Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2668/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: COELHO DE MATOS
Descritores: ACÇÃO DE DIVÓRCIO
EFEITOS
RETROACTIVIDADE
Data do Acordão: 11/30/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE MONTEMOR-O-VELHO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1789.º, N.º 2 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: O pedido de retroacção dos efeitos do divórcio, nos termos do nº 2 do artigo 1789.º do Código Civil, pode ser formulado após o trânsito da sentença que o decretou, em incidente autónomo, não obstante ser antes da sentença e após a fixação da matéria de facto o momento mais apropriado
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. A... pediu o divórcio em acção litigiosa contra o seu ex-marido B..., que correu termos na comarca de Montemor-o-Velho, tendo, a final, sido proferida sentença que o decretou com culpa exclusiva do réu.
Posteriormente ao trânsito da sentença veio a autora ao processo requerer que os efeitos do divórcio retroagissem à data da separação de facto, em incidente que apelida de “fixação de retroacção dos efeitos do divórcio”. Em despacho fundamentado o sr. Juiz indeferiu o requerido, por extemporâneo. A autora não se conforma e agrava da decisão, concluindo:
1) O douto despacho que julgou extemporâneo o incidente de fixação de retroacção dos efeitos do divórcio, errou na interpretação da lei.
2) Na verdade, o pedido de retroacção dos efeitos do divórcio à data em que cessou a coabitação entre cônjuges (art.1789.º n.º 2 do Código Civil), pode ser feito mesmo depois do trânsito em julgado da sentença que o decretou, constituindo um incidente autónomo no próprio processo
3) Está tal entendimento assente na mais moderna jurisprudência dos Tribunais Superiores, entre eles se contando esse Venerando Tribunal, conforme se colhe do douto acórdão de 20.1.2004, Proc.3589/03.
4) Sendo certo que a ratio legis subjacente aquela norma, quanto às relações patrimoniais, é a tutela do património do cônjuge inocente ou menos culpado e o mesmo é dizer a recorrente.
5) O douto despacho recorrido violou o artigo 1789° do Código Civil.

2. O agravado contra-alegou, no sentido da confirmação do julgado. Foi proferido despacho de sustentação. Estão colhidos os vistos legais. Cumpre conhecer e decidir, tendo em conta, além dos factos supra referidos, que:
- A acção de divórcio foi instaurada a 23 de Junho de 1999;
- A sentença que decretou o divórcio foi proferida a 15/09/2000 e transitou;
- Na sentença ficou provado que em Fevereiro de 1997 a autora saiu de casa e desde essa data o réu não mais quis saber dela e dos filhos.
- Passou a desfrutar em exclusivo de todos os bens e rendimentos do casal
- E vendeu bens do casal

3. A única questão a conhecer, como se colhe das conclusões, é a de saber se o cônjuge inocente ou menos culpado pode requerer, mesmo depois de transitar a sentença que decreta o divórcio, que os respectivos efeitos se retrotraiam à data em que cessou a coabitação, ou se só pode usar dessa faculdade até ao momento em que é proferida a sentença. Ou seja, saber se o pedido de retroacção dos efeitos do divórcio, nos termos do nº 2 do artigo 1789.º do Código Civil, pode ser formulado após o trânsito da sentença que o decretou.
Como refere o n.º 1 do citado artigo 1789.º, os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da acção quanto ás relações patrimoniais entre os cônjuges.
Sendo este o princípio geral, há no entanto a excepção do n.º 2 do mesmo artigo, na redacção inovadora introduzida pelo Dec. Lei n.º 496/77, de 25/11, que reza assim: “ se a falta de coabitação entre os cônjuges estiver provada no processo, qualquer deles pode requerer que os efeitos do divórcio se retrotraiam à data, que a sentença fixará, em que a coabitação tenha cessado por culpa exclusiva ou predominante do outro “.
Destes dois pontos do artigo 1789.º do Código Civil extrai-se linearmente o seguinte: i) proferida e transitada a sentença que decrete o divórcio, este produz imediatamente os seus efeitos a partir da data em que a acção foi proposta; ii) pode, no entanto, reportar-se à data da cessão da coabitação dos cônjuges a produção dos efeitos do divórcio, desde que tal seja requerido pelo cônjuge inocente ou menos culpado (ou – o que é o mesmo – pelo cônjuge não exclusiva ou predominantemente culpado).

4. Até aqui tudo bem. O problema surge quando se torna necessário saber até quando pode ser requerido que os efeitos do divórcio retrotraiam à data da cessação da coabitação dos cônjuges. E aqui começam as divergências. Entendem uns que tal tem de ser requerido no próprio processo e antes de ser proferida a sentença ( Pereira Coelho, Reforma do Código Civil, 1981, 47; cf., por ex., Ac do STJ de 22/1/97, C.J. ano V, tomo I, pág.63, Ac RC de 19/12/91, BMJ 404, pág.519, Ac RP de 18/3/96, BMJ 455, pág.570 e 15/04/2004, em www.dgsi.pt.
), enquanto outros têm vindo a defender que pode ser feito mesmo depois do trânsito em julgado da sentença, constituindo um incidente autónomo no próprio processo ( Cfr. Ac RP de 17/1/89, C.J. ano XIV, tomo I, pág.180, e Ac RL de 16/1/96, C.J. ano XXI, tomo I, pág.85 e desta RC, de 20/01/2004, www.dgsi.pt.).
Num ponto parecem estar todos de acordo: é que a retroacção prevista no n.º 2 do artigo 1789.º do Código Civil visa defender os interesses do cônjuge inocente ou menos culpado contra delapidações e abusos que possa cometer o cônjuge exclusiva ou predominantemente culpado desde o momento em que cesse a coabitação e até que seja proposta e decidida a acção de divórcio.
Já o princípio consagrado no n.º 1 visa a protecção de qualquer dos cônjuges contra delapidações e abusos que o outro possa cometer na pendência da acção. ( Cfr. P. Coelho, idem, 48.)
Como escreveu Rodrigues Bastos ( Notas ao Código Civil, vol. VI, 1998, págs.227 ), “trata-se de uma regra que tem especialmente em vista evitar que qualquer dos cônjuges, na pendência do processo, tome medidas pecuniárias susceptíveis de prejudicar o outro cônjuge, qualquer que seja o regime de bens do casamento”. Ou evitar “que um dos cônjuges seja prejudicado pelos actos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança, que o outro venha a praticar, desde a proposição da acção, sobre valores do património comum”. ( Antunes Varela e Pires de Lima, in Código Civil anotado, vol. IV, 2.ª edição, pág. 561)
O que também não tem merecido reparo é que o requerimento a que nos temos vindo a referir só tem lugar na acção de divórcio litigioso e que apenas diz respeito ás relações patrimoniais entre os cônjuges, ficando sempre salvaguardados interesses de terceiros quanto aos efeitos patrimoniais do divórcio, a quem só podem ser opostos a partir da data do registo da sentença, como vem expresso no n.º 3 do citado artigo 1789.º.

5. Importa, pois, saber para que lado nos inclinamos e porquê. Num breve percurso sobre as teses da preclusão do direito a requerer que os efeitos do divórcio retrotraiam à data da cessão da coabitação, encontramos o argumento literal como o mais forte ou predominante, dele se retirando que a data da produção dos efeitos do divórcio só pode ser fixada por sentença e por isso só na pendência da acção e antes de proferida a sentença pode o cônjuge inocente ou menos culpado requerer que os efeitos do divórcio se retrotraiam à data da cessão da coabitação.
É da afirmação, ínsita no n.º 2 do artigo 1789.º em análise, de que “a sentença fixará” a data em que considera cessada a coabitação, que os defensores desta tese retiram os efeitos que sustentam, impedindo que após a prolação da sentença possa ser requerido que os efeitos do divórcio retrotraiam à data da cessão da coabitação dos cônjuges.
Uma certeza temos por adquirida: é a de que o texto da lei não fixa a data até à qual pode ser requerido o que ela admite e só por via interpretativa lá chegaremos.
Assim, temos por muito duvidoso que o legislador tenha equacionado esta questão concreta e tenha querido dizer, na referida afirmação, que o limite temporal para o cônjuge exercer o direito que o preceito lhe confere é a data da sentença.
Efectivamente não é crível que o legislador tenha querido aproveitar a reforma do Código Civil de 1977 para introduzir a alteração ao princípio estabelecido no n.º 1 do artigo 1789.º, com a redacção dada ao n.º 2, especificando, no interesse do cônjuge inocente ou menos culpado, que ele tem o direito de se defender contra os actos de delapidação e abuso praticados sobre o património comum do casal, desde a data em que cessou a coabitação, pelo cônjuge exclusiva ou predominantemente culpado, e depois não lhe permita que o possa exercer adequadamente.
Estamos a falar dos casos em que só na própria sentença são fixados os factos tidos por provados, como acontece quando a acção não é contestada e a sentença é logo ditada para a acta (artigo 1408.º, n. 4 do Código de Processo Civil). Aqui temos um caso gritante de divórcio litigioso em que, segundo a tese em análise, o cônjuge não pode, por não ter espaço, exercer o direito, por determinação da lei que acaba de lho conceder. É uma incongruência para a qual se não encontra explicação, dado que estão em causa apenas os interesses dos cônjuges, já que os de terceiros estão sempre acautelados pela inoponibilidade dos efeitos do divórcio anteriores ao registo da sentença, conforme já acima o referimos.

6. E nem se diga que o legislador usou aquela expressão pelo respeito pelo caso julgado e para reafirmar que a fixação do prazo da verificação dos efeitos do divórcio tem de ser feita numa sentença que, após proferida se esgotam os poderes jurisdicionais de quem a proferiu.
A propósito do caso julgado, escreveu-se no recente acórdão desta Relação ( Acórdão de 15/04/2004, em www.dgsi.pt.) e no seguimento de jurisprudência nele citada, que “a tese da admissibilidade, após o trânsito, não colide com o caso julgado, nem com os poderes de cognição do tribunal, uma vez que o efeito preclusivo da sentença se reporta à data da cessação, mas já não ao pedido de retroacção, que não ficou consumido”. A sentença que não se pronuncie sobre o pedido de retroacção não forma caso julgado sobre esse pedido, razão por que a sua apreciação não ofende esse princípio.
Por outro lado, não está em causa decidir para além ou contra o já decidido, mas tão só explicitar algo que resulta inequívoco do que já foi decidido, uma vez que a data a que se reportarão os efeitos do divórcio é a da cessão de coabitação dos cônjuges e aquela só será fixada se esta estiver provada no processo, diz a lei (1.ª parte do n.º 2 do citado artigo 1789.º). E em tais circunstâncias o sistema admite a alteração do conteúdo da sentença e até o sentido da própria decisão, sem que haja desrespeito pelos poderes de cognição do tribunal, como acontece com os pedidos de rectificação, aclaramento e reforma de sentença (artigos 667.º e 669.º do Código de Processo Civil).
Dificilmente se compreende que, proferida a sentença, o juiz a possa reformar quando constem do processo elementos que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida e que o juiz, por lapso manifesto, não haja tomado em consideração (n.º 2, b do artigo 669.º do Código de Processo Civil) e já não se admita que possa fixar a data de que vimos falando, por então se lhe apontarem desvios aos mesmos princípios.
Não existem, pois, obstáculos de natureza formal a que se requeira a retroacção prevista no n.º 2 do artigo 1789.º do Código Civil após a prolação da sentença, em incidente a processar no próprio processo onde foi proferida, e em que a decisão a proferir se deve considerar complemento e parte integrante da sentença, tal como acontece com o incidente da sua reforma (artigo 670.º, n.º 2 do Código de Processo Civil). Caso em que também fica observado o requisito de que é a sentença que fixa a data a que se reportam os efeitos do divórcio.
Também o caso da atribuição da casa de morada de família em processo de jurisdição voluntária, (artigo 1413.º do Código de Processo Civil) que necessariamente decorre depois da prolação e trânsito da sentença que decreta o divórcio, constitui paradigma de que aquela sentença não preclude o exercício de direitos por parte dos cônjuges.
Foi nesta conformidade que se escreveu no acórdão da Relação do Porto, de 17/01/89, sumariado no BMJ, 383, a págs. 608, que “não tendo sido fixada na sentença a data da cessão da coabitação, pode o pedido de retroacção dos efeitos do divórcio ser formulado mesmo depois do trânsito em julgado da sentença. Tal pedido, à semelhança do que sucede com a atribuição da casa de morada de família, embora deva ser feito no processo de divórcio, constitui incidente autónomo se formulado depois da sentença”.
Relembre-se que esta é uma matéria com exclusivas implicações ao nível dos interesses patrimoniais dos cônjuges e que decorre do n.º 3 do artigo 1789.º do Código Civil que estes só podem opor a terceiros os efeitos patrimoniais do divórcio a partir do registo da sentença, incluindo, obviamente, o registo dos efeitos retroagidos à data da cessão da coabitação, a requerimento de um dos cônjuges, nos termos do n.º 2 do artigo 1378.º do Código Civil, quando decorrentes de decisão incidental proferida após a prolação da sentença.
Por conseguinte, não existem obstáculos de ordem processual nem interesses a acautelar que imponham que o requerimento referido no n.º 2 do artigo 1789.º do Código Civil tem de ser feito no decurso do processo de divórcio e antes de ser proferida a sentença. O legislador não previu a questão na redacção que deu ao preceito, pelo que se não pode afirmar que ele comporte a proibição de o requerimento ser apresentado depois de proferida e transitada a sentença.
Consequentemente, e tal como se no passado recente se decidiu nesta Relação no já citado acórdão de 20/01/2004, optamos pela tese que sufraga o direito de ser requerida a retroacção dos efeitos do divórcio mesmo depois do trânsito em julgado da sentença, em incidente autónomo, não obstante ser antes da sentença e após a fixação da matéria de facto o momento mais apropriado.
Ao decidir em contrário foi violado o disposto no artigo 1789.º, n.º 2 do Código Civil.

7. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedentes as conclusões, concedendo provimento ao agravo, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que conduza ao conhecimento do requerido.
Custas a cargo do agravado.
Coimbra,