Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
244/09.0TBALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: INSOLVÊNCIA
HERANÇA
CÔNJUGE
VIUVEZ
Data do Acordão: 01/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA AVEIRO J COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 264º SS DO CIRE, ARTIGO 249º Nº 1 ALÍNEA A) DO CIRE
Sumário: 1) O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repatriação do produto obtido pelos credores (…)" o que inculca estarmos em princípio face a uma lide em que do lado passivo haverá em regra uma parte; regra que só é quebrada pela previsão dos artigos 264º ss do CIRE.

2) Na vigência da "sociedade conjugal" está-se pe­rante um "património comum" sendo certo que em face do mesmo nenhum dos cônjuges tinha qualquer quota.

3) Dissolvido o vinculo conjugal aquele estádio transmuda-se numa situação de compropriedade, cada um dos ex-cônjuges tendo nela "uma quota ideal" de que pode dispor, podendo inclusive requerer a partilha.

4) Intentada acção de declaração de insolvência contra a Herança do falecido e seu ex-cônjuge enquanto tal e não também como sua herdeira, a mesma é parte ilegítima, pelo que se justifica a absolvição da instância das Rés da instância, tendo em linha de conta também que a requerente não alegou como lhe competia e apesar de para tanto ter sido convidada, os requisitos negativos a que alude o artigo 249º nº 1 alínea a) do CIRE, designadamente a ausência de dívidas laborais e um número de credores não superiores a 20.

Decisão Texto Integral:      1. RELATÓRIO.

     Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

    A..... , ....com sede na Rua...instaurou contra B....e Herança Jacente aberta por óbito do respectivo cônjuge,C...., ocorrido em 14.01.2009. acção para declaração de insolvência.

     Citada veio a requerida B...., para além do mais, invocar a excepção processual dilatória da "coligação ilegal", argumentando que o processo de insolvência destina-se à liquidação de um património, regra que apenas admite duas excepções, ao que importa, ser o pedido dirigido contra marido e mulher não casados no regime de separação de bens, o que no caso resulta prejudicado pela dissolução da comunhão conjugal por óbito do cônjuge da contestante, sendo a presente insolvência dirigida contra um devedor pessoa singular e um devedor património autónomo.

     Notificada para o efeito veio a requerente contrapor a improcedência da invocada excepção por recurso ao regime legal previsto pelo artº 30º do Código Processo Civil, cujos requisitos afirma verificarem-se no caso, porquanto as dívidas do falecido, contraídas no exercício do comércio, responsabilizam ambos os cônjuges, casados que foram no regime da comunhão geral de bens, pelo que o património a liquidar é o "património comum" dos requeridos tal qual como ocorreria se o cônjuge marido ainda fosse vivo à data da instauração do presente processo.

     Notificada para suprir insuficiências de alegação quanto aos requisitos previstos pelo artº 249º nº 1, al. a) ou b) e nº 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, sob pena de as requeridas serem absolvidas da instância por "coligação ilegal passiva", veio a requerente apresentar novo articulado no âmbito do qual respondeu ao convite efectuado, alegando que C..., autor da herança aberta por óbito ocorrido em 14.01.2009, se dedicava à actividade da construção e venda de imóveis, em nome individual, e que a requerida B...não foi titular da exploração de qualquer empresa nos três anos anteriores ao início do presente processo.

     Notificada da nova petição inicial apresentada nos autos, a requerida B...pugnou uma vez mais pelo indeferimento da mesma por não se verificarem os requisitos de procedibilidade previstos pelo artº 249º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, uma vez que pressupõe que os mesmos se apliquem a ambos os cônjuges, mantendo o demais arguido nas peças que anteriormente apresentou, designadamente, a coligação ilegal da insolvência da requerida, pessoa singular, com insolvência da herança, património indiviso.

     Foi proferida decisão que entendeu não existirem nos autos elementos que permitam aferir da verificação dos requisitos previstos no artigo 249º nº 1 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas absolvendo-se as requeridas da instância por coligação ilegal passiva.

     Daí o presente recurso de apelação interposto pela Requerente, a qual no termo do que alegou pediu que na procedência da apelação se revogue a sentença que absolveu as requeridas da instância prosseguindo o processo os seus termos com a marcação da audiência de discussão e julgamento nos termos do artigo 35º do CIRE.

     Foram para tanto apresentadas as seguintes,

     Conclusões.

     1) A sentença viola, desde logo, por erro de interpretação, o disposto no artº 28º do C.P.C., aplicável por força do artigo 17º do CIRE, subsumindo aos factos em apreço o regime da coligação entre cônjuges, salvo o devido respeito inexistente, quando na verdade se trata de um caso de litisconsórcio necessário entre requeridas.

     2) E assim, partindo da errada existência de coligação entre cônjuges pela equiparação da Herança jacente aberta por óbito de C..., ao próprio, o Tribunal a quo volta a cometer novo erro interpretativo, na aplicação ao caso em apreço do disposto no art. 249º nº 2.

     3) Decidindo pela inadmissibilidade do pedido de Insolvência nos termos do artº 264º do CIRE, pela não verificação dos requisitos previsto no artigo 249º nº l do mesmo diploma, relativamente a ambos os cônjuges.

     4) Quando na verdade, o pedido de insolvência nunca foi dirigido a ambos os cônjuges, nem o poderia, pelo que, não estamos no âmbito do disposto no artº 264º nem por conseguinte, do artº 249º nº 2.

     5) Estamos sim, conforme ficou dito anteriormente, no âmbito do "litisconsórcio necessário" relativo às duas devedoras solidárias – B...(pessoa singular) e Herança Jacente aberta por óbito de C... (património autónomo);

     6) Sendo que, relativamente a cada uma delas, se verificam os requisitos necessários à sua legitimidade passiva, ou seja:

     - Quanto à requerida B...., o disposto no artigo 249º nº l alínea a) do CIRE: ser pessoa singular e não ter sido titular da exploração de qualquer empresa nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;

     - Quanto à requerida Herança jacente aberta por óbito de C..., o disposto no artº 10º do CIRE: o falecimento do devedor e o património indiviso deste;

     7) Bem como se verificam os pressupostos relativos ao litisconsórcio necessário das devedoras, ou seja:

     - A necessidade da intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.

     8) Pelo que, andou mal o tribunal a quo ao decidir pela absolvição das requeridas da instância por coligação ilegal passiva.

     9) É portanto, nula a sentença recorrida, nos termos do disposto no artº 668º nº l alíneas b), d) e e).

     Não houve contra-alegações.

     Foram dispensados os vistos.

     Cabe decidir.

     2. FUNDAMENTOS.

     2.1. Os Factos.

     Os factos que interessam à decisão da causa constam da decisão impugnada não tendo sido impugnados pelo nos termos do preceituado no artigo 713º nº 6 do Código de Processo Civil remete-se para a referida fundamentação.

                           +

     2.2. O Direito.

     Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

     - A relação jurídica tal como vem delineada pela Requerente configura uma hipótese de litisconsórcio necessário passivo?

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     2.2.1. A relação jurídica tal como vem delineada pela Requerente configura uma hipótese de litisconsórcio necessário passivo?

     Foi a presente acção de insolvência intentada contra B...e Herança Jacente aberta por óbito do respectivo cônjuge, C...., ocorrido em 14 de Janeiro de 2009.

     Alegou que o autor da herança se dedicava à actividade de construção e venda de imóveis em nome individual sendo certo que na constância do seu matrimónio o cônjuge marido contraiu diversas dívidas entre as quais a relativa à requerente, dívidas essas que responsabilizam ambos os cônjuges, já que foram casados no regime da comunhão geral de bens e aquelas contraídas em proveito comum do casal – artigo 1 691º nº 1 alínea d) do Código Civil.

     Sustenta a existência de litisconsórcio necessário entre a Ré e a Herança aberta por óbito do seu marido.

     Decidindo:

     O Código da Insolvência e Recuperação de Empresas estatui logo no seu artigo 1º que "o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (…)" o que inculca estarmos em princípio face a uma lide em que do lado passivo haverá em regra uma parte; regra que só é quebrada pela previsão dos artigos 264º ss do CIRE[1]. Bem se compreende neste caso que as vantagens da demanda conjunta superem as desvantagens que uma intervenção plural sempre tem num processo desta complexidade. É a forte e normal interligação económica da sociedade conjugal (não vigorando o regime da separação de bens) que o aconselha tomando-se em linha de conta por outro lado que a insolvência de um dos cônjuges é não raro condicionada pela do seu cônjuge, permitindo assim uma apreciação mais cabal do circunstancialismo que a rodeou, ao mesmo tempo que se viabiliza de um modo exclusivo para estes casos a forma de superar a situação – artigos 265º e 266º do Diploma em análise.

     Sucede porém que não estamos aqui já em face de dois cônjuges mas apenas de um, a ora requerida e a herança do seu falecido marido, uma vez que a morte deste último dissolveu o casamento.

     Nesta conformidade afastada estaria sempre a coligação.

     Contudo a requerente no seu recurso muito embora considere pacífica a inadmissibilidade da coligação, só permitida nas hipóteses tipificadas, sustenta que a questão terá que colocar-se em sede de "litisconsórcio necessário passivo" ou seja a intervenção na lide de todos os interessados para que a decisão produza o seu efeito normal – artigo 28º nº 2 do Código de Processo Civil.

     Como é sabido a legitimidade não sendo uma qualidade da parte, coloca-se tendo em linha de conta a posição da mesma face à relação jurídica em causa. Em princípio esta corresponde à sua posição perante o direito na via extraprocessual. Na relação jurídica plural podem os sujeitos passivos ser demandados individualmente ou conjuntamente devendo neste caso o tribunal conhecer apenas da sua quota-parte de responsabilidade – artigo 27º nº 1 do citado Diploma Legal. No entanto casos há em que a intervenção de todos os sujeitos passivos é necessária; tal sucede quando essa exigência dimane de contrato, de estipulação negocial ou ainda quando resulte da própria natureza da relação jurídica de molde a que só dessa forma a decisão poderá produzir o seu efeito normal.

     Revertendo ao caso concreto começaremos por referir que na "comunhão conjugal", estádio que precedeu a actual fisionomia dos ora demandados (herança jacente do falecido e o cônjuge mulher) estávamos perante um "património comum" face ao qual nenhum deles tinha qualquer quota, não se aplicando aqui as regras da compropriedade. Contudo o património comum pressupõe o vínculo conjugal; dissolvido este, aquele estádio transmuda-se numa situação de compropriedade, cada um dos ex-cônjuges tendo nela uma quota ideal de que pode dispor, podendo exigir também a separação através da partilha. No entanto esta vai apenas materializar/concretizar na prática um direito que antes era apenas ideal.

     No caso em análise a Requerida B.... foi demandada não como herdeira do falecido mas antes como seu cônjuge; e nesta qualidade nada tem a ver com a herança do falecido.

     É assim que mesmo em sede de litisconsórcio a intervenção da Requerida na lide não seria necessária para que a acção tivesse o seu efeito útil normal, pelo que improcedem nesta sede as considerações da apelante.

     Acresce ainda, e como bem se refere no despacho que ora se reaprecia, a requerente não alegou como lhe competia e apesar de para tanto ter sido convidada, os requisitos negativos a que alude o artigo 249º nº 1 alínea a) do CIRE, designadamente a ausência de dívidas laborais e um número de credores não superiores a 20, o certo é que não o veio a fazer.

     Pelo exposto a apelação terá que improceder indo assim confirmado o despacho em crise.

                          

                          

     À guisa de sumário e conclusões, poderá assentar-se pois no seguinte:

     1) O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repatriação do produto obtido pelos credores (…)" o que inculca estarmos em princípio face a uma lide em que do lado passivo haverá em regra uma parte; regra que só é quebrada pela previsão dos artigos 264º ss do CIRE.

     2) Na vigência da "sociedade conjugal" está-se pe­rante um "património comum" sendo certo que em face do mesmo nenhum dos cônjuges tinha qualquer quota.

     3) Dissolvido o vinculo conjugal aquele estádio transmuda-se numa situação de compropriedade, cada um dos ex-cônjuges tendo nela "uma quota ideal" de que pode dispor, podendo inclusive requerer a partilha.

     4) Intentada acção de declaração de insolvência contra a Herança do falecido e seu ex-cônjuge enquanto tal e não também como sua herdeira, a mesma é parte ilegítima, pelo que se justifica a absolvição da instância das Rés da instância, tendo em linha de conta também que a requerente não alegou como lhe competia e apesar de para tanto ter sido convidada, os requisitos negativos a que alude o artigo 249º nº 1 alínea a) do CIRE, designadamente a ausência de dívidas laborais e um número de credores não superiores a 20.

                           *

     3. DECISÃO.

     Nesta conformidade acorda-se em julgar a apelação improcedente confirmando destarte a decisão em crise.

     Custas pela Apelante.


      [1] Cfr. neste sentido Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda "Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado"   Volume I",  Lisboa, Quid iuris 2005, pags. 60 nota 17.