Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1068/03-3TBILH-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
DEFEITO DA OBRA
MORA DO CREDOR
NULIDADE DE SENTENÇA
Data do Acordão: 03/04/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ÍLHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 828º, 1207.º;1208.º; 1221º ; 1222.º 1223.º DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGO 668.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. A eventual influência do efeito da capilaridade exercido sobre a madeira, proveniente do teor da humidade verificada, na relação de concausalidade na produção dos defeitos ocorridos na obra, convoca a questão do erro do julgamento e não a da nulidade da sentença, por oposição dos fundamentos com a decisão.
2. Só não há tutela jurídica para as situações em que se verifiquem vícios da coisa, quando o defeito é de tal modo insignificante que a não desvaloriza ou não impede a respectiva utilização para o fim a que se destina.
3. Finalizadas as obras contratadas e invocadas várias deficiências, pelo comitente, não tendo sido extinta a relação contratual, por resolução, tem-se por segura a existência de um caso de cumprimento defeituoso e não de incumprimento definitivo da prestação.
4. Embora os actos do lesado tenham contribuído para a produção ou o agravamento do dano, inexiste acto ilícito deste, quando se não traduzam num comportamento censurável, por se não poder afirmar que tenha agido com negligência.
Constituindo-se o empreiteiro em mora de eliminar os defeitos verificados na obra, tendo sido interpelado, admonitoriamente, dentro de prazo razoável fixado pelo comitente, para o efeito, não importa que este percorra o itinerário dos meios jurídicos referenciados, com precedência da eliminação dos defeitos e da realização de uma obra nova, gozando do direito de reclamar, face à indisponibilidade daquele para proceder à reparação dos defeitos ou à construção da parte inacabada da obra, o pagamento da sua correcção, efectuada por terceiro
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

A...., residente na Rua do…...., instaurou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra “B....”, com sede na Rua ….., em…… pedindo que, na sua procedência, a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de 19.338,17€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação e até integral pagamento, alegando, para tanto, em síntese, que contratou com a ré o fornecimento e aplicação de madeiras na casa que andava a construir, o que esta fez, tendo ele pago o preço acordado, sendo certo que o soalho apresentava imperfeições e levantou, em parte da sua superfície, devido à incorrecta aplicação do mesmo, não o tendo a mesma reparado, apesar de intimada para tal, o que obrigou o autor a contratar os serviços de terceiro, para esse efeito, e pagar os respectivos custos, além de ter suportado outras despesas, por tal motivo, e de a obra se ter atrasado, tudo isso causando incómodos e perturbações na sua vida pessoal, devendo ser indemnizado de todos esses danos, patrimoniais e não patrimoniais, que quantificou no aludido montante.

Na contestação, a ré alega, em síntese, que o levantamento do soalho ocorreu devido ao excesso de humidade que existia na cave da moradia do autor, tendo a aplicação sido correcta e o serviço ficado perfeito, sendo falso o referido na petição, além de ter mencionado que subempreitou a execução desse trabalho a CF… cuja intervenção nos autos requereu, para exercer o eventual direito de regresso, concluindo pela sua absolvição do pedido e pela admissão desse incidente.

Na réplica, o autor impugnou a versão da ré, constante da contestação, reafirmando o alegado na petição inicial.

            Admitida a intervenção acessória provocada do referido CF…., o mesmo foi citado, mas não ofereceu oposição.

            A sentença, na parcial procedência da acção, condenou a ré a pagar ao autor a quantia global de 8.511,82€ (oito mil, quinhentos e onze euros e oitenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano (ou outra que venha a vigorar), a contar da citação (16-07-2003), até liquidação integral, absolvendo-a quanto ao mais peticionado.

            Desta sentença, a ré interpôs recurso de apelação, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, formulando as seguintes conclusões:

1ª – O Meritíssimo Juiz a quo não deu relevância ao factor fundamental que originou o levantamento do soalho, isto é, a humidade, não tendo equacionado a dimensão e a influência desta sobre a madeira, designadamente o facto de ser na ordem dos 22% a 25% ao ponto de algumas das ferragens terem oxidado.

2ª - Não equacionou o Meritíssimo Juiz a quo o facto de para as ferragens terem oxidado, qual não seria, a sua quantidade e a influência sobre matéria viva, como a madeira, sendo forçoso daí concluir que a madeira sofreu um movimento anómalo e como tal incontrolável pelo homem (efeito da capilaridade).

3ª - Da mesma forma que não seria de prever, pelo homem médio, ou mesmo por um excelente profissional que a densidade de humidade iria atingir uma percentagem de tal ordem.

4ª - Não cuidou o Meritíssimo Juiz a quo atentar no facto de o soalho já ter sido colocado há meses (Setembro de 2000) e só em Julho de 2001 ter levantado depois da cave encher com água a 70/80cm, isto é, porque surgiram condições de excepcional humidade, independentemente da forma como estavam colocados os «chaços».

5ª - O movimento anómalo surgiu na madeira e não nos «chaços», e contra tal facto não há argumentos que contrariem esta lei da física (efeito da capilaridade).

6ª - O soalho foi aplicado numa casa com níveis de humidade normais, não prevendo, como não seria exigível, nem humanamente possível prever que os níveis de humidade disparassem para o dobro do normal (22% a 25%).

7ª - O modo como os «chaços» foram aplicados e o soalho era para um ambiente em que a densidade de humidade oscilasse dentro dos parâmetros normais, não para uma densidade provocada por uma cave repleta com cerca de 80 cm de água.

8ª - A verdade é que mesmo que os chaços tivessem sido pregados com pregos ou parafusos de aço, a humidade desta ordem, levaria sempre ao levantamento do soalho e arrancamento dos chaços.

9ª - Por aqui impunha-se uma decisão oposta à proferida pelo Meritíssimo Juiz a quo, pois a variante humidade é a mais importante, fundamental e essencial para se perceber a dinâmica da madeira no caso concreto e a mesma não foi tida em conta, ou melhor, não lhe foi dado o protagonismo que as leis da física (efeito da capilaridade) impunham.

10ª - Assim, conclui-se que pela matéria dada como provada, conjugadas com as regras da experiência e da física, a douta decisão a proferir seria de absolvição da ré do pedido.

11ª - Verificou-se que o Meritíssimo Juiz a quo, salvo o devido respeito, errou na apreciação e valoração da matéria de facto provada, pois existe contradição entre prova produzida, os factos apurados e as considerações e decisões tomadas.

12ª - Verifica-se, assim a nulidade da sentença, pois existe um vício real no raciocínio do julgador, pois a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue em sentido oposto, verificando-se a nulidade prevista no artigo 668° n°1, c), do CPC que aqui se invoca para todos os devidos e legais efeitos. Sem prescindir:

13ª - As relações entre recorrente e recorrido confinam-se ao âmbito do contrato de empreitada, artigo 1207° do CC, tal como é referido na douta decisão e no que se refere à execução da obra dispõe o artigo 1208° do CC «o empreiteiro deve realizar a obra em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que excedam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário, ou previsto no contrato».

14ª - Bem se demonstra que «a aptidão para o seu uso ordinário» não se compagina com os níveis de humidade dados como provados, não sendo possível prever-se níveis anormais de humidade aquando da aplicação do soalho, nem era exigível, mesmo para um executor diligente e zeloso, nem tal situação é controlável, não existindo procedimentos capazes de obstar ao que sucedeu (levantamento do soalho).

15ª - A douta decisão que vai de encontro à pretensão do recorrido, no sentido de o indemnizar pela reparação do soalho, que este mandou reparar em autogestão, parece-nos, com o devido respeito errada.

16ª - Dispõe o artigo 1221° n°1 do CC que «se os defeitos puderem ser eliminados, o dono da obra tem o direito de exigir do empreiteiro a sua eliminação, se não poderem ser eliminados o dono da obra pode pedir nova construção».

17ª - Refere o artigo 1222° n°1 do CC que «não sendo eliminados os defeitos ou construída de novo a obra, o dono pode exigir a redução do preço ou a resolução do contrato, se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina.

18ª - Por fim, estipula o artigo 1223° do mesmo diploma legal que «o exercício dos direitos conferidos nos artigos antecedentes não exclui o direito a ser indemnizado, nos termos legais».

19ª - Daqui resulta que deve ser dada a possibilidade ao empreiteiro de eliminar os defeitos ou de fazer nova obra.

20ª - No caso em apreço, mediante a denuncia do levantamento do soalho, o recorrente deslocou-se a casa do recorrido e nessa altura verificou que a cave apresentava um nível de água de cerca de 70 a 80 cm de água e que a mesma era geradora de grande humidade pela casa, apresentando a madeira uma percentagem entre 22% e 25% de humidade e o consequente aumento do volume das madeiras aplicadas e o seu levantamento.

21ª -     Isto é, a recorrente não reparou o soalho, pura e simplesmente porque o seu levantamento não se ficou a dever à má aplicação dos chaços, mas sim ao nível de humidade anormal que se fazia sentir na casa.

22ª -     O recorrido notificou, através de notificação judicial avulsa, a recorrente para proceder à reparação do soalho, ora de tal acto, não nascem direitos nem obrigações, pois a notificação esgota-se com a sua realização Ac. R.L. de 11/01/1974, BMJ, 233o-237.

23ª - A recusa da recorrente em reparar o soalho, não é ilegítima, como erradamente, salvo o devido respeito, o Meritíssimo Juiz a quo concluiu, pois não o fez, porque era e é sua convicção que o soalho levantou não por razões imputáveis ao trabalho realizado, mas por razões exógenas, ou seja níveis elevados de humidade.

24ª - O recorrido não poderia ter, por sua iniciativa, mandado reparar o soalho, com efeito «o dono da obra, no caso desta apresentar defeito não pode proceder, por sua iniciativa, a eliminação desse defeito, por si ou por terceiro, à custa do empreiteiro, a não ser em processo de execução.» Ac. RE, de 14.02.1991:Col.Jur., 1991, F-299).

25ª - Conforme consta do Ac. do STJ de 25.11.04 «I- tendo o dono da obra encarregado terceiro a proceder à eliminação dos defeitos, sem ter previamente recorrido às vias judiciais, não pode depois vir pedir a condenação do empreiteiro inadimplente no valor das despesas efectuadas».

26ª - Revela, ainda, o facto de não ter sido alegado pelo recorrido, nem o mesmo constar da base instrutória, o estado de necessidade, previsto no artigo 339° do CC.

27ª - A lei, no caso especial do contrato de empreitada não admite a auto-tutela, antes supondo uma condenação prévia do empreiteiro.

28ª - Só não seria assim, se o dono da obra alegasse e demonstrasse uma situação de manifesta urgência, de estado de necessidade que preenchesse o condicionalismo do artigo 339° do CC (Ac. STJ de 30 de Setembro de 2004, relator Conselheiro Faria Antunes) o que no caso concreto não aconteceu.

29ª - Assim, como também as razões aduzidas pelo Meritíssimo Juiz a quo no sentido de ultrapassar este condicionalismo legal, carecem de fundamento e de justificação para integrarem factos susceptíveis de ser subsumidos no conceito jurídico de estado de necessidade, deveria o recorrido ter recorrido à via judicial para pedir a eliminação dos alegados vícios e defeitos,

30ª - Ao fazer apelo a auto-tutela, colocou a recorrente numa posição de fragilidade e diminuição dos seus direitos de defesa, pois verificando-se que o trabalho estava realizado, ficaram precludidos os direitos de pedir, designadamente uma peritagem que apreciasse o soalho, as razões do seu levantamento e a possibilidade de poder in loco controlar essas razões.

31ª - Não podia o Meritíssimo Juiz a quo concluir pelas fotografias, tiradas depois do chão ter sido arrancado por terceiros, que a casa não podia ser utilizada.

32ª - De qualquer forma, não foi alegado pelo recorrido que a casa não podia ser utilizada para o fim a que se destina, bem como também não foram alegados nem demonstrados factos que consubstanciassem o estado de necessidade, pelo que também não podia o Meritíssimo Juiz a quo sobrepor-se ao principio do dispositivo, numa clara violação do mesmo.

33ª - Face à constatação do levantamento do soalho deveria o recorrido ter seguido as possibilidades legais que, por ordem sequencial vêm estabelecidas nos artigos 1221° e 1222° do Código Civil, não o tendo feito, nem tendo invocado e demonstrado a manifesta urgência na reparação dos alegados defeitos, não pode exigir da recorrente o pagamento das despesas com a reparação e os danos não patrimoniais.

34ª - Com a douta decisão recorrida foram violados os artigos 661º e 668 n°1, c) e d), 3°e 660° n°2 do CPC e o artigo 339°, 436° e 1221° e seguintes do Código Civil.

O autor não apresentou contra-alegações.
Na sentença apelada, declararam-se demonstrados, sem impugnação, os seguintes factos, que este Tribunal da Relação aceita, nos termos do estipulado pelo artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
Conforme orçamento apresentado pela ré, datado de 14 de Setembro de 1999, o autor contratou com aquela o fornecimento e aplicação de madeira diversa para a construção da sua casa, sita na ….. – A).
O fornecimento e aplicação foram feitos e o autor pagou o preço acordado, conforme recibos entregues pela ré com o n° 0157, de 16 de Março de 2001, e o n° 0159, de 5 de Abril de 2001, que se encontram juntos aos autos (a fls. 9 e 10) – B).
O soalho de madeira fornecido e aplicado levantou, em parte da sua superfície – C).
A ré iniciou o trabalho de reparação, levantando alguns metros de soalho aplicado, mas não terminou os trabalhos – D).
A ré, na pessoa do seu sócio-gerente, recebeu a notificação judicial avulsa junta aos autos (a fls. 18), realizada a 13 de Julho de 2001, na qual o autor lhe concedeu o prazo de 15 dias para “dar início à reparação e recolocação do soalho, conforme o que foi contratado e já pago pelo requerente, devendo a mesma ser concluída no prazo máximo de um mês” – E).
Apesar de ter recebido esta notificação, a ré não procedeu à reparação do soalho – F).
O soalho levantou, por terem sido usados “chaços” de madeira para fixação do soalho, com pouco comprimento e, também, porque os mesmos foram fixados ao pavimento com cola e ladeados por argamassa de cimento, o que se revelou insuficiente para manter o soalho fixo – 1º e 2º.
Os “chaços” foram aplicados, sem o pavimento ter sido, devidamente, limpo de todas as poeiras, o que prejudicou a aderência da cola usada, a que acresce o facto de esta ser insuficiente e, especialmente, por não ter sido reforçada com a aplicação de pregos ou parafusos de aço, adequados para fixar os “chaços” ao pavimento – 3º, 4º e 5º.
Tal situação foi agravada pelo facto de, pelo menos, alguns dos “chaços” terem sido colocados, em relação aos topos, completamente encostados à parede, pelo que o aumento das madeiras, em virtude da elevação dos níveis de humidade, que veio a ocorrer, conduziu ao arqueamento e levantamento do soalho – 6º.
No seguimento dos factos, referidos em E) e F), o autor recorreu aos serviços de um terceiro para reparar o soalho, no que despendeu 7.511,82€ – 7º e 8º.
Devido ao levantamento do soalho e à não reparação, por parte da ré, a conclusão da obra do autor sofreu atrasos – 11º. 
A Câmara Municipal de Ílhavo, por despacho de 19-07-2001, prorrogou, por 180 dias, o alvará de licença nº 20, datado de 21-01-1999, relativo à construção da casa do autor, no que foi despendida a quantia de 18,85€ – 12º.
Após a reparação do soalho por um terceiro, foi necessário voltar a pintar algumas das paredes onde ocorreu essa intervenção – 13º e 14º.
O autor despendeu tempo na resolução das questões originadas pelo levantamento do soalho e pela não reparação do mesmo, por parte da ré, tendo-lhe toda essa situação provocado desgaste emocional – 16º e 17º.
Durante algum tempo, o autor tornou-se uma pessoa amarga, quase obcecada com a situação, com reflexos negativos na relação com os seus amigos, e foi no seguimento de toda esta situação de tensão que pôs termo a um relacionamento de vários anos – 20º e 21º.
A ré contratou com o chamado CP….. a aplicação do soalho – 22º.
Na altura, referida em D), verificou-se que a cave da casa do autor apresentava um nível de água, de cerca de 70 a 80 centímetros – 23º.
Essa água acumulada no interior da cave contribuiu para elevar os níveis de humidade na casa e o consequente aumento de volume das madeiras aplicadas no soalho – 24º.
Em virtude das condições e do modo como os “chaços” e o soalho foram aplicados (referidas nas respostas aos pontos nºs 1º a 6º, inclusive), esse aumento de volume das madeiras levou ao levantamento do soalho – 25º.
Devido à existência de água na cave, a madeira do soalho apresentava, na altura, uma humidade da ordem dos 22% a 25% - 26º e 27º.
Devido à referida humidade, pelo menos algumas das ferragens das portas e roupeiros ficaram oxidadas – 28º.

                                                    *

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

As questões a decidir, na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, são as seguintes:

I – A questão da nulidade da sentença.

II – A questão da eliminação dos defeitos pelo dono da obra.

    I. DA NULIDADE DA SENTENÇA

            Entende a ré que se verifica a nulidade da sentença, prevista no artigo 668°, n°1, c), do CPC, porquanto existe um vício real no raciocínio do julgador, uma vez que a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue em sentido oposto.

            Dispõe o artigo 668º, nº 1, c), do CPC, que “é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.

Efectivamente, ocorre o vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando o raciocínio do juiz aponta num sentido e, no entanto, decide em sentido oposto, ou, pelo menos, em sentido diferente[1], quando os fundamentos jurídicos invocados na sentença conduziriam, logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a um resultado oposto[2], enquanto que, na realidade, o que se passa é uma divergência de avaliação, por parte da recorrente, sobre o significado dos factos, que o Tribunal, ao abrigo do princípio da liberdade de julgamento, consagrado pelos artigos 396º, do Código Civil (CC), e 655º, nº 1, do CPC, valorou, de forma diferente, apreciando, livremente, as provas, segundo a sua prudente convicção.

A nulidade da sentença, por contradição entre os fundamentos e a decisão, é realidade distinta do erro de julgamento, de facto ou de direito, e pressupõe que os primeiros conduzam, logicamente, a decisão diversa da que foi proferida, não sendo caso de nulidade de sentença, por contradição entre os seus fundamentos e a decisão, mas antes de erro de julgamento, aquele em que a subsunção da factualidade consagrada ao Direito aplicável conduz a uma solução jurídica distinta da estabelecida[3].

A eventual influência do efeito da capilaridade exercido sobre a madeira, proveniente do teor da humidade verificada, na relação de concausalidade na produção dos defeitos ocorridos na obra, convoca antes a questão do erro do julgamento e não a da nulidade da sentença, por oposição dos fundamentos com a decisão.

Assim sendo, não se alcança que a sentença esteja incursa neste apontado vício da nulidade que a ré argui.

   II. DA ELIMINAÇÃO DOS DEFEITOS PELO DONO DA OBRA

Sustenta a ré que, no âmbito do contrato de empreitada, a lei não admite a auto-tutela, pressupondo uma condenação prévia do empreiteiro, no âmbito da ordem sequencial estabelecida pelos artigos 1221° e 1222° do CC, a menos que o dono da obra demonstre uma situação de manifesto estado de necessidade na reparação dos alegados defeitos.

Efectuando uma síntese do essencial da prova que ficou consagrada, importa reter que a ré forneceu e aplicou madeira na construção da casa do autor, tendo este pago o preço acordado.
Porém, o soalho de madeira aplicado levantou, em parte da sua superfície, por terem sido usados “chaços” de madeira para a sua fixação, com pouco comprimento e, também, porque os mesmos foram assentes ao pavimento com cola e ladeados por argamassa de cimento, o que se revelou insuficiente para manter o soalho fixo, sendo certo, igualmente, que os referidos “chaços” foram aplicados, sem que o pavimento tivesse sido, devidamente, limpo de todas as poeiras, o que prejudicou a aderência da cola usada, a que acresce o facto de esta ser insuficiente e, especialmente, por não ter sido reforçada com a aplicação de pregos ou parafusos de aço adequados para fixar os “chaços” ao pavimento.
Além do mais, esta situação foi agravada pelo facto de, pelo menos, alguns dos “chaços” terem sido colocados, em relação aos topos, completamente, encostados à parede, originando que o aumento de volume das madeiras, em virtude da água acumulada no interior da cave, que fez elevar os níveis de humidade na casa, com o consequente aumento de volume das madeiras aplicadas, conduzisse ao arqueamento e levantamento do soalho.
A ré iniciou a reparação, levantando alguns metros de soalho aplicado, mas não terminou os trabalhos, altura em que se verificou que a cave da casa do autor apresentava um nível de água, de cerca de 70 a 80 centímetros, devido ao que a madeira do soalho exibia, na altura, uma humidade, da ordem dos 22% a 25%, o que originou que algumas das ferragens das portas e roupeiros ficassem oxidadas.
Então, o autor procedeu à notificação judicial avulsa da ré, em 13 de Julho de 2001, concedendo-lhe o prazo de quinze dias para dar início à reparação e recolocação do soalho, que deveria concluir, no prazo máximo de um mês, sendo certo que esta não procedeu à sua reparação, tendo, em seguida, o autor recorrido aos serviços de um terceiro, para o efeito.

Está controvertido nos autos o cumprimento de um contrato de empreitada, que a lei qualifica como sendo aquele em que uma das partes se obriga, em relação à outra, a realizar certa obra, mediante um preço, atento o estipulado pelo artigo 1207º, do CC, e que regula nos artigos 1208º e seguintes, do mesmo diploma legal.

Com efeito, o artigo 1208º, do CC, preceitua que o empreiteiro deve executar a obra, em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato.

A obrigação principal do empreiteiro consiste em realizar uma obra, em obter um certo resultado, em conformidade com o convencionado e sem vícios, cumprindo, pontualmente, a prestação a seu cargo, e de boa fé, nos termos das disposições combinadas dos artigos 1207º, 1208º, 406º e 792º, nº 2, todos do CC.

E, por coisa defeituosa, entende-se, nos termos do disposto pelo artigo 913º, nº 1, do CC, aplicável, aquela que sofre de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada ou que não tenha as qualidades necessárias para a realização desse fim, subentendendo-se que este deve corresponder à função das coisas da mesma categoria constante do contrato, por defeitos de construção, ou de carência de qualidades necessárias para a realização do seu fim e que a desvalorizam.

Na definição de coisa defeituosa importa destacar, por um lado, a sujeição do vício e da falta de qualidades, ao mesmo regime, e, por outro lado, o carácter funcional do vício, isto é, da deficiência que desvaloriza a coisa ou impede a realização do fim a que a mesma se destina, sendo certo que se trata de uma situação de falta de qualidades garantidas, expressa ou tacitamente, ou necessárias à realização daquele fim[4].

Revertendo ao caso em apreço, ficou demonstrado que o soalho de madeira aplicado pela ré levantou, em parte da sua superfície.

Trata-se de um inequívoco vício da coisa, que se traduz numa divergência existente no soalho executado pela ré, em relação ao padrão comum dum pavimento dessa natureza, porquanto lhe faltam as qualidades necessárias para a realização do fim a que o mesmo se destina, afectando a sua utilidade e, consequentemente, o seu valor, e que permite qualificar a prestação como defeituosa.

Efectivamente, o cumprimento defeituoso da prestação tem lugar quando esta apresenta vícios ou irregularidades que afectam o seu valor e a tornam inadequada para o fim a que se destina[5].

A isto acresce que, não obstante inexistir violação do contrato de empreitada, a inobservância pelo empreiteiro das boas regras de construção civil, impostas por lei e conhecidas pelos construtores civis, acarreta para aquele responsabilidade civil extracontratual[6].

Assim sendo, o empreiteiro não fica, necessariamente, isento de responsabilidade pelo facto de ter executado, fielmente, o projecto da obra ou respeitado o caderno de encargos, podendo responder pelos defeitos que não apure, mas que tivesse a obrigação de descobrir e apontar[7].

Ora, a ré, na qualidade de empreiteira, não provou, como lhe competia, que observara, no decurso de execução da obra, no que respeita às causas relacionadas com o arqueamento e levantamento do soalho, aquelas regras de saber técnico que comandam a arte da actividade da construção civil, o ofício a que se dedica, as denominadas «legis artis».

Tendo o autor, na qualidade de comitente, demonstrado a existência dos defeitos da obra, presume-se a culpa do empreiteiro, incumbindo, então, à ré, enquanto tal, provar que os mesmos não lhe eram imputáveis[8].

A ré, na qualidade de empreiteiro da obra, incorreu, assim, em responsabilidade civil, em virtude da violação dos deveres emergentes do contrato de empreitada que celebrou com o autor, por ter agido com culpa, sem a diligência inerente a um bom pai de família, em que assenta aquela responsabilidade, ao infringir as regras de arte vigentes na construção civil, culpa essa que, aliás, se presume, nos termos das disposições combinadas dos artigos 1207º, 1208º, 799º, nº 1 e 487º, nº 2, do CC.

Para além da existência do defeito, que é um facto constitutivo dos direitos atribuídos ao dono da obra, atento o preceituado pelo artigo 342º, nº 1, do CC, compete a este demonstrar, igualmente, a sua gravidade, de modo a afectar o uso ou a implicar a desvalorização da coisa, o que aconteceu, pois que o autor provou a existência de defeitos no soalho de madeira aplicado pela ré, por o mesmo ter levantado, em parte da sua superfície.

Além do mais, incumbe ao comitente a prova da realização da denúncia dos defeitos, como se demonstrou ter acontecido, no caso em análise, porquanto o autor procedeu à notificação judicial avulsa da ré, em 13 de Julho de 2001, concedendo-lhe o prazo de quinze dias para dar início à reparação e recolocação do soalho, que deveria concluir, no prazo máximo de um mês.

É que a denúncia dos defeitos, oportunamente, realizada pelo autor, constitui mera condição de que depende e pressupõe o exercício posterior dos direitos do dono da obra, consagrados nos artigos 1221º e seguintes, do CC[9], tem por fim colocar o empreiteiro na situação de proceder, solicitamente, às oportunas verificações, que, muitas vezes, o decurso do tempo torna impossível, e, além disso, viabilizar a imediata eliminação, à sua custa, dos respectivos vícios, que o desenrolar do tempo poderá tornar, tecnicamente, mais difícil[10].

Assim sendo, só não há tutela jurídica para as situações em que se verifiquem vícios da coisa, quando o defeito é de tal modo insignificante que a não desvaloriza ou não impede a respectiva utilização para o fim a que se destina[11], o que não acontece, manifestamente, na hipótese em apreço.

De todo o modo, finalizadas as obras contratadas e invocadas várias deficiências, pelo autor-comitente, não tendo sido extinta a relação contratual, por resolução, tem-se por seguro a existência de um caso de cumprimento defeituoso e não de incumprimento definitivo da prestação, em virtude de a obra ter sido realizada com vícios, não correspondendo o cumprimento efectuado à conduta a que o empreiteiro se achava obrigado.

O cumprimento defeituoso do contrato de empreitada funda-se na ideia de que o empreiteiro está adstrito a uma obrigação de resultado, que se encontra vinculado a realizar a obra, conforme o acordado e segundo os usos e regras da arte, sendo certo que, quando a obra apresenta defeitos, é porque não foi alcançado o resultado prometido[12].

A responsabilidade do empreiteiro baseia-se, pois, na culpa, que se presume, nos termos do disposto pelo artigo 799º, do CC, a menos que prove que o cumprimento defeituoso da obrigação, ou a falta de cumprimento, se fosse o caso, não procede de culpa sua.

Defende, porém, a ré que a sentença recorrida não atentou, como devia, na relação de concausalidade na produção dos defeitos verificados na obra, proveniente do efeito da capilaridade exercido sobre a madeira, em virtude do teor de humidade verificado.

A regra geral, no que respeita à determinação da indemnização, corresponde ao princípio da equivalência ao montante do dano imputado, ou seja, segundo se dispõe no artigo 566º, nº 2, do CC, “…a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”, e isto sem prejuízo, como se diz logo no início do normativo em apreço, “…do preceituado noutras disposições”.

E uma destas disposições é, precisamente, aquela que está contida no artigo 570º, nº 1, do CC, que manda atender à culpa do próprio lesado na produção ou agravamento do dano, para a fixação do montante da indemnização ou para a eventual exoneração da responsabilidade do lesante.

E isto quer a culpa do lesado se reporte ao facto ilícito causador dos danos, como, directamente, aos danos provenientes desse facto.

A figura da concausalidade verifica-se sempre que o dano tem várias causas, simultâneas ou sucessivas[13].

Quando assim seja, a lei confere ao julgador a possibilidade não só de manter ou reduzir a indemnização, mas de a eliminar, inclusivamente, de acordo com a gravidade das culpas de ambas as partes e com as consequências que delas resultaram, sendo certo que é de manter toda a indemnização, se a culpa do agente for de tal modo grave, em confronto com a actuação do lesado, que não se justifique a sua redução[14].

Embora os actos do lesado tenham contribuído para a produção ou o agravamento do dano, inexiste acto ilícito deste, quando se não traduzam num comportamento censurável, por se não poder afirmar que tenha agido com negligência[15].

Esta formulação legal afasta os actos do lesado que, embora constituindo concausa do dano, não mereçam um juízo de reprovação ou de censura, sendo certo que só quando se prove que não adoptou a conduta exigível para evitar a produção dos danos ou o agravamento dos seus efeitos, se torna responsável, como se o dano tivesse atingido um terceiro[16].

Regressando à factualidade consagrada, registe-se que o soalho de madeira aplicado levantou, em parte da sua superfície, por terem sido usados “chaços” de madeira com pouco comprimento, na sua fixação, que foram ligados ao pavimento com cola, sem que este tivesse sido, devidamente, limpo de todas as poeiras, o que prejudicou a aderência da cola usada, que se mostrou insuficiente e, especialmente, por não ter sido reforçada com a aplicação de pregos ou parafusos de aço adequados para fixar os “chaços” ao pavimento, e ladeados por argamassa de cimento, o que se revelou insuficiente para manter o soalho fixo.

Tendo sido esta a causa primeira do levantamento parcial da superfície do soalho de madeira aplicado, constituiu causa de agravamento desta situação o facto de, pelo menos, alguns dos “chaços” terem sido colocados, em relação aos topos, completamente, encostados à parede, o que, por força do aumento de volume das madeiras aplicadas, em virtude da elevação dos níveis de humidade na casa, devido à água acumulada no interior da cave, conduziu ao arqueamento e levantamento do soalho.

Quer isto dizer que, ainda que se não tivesse verificado a elevação dos níveis de humidade na casa, devido à água acumulada no interior da cave, o levantamento parcial da superfície do soalho de madeira aplicado viria a acontecer, por se ter revelado insuficiente a estrutura capaz de manter o soalho fixo, por terem sido usados “chaços” de madeira com pouco comprimento, ligados ao pavimento com cola, insuficientemente, aderente, não reforçada com a aplicação de pregos ou parafusos de aço adequados para fixar os “chaços” ao pavimento, ladeados por argamassa de cimento, agravado pelo facto de, pelo menos, alguns dos “chaços” terem sido colocados, em relação aos topos, completamente, encostados à parede.

Vale isto para dizer que se não provou o nexo de causalidade adequada entre o comportamento do autor, no que concerne ao levantamento do soalho, e a elevação dos níveis de humidade na casa, devido à água acumulada no interior da cave.

Ao invés, ficou demonstrado que a ré não tomou as providências indispensáveis, no sentido de evitar que a estrutura em que assentou a aplicação do soalho de madeira na casa do autor viesse a levantar, parcialmente.

Não seria, assim, previsível, não fora a causa determinante que constituiu a actuação da ré, com os trabalhos, insuficientemente, sólidos de assentamento do soalho, qualquer reforço significativo de actuação pelo autor, no âmbito da elevação dos níveis de humidade na casa, devido à água acumulada no interior da cave.

Por isso, não há que repartir pelo autor a concausalidade no dano, não tendo o mesmo concorrido com culpa para a sua produção.

Efectivamente, o lesante é, apenas, responsável pelos danos que resultam, necessariamente, da lesão.

                                                      *

Em caso de cumprimento defeituoso, a lei concede ao dono da obra cinco meios jurídicos de actuação, no sentido de por cobro aos aludidos defeitos, que a ré, na qualidade de empreiteira, tem a obrigação de eliminar, e que se enquadram nos seguintes grupos, segundo um esquema de prioridade ou precedência de direitos:

1º – O de exigir a reparação das deficiências, se puderem ser eliminadas,

2º - ou a realização de obra nova, salvo se as respectivas despesas forem desproporcionadas, em relação ao proveito a obter – artigo 1221º, nºs 1 e 2 –, com carácter precípuo sobre os demais, como a melhor forma de alcançar a reconstituição natural, consagrada pelos artigos 562º e 566º, todos do CC;

3º – O de pedir a redução do preço,

4º - ou a resolução do contrato, se não forem eliminados os defeitos ou construída, de novo, a obra, e aqueles a tornarem inadequada aos fins a que se destina – artigo 1222º, nº 1, do CC;

5º – O de requerer uma indemnização, nos termos gerais dos artigos 562º e seguintes, conforme resulta do estipulado pelo artigo 1223º, do CC.

Porém, trata-se de direitos que não podem ser exercidos, de forma arbitrária, mas, sim, sucessiva e subsidiariamente, e pela ordem por que são reconhecidos, acabada de expor, em relação aos invocados prejuízos provenientes da correcção dos defeitos.

Efectivamente, o autor, verificado o cumprimento defeituoso do contrato de empreitada, não exigiu a reparação dos defeitos da obra, ou, caso os mesmos não pudessem ser eliminados, a elaboração de uma nova obra, e tornando-se inviável esta hipótese, a redução do preço ou a resolução do contrato, tendo procedido à eliminação dos defeitos, por sua conta e risco, e formulando pedido de indemnização, por danos não patrimoniais provenientes do atraso na conclusão da obra.

A orientação de conceder o direito de indemnização, enquanto sucedâneo pecuniário, a que alude o artigo 1223º, do CC, como um direito alternativo aos direitos de eliminação dos defeitos, de nova realização da obra, sendo impossível a eliminação daqueles, de redução do preço, ou de resolução do contrato não é aceitável, assumindo antes o mesmo, em matéria de cumprimento defeituoso do contrato de empreitada, natureza subsidiária, só se justificando a sua exigência, na medida em que os restantes se não possam efectivar, ou em relação a prejuízos que não tenham ficado, totalmente, ressarcidos, assumindo, portanto, uma função complementar dos demais aludidos quatro meios jurídicos, com os quais, porém, se pode cumular[17].

Efectivamente, não tendo a ré eliminado os defeitos da obra, o que era, manifestamente, possível, face às suas características, restava ao autor o direito de exigir a redução do respectivo preço, ou a resolução do contrato, porquanto aqueles defeitos a tornavam inadequada ao fim a que se destinava, sendo certo que lhe «faltava uma qualidade essencial pela própria natureza da obra, objectivamente considerada»[18], e o artigo 1221º, do CC, não confere ao dono da obra, em princípio, o direito de, por si ou por intermédio de terceiro, eliminar os seus defeitos, ou reconstruir a obra, à custa do empreiteiro.

De facto, é mais razoável aplicar à situação em apreço o regime consagrado pelo artigo 828º, do CC, segundo o qual “o credor de prestação de facto fungível tem a faculdade de requerer, em execução, que o facto seja prestado por outrem à custa do devedor”, assim se salvaguardando os legítimos interesses do empreiteiro, sem prejudicar o direito fundamental do dono da obra, já que a lei pressupõe uma condenação prévia daquele, na sequência da qual o comitente pode exigir a eliminação do defeito ou a nova construção por terceiro, à custa do devedor, se o facto for fungível, bem como a indemnização moratória, ou a indemnização pelos danos sofridos com a não realização da prestação, e a quantia, eventualmente, devida, a título de sanção pecuniária compulsória, em conformidade com o estatuído pelo artigo 933º, nº 1, do CPC[19].

É que o dono da obra não tem o direito, sem mais, de escolher entre o pedido de eliminação dos defeitos e o direito de, por si ou por intermédio de terceiro, proceder à sua remoção, porquanto esta última faculdade pode prejudicar o empreiteiro, eventualmente, interessado em reparar o vício, em vez de se sujeitar a uma condenação no pagamento de indemnização, razão pela qual o comitente, em princípio, só goza deste último direito quando o empreiteiro não está disponível para eliminar os defeitos verificados, nem para concluir a obra inacabada, recusando-se a fazê-lo.

Porém, constituindo-se a ré em mora de eliminar os defeitos verificados na obra, tendo a mesma sido interpelada, admonitoriamente, dentro de prazo razoável fixado pelo autor, para o efeito, não importava que este percorresse o itinerário dos meios jurídicos referenciados, com precedência da eliminação dos defeitos e da realização de uma obra nova, gozando, assim, o autor do direito de reclamar daquela o pagamento da correcção dos aludidos defeitos, efectuada por terceiro[20].

É que o comitente só seria obrigado a percorrer o itinerário dos meios jurídicos referenciados, com precedência da eliminação dos defeitos e da realização de uma obra nova, se o empreiteiro, uma vez recebida a denúncia do dono da obra sobre as deficiências encontradas na mesma, se tivesse comprometido à sua reparação ou à construção da parte inacabada, o que, conforme já se salientou, não se demonstrou ter acontecido.
Retomando o caso em análise, urge referir que a ré iniciou a reparação dos defeitos encontrados, levantando alguns metros de soalho aplicado, mas não terminou os trabalhos, nem sequer dentro do prazo máximo de um mês, que lhe foi conferido pelo autor, na sequência de uma notificação judicial avulsa, tendo, em seguida, este recorrido aos serviços de um terceiro, para o efeito.
Ora, não se tendo provado a impossibilidade da eliminação dos defeitos, nem da conclusão das obras, já se demonstrou, porém, a recusa do empreiteiro na remoção dos defeitos e na conclusão da obra inacabada.

Assim sendo, importa concluir, através da análise crítica efectuada à prova que ficou consagrada, que constituiu posição final da ré a sua indisponibilidade para proceder à reparação dos defeitos ou à construção da parte inacabada da obra.

E, configurando a situação em análise uma hipótese de cumprimento defeituoso do contrato de empreitada, que se funda na ideia de que o empreiteiro está vinculado a uma obrigação de resultado, ou seja, a realizar a obra, conforme o acordado e segundo os usos e regras de arte, competir-lhe-ia, em primeira linha, corrigir os defeitos que a mesma apresente, a fim de que seja atingido o resultado prometido, que o autor, pelos seus próprios meios, teve de alcançar.

Improcedem, com o devido respeito, as conclusões constantes das alegações da ré.

                                                  *

CONCLUSÕES:

I - A eventual influência do efeito da capilaridade exercido sobre a madeira, proveniente do teor da humidade verificada, na relação de concausalidade na produção dos defeitos ocorridos na obra, convoca a questão do erro do julgamento e não a da nulidade da sentença, por oposição dos fundamentos com a decisão.

II - Só não há tutela jurídica para as situações em que se verifiquem vícios da coisa, quando o defeito é de tal modo insignificante que a não desvaloriza ou não impede a respectiva utilização para o fim a que se destina.

III - Finalizadas as obras contratadas e invocadas várias deficiências, pelo comitente, não tendo sido extinta a relação contratual, por resolução, tem-se por segura a existência de um caso de cumprimento defeituoso e não de incumprimento definitivo da prestação.

IV - Embora os actos do lesado tenham contribuído para a produção ou o agravamento do dano, inexiste acto ilícito deste, quando se não traduzam num comportamento censurável, por se não poder afirmar que tenha agido com negligência.

V - Constituindo-se o empreiteiro em mora de eliminar os defeitos verificados na obra, tendo sido interpelado, admonitoriamente, dentro de prazo razoável fixado pelo comitente, para o efeito, não importa que este percorra o itinerário dos meios jurídicos referenciados, com precedência da eliminação dos defeitos e da realização de uma obra nova, gozando do direito de reclamar, face à indisponibilidade daquele para proceder à reparação dos defeitos ou à construção da parte inacabada da obra, o pagamento da sua correcção, efectuada por terceiro.

                                                               *

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar, inteiramente, a douta sentença recorrida.

                                                      *

 

Custas, a cargo da ré-apelante.


[1] Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 1984, 671.
[2] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, 1981, 141.
[3] STA, de 21-10-98, Acórdãos Doutrinais do STA, 448º, 478.
[4] STJ, de 2-3-95, BMJ nº 445º, 445; e de 3-4-90, BMJ nº 396º, 376.
[5] RC, de 16-1-2007, CJ, Ano XXXII, T1, 5; RL, de 18-11-99, BMJ nº 491, 318.
[6] STJ, de 4-2-92, BMJ nº 414, 442.
[7] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 1997, 869.
[8] RC, de 16-1-2007, CJ, Ano XXXII, T1, 5; e de 19-4-2004, CJ, Ano XXX, T2, 31; RL, de 9-5-96, CJ, Ano XXI, T3, 185; RE, de 31-10-96, CJ, Ano XXI, T4, 291.
[9] STJ, de 19-11-1971, BMJ nº 211, 299; RP, de 9-2-1984, CJ, Ano IX, T1, 236.
[10] Rubino, Da Empreitada, no Comentário de Scialoja e Branca, 1961, anotação nº 5 aos artigos 1667º e 1668º.
[11] Carneiro da Frada, Erro e Incumprimento na Não Conformidade da Coisa com o Interesse do Comprador, O Direito, 121º, 1989, III, 481 e ss.
[12] Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, 436 e 437.
[13] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição reelaborada, 2006, 781; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, 588.
[14] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 668 e nota (259).
[15] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 667 e nota (258); em sentido contrário, Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º volume, 1990, 409 e nota (251).
[16] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição reelaborada, 2006, 782 e 783.
[17] Vaz Serra, Empreitada, BMJ, nº 146, 44 a 66; Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, 458; e Cumprimento Defeituoso, nºs 32.a) e b), 41, 347, 353 e 442 e ss., respectivamente; António Pereira de Almeida, Direito Privado, II, (Contrato de Empreitada), edição da AAFDL, 83 e ss; STJ, 11-5-1993, CJ, Ano I, 1993, T2, 97; RE, 21-2-1991, CJ, Ano XVI, T1, 302; RE, 19-1-1995, CJ, Ano XX, T1, 274; RP, 9-5-1996, CJ, Ano XXI, T3, 185.
[18] Rubino, A Empreitada, nº 203, citado por Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, II, 1997, 897.
[19] Efectivamente, não foi aceite a proposta de Vaz Serra, no sentido de permitir ao dono da obra proceder à eliminação dos defeitos e reclamar a indemnização das despesas necessárias, logo que o empreiteiro se constitua em mora, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 1997, 896.
[20] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 1997, 898 e 899; Vaz Serra, Empreitada, BMJ, nº 146, 65; Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, 456 a 458; STJ, 13-7-1976, BMJ nº 259, 212; RE, 21-4-1988, CJ, Ano XIII, T2, 267; RP, 11-4-1989, CJ, Ano XIV, T2, 217; RP, 25-5-92, CJ, Ano XVII, T3, 291; RC, de 9-10-01, CJ, Ano XXVI, T4, 24.