Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1939/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
SUA FORMALIZAÇÃO
NULIDADE
Data do Acordão: 09/27/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS 238º, NºS 1 E 2, E 410º, Nº 2, DO C. CIV. .
Sumário: I – Em matéria de interpretação dos negócios formais, nenhuma declaração negocial pode, em princípio, valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento em causa, ainda que se encontre imperfeitamente expresso, excepto se houver vontade real e concordante das partes e a tal não se opuserem razões determinantes da forma do negócio .
II – O que conta é a vontade real e concordante das partes, independentemente de as mesmas se terem exprimido com impropriedade, inexactidão, ambiguidade ou mesmo de o sentido da declaração não ter sequer correspondência ou vestígio no texto do documento .
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. A autora, A..., instaurou contra a ré, B..., a presente acção declarativa, com forma de processo ordinário, alegando para o efeito, e em síntese, o seguinte:
A autora celebrou com a ré um contrato-promessa através do qual esta prometeu vender-lhe duas fracções do prédio id. no artº 1º pi, de que a mesma é proprietária, e aquela prometeu comprar-lhe as mesmas, pelo preço global de esc. 15.000.000$00. Todavia, na formalização desse contrato, através da redução a escrito particular, levada a efeito em 16/3/2000, apenas se fez referência, por lapso, a uma daquelas fracções. Lapso esse que não foi então corrigido dada a existência de fortes laços de amizade entre a autora e a sócia gerente da ré.
Preço esse que a autora já pagou, através de sucessivas entregas em dinheiro que foi efectuando.
Muito embora não tivesse ficado exarado na formalização do dito contrato a data da entrega à autora das referidas fracções, todavia, foi convencionado que essa entrega deveria ocorrer até Dezembro de 2000.
Entretanto a ré entregou à autora as duas fracções objecto de tal contrato, que, desde então, passou a usá-las e a frui-las.
Porém, decorrido tal data a ré nunca mais se dispôs a celebrar a escritura pública referente ao contrato-prometido, e não obstante as diversas solicitações para o efeito da autora.
Mais tarde, como a autora tivesse tido necessidade de contrair um empréstimo bancário e de dar como garantia as aludidas fracções, foi-lhe então sugerido pelo gerente da respectiva instituição bancária que seria de toda a conveniência, com vista a mais fácil obtenção de tal financiamento, que apresentasse um contrato-promessa em que o preço de compra daqueles bens fosse fixado no montante de esc. 18.000.000$00.
Tendo a autora confrontado a aludida sócia-gerente da ré com tal situação, e como a mesma tivesse dado a sua anuência, foi então formalizado um novo contrato-promessa, em tudo idêntico ao anterior com excepção do preço, no qual ficou a constatar que o preço de compra e venda das referidas fracções seria de esc. 18.000.000$00. Contrato esse que foi, pois, realizado com simulação de preço, e apenas para efeitos de conveniência dos interesses bancários da autora acima aludidos, já que o preço real de compra e venda das fracções em causa se manteve nos acima citados esc. 15.000.000$00.
Entretanto, o tempo foi decorrendo sem que a ré se dispusesse a celebrar a respectiva escritura pública daquele contrato-prometido, recusa essa que se manteve mesmo depois de a autora, através do seu mandatário, ter enviado àquela uma carta registada a interpelá-la para, no prazo de 10 dias, marcar tal escritura.
Ora perante tal recusa, acrescida do facto de a ré não ter cancelado, como se havia obrigado pelo contrato, a cancelar uma hipoteca existente sobre as ditas fracções e bem assim ainda de não ter providenciado sequer que a água, a luz e a electricidade fossem ligadas, a autora perdeu interesse na realização do contrato-prometido, pelo que decidiu resolver o sobredito contrato-promessa. Resolução essa que comunicou à ré por carta registada, com AR, que lhe enviou em 21/3/2002.
Pelo que terminou a autora pedindo:
a) Que seja declarada válida e eficaz a resolução, pela autora, daquele contrato-promessa celebrado com a ré;
b) Que, em consequência, seja a ré condenada a restituir à autora a quantia de esc. 30.000.000$00 (correspondente ao dobro daquela importância que autora lhe havia já entregue a título de sinal), acrescida de juros moratórios;
c) Que seja declarado que a autora goza do direito de retenção sobre aquelas duas fracções objecto de tal contrato, e até ao pagamento integral daquele seu crédito.

2. Na sua contestação, a ré defendeu-se, alegando, em síntese, o seguinte:
Muito embora confirmando ter celebrado com a autora o 1º contrato-promessa pela mesma acima referido e bem assim o lapso por ela referido na formalização desse contrato (abrangendo, portanto, as duas fracções referidas pela autora) e de ter recebido da mesma a importância de esc. 15.000.000$00, todavia, o preço global de compra e venda estipulado foi de esc. 18.000.000$00 (e não os esc. 15.000.000$00, alegados pela autora).
Desse modo, e para corrigir tais inexactidões, foi, a exigência da ré, elaborado um segundo contrato-promessa, nos termos que constam do documento que juntou depois a fls. 57/58 destes autos.
Por outro lado, negou que se tenha recusado a realizar a escritura pública do contrato-prometido, cujo interesse reafirmou na sua celebração, antes atribuindo a responsabilidade de tal a atraso à autora, a qual vem exigindo, como condição, para o efeito, que, além do mais, a ré lhe faça um desconto de esc. 3.000.000$00 naquele preço total convencionado de esc. 18.000.000$00.
Para além disso, a ré rebateu os demais factos e argumentos invocados pela autora para fundamentar a sua alegada perda de interesse na realização do contrato-prometido e que a terão levado a que tivesse optado pela resolução do aludido contrato-promessa.
Por sua vez, e reafirmando o interesse na realização do contrato-prometido, requereu, por via reconvencional, que autora fosse condenada a cumprir tal contrato, em execução específica (e depois, de a esse propósito, ter apresentado novo articulado de contestação onde, na sequência de despacho judicial que a convidou a tal, reformulou o correspondente pedido final).
Termos, pois, em que terminou pedindo a improcedência da acção e a procedência da sua reconvenção, de forma a ser proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial da autora nos termos do artº 830 do CC, com a mesma a ser condenada a cumprir o contrato-promessa a que se obrigou, em 19/10/2001, e, consequentemente, a pagar-lhe a parte do preço ainda em débito, no montante de esc. 3.000.000$00, acrescido dos juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a “citação” (certamente quereria-se dizer “notificação”) e até ao seu integral pagamento.

3. No seu articulado de tréplica, a autora pugnou pela improcedência da reconvenção e pela procedência da sua acção.

4. Entretanto, a ilustre mandatária da ré renunciou ao mandato, sem que, no prazo que lhe foi fixado, a sua mandante tenha constituído novo mandatário.

5. Sem a realização de audiência preliminar, o srº juiz a quo proferiu despacho saneador onde começou, de imediato, por conhecer logo do pedido.
5.1 E aí, depois de ter (pelos motivos exarados em 4) dado sem efeito o pedido reconvencional, foi, a final, proferida decisão nos seguintes termos:
“a-) Declaro nulo os contratos-promessa de compra e venda de bens imóveis juntos aos autos por falta de forma e em consequência absolvo a ré “B... dos pedidos contra ela formulados por A....
b-) Em consequência da declaração de nulidade determino que a Ré restitua à A. as quantias que indevidamente recebeu, no valor 15.000.000$00 ou 74.819,68 euros e que a A. entregue as lojas à Ré.
c-) Declaro sem efeito o pedido reconvencional formulado pela Ré, atentas as disposições conjugadas dos artºs 39º, nº 3 e nº 6, do Código de Processo.
d-) Em consequência, ordeno o levantamento do arresto decretado sobre os bens imóveis da Ré, constante de fls. 31 a 33 dos Autos 210-A/2002.”

6. Não se conformando com tal decisão, a autora dela interpôs recurso, o qual foi admitido como apelação.

7. Nas suas correspondentes alegações de recurso, a autora concluiu as mesmas nos seguintes termos:
“a)- Os contratos promessa anexos à P.I. foram assinados pela R. como promitente vendedora e pela A. como promitente compradora.
b)- A A. vem expressamente identificada nos contratos na parte reservada ao promitente adquirente, tendo nessa qualidade assinado os contratos.
c)-As negociações e conclusão dos contratos foram estabelecidas e concluídas entre a R. e A., como aquela expressamente admite nos seus articulados, confessando-o inequivocamente nos art. 7º, 50º, 59º e 62º da contestação.
d)- É a R. que afirma ter prometido vender à A. as fracções objecto dos contratos promessa, emitindo a favor e em nome desta os competentes recibos, não só por a considerar promitente compradora, como por ter sido ela, que nessa qualidade lhe efectuou o pagamento.
e)- O sentido pretendido e querido pelos contraentes decorre inequivocamente dos contratos, dos demais documentos anexos aos autos e da reafirmada vontade real constante dos documentos e dos articulados.
f)- Contrariamente ao decidido, sendo a A. promitente compradora forçoso é concluir que os contratos promessa que subscreveu não são nulos por vício de forma, mas válidos.
g)- Ainda que por hipótese se considerasse os referidos contratos formalmente inválidos, pela ausência de assinatura do promitente adquirente nem por isso a sentença recorrida os poderia ter declarado nulos nos termos em que o fez.
h) Com efeito, o contrato promessa bilateral de compra e venda subscrito só por um dos promitentes sofre de invalidade parcial, conduzindo, em princípio, à sua conservação quanto à declaração da parte que assinou o documento.
i) Será, porém, nulo, se o contraente que o subscreveu alegar e provar que o contrato não teria sido celebrado sem a parte viciada (regime decorre do disposto no art. 292º do C.C.);
j) O assento de 29 de Novembro de 1989, tem de ser interpretado no sentido de consagrar a nulidade parcial do negócio e, portanto, a sua redução.
k)- Contrariamente ao decidido, os contratos só poderiam ter sido declarados nulos, nos termos em que o foram, se a R. enquanto promitente vendedora, subscrevendo o contrato alegasse e provasse que o não teria celebrado, sem a parte viciada, o que em parte alguma dos seus articulados o faz.
l) Mesmo que, academicamente, os contratos promessa fossem declarados nulos deveriam manter-se como contratos promessa unilaterais.
m)- Ao decidir de forma diferente a decisão recorrida violou entre outros os art. 232º, 236º, 237º, 238º, 239º, 410º n.º 2 e 292º, todos do C.C., 732º-A, 732º-B do C.P.C. e art. 206º da C.R.P., que deverão ser interpretados nos termos preditos.”

8. Não foram apresentadas contra-alegações.

9. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
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Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso.
1.1 Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto dos mesmos (cfr. artºs 690, nº 1, e 684, nº 3, do CPC), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso (cfr. nº 2 – finé - do artº 660 do CPC).
É também sabido que, dentro de tal âmbito, deve o tribunal resolver todas as questões que lhe sejam submetidas a apreciação, exceptuando-se aquelas questões cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras (cfr. 1ª parte do nº 2 do artº 660 do CPC).
Por fim, vem, também, sendo dominantemente entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a derimir (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.” e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).
1.2. Ora, compulsando as conclusões da motivação do presente recurso, afigura-se-nos que as grandes questões que nos importa aqui apreciar e decidir serão as seguintes:
a) Se devem, ou não, ser declarados nulos, por vício de forma, os contratos-promessa a que se reportam os presentes autos, e particularmente aqueles que se encontram formalizados nos documentos juntos a fls. 6 e 57/58?
b) E, em caso de tal resposta ser afirmativa, se tal nulidade é total ou apenas parcial?
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2. Os factos
Com relevância para decisão do presente recurso, devem ter-se como assentes (por acordo das partes e por documentos juntos autos) os seguintes factos:
2.1 A autora e a ré estão de acordo que entre ambas foi celebrado um contrato - através do qual a última se comprometeu a vender à primeira, e esta se comprometeu-lhe comprar-lhe, duas fracções autónomas (lojas comerciais), designadas pelas letras C) e D), integrantes do prédio urbano melhor id. no artº 1º da pi.
2.2. Para pagamento do preço convencionado, a autora entregou já à ré a importância total de esc. 15.000.000$00/€ 74.819,68 e que resulta da entrega fraccionada de diversas importâncias que a autora foi fazendo à ré.
2.3 Na sequência do contrato referido em 2.1, a ré entregou já a autora as chaves daquelas duas fracções ali referidas, vindo a última, desde há muitos meses, usando e fruindo tais fracções.
2.4 Até ao momento ainda na foi celebrada a escritura pública do contrato-prometido referido em 2.1.
2.5 A fls. 6 destes autos encontra-se junto um documento que, com o título “Contrato de Promessa de Compra e Venda”, contem, além do mais, exarado o seguinte:
“Entre B..., com sede em São Miguel, freguesia de Midões, concelho de Tábua, contribuinte nº503364932. Na qualidade de Promitente vendedor e Primeiro outorgante e,
C... casado com A... casado sob o regime de comunhão de bens. Residentes nas Caldas da Felgueira, contribuintes nº104070030 e 104070021, como promitente comprador e Segundo Outorgante.
Declara o primeiro outorgante que:
Primeiro: É proprietário e legítimo possuidor de uma loja comercial que fica situada no topo lateral direito do prédio, sito ao Vale de Samarras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Nelas sob o nº01407 da freguesia de Nelas.
Segundo: Que pelo preço de 7.500.000$00 (...) promete vender ao Segundo Outorgante, a fracção do referido prédio supra identificada.
(...)”.
Documento esse que tem nele aposta a data de 16/3/2000, e que no final, no espaço destinado ao primeiro outorgante, contem o nome da ré, com a assinatura do seu gerente, e no espaço destinado ao 2º outorgante encontra-se a assinatura da autora, com o seu nome completo.
2.5.1 Documento esse que corresponde à 1ª versão escrita do contrato referido em 2.1.
2.6 Por sua vez, a fls. 57/58 destes autos encontra-se junto um documento que, com o título “Contrato de Promessa de Compra e Venda”, contem, além do mais, exarado o seguinte:
Entre B..., com sede em São Miguel, freguesia de Midões, concelho de Tábua, contribuinte nº503364932. Na qualidade de Promitente vendedor e Primeiro outorgante e,
C... casado com A... casado sob o regime de comunhão de bens. Residentes nas Caldas da Felgueira, contribuintes nº104070030 e 104070021, como promitente comprador e Segundo Outorgante.
Declara o primeiro outorgante que:
Primeiro: É proprietário e legítimo possuidor de duas fracções C e D situadas no Edifício Titanic, sito ao Vale de Samarras, descrito na Conservatória do registo predial de Nelas sob o nº0454-2001/02/02, na freguesia de Nelas.
Segundo: Que pelo preço de 18.000.000$00 (...) promete vender ao Segundo Outorgante, as fracções do referido prédio supra identificadas.
(...)”.
Documento esse que tem nele aposta a data de 19/10/2001, e que no final, no espaço destinado ao primeiro outorgante, contem o nome da ré, com a assinatura do seu gerente, e no espaço destinado ao 2º outorgante encontra-se a assinatura da autora, com o seu nome completo.
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3. De direito
3.1 Quanto à 1ª questão
Da nulidade dos contratos-promessa.
A decisão recorrida declarou nulos os contratos-promessa juntos aos autos, por vício de forma, devido, em primeira linha, ao facto de os mesmos não se encontrarem assinados pelo promitente-comprador.
Por sua vez, a autora-apelante defende, como primeiro fundamento do seu recurso, que foi ela que interveio em tais contratos como promitente-compradora e que, nessa qualidade, assinou tais contratos.
Apreciemos então.
Não obstante o tribunal não estar vinculado ao nomem iuris dado pelas partes aos contratos que celebraram, todavia, face aos elementos carreados para os autos, existe uma total sintonia entre aquelas e o srº juiz a quo (e à qual nós aderimos) de que o litígio em discussão nesta acção emerge de um contrato-promessa.
Contrato-promessa esse através do qual a ré-ora apelada, na qualidade de promitente vendedora, prometeu vender as fracções designadas pelas letras C) e D) do seu prédio urbano id. no artº 1º da pi.
Contrato esse que foi reduzido a escrito, nos termos constantes do documento junto a fls. 6 destes autos e dos quais apenas consta a referência a uma fracção (correspondente a uma loja comercial) do dito prédio e sem qualquer outra identificação (nomeadamente em termos de letras).
As partes aqui em confronto estão de acordo que tal omissão se deveu a um manifesto lapso, já que ambas reconhecem que o negócio em causa envolveu aquelas duas fracções.
Entretanto foi elaborado o documento escrito de fls. 57/58. Porém, muito embora as partes não ponham em causa a sua existência, todavia, já existe divergência quanto à sua razão de ser. É que enquanto a autora defende, como acima se deixou exarado, que tal documento visou formalizar um contrato-promessa que, para além de conter todas as cláusulas acordadas no contrato anterior, se destinava exclusivamente a satisfazer as exigências/sugestões bancárias que lhe foram feitas para a concessão de um empréstimo bancário, que nada tem a ver com negócio anterior e nomeadamente no que concerne ao preço (simulado) de compra e venda nele referido de esc. 18.000.000$00 (não se destinando, pois, nos termos do alegado pela autora, e ao contrário do que se referiu no 2º parágrafo da sentença, a corrigir os termos do anterior, tratando-se, na verdade de um contrato, incluindo o dito preço, simulado - cfr. artºs 29º a 37º da pi), já, porém, a ré defende que a elaboração desse 2º documento visou exactamente corrigir o anterior, e nomeadamente também por forma a nele ficar reflectido o preço real que foi estipulado para a compra e venda das duas aludidas fracções (cfr. artºs 29º a 35º da contestação).
Tudo isto, desde logo, para por a nu a divergência das partes no que concerne à natureza e razão de ser daqueles dois aludidos documentos e para colocar ainda a questão de saber se, na verdade, estaremos só na presença de um (e único) ou de dois contratos-promessa envolvendo as sobreditas fracções, resposta essa que, pela solução que se irá preconizar, só poderá e deverá ser dada depois de apurada a correspondente matéria de facto pertinente.
Porém, e independentemente do número de contratos que se venha a considerar terem sido celebrados, e dando, sem mais, de “barato” que os sobreditos dois documentos consubstanciam dois contratos-promessa (sendo ou não diferentes e autónomos entre si) será que os mesmos devem serem declarados, desde já, nulos, por vício de forma, tal como se fez na 1ª instância?
Vejamos.
Como acima se deixou expresso, o srº juiz a quo fundamentou aquela sua decisão, que foi no sentido afirmativo da questão ora colocada, no facto de tais documentos não se encontrarem assinados pelo promitente-comprador.
Nos termos do estatuído no nº 2 do artº 410 do Código Civil – diploma ao qual nos referiremos sempre que doravante se mencione somente o normativo sem a menção da sua origem -, “a promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral”.
Ora, sendo, no caso em apreço, manifesta a natureza bilateral de tais contratos, e tendo os mesmos por objecto a promessa de venda e compra de bens imóveis, é claro que tais contratos devem ser reduzidos a documento escrito, assinado pelos respectivos outorgantes que neles se vincularam (cfr. artº 875 e o citado nº 2 do artº 410).
Ora, consubstanciando os sobreditos documentos de fls. 6 e 57/58 a formalização (em escrito) dos contratos-promessa nele referidos, cuida-se aqui tão somente se saber se os mesmos se mostram assinados pela parte que neles se vinculou na qualidade de promitente comprador, já que no que concerne à assinatura do promitente vendedor essa questão não se discute, por ser inquestionável a sua existência.
Importa, assim, saber quem é que nos referidos contratos, formalizados em tais documentos, outorgou como promitente comprador e, nessa qualidade, se vinculou aos seus termos?
Debruçando-nos sobre o teor de tais documentos, e no que a esse propósito importa aqui salientar, verifica-se que, quanto à identificação dos outorgantes, resulta o seguinte:
- “Entre B..., .... na qualidade de Promitente vendedor e Primeiro outorgante e,
C... casado com A... casado sob o regime de comunhão de bens....como promitente comprador.(...)”
- Que no final, no espaço destinado ao 2º outorgante, encontra-se a assinatura da autora, com o seu nome completo.
Resulta objectivamente do supra exarado que muito embora no lugar de 2º outorgante, e na qualidade de promitente comprador, figure um tal C... (que ali se diz ser casado com A..., em regime da comunhão de bens – e que é a autora nesta acção), todavia, é a assinatura desta, com o seu nome completo, que figura, no final, no lugar destinado à assinatura do 2º outorgante.
Como interpretar então tal desconformidade?
Para tal, estamos já a entrar no domínio não só da formação como também, e sobretudo, da interpretação ou hermenêutica dos negócios jurídicos, e mais concretamente do sentido das declarações negociais.
Matéria essa que, como é sabido, se encontra regulada nos artºs 236 e ss.
Em tal domínio, a regra geral (da hermenêutica negocial) encontra-se plasmada no referido normativo (onde se encontram consagrados, como é sabido, os princípios da impressão do destinatário, da vontade real das partes e dos declarantes, e a funcionarem conforme as situações ali descritas). Regra essa - que não iremos perder tempo aqui a analisar, por não ser, a nosso ver, aplicável ao caso sub-júdíce – que sofre alguns desvios (restritivos), e entre os quais aquele que vigora para os negócios formais (como acontece no caso em apreço) e que se encontra contemplado no artº 238.
Estipula esse artigo 238 (sob a epígrafe de “negócios formais”) que “nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso” (nº 1), e que “esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade” (nº 2).
Resulta, assim, do nº 1 de tal preceito legal a regra de que, em matéria de interpretação dos negócios formais, nenhuma declaração negocial pode, em princípio, valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento em causa, ainda que se encontre imperfeitamente expresso. É, pois, a regra de que as declarações devem valer, em princípio, com o sentido objectivo expresso no documento.
Porém, no nº 2 de tal normativo encontra-se plasmada uma excepção a tal regra, e que permite declarar, em tais negócios, válido o sentido de uma declaração que não tenha qualquer correspondência ou rasto, ainda que rudimentar, no texto do respectivo documento, desde que se verifique um duplo condicionalismo: a) que tal corresponda à vontade real e concordante das partes; b) e que a tal validade não se oponham as razões determinantes da forma do negócio.
A 1ª parte daquele seguemento normativo (do nº 2) – à semelhança do que se verifica também no nº 2 do acima citado artº 236 – é a expressão de manifestação da velha regra ou máxima “falsa demonstratio non nocet”. Ou seja, visa abranger aquele tipo de situações em que (como escreve Heinrich Horster, in “A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina 1992, pág. 511”) «declarante e o declaratário se exprimem mal e se entendem bem, apesar de este entendimento comum contrariar o uso linguístico ou o sentido normal das expressões empregues». (...). «A “falsa demonstratio” pode ser o resultado de ignorância....de negligência...., mas também ser de propósito. Aqui vale sempre o princípio “falsa demonstratio non nocet”, que quer dizer a vontade real é que conta».
Significa tal, que o que conta é a vontade real e concordante das partes, independentemente de as mesmas se terem exprimido com impropriedade, inexactidão, ambiguidade ou mesmo de o sentido da declaração não ter sequer correspondência ou vestígio no texto documentado.
Por sua vez, o segundo condicionalismo imposto (que as razões determinantes da forma do negócio não se oponham à validade de tal declaração) tem a ver, como é sabido, com razões relacionados com a segurança ou certeza dos negócios jurídicos ou com os interesses de terceiro.
A propósito do tema que vimos abordando, vidé ainda, e para maior desenvolvimento, para além do autor e obra supra citados, os Profs. Carlos Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 2ª ed. actualizada, págs. 445/447 e 450/451”; Vaz Serra, in “RLJ 111º, págs. 249 e 306, e 99º pág. 277”; Pires de Lima e A. Varela, in “Código Civil Anotado, vol. 3ª ed. , págs. 224/228; Ac. do STJ de 30/1796, in “BMJnº 453 – 509 e Ac. da RLx de 7/3/96, in “CJ, ano XXI, T2 – 74).
Ora, subsumindo estas considerações, de cariz teórico-técnico, ao caso em apreço, dir-se-á:
Muito embora como 2º outorgante apareça, objectivamente exarado nos dois documentos em causa, o nome de um tal C... (identificado com estando casado com a autora, “em regime de comunhão de bens”), todavia, é a autora que no final apõe a sua assinatura nos lugares destinados, em tais documentos, a serem assinados pelo 2º outorgante (na qualidade de promitente comprador).
Por outro, resulta do factos assentes (cfr. nº 2.1) que a autora e a ré estão de acordo que os “contratos” em causa foram celebrados entre ambos, a primeira na qualidade da promitente compradora e a segunda na qualidade de promitente vendedora. E tal corresponde àquilo que, desde o primeiro momento e ao longo da acção, as partes sempre alegaram e assumiram, quer para descrever as negociações preliminares que conduziram à formação “dos contratos-promessa”, quer para descrever o que se passou após tal celebração e formalização e bem como quanto à atribuição de responsabilidades, que cada uma das partes imputa à outra, pelo seu não cumprimento. Jamais ao longo do processo aparece qualquer outra referência (para além daquela acima mencionada), seja em que circunstância for, ao tal C..., sendo que mesmo o pagamento do preço, que foi efectuado até ao momento, no montante de esc. 15.000.000$00, foi feito pela autora, conforme resulta, quer do alegado por ambas as partes, quer do teor dos diversos documentos juntos, a esse propósito, aos autos (cfr. fls. 7 a 10).
Ter-se-á, assim, por tudo o exposto e, desde logo, à luz ao disposto no nº 2 do artº 238, que entender e interpretar, e por tal corresponder ou estar em sintonia com a vontade real das partes, que os contratos-promessa em causa foram celebrados entre a autora e a ré, outorgando neles, respectivamente, na qualidade de promitente compradora e promitente vendedora, e, assim, nessas qualidades neles se vinculando, sendo certo que não se vislumbra ou descortina sequer que, no caso em apreço, haja alguma razão ou motivos, determinantes da redução a escrito do tipo de negócios em causa, que se oponham à validação de tal interpretação.
E, mesmo que tal interpretação não fosse possível de fazer à luz do citado nº 2 do artº 238, sempre, a nosso ver, e pelo que supra se deixou expresso (e nomeadamente devido ao facto de ser a assinatura e o nome da autora que, no final dos dois aludidos documentos, se encontram apostos no lugar destinado à assinatura do 2º outorgante – promitente comprador), tal interpretação encontrava guarida à luz do nº 1 daquele mesmo preceito legal.
E, sendo assim, falta, desde logo, o primeiro e grande pressuposto em que se fundou a douta decisão recorrida para declarar nulos os sobreditos contratos: a ausência da assinatura de uma das partes que com eles se pretendeu vincular. Na verdade, como vimos, e salvo sempre o devido respeito por opinião em contrário, ambas as partes (neste caso a ré e a autora), que outorgaram e se vincularam por tais contratos, assinaram os documentos que formalizaram os mesmos.
Termos em que fica, assim, prejudicado conhecimento da 2ª questão acima enunciada (cuja solução, devemos dizê-lo, não se mostra pacífica, sobretudo a nível da nossa doutrina).
E, desse modo, ter-se-á de julgar procedente o recurso, revogando-se o douto despacho-saneador sentença (com excepção daquela parte em que declarou sem efeito o pedido reconvencional), devendo, consequentemente, os autos prosseguir os seus ulteriores legais trâmites processuais.
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III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso (de apelação), revogando-se o douto despacho-saneador sentença (com excepção daquela parte em que declarou sem efeito o pedido reconvencional), devendo, consequentemente, os autos prosseguir os seus ulteriores legais trâmites processuais.
Custas da acção e do recurso pela parte vencida final.

Coimbra, 27/09/2005