre a situação dos donos dos prédios em causa. A justa ponderação dos interesses dos proprietários dos prédios passa obrigatoriamente por um critério de proporcionalidade entre a necessidade ou conveniência da diminuição do encargo sobre o prédio serviente e o prejuízo que a mudança de servidão possa acarretar para prédio encravado, tudo, em nome da supra referida função social da propriedade nas relações entre vizinhos.[13]
Por exemplo, o dono do prédio dominante não pode opor-se à mudança só porque, com esta, terá de fazer uma pequena volta. O direito de mudança é uma aplicação do princípio segundo o qual o dono do prédio serviente não está inibido de fazer no seu prédio as alterações (que considere convenientes), desde que não prejudique ou só prejudique pouco os interesses do dono do prédio dominante.[14]
5. Os AA., através da presente acção, visam mudar a servidão aludida em II. 1. f), supra – “servidão de passagem com três metros de largura, a pé, com carro de bois (ultimamente, desde 1988, com tractores agrícolas e automóveis ligeiros) e animais, que percorria o prédio, então fracção, dos Réus ao longo de toda a sua extrema nascente, entroncando, perpendicularmente, numa ´serventia de inquilinos` também ali existente, esta última permitindo o derradeiro acesso à via pública” –, para o local identificado no “croquis” de fls. 35, ou seja, do limite nascente para o limite poente do seu prédio.
Ficou demonstrado, nomeadamente, que, actualmente, a servidão mencionada em II. 1. f) atravessa o prédio referido em II. 1. c) do sul para norte, interpondo-se entre as traseiras dos prédios descritos em (i), (ii) e (iii) e o terreno e os anexos indicados em (iv), do ponto II. 1. h); tanto os AA. como os pais da A. atravessam a passagem mencionada em I. 1. f) várias vezes ao dia para irem a tais anexos; os AA. e os pais da A. param e conversam no leito da aludida passagem e aí depositam lenha para consumo nas habitações, tendo a necessidade de realizar constantes travessias para os anexos; a manutenção da servidão conduz a perda de algum recato e sossego no local, porque situada imediatamente junto das casas de habitação, impedindo a neta dos AA. de brincar naquele local à vontade [cf. II. 1. alíneas i), j), l), m) e n), supra].
Já no que concerne ao novo sítio da servidão e respectiva configuração, apurou-se, com especial relevo para a dilucidação do caso, que o “trilho” localizado a norte do prédio mencionado em II. 1. c) e identificado como caminho no “croquis” de fls. 35 era composto até Agosto de 2011 de terra batida, estando afecto à passagem dos donos dos terrenos confinantes e era conhecido por “serventia de inquilinos” [cf., de resto, a alínea “b)” do segmento decisório aludido em II. 1. f), supra], permitindo passagens a pé, de carro de bois e tractor há mais de 30 anos, sem que ninguém se oponha ou tenha interesse em impedir a passagem, incluindo do Réu; para aceder da estrada à passagem mencionada em II. 1. f) o Réu tem de percorrer 30 m do referido caminho; em Agosto de 2011, a pedido dos proprietários dos prédios aí existentes, a Junta de Freguesia da Vinha da Rainha, através de máquinas adequadas para o efeito, procedeu à realização de obras no dito trilho, tendo na parte poente da sua extensão onde mais se justificava, procedido ao seu alargamento para a largura entre 2,80 m e 3 m, bem como ao nivelamento do respectivo leito em terra batida e compactada, encontrando-se colocado “tout-venant” pelo leito do caminho, tornando-o mais resistente e firme; o referido alargamento foi conseguido à custa do rasgo e inutilização duma faixa de terreno integrante do prédio mencionado II. 1. c), ao longo do seu topo norte onde margina com o trilho, de nascente para poente; tal trilho/caminho encontra-se agora em terreno regular, compactado, limpo e desimpedido, sem invasão de qualquer vegetação, totalmente permissivo da passagem de tractores, ceifeiras ou veículos [cf. II. 1. alíneas t), u), v), bb), cc), dd) e ee), supra].
6. Face ao descrito factualismo conclui-se, por um lado, que existe efectiva conveniência para os AA. na mudança da servidão do local onde se encontra estabelecida, nomeadamente, porque, dessa forma, como se refere na sentença recorrida, farão um uso pleno daquele pedaço de terreno que se encontra onerado com a servidão, mesmo para apoio às referidas habitações, sem se verem confrontados com eventuais perigos ou conflitos inerentes ao exercício da servidão por parte do Réu, sendo certo que nisso têm efectivo interesse pois que passam diariamente pelo local; a própria preservação do recato e do sossego dos AA., que habitam no local, conforma uma efectiva vantagem que não deve ser desconsiderada; por outro lado, não se afere da factualidade apurada que a mesma acarrete prejuízo, ou pelo menos prejuízo relevante, susceptível de obstar a tal mudança, para os interesses do Réu, porquanto, além do mais, pelo novo sítio proposto o Réu acederá ao seu prédio nos mesmos termos em que lhe era permitido pela actual servidão, tendo, já na pendência da acção, sido realizadas obras no trilho do caminho proposto com vista a viabilizar tal uso, o que deita por terra grande parte dos obstáculos levantados pelo Réu à pretendida mudança e que, no essencial, integraram os art.ºs 18º a 20º da base instrutória (b. i.)[15], tendo obtido as respostas mencionadas em II. 1. w) e x), supra, a conjugar, principalmente, com a factualidade aludida em II. 1. bb), cc), dd) e ee), supra.
Ademais, o prédio dominante encontra-se afecto exclusivamente a fins de cultura/semeadura, impondo as suas necessidades apenas a entrada de máquinas agrícolas para trabalhar a terra e colher os frutos e sempre pode o Réu aceder àquele prédio, quando para tanto não necessite de máquinas de grande porte (cujo uso, em prédios desta natureza, será, por regra, ocasional, mais concentrado em alturas de semeadura e de colheita), pelo interior do zimbório da sua própria casa [cf. II. 1. alíneas o), p), q) e r), supra].
Ainda que não resulte claro da factualidade provada se as obras já realizadas são suficientes para permitir desde já a passagem em segurança de tractores, ceifeiras e outros veículos de maior porte ao longo da estrema poente do prédio da A., (…) tal não obsta à mudança de servidão, posto que os AA. realizem, à sua custa, as obras de abertura de passagem, de modo a que o leito da servidão mantenha na sua estrema poente a largura que tinha na sua estrema nascente (…), e seja nivelada a passagem, no mesmo local, designadamente mediante a colocação de talude sustentado, de modo a viabilizar a passagem em segurança dos aludidos veículos, sendo que, só após a realização das referidas obras (caso ainda não estejam concluídas), é que pode operar a mudança da servidão pretendida.
7. Na parte final da decisão sob censura, a Mm.ª Juiz a quo concluiu que “também não obsta à mudança da servidão a circunstância da mesma passar a onerar prédio de terceiro, no caso, um caminho conhecido por “serventia de inquilinos” e que se encontra já afecto, há mais de 30 anos, à passagem (a pé, de carro de bois ou tractor) dos donos dos terrenos confinantes; (…) não se concebe que os AA. operassem a mudança da servidão sem obter o necessário consentimento de terceiros eventualmente onerados com tal mudança (…)”; “(…) o prédio desses alegados terceiros, cuja identidade se desconhece, já se encontra afecto à passagem dos donos dos terrenos confinantes há mais de 30 anos, sendo, por isso o caminho em causa conhecido como “serventia de inquilinos”, sem que alguém, em algum momento, tenha obstado a tal uso ou tenha interesse em impedir a passagem”, sendo que “o Réu já tem que percorrer esse caminho, ainda que numa extensão inferior [30 m], para aceder ao leito da servidão actualmente constituída, sem que tal obstasse a que formulasse e visse reconhecida tal pretensão”.
Como se vê, o Réu/recorrente, não tendo impugnado a decisão sobre a matéria de facto e baseando-se, tão-somente, na resposta negativa ao art.º 13º da b. i.[16], diz que a mudança da servidão que os AA. pretendem levar a cabo não é feita por prédio ou prédios da sua propriedade.
Tratando-se de um dos principais argumentos incluídos na contestação dos autos e especialmente “renovado” em sede de recurso, parece-nos, salvo o devido respeito, que não deixa de existir uma assinalável similitude entre a situação actual e a que se pretende venha a existir (no que concerne à localização e demais características da servidão em apreço), verificando-se apenas duas diferenças e que, ao fim e ao cabo, acabam por consubstanciar o diferente sítio da servidão que vem proposto no articulado inicial: por um lado, a oneração do prédio dos AA. “desloca-se” da estrema nascente para a estrema poente e sendo idêntica a extensão a percorrer; por outro lado, para aceder a essa “passagem”, o Réu terá de percorrer uma maior extensão do caminho/”serventia de inquilinos” onde a mesma servidão continuará a entroncar [cf., sobretudo, II. 1. alíneas f) e v) e t) e bb), supra, e, ainda, o resultado da inspecção ao local constante de fls. 341 e seguinte].
Acresce que os melhoramentos introduzidos no actual traçado do mencionado caminho/”serventia de inquilinos” foram levados a cabo com a intervenção da autarquia local e à custa da cedência de um parcela de terreno situada na extremidade norte do prédio dos AA., pelo que, ressalvado o respeito devido, não se enxergam quaisquer dos obstáculos levantados pelo Réu à existência e utilização desse modificado trajecto de uma servidão que persiste, mormente a nível do registo predial (se é que alguma relevância deva ser dada a esta problemática…)[17], tanto mais que não se verifica qualquer alteração substancial da realidade [cf., sobretudo, II. 1. alíneas bb), cc) e dd), supra].
Retirar da resposta (negativa) ao art.º 13º da b. i.[18] as consequências enumeradas na alegação de recurso constituirá, obviamente, um procedimento que ignora que de uma tal resposta não se poderá extrair ter-se “provado” factualidade contrária e, principalmente, que a materialidade apurada não é substancialmente diversa da realidade pretérita, antes se lhe assemelha e dela dimana.
Não existe assim motivo para retirar de alguma da incongruência do texto (final) da sentença recorrida[19] as consequências pretendidas pelo Réu e, ainda menos, que este se possa ver agora confrontado com quaisquer acrescidas dificuldades no exercício do seu direito de servidão, desde que realizadas as obras na parte poente do prédio dos AA. que possibilitem a normal utilização da passagem, sendo que, na mudança de servidão, o que é essencial é que se evite o prejuízo do prédio dominante, oferecendo-lhe um lugar igualmente cómodo[20].
De resto, como se diz na resposta à alegação de recurso e decorre da factualidade provada, estamos perante uma mudança para um sítio que materialmente já configura um caminho preexistente no local conhecido por “serventia de inquilinos” afecto à passagem dos donos dos terrenos confinantes, permissivo de passagens a pé, de carro de bois e tractor há mais de 30 anos, sem que ninguém se oponha ou tenha interesse em impedir a passagem, incluindo do Réu, sendo certo que o próprio já necessariamente percorre 30 m desse trilho para aceder à servidão que onera o prédio dos apelados; será incorrecto vir falar em necessidade do consentimentos de terceiros, quando ninguém se opõe ou tem interesse em impedir a passagem, onde é aproveitado um caminho existente no qual a autarquia local fez obras de arranjo e alargamento à custa duma faixa de terreno cedida exclusivamente pelos próprios AA., caminho que o Réu/apelante já utiliza, assim como a ligação do prédio dominante a esse caminho, a poente, foi também obtida através duma faixa aberta no próprio terreno daqueles.
8. Está apenas em causa a “demarcação” de um novo trajecto, a servidão passará a ter um novo lugar de exercício do prédio serviente e continuará a entroncar no mesmo caminho/”serventia de inquilinos” - o que aconteceu foi uma alteração do trajecto da servidão existente, apenas tendo mudado o seu locus servitutis, a mudança do itinerário “para sítio diferente do primitivamente assinado” (art.º 1568º, n.º 1).
A mudança do lugar de exercício não altera o objecto jurídico da servidão, que era e continua a ser o prédio serviente - mudança certamente potenciada na sequência da intervenção da Junta de Freguesia realizando as obras no mencionado caminho/”serventia de inquilinos”.
Ou seja, a tal modificação na servidão de passagem também subjaz a intervenção de quem tem por competência tradicional zelar pela paz vicinal[21].
9. Verificados os requisitos assinalados no n.º 1 do art.º 1568º, a sentença recorrida autorizou a mudança de servidão para a extrema poente do prédio dos AA., incumbindo-os, no entanto, das obras necessárias a tal mudança (caso não estejam concluídas), à sua custa, de modo a que o leito da servidão mantenha no local uma largura de 3 metros, colocando talude sustentado na extrema poente da passagem, de modo a viabilizar a passagem pelo local em segurança a pé, com carro de bois, tractores agrícolas e automóveis ligeiros; executadas tais obras, a serventia passará a ser exercitada pelo novo trajecto.
Decidiu-se, pois, com acerto.
Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.
*
            III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo Réu/apelante.
                                                                   *
12.11.2013


Fonte Ramos ( Relator )
Inês Moura
Fernando Monteiro

[1] Instaurada na forma de processo ordinário, passou à forma de processo sumário na sequência de despacho de 18.02.2011 (fls. 297).
[2] Cuja sentença vemos reproduzida a fls. 146 e seguintes (confirmada por acórdão desta Relação de 23.01.2007/fls. 234 e seguintes), enquanto no indicado segundo processo os Réus (aqui AA.) foram condenados a reconhecer que o A. (aqui Réu) era dono do prédio rústico inscrito na matriz sob o art.º y (...), procedeu-se à demarcação entre os prédios das partes (entre o aludido prédio e o prédio dos Réus inscrito na matriz sob o art.º 1975) e foram os Réus ainda condenados a desimpedir o leito da servidão e a abster-se da prática de actos perturbadores ou impeditivos da passagem (cf. a sentença do Tribunal de Soure de 26.7.2009, reproduzida a fls. 119 e seguintes).
[3] Aludido em II. 1. alínea f), infra.
[4] Mencionado em II. 1 alíneas t) e bb), infra.
[5] Rectificou-se lapso manifesto existente na sentença (cf. fls. 363 e 375).
[6] Rectificou-se lapso.
[7] Idem.
[8] Com a rectificação introduzida na fundamentação de facto da sentença (cf. fls. 308, 364 e 376).
[9] Diploma a que pertencem as demais disposições a citar sem menção da origem.
[10] Cf., v. g., os art.ºs 1367º, 1349º, n.º 1, 1550º…
[11] Vide, designadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, III, 2ª edição, 1987, págs. 613 e seguintes.
[12] Vide, entre outros, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e vol. cits., págs. 671 e seguinte.
[13] Cf., de entre vários, os acórdãos da RP de 19.11.2002-processo 0020168 e da RC de 12.10.2010-processo 67/09.6TBSPS.C1, publicados no “site” da dgsi.
[14] Vide as Actas da Comissão Revisora do Anteprojecto sobre servidões prediais do futuro Código Civil Português, in BMJ, 136º, pág. 139, a respeito da posição do Prof. Vaz Serra em relação ao “n.º 1 do art.º 29º”, normativo que, com ligeiras alterações de redacção, veio a constituir o cit. art.º 1568º, n.º 1, do CC de 1966.

[15] Com a seguinte redacção:
   - O trilho referido, na maioria do seu percurso tem apenas a largura de dois metros ou menos? (18º)
   - Não permitindo a passagem de ceifeiras e tractores de maior porte, designadamente se acoplados com frezes [fresas], pás niveladoras ou reboques para carga de colheitas? (19º)
   - E apresenta-se em terreno irregular, não compactado, invadido por vegetação de crescimento espontâneo, propício ao tombo de tractores pela sua estreiteza, pronunciado declive, oscilações do solo e ausência de amparo? (20º)

[16] Foram integrados os seguintes factos nos art.ºs 12º e 13º da b. i.:
   - O trilho localizado a norte do prédio mencionado em C) e identificado como caminho no croquis de fls. 35 é em terreno batido, afecto a passagens dos donos dos terrenos confinantes e denominado como “serventia de inquilinos? (12º)
   - Constituindo parte integrante do terreno dos Autores? (13º)
[17] Cf., a propósito, a situação versada no acórdão do STJ de 18.11.2008-processo 08A3089, publicado no “site” da dgsi.
[18] Cf. a “nota 16” e a decisão sobre a matéria de facto de fls. 362 e seguintes.
[19] Porventura derivada de se ter seguido e acolhido a argumentação do citado acórdão desta Relação de 12.10.2010-processo 67/09.6TBSPS.C1 [e da sentença nele parcialmente reproduzida] sem atentar nas particularidades de cada caso, pese embora a similitude das situações...
[20] Cf. o acórdão da RL de 23.6.2005-processo 6140/2005-6, publicado no “site” da dgsi.
[21] Cf., a propósito, o citado acórdão do STJ de 18.11.2008-processo 08A3089, ainda que, in casu, não se trate propriamente de um caminho vicinal [cf., por exemplo, o acórdão do STJ de 03.02.2011-processo 29/04.0TBBRSD.P1.S1, publicado no “site” da dgsi].