Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2059/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: PESSOA COLECTIVA
PESSOA COLECTIVA DE UTILIDADE PÚBLICA
DELIBERAÇÃO SOCIAL: ANULAÇÃO - MATÉRIA ESTRANHA À CONVOCATÓRIA DA ASSEMBLEIA DE ASSOCIADOS
SISTEMA DE VOTAÇÃO DE "BRAÇO NO AR"
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 10/04/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS 10º, NºS 1 E 2, 174º, Nº 2 E 334º DO C.C. E ART.º 377º DO C. SOC. COMERCIAIS
Sumário: I - O artº 174º do Código Civil dispõe, no seu nº 2, que são anuláveis as deliberações tomadas sobre matéria estranha à ordem do dia. Esta norma é omissa sobre a especificação do conteúdo da ordem de trabalhos a mencionar na convocatória da assembleia de associados, devendo tal lacuna ser integrada por aplicação analógica, nos termos do artº 10º, nºs 1 e 2, do Código Civil, do disposto no nº 8 do artº 377º do Código das Sociedades Comerciais, segundo o qual “o aviso convocatório (das assembleias gerais) deve mencionar claramente o assunto sobre o qual a deliberação é tomada”.
II – O pedido de anulabilidade de deliberações sociais com o fundamento de terem sido aprovadas pelo sistema de votação de “braço no ar” traduz, da parte do autor, uma actuação com abuso de direito, em consonância com o disposto no artº 334º do Código Civil, se tal sistema de votação está de acordo com os usos e costumes do Clube réu, assim tendo sido aprovadas e decididas as várias propostas e assuntos ao longo do tempo, sendo certo que o próprio autor fez parte da Direcção e dos corpos gerentes do réu praticamente desde a sua fundação, bem sabendo que todas as deliberações da assembleia-geral, o longo dos tempos, sempre foram votadas no sistema de “braço no ar”.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A... intentou, em 01/10/1998, pelo Tribunal da comarca de Tomar, acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra B..., pedindo que seja decretada a anulação de todas as deliberações aprovadas na assembleia geral do Réu, de 23 de Maio de 1998.
Alega, em síntese, que:
- O Presidente da mesa da assembleia geral, apesar de não ter as suas quotas em dia, votou e, com o seu voto, desempatou, uma moção, que ali fora posta à votação sobre o pagamento durante o ano em curso, da importância de Esc. 12.000$00 por cada sócio, o que viola o art, 2º, alínea f) do Regulamento Interno daquela associação, moção essa que incidiu sobre matéria estranha
à ordem de trabalhos;
- Todas as deliberações na mesma assembleia foram tomadas, sem que tivesse sido feito o controle prévio no que respeita à regularidade da intervenção e uso do direito a voto pelos diversos participantes, uma vez que o Presidente da direcção não entregou à Mesa, no início da realização da mesma, a lista de sócios em pleno gozo dos seus direitos a que se refere o art. 8º do Capítulo IV do citado Regulamento, e nelas votou pessoa que não estava em condições de exercer o direito a voto; e
- Os três primeiros pontos da ordem de trabalhos foram aprovados com voto expresso de “braço no ar”, o que igualmente viola o art. 5º do Capítulo III do mesmo Regulamento Interno.
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O Réu contestou, alegando, em suma que:
- Se o Autor não tomou conhecimento dos sócios que estavam no pleno uso dos seus direitos, foi porque não quis, uma vez que o livro onde estava assente a situação de todos os sócios esteve, durante a assembleia, na mesa, para que qualquer sócio o pudesse consultar;
- No dia da assembleia, o sócio José Paulo Duarte Pinheiro, em causa, estava no pleno uso dos seus direitos de sócio, uma vez que, podendo os sócios pagar o ano civil até 15 de Julho, nos termos da alínea h) do art. 2º dos Estatutos, aquele sócio já tinha pago, na data da assembleia, os meses de Janeiro e Fevereiro;
- O sistema de votação de “braço no ar” é valido de acordo com os usos e costumes do Clube, uma vez que o voto secreto apenas deve ser usado na eleição para os cargos da Assembleia Geral e dos corpos gerentes, conforme art. 5º do Capítulo III do Regulamento Interno, nada se estipulando, nesses Estatutos, quanto ao sistema de voto dos pontos da ordem de trabalhos, que, aliás, desde a fundação do Clube, sempre foram votados no sistema de “braço no ar”;
- Na assembleia em causa não foi aprovada qualquer deliberação estranha à ordem de trabalhos, uma vez que, um dos pontos submetidos aos trabalhos da assembleia era o de: “outros assuntos de interesse do Clube”.
Conclui pela improcedência da acção.
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Respondeu o Autor, afirmando que o Regulamento obriga a antecipar para 15 de Julho o pagamento das quotas dos meses seguintes dentro do mesmo ano, o que é do conhecimento do Réu, tanto mais que recusara a convocação de uma assembleia geral, requerida em Maio desse ano pelo Autor e outros sócios, com o fundamento de que alguns dos subscritores do pedido de convocação não teriam as suas quotas pagas. Mais alega que, de acordo com os estatutos, o voto é secreto, requerendo ainda a condenação do Réu como litigante de má fé, em indemnização a seu favor.
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Respondeu ainda o Réu, requerendo que seja o Autor condenado como litigante de má-fé.
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Foi proferido despacho saneador e organizada a selecção da matéria de facto assente e da que constitui a base instrutória, sem reclamações.

Teve, depois, lugar o julgamento e, decidida a matéria de facto controvertida, também sem reclamações, foi proferida a sentença, que julgou a acção improcedente, absolvendo o réu do pedido.
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Na 1ª instância foi dado como provado o seguinte:
Factos Assentes:
A) - O Autor é membro fundador e sócio número 3 do Clube ora Réu, o qual foi fundado em 5 de Agosto de 1991, por escritura pública outorgada no 1º Cartório Notarial de Tomar;
B) - Tendo por fim, além do mais, administrar a Zona de Caça Associativa da Freguesia da Beselga, como se consignou nos respectivos Estatutos;
C) - No dia 23 de Maio de 1998, pelas 20.30 horas, teve lugar na sede da Junta de Freguesia da Beselga, uma Assembleia Geral do Réu;
D) - Postos à votação os pontos da ordem de trabalhos, ponto por ponto, foram os mesmos aprovados com voto expresso de “braço no ar”;
E) - O art. 5º do Cap. III do Regulamento Interno, aprovado em 30 de Maio de 1992, dispõe expressamente que o “voto é pessoal e secreto”;
F) - A alínea f) do art. 2º da matéria respeitante aos “Deveres dos Sócios” (Capítulo II), prescreve que o sócio perde os seus direitos desde o não pagamento em dia das quotas salvo situações devidamente ponderadas pela Direcção;
G) - O Sr. José Paulo Duarte Pinheiro presidiu à assembleia geral de 23 de Maio de 1998, tendo então desempatado, uma moção que ali foi posta à votação, sobre o pagamento durante o ano em curso de certa importância por cada sócio, fazendo assim aprovar tal proposta;
H) - A mesma foi também aprovada por votação de “braço no ar”;

Base Instrutória:
9º - Não estavam presentes todos os associados, que eram cerca de 150;
10º - A ordem de trabalhos da Assembleia Geral indicada em C) foi:
1– Discussão e aprovação do relatório de contas da gerência do ano anterior;
1.1- Discussão de contas relativas à direcção cessante;
1.2– Discussão de contas relativa à direcção em funções;

2– Apreciação do relatório de actividades do ano anterior e elaboração de propostas para o ano em curso;
3– Outros assuntos de interesse do Clube.
11º - O livro onde está assente a situação de todos os sócios, esteve, durante a assembleia, na mesa, qualquer sócio interessado, nomeadamente o Autor, o poderia ter consultado;
14º - O sistema de votação de “braço no ar” é de acordo com os usos e costumes do Clube;
15º - Assim tendo sido aprovadas e decididas as várias propostas e assuntos ao longo do tempo;
16º - O próprio Autor fez parte da Direcção e dos corpos gerentes do Clube praticamente desde a fundação, bem sabendo que todas as deliberações da Assembleia Geral, ao longo dos tempos, sempre foram votadas no sistema “braço no ar”;
17º - Também a votação do balanço, ou qualquer outra, sempre foi através daquele sistema;
20º - O ano civil é pago na sua totalidade e permitido o pagamento fraccionado nos meses que antecedem esse limite;
21º - O pagamento aprovado a que se alude em G) era de Esc. 10.000$00;
22º - E a aprovação foi por 14 votos a favor e 13 votos contra;
23º - O Regulamento obriga a antecipar para 15 de Julho o pagamento das quotas dos meses seguintes dentro do mesmo ano; quanto às dos meses anteriores, vencem-se e devem ser pagas mensalmente,
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Inconformado com a sentença interpôs o autor recurso de apelação, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1ª- Está provado por confissão do réu que o presidente da mesa da assembleia geral não tinha o pagamento das respectivas quotas em dia, à data da reunião da assembleia em que foram tomadas as deliberações impugnadas e nada foi alegado no sentido de tal situação ter sido justificada pela Direcção;
2ª- Está provado, por outro lado, que de acordo com o Regulamento o sócio perde os seus direitos desde o não pagamento em dia das quotas.


3ª- Tendo aquele votado favoravelmente a proposta de pagamento da quota extraordinária do ano de 1998 por forma a desempatar a votação (que assim conduziu ao resultado de 14 contra 13) a aprovação de tal proposta foi conseguida sem a maioria absoluta exigida por Lei, pelo que tal deliberação como agora a sentença cometeram violação do disposto no artº 175º nº 2 do Código Civil.
4ª- É também manifesto que a proposta que conduziu àquela deliberação foi apresentada por um sócio e não pela Direcção, e constitui matéria estranha à convocatória, pelo que a sentença ao recusar a respectiva anulação violou o disposto no artº 174º nº 2 do C.C.
5ª- Por último, não há abuso de direito no facto de o autor requerer a anulação de todas as deliberações tomadas com fundamento em terem sido aprovadas por votação de “braço no ar”, contrariando expressamente o disposto nos Estatutos, com violação do disposto no artº 177º do C. Civil, que a sentença sancionou.
6ª- Tal abuso de direito é afastado quer pelo facto de a “tradição” de votação daquela forma ser ainda recente, tal como a existência da Associação, quer porque o autor alegou – provando-o parcialmente e até em grande parte por confissão – que também as suas iniciativas para obter a convocação de assembleias gerais vinham sendo bloqueadas pela Direcção com argumentos formalistas.
7ª- Pelo que a sentença recorrida decidiu cometendo violação do disposto nos citados artigos 174º nº 2, 175º nº 2, 177º e 334º do Código Civil, devendo por isso ser revogada a acção julgada procedente.
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O réu contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Importa esclarecer (tendo em conta o disposto no nº 3 do artº 659º e o teor da acta da assembleia-geral de 23/05/1998, de que se encontra fotocópia a fls.29/33), não impugnada) que: a proposta a que se alude na al. G) dos Factos Assentes e na resposta ao quesito 21º da Base Instrutória foi apresentada e aprovada aquando da discussão do ponto 1.1 da ordem de trabalhos constante da resposta ao quesito 10º, que dizia respeito à “Discussão de contas relativas à direcção cessante”.
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Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal da Relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil – diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência).

Questão prévia.
O recorrente juntou dois documentos com a alegação do recurso, destinados a provar que a quota anual era, à data da deliberação, de 12.000$00, e que o clube, nessa mesma data, tinha menos de oito anos de vida, invocando para a sua junção o disposto no nº 1 do artº 706º, em virtude de a mesma apenas se tornar necessária em virtude do julgamento proferido em 1ª instância.
A junção de documentos na fase de recurso reveste carácter excepcional, só devendo ser admitida nos apertados limites dos artºs 524º e 706º.
O artº 524º dispõe que, no caso de recurso, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão (nº 1); os documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior, podem ser oferecidos em qualquer estado do processo (nº 2).
As partes podem ainda juntar documentos às alegações no caso de apenas se tornar necessário em virtude do julgamento proferido em 1ª instância (artº 706º).
De qualquer modo, a admissão de documentos está sempre condicionada pelo interesse que os mesmos revistam para a decisão do recurso.
Ora, no presente caso, os documentos juntos pelo recorrente não têm interesse para a decisão do recurso, uma vez que não se reveste de qualquer interesse saber qual o valor da quota anual pago por cada associado do réu no ano de 1998 e já consta da al. A) dos Factos Assentes que o réu foi fundado em 5 de Agosto de 1991, tendo, portanto, menos de oito anos à data da deliberação em causa nestes autos.
Os documentos não podem, assim, ser admitidos, pelo que terão que ser desentranhados dos autos e restituídos ao recorrente e este condenado nas custas a que deu causa, de acordo com o disposto nos artºs 543º, nº 1 e 706º, nº 3.

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Da apelação.
Começa o recorrente por invocar a violação do disposto no artº 175º, nº 2, do Código Civil, em virtude de a aprovação da proposta em causa ter sido conseguida sem a maioria absoluta exigida por lei, visto que o presidente da mesa da assembleia geral, conforme está provado por confissão do réu, não tinha o pagamento das respectivas quotas em dia à data da reunião da referida assembleia.
O Clube de Caçadores da Freguesia da Beselga é, de acordo com o seu Regulamento Interno (v. fls. 7/10), uma pessoa colectiva de utilidade pública, sob a forma de associação.
Às pessoas colectivas constituídas sob a forma de associação são aplicáveis as disposições gerais previstas nos artºs 157º a 166º e as especificas previstas nos artºs 166º a 184º do Código Civil – diploma a que, a partir de agora, pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência.
As mesmas regem-se por essas normas e pelos respectivos estatutos (cfr. artºs 164º, nº 1 e 167º, nº 2) livremente aprovados.
O artº 175º estatui, no seu nº 2, que, salvo o disposto nos números seguintes (que não têm interesse para o presente caso), as deliberações são tomadas por maioria absoluta de votos dos associados presentes.
E o artº 177º dispõe que as deliberações da assembleia geral contrárias à lei ou aos estatutos, seja pelo seu objecto, seja por virtude de irregularidades havidas na convocação dos associados ou no funcionamento da assembleia, são anuláveis.
Por sua vez, o Regulamento Interno do réu estabelece no Capítulo II:
Direitos dos Sócios:
Artº 1º: Os sócios ordinários têm direito a votar em Assembleia Geral (…).
Artº 3º: Tomar parte na Assembleia Geral, apresentar propostas, discutir e votar os pontos constantes da ordem de trabalhos.
Deveres dos sócios:
Artº 1º: São deveres gerais do sócio: a) - Pagar a quota (…).
Artº 2º, al. f) - O sócio perde os seus direitos desde o não pagamento em dia das quotas, salvo situações devidamente ponderadas.


h) – O ano civil será pago na sua totalidade até 15 de Julho; no entanto, é permitido o pagamento fraccionado nos meses que antecedem esse limite.
Da conjugação destes preceitos resulta que a quota anual tem que ser paga até 15 de Julho de cada ano.
No entanto, o pagamento pode ser fraccionado nos doze meses que antecedem essa data.
Isso implica, contudo, como é óbvio, que o pagamento do valor fraccionado seja efectuado até ao fim de cada mês a que disser respeito, e que, portanto, se isso não suceder, isto é, se o sócio não pagar o valor de uma fracção até ao fim do respectivo mês, deixa de ter o pagamento da quota em dia, para o efeito previsto na al. f) do artº 2 do Cap. II (Deveres dos Sócios) atrás referido.

No presente caso, considerou-se na sentença recorrida que não se provou que tivesse votado, na assembleia em questão, pessoa, designadamente o respectivo Presidente da Mesa, que não tivesse em dia o pagamento das suas quotas.
Não podemos deixar de discordar da sentença, uma vez que resulta da própria contestação do réu a confissão de que o aludido presidente da mesa da assembleia geral, José Paulo Duarte Pinheiro, não tinha o pagamento da quota em dia, à data da aludida assembleia, em 23/05/1998.
Com efeito, consta do artº 11º da contestação “Que o referido sócio, naquela altura (em 23 de Maio) já tinha pago os meses Janeiro e Fevereiro”.
Conclui-se daqui, sem margem para dúvidas, que, nessa data (23 de Maio), ainda não tinha pago os meses de Março e Abril.
Tratando-se de matéria de facto provada por confissão reduzida a escrito (cfr. artºs 355º, nº 1, 356º, nº 1 e 358º, nº 1), deveria a mesma ter sido tomada em consideração na sentença, nos termos do disposto no nº 3 do artº 659º do Código de Processo Civil.
E, assim, e não se tendo provado que se tratasse de uma situação devidamente ponderada, tem que se considerar provado que o sócio do réu, José Paulo Duarte Pinheiro, à data da assembleia geral em questão (23/05/1998) tinha perdido os seus direitos, não podendo, além do mais, discutir e votar os pontos constantes da ordem de trabalhos e, nomeadamente, a deliberação em causa.


Ora, tendo o mesmo tido intervenção na aludida assembleia, já que presidiu à mesma, tendo então desempatado uma moção que ali foi posta à votação, sobre o pagamento durante o ano em curso (1998) da importância de 10.000$00 por cada sócio, fazendo assim aprovar tal proposta, por 14 votos a favor e 13 contra (v. al. G) dos Factos Assentes e respostas aos quesitos 21º e 22º da Base Instrutória), feriu, sem dúvida, de irregularidade tal deliberação, gerando a anulação desta, conforme peticionado pelo autor.
A situação é tanto mais grave quanto é certo que, sem o voto desse sócio a moção não teria sido aprovada, por não obter a maioria absoluta exigida por lei (cfr. artº 175º, nº 2).
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Mas, não é só por esse motivo que essa deliberação é anulável.
É que, como também alega o recorrente, a deliberação constitui matéria estranha à convocatória, pelo menos no ponto onde foi inserida.
Senão, vejamos.
O artº 174º dispõe, no seu nº 2, que são anuláveis as deliberações tomadas sobre matéria estranha à ordem do dia, salvo se todos os associados comparecerem à reunião e todos concordarem com o aditamento.
Esta norma é omissa sobre a especificação do conteúdo da ordem de trabalhos a mencionar na convocatória da assembleia de associados, devendo tal lacuna ser integrada por aplicação analógica, nos termos do artº 10º, nºs 1 e 2, do Código Civil, do disposto no nº 8 do artº 377º do Código das Sociedades Comerciais: “o aviso convocatório (das assembleias gerais) deve mencionar claramente o assunto sobre o qual a deliberação é tomada”.
E isto é assim para que os interessados saibam, de antemão, o que vai ser discutido na assembleia geral e possam, assim, preparar atempadamente a sua intervenção e tomada de posição quanto à defesa dos seus direitos, sem serem confrontados no decurso da assembleia com a discussão de assuntos que não estavam agendados para essa ocasião. Estas razões procedem igualmente quanto à convocatória das assembleias gerais das pessoas colectivas constituídas sob forma de associações (cfr., neste sentido, o Ac. do S.T.J. de 09/11/2000, CJ, T3-116).



Ainda segundo este Acórdão, a anulabilidade prevista no artº 174º, nº 1, vale igualmente para a deliberação tomada sobre matéria ou assunto que na convocatória não estava claramente mencionado, de modo a não suscitar dúvidas.
Convém, ainda, ter em consideração o que diz o Prof. Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, T-III, pág. 608/609) a esse propósito: “A fixação da ordem do dia é da maior importância: apenas conhecendo-a poderão os associados ajuizar da necessidade ou da conveniência de comparecer na assembleia “.
“Quanto à ordem do dia, observar-se-á ainda o seguinte:
-os diversos pontos devem estar suficientemente explícitos; por exemplo, não basta uma referência genérica, tipo “outros assuntos”, para legitimar tudo o que, na reunião, se queira incluir;
-devem considerar-se abrangidos todos os assuntos que sejam consequência natural e lógica da discussão de outro assunto indicado na convocatória”.

Ora, no presente caso, como atrás se referiu, a deliberação posta em causa pelo autor, ora recorrente, foi aprovada aquando da discussão do ponto 1.1 da ordem de trabalhos, que dizia respeito à “Discussão de contas relativas à direcção cessante”.
Este ponto da ordem de trabalhos não é suficientemente explícito e claro (antes, sendo bastante vago) no sentido de dele se poder extrair a necessidade de ser discutida e aprovada a deliberação em causa, sobre o pagamento, durante o ano de 1998, da importância de 10.000$00 por cada sócio.
Seria mais lógica a sua inclusão no ponto 3 da ordem de trabalhos (Outros assuntos de interesse do Clube).
O que não se verificou.
Embora também aí fosse difícil de integrar, por esse ponto 3 ser demasiado genérico, em virtude de, como refere o Prof. Menezes Cordeiro (Ob. e local cit.), poder legitimar tudo o que se queira incluir, podendo imaginar-se os abusos a que poderia dar origem, nomeadamente de ordem financeira, por exemplo com a aprovação de quotas extraordinárias, de montantes exorbitantes, a pagar pelos associados.
Também por essa razão é, assim, anulável a deliberação em causa.
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No que diz respeito à anulabilidade das restantes deliberações tomadas na aludida assembleia com o fundamento de terem sido aprovadas por votação de “braço no ar”, decidiu-se na sentença recorrida pela improcedência da acção, visto o autor, face à matéria de facto dada como provada, ter actuado com manifesto abuso de direito, ao invocar o artº 5º do Capítulo III dos Estatutos do Clube, quando é certo que o sistema de votação de “braço no ar” foi utilizado desde praticamente a fundação do Clube, e que também durante o tempo em que o autor fazia parte dos corpos gerentes era esse o sistema de votação utilizado.
Concordamos inteiramente com a sentença recorrida no que a essa questão diz respeito, pois, ao contrário do que alega o recorrente, à data da assembleia de 23 de Maio de 1998, o réu já tinha alguns anos (quase sete) de existência – tempo mais que suficiente para poder integrar o conceito de “tradição”-, tendo-se provado que o sistema de votação de “braço no ar” é de acordo com os usos e costumes do Clube, assim tendo sido aprovadas e decididas as várias propostas e assuntos ao longo do tempo, que o próprio autor fez parte da Direcção e dos corpos gerentes do Clube praticamente desde a fundação, bem sabendo que todas as deliberações da Assembleia Geral, ao longo dos tempos, sempre foram votadas no sistema “braço no ar” e que também a votação do balanço, ou qualquer outra, sempre foi através desse sistema (cfr. respostas aos quesitos 14º a 17º da Base Instrutória).
Não colhe o argumento invocado pelo recorrente de que alegou – provando-o parcialmente e até em grande parte por confissão – que também as suas iniciativas para obter a convocação de assembleias gerais vinham sendo bloqueadas pela Direcção com argumentos formalistas, visto que essa matéria de facto integrava o quesito 24º da Base Instrutória, que teve a resposta de “não provado”.
O pedido de anulabilidade dessas deliberações com o fundamento de terem sido aprovadas pelo sistema de votação de “braço no ar” traduz, por isso, sem dúvida, da parte do autor, ora recorrente, uma actuação com abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, em consonância com o disposto no artº 334º do Código Civil.
Improcede, assim, o recurso, no que a esta questão diz respeito.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em:
A – Não admitir a junção dos documentos apresentados pelo recorrente, mandando desentranhá-los e entregá-los ao mesmo.
Custas do incidente a seu cargo.
B - Dar parcial provimento ao recurso, julgando procedente o pedido formulado na petição inicial na parte em que requer que seja decretada a anulação da deliberação aprovada na assembleia geral de 23 de Maio de 1998, quanto ao pagamento, durante o ano de 1998, da importância de 10.000$00 por cada sócio (a que se alude na al. G) dos Factos Assentes e na resposta ao quesito 21º da Base Instrutória), no mais confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo autor, na proporção de 1/3, não as pagando o réu – que deveria pagar os outros 2/3 -, por delas estar isento.