Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
185/15.1IDLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
RECUSA DE DEPOIMENTO
COMPARTICIPAÇÃO CRIMINOSA
CO-ARGUIDO FAMILIAR DA TESTEMUNHA
PROVA PROIBIDA
NULIDADE DA SENTENÇA
Data do Acordão: 06/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 134.º DO CPP
Sumário: I – Nos termos e para efeitos do disposto no artigo 134.º do CPP, em caso de comparticipação criminosa, a testemunha não goza do direito de recusar depor sobre factos imputados exclusivamente aos co-arguidos com quem as testemunhas não tenham relação de parentesco ou afinidade, sempre e só se tais factos não implicarem a responsabilidade criminal do co-arguido seu familiar ou afim.

II - Se o depoimento da testemunha versar sobre matérias factuais incindíveis inseridas no âmbito de protecção daquela norma, não deverá ser objecto de valoração na estrita medida da responsabilidade penal do familiar do depoente. Quanto aos demais arguidos, não haverá obstáculo à consideração do referido meio de prova.

III – A valoração da prova testemunhal com preterição das ditas regras, porque fundada em prova proibida, determina a nulidade da sentença e a prolação de nova decisão final expurgada do verificado vício.

Decisão Texto Integral:




Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

A - Relatório:

Nos autos de processo comum supra numerado, perante tribunal singular do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Local Criminal das Caldas da Rainha mediante acusação pública, foram os arguidos:

A., sociedade comercial por quotas, com o N.I.P.C. 513 223 835, com sede na Rua (…), (…), (…), aqui representada pelo seu sócio gerente (…);

B., solteiro, motorista, filho de (…) e de (…), nascido a (…), em (…) e residente na Travessa (…), (…);

C., solteiro, agricultor, filho de (…) e de (…), nascido a (…), em (…) e residente na Rua (…), (…), (…); e

D., divorciado, bate chapas, filho de pai natural e de (…), nascido a (…), em (…) e residente na Rua (…), (…), (…), (…),

submetidos a julgamento, sendo-lhe então imputada a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal qualificada, p. e p. pelo art.º 26º, 105º, n.ºs 1, 2, 4 e 5, todos do R.G.I.T., aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho, com referência aos art.ºs 26º e 40º do C.I.V.A., incorrendo a sociedade arguida em responsabilidade criminal por este crime através da actuação dos seus representantes legais e de facto à data dos acontecimentos descritos na acusação, de acordo com o disposto no art.º 7º, n.ºs 1 e 3, do R.G.I.T..

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por sentença de 19-12-2018, o tribunal decidiu (transcrição do dispositivo):

“Nos termos e fundamentos expostos, julgo a acusação parcialmente procedente por provada e, consequentemente,

1. Absolvo o arguido D. da prática do crime de abuso de confiança fiscal por que vinha acusado.

2. Condeno o arguido B. pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105.º n.ºs 1, 2, 4 e 5 da Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho (RGIT), na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão.

3. Condeno o arguido C. pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105.º n.ºs 1, 2, 4 e 5 da Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho (RGIT), na pena de 2 (dois) anos de prisão.

4. Condeno a arguida A., pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105.º n.ºs 1, 2, 4 e 5 da Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho (RGIT), na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros).

5. Suspendo, na sua execução, as penas de prisão aplicadas aos arguidos B. e C. por igual período de, respetivamente, 2 (dois) anos e 8 (oito) meses e de 2 (dois) anos, sujeitando tal suspensão ao cumprimento dos seguintes deveres e regras de conduta: - pagamento, ao Estado, da quantia de 61.286,08€ (sessenta e um mil duzentos e oitenta e seis euros e oito cêntimos), equivalente ao valor de IVA não entregue, pagamento este que deverá ser efetuado durante o período da suspensão e devidamente comprovado nos autos, nos termos do disposto na al. c), do n.º 1, do art.º 51.º, do Código Penal, repartida por ambos os arguidos, cifrando-se a responsabilidade individual de cada um deles no montante de 30.643,04€ (trinta mil, seiscentos e quarenta e três euros e quatro cêntimos). - não exercer, durante o período da suspensão da execução da pena de prisão, qualquer cargo de gerência, de direito ou de facto, de empresa ou pessoa coletiva, nos termos da al. a), do n.º 2, do art.º 52.º, do Código Penal.

(…)”


*

Inconformado, recorreu o arguido B. da sentença proferida, com as seguintes conclusões:

“. i. Como resulta da sentença, a testemunha (…), mãe do ora Recorrente, recusou-se a prestar depoimento, ao abrigo do nº1 do art. 134º do CPP, tendo o Tribunal recorrido entendido que deveria responder aos factos atinentes aos restantes arguidos.

 ii. Sucede que, não obstante a recusa da testemunha em depor, o Tribunal a quo veio a valorar, ilegalmente, para efeitos de prova, as declarações que esta acabou por prestar relacionadas com o Recorrente, em resposta a questões que lhe foram colocadas.

iii. Ora, tendo o Tribunal recorrido aceite a recusa, considerando apenas que ela não era extensível aos demais arguidos, teria que permitir apenas as perguntas que incidiam sobre os restantes arguidos, e não valorar as respostas que, por qualquer razão, acabavam por recair sobre factos relacionados com o Recorrente.

iv. A prestação de declarações quanto aos restantes arguidos não pode prejudicar o direito de recusa de prestar declarações quanto ao arguido parente ou afim, pelo que, tendo a testemunha, no depoimento que lhe foi imposto, prestado declarações que contendem com o direito de recusa que legitimamente exerceu, não podiam essas mesmas declarações ser valoradas em sede de sentença, sob pena de violação do disposto no art. 134º do CPP. (cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 03/06/2015 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 30/06/2014, in www.dgsi.pt)

v. A valoração das declarações obtidas por esse meio configura, inclusive, uma obtenção de prova proibida, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 126º do CPP.

vi. Face ao exposto, deve a sentença proferida pelo Tribunal a quo ser declarada nula, o que ora se invoca.

(…).

Nestes termos e nos melhores de Direito, que os Venerandos Juízes Desembargadores doutamente suprirão, deve a sentença ora recorrida ser declarada nula, ou subsidiariamente, ser revogada, e, consequentemente, substituída por Acórdão que absolva o arguido B. pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal.

Assim decidindo, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA!”


*

Respondeu o MP, concluindo:

“1 - A Testemunha (…) recusou-se a prestar depoimento ao abrigo do n.º 1 do artigo 134.º do Código de Processo Penal, face à sua relação de parentesco (ascendente /mãe) do arguido B., ora recorrente.

2 - Não foi formulada à referida testemunha qualquer questão sobre o arguido /recorrente.

3 - Foram-lhe efectuadas questões sobre a sociedade arguida – que a testemunha declarou conhecer por ser a empresa do filho – e sobre uma conta bancária titulada pela testemunha onde foram depositados cheques emitidos à ordem da sociedade arguida.

4 - Embora nas respostas se mencionasse o recorrente, as questões formuladas não eram sobre o arguido ou, à partida, relacionadas com o arguido.

5 - Sobre tais factos – que não se referiam ao recorrente – a testemunha respondeu voluntariamente.

(…).

Pelo que

Deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se na íntegra a douta sentença recorrida.”


*

A Exma Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi cumprido o disposto no artigo 417 n.º 2 do Código de Processo Penal.


*

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do processo

Constituindo as conclusões o limite dos poderes cognitivos do tribunal de recurso, no caso em apreço, sem prejuízo das questões de natureza oficiosa, importa decidir:

- nulidade por valoração de depoimento de testemunha que recusou depor/ proibição de prova

- erro de julgamento - impugnação dos pontos 4, 8, 9, 10, 11, 12, 15 e 16 da matéria de facto dada como provada.

2. A. Factos provados

De relevante para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1. A sociedade arguida, sociedade comercial com o N.I.P. (…) e sede na Rua da (…), (…), (…), (…), (…), aqui representada pelo seu sócio gerente (…), encontrava-se coletada em 2014 nos Serviços de Finanças das Caldas da Rainha para o exercício de exploração de comércio de madeiras por grosso e retalho, prestação de serviços florestais e era em tal data sujeito passivo de I.V.A. enquadrado no regime normal de periodicidade trimestral, nos termos dos artigos 1º nº 1 al. a) e 2º nº 1 al. a) do CIVA, e, como tal, sujeito ao cumprimento das obrigações estipuladas naquele diploma legal, designadamente, a de liquidar o valor de IVA nas faturas e documentos equivalentes que emitia aos seus clientes e a entregá-lo nos cofres do Estado, depois de feito o apuramento a que se refere o artigo 27º do CIVA, conforme o disposto nos artigos 2º a 26º e 72º do citado diploma legal.

2. De acordo com a inscrição no registo comercial, a gerência da mesma foi exercida em 2014 pelo arguido D..

3. Todavia, não era este quem, de facto, efetivamente decidia os destinos desta empresa.

4. É que eram os restantes arguidos, em execução de um plano comum e com um mesmo desígnio comum, que faziam os pagamentos, davam ordens dentro da empresa, a quem os empregados obedeciam em última instância, contactavam com os fornecedores e clientes e assinavam os negócios com os mesmos em representação da empresa, decidiam que impostos é que eram pagos, assinavam cheques em representação da empresa, recebiam pagamentos, representavam a empresa nas relações com as instituições bancárias e financeiras, praticando todo o tipo de atos necessários à gestão da sociedade, tudo em nome da empresa.

5. Efetivamente, o arguido D., logo após a constituição da sociedade arguida, conferiu procuração ao arguido C. para o representar em tudo o que fosse necessário para o exercício da atividade da empresa arguida.

6. A arguida exerceu atividade no 4º trimestre de 2014 (2014/12T), enviou a declaração periódica com os valores liquidados nas transações efetuadas, de acordo com o estipulado nos art°s 29°, n.° 1, al. c) e art. 41°, n.° 1, al. b), ambos do CIVA, mas não a fez acompanhar do respetivo meio de pagamento, originando imposto em falta nos cofres do Estado.

 7. Sendo o montante de imposto exigível o resultado do diferencial entre o imposto liquidado a terceiros e o imposto suportado e dedutível (tudo de harmonia com o disposto nos art.ºs 19° a 25°, do CIVA), concluiu-se que o mesmo ascendeu à importância de 61.286,08€ (sessenta e um mil duzentos e oitenta e seis euros e oito cêntimos).

8. Na realidade, em execução de um plano anteriormente gizado entre ambos, os arguidos C. e B., em data não concretamente determinada mas situada após o final de Dezembro de 2014, decidiram não entregar ao Estado/Fazenda Nacional as quantias que a referida sociedade deveria pagar a título do I.V.A. do 4º trimestre de 2014, sendo que o montante a pagar resulta da diferença entre a totalidade das quantias que os clientes pagaram à sociedade arguida a título de I.V.A. e que a mesma liquidou e aquilo que ela suportava a título do referido imposto nas suas aquisições.

9. Desta forma, estes arguidos, com o objetivo de atingirem um benefício patrimonial indevido, liquidaram e receberam dos clientes da sociedade arguida o I.V.A. proveniente das transações comerciais, nesses três meses de 2014, não entregando à Fazenda Nacional as quantias que liquidaram e receberam a título deste imposto relativas às faturas que emitiram em nome da empresa arguida, apesar de bem saberem que estavam legalmente obrigados a efetuar a entrega destes montantes no prazo de 90 dias a contar da data legalmente prevista para o fazer.

10.Apesar de terem enviado as respetivas declarações periódicas de I.V.A. com o valor do imposto devidamente apurado, estes arguidos, na qualidade de representantes de facto e de direito da mencionada sociedade arguida, liquidaram e receberam o I.V.A. nas faturas que emitiram mas não entregaram tais quantias aos S.I.V.A. nos prazos estabelecidos no C.I.V.A. nem nos 90 dias seguintes ou em momento ulterior, em infração ao art.º 26º deste Código, utilizando antes as quantias em causa no interesse da sociedade arguida para satisfação das suas despesas.

11.Em consequência de tal conduta, os arguidos obtiveram a seguinte vantagem patrimonial no valor de 61.286,08 euros, correspondente ao valor liquidado, recebido mas não entregue nos cofres do Estado, referente ao I.V.A. supra descrito, lesando em igual medida o Estado Português/Fazenda Nacional.

12.Atento o factualismo agora descrito, os arguidos C. e B. agiram como representantes de facto e de direito da sociedade arguida, de forma livre, deliberada e consciente, em execução de um plano por eles elaborado e posto em prática, bem sabendo que a sua conduta era idónea a fazer diminuir as receitas do Estado em termos de I.V.A., pois sabiam que estavam obrigados a entregar à Fazenda Nacional a quantia que liquidaram e receberam dos clientes da sociedade arguida a título de I.V.A., de acordo com o art.º 26º, C.I.V.A., relativa às faturas emitidas em nome da empresa arguida, mas não obstante isso, integraram tal quantia no património da arguida.

13.As importâncias supra referidas de I.V.A. não foram entregues ao Estado no prazo legal nem decorridos 90 dias sobre aquele prazo.

14.Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 105º, n.º 4, al. b), do R.G.I.T. sem que os arguidos ou a sociedade arguida tivessem efetuado o pagamento da quantia em dívida bem sabendo que se o fizessem a sua responsabilidade criminal se extinguiria.

15.Os arguidos C. e B., agindo desta forma em nome e no interesse da sociedade arguida, em execução de um plano comum, quiseram e conseguiram desta forma ficar com os montantes do imposto supra referidos, bem sabendo que tais montantes pertenciam ao Estado e a este deviam ser entregues e que desse modo causavam ao Estado um prejuízo patrimonial equivalente.

16.A atuação dos arguidos C. e B. foi-o em nome e no interesse da arguida sociedade de forma livre e consciente, no intuito de eximi-la ao pagamento dos impostos devidos, estando cientes que esta sua conduta era proibida e punida por Lei como crime.

(…)


*

B. Factos não provados

(…).


*

C. Motivação

 A convicção positiva e negativa do tribunal na decisão sobre a matéria de facto da forma supra descrita, teve como fundamento o confronto da pertinente documentação junta aos autos (fls. 92-95, 105-116, 120-237, 288-296, 298-300, 303-313, 318-356, 358-411, 439-455, 457, 464-483, 491- 496, 511-516, 531-540 e certidão permanente, de fls. 117, 528 e segs.) com as declarações prestadas pelo arguido D. em julgamento e, bem assim, os depoimentos das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa.

No que se refere aos arguidos C. e B., os mesmos usaram do direito ao silêncio que a lei lhes confere durante toda a produção de prova, não se tendo pronunciado sobre os factos constantes da acusação. Assim e antes de mais, começando pela responsabilidade criminal na prática dos factos por parte de cada um dos arguidos, atenta a prova carreada para os autos, há a referir que o tribunal ficou com a clara convicção de que o arguido D. nada teve que ver com os atos de gestão da firma arguida e, consequentemente, com o ilícito em apreciação nos presentes autos. Efetivamente declarou este arguido, com credibilidade (porquanto tais declarações foram sustentadas pela demais prova testemunhal produzida em julgamento) que apenas “deu o nome” para a constituição da empresa ora arguida, a pedido do seu então amigo, C.. Referiu que nunca tomou qualquer decisão relativa à empresa e nunca teve nada que ver com o funcionamento da mesma desconhecendo, aliás, os negócios em que a mesma se envolvia. Tais declarações encontram-se devidamente sustentadas no documento de fls. 27 dos autos, o qual integra uma procuração outorgada por este arguido ao arguido C. e de acordo com a qual o primeiro, no dia 25.09.2014 (21 dias após a constituição da sociedade – 4.09.2014 – cfr. fls. 117 e ss.) conferiu ao segundo plenos poderes para gerir a sociedade ora arguida, nunca tendo aquele tido qualquer espécie de contacto com o desenvolvimento da atividade da empresa ora arguida. Assim, não se nos suscitam quaisquer dúvidas que o arguido D., pese embora conste da certidão permanente da firma como gerente da mesma, apenas exerceu tais funções de gerente de direito da mesma e nunca de gerente de facto, porquanto os verdadeiros gerentes e facto desta empresa ora arguida eram os demais arguidos, C. e B.. Tal convicção resulta do confronto da documentação de fls. 27 e ss., 36-62 e 66-83 em conjugação com a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento. Assim e desde logo, a testemunha (…), que exerce funções na Direção de Finanças de Leiria e que promoveu as diligências de instrução dos presentes autos referiu, paralelamente à confirmação da falta de entrega da prestação identificada nos autos, que a maior dificuldade com que se deparou em tal fase foi com a identificação da gerência de facto da empresa arguida, tendo apurado que relativamente aos negócios desenvolvidos pela mesma detetou transferências bancárias para a conta da sociedade por parte do arguido (…) e ainda que vários cheques emitidos para pagamento de serviços efetuados pela sociedade tiveram como destino final as contas bancárias dos arguidos C. e B., tendo ainda apurado a existência de alguns cheques endossados ao arguido B., os quais foram por este levantados e outros tantos levantados por terceiras pessoas, a pedido de B. e que tiveram este último como destino. Tal depoimento veio a ser integralmente confirmado pela testemunha (…), Inspetor Tributário a exercer funções a Direção de Finanças de Leiria, o qual depôs no mesmo exato sentido da anterior testemunha, não se tendo detetado qualquer dissonância entre tais depoimentos.

Também a testemunha (…), comerciantes de madeiras há vários anos e que, no âmbito do desenvolvimento da sua atividade profissional confirmou ter efetuado diversos negócios com a firma arguida nos anos de 2014 e 2015, foi referenciado que a única pessoa que conhece com relação a tal empresa é o ora arguido B., uma vez que foi sempre com o mesmo que lidou no desenvolvimento dos negócios em causa, tendo sido com este que acordou os termos do mesmo e a ele que entregou os pagamentos, tendo como destino a firma ora arguida o que, de acordo com a experiência comercial que tem neste ramo de negócio, o fez concluir ser este arguido o gerente da sociedade. Adicionalmente, a testemunha (…), mediador de seguros, confirmou que, a pedido do arguido B., efetuou o levantamento de diversos cheques emitidos à ordem da firma ora arguida, tendo-lhe entregue, em mãos, o valor correspondente, atuação em que foi por este acompanhado. Confrontado em julgamento com os cheques de fls. 372, 373, 375 e 382 confirmou tratar-se dos cheques que havia mencionado. Do mesmo modo a testemunha (…) descreveu idêntico procedimento por parte do arguido C., tendo confirmado que, a pedido deste, efetuou o levantamento de vários cheques emitidos à ordem da empresa ora arguida, tendo-lhe entregue em mão todo o valor relativo aos mesmos. Confrontado com os cheques de fls. 368, 369 e 371, confirmou tratar-se dos cheques que havia mencionado. A testemunha (…), arrolado pela defesa e amigo pessoal do arguido C., depôs acerca do caráter e personalidade do mesmo, tendo-o descrito com as características mencionadas supra nos factos provados. A testemunha (…), mãe do arguido B., usou da prerrogativa legal de não prestar depoimento acerca dos factos relacionados com o seu filho tendo prestado depoimento sobre os demais. Neste âmbito, declarou conhecer a firma ora arguida, por a mesma ser do filho, o que declarou de modo absolutamente espontâneo, imediato e sem quaisquer hesitações. Relativamente ao arguido C., referiu conhecê-lo apenas por há alguns anos terem sido vizinhos, não conhecendo o arguido D.. Confrontada com o facto de uma conta bancária de sua titularidade ter recebido o depósito de alguns cheques emitidos à ordem da sociedade arguida e ali terem sido levantadas quantias monetárias, referiu desconhecer em absoluto quer a existência de tal conta bancária, quer as transações que lhe foram questionadas, referindo que é o seu filho, B., quem tem acesso integral a tal conta bancária e lida com a mesma. Por fim, a testemunha (…), Contabilista certificada que foi responsável pela organização das contas da sociedade arguida, referiu que aceitou tal cargo a pedido do ora arguido C., tendo sempre sido com este que tratou de todos os assuntos relacionados com a firma. Referiu ainda ter visto o arguido D. por uma única vez, sendo que nunca mais chegou a conseguir contactá-lo, pelo que contactava com C., pedindo a documentação necessária para cumprimento das obrigações fiscais, sendo que a mesma lhe chegava, após tal contacto, à sua caixa de correio, desconhecendo quem a tinha ali entregue. Assim, da globalidade da prova produzida nos autos, da sua conjugação e apelando às regras da experiência da vida comum e da normalidade, não ficou o tribunal com quaisquer dúvidas de que eram os arguidos C. e B. quem exercia as funções de gerência de facto da sociedade arguida e foram eles quem, no âmbito destes poderes de gerência, tomaram a decisão de não entregar a quantia devida a título de IVA ao Estado, nos precisos termos constantes da acusação. A convicção relativa às condições pessoais dos arguidos foi formada com base nas declarações que cada um deles prestou a esta matéria, as quais não foram contrariadas por qualquer outro meio de prova produzido nos autos e relativamente aos seus antecedentes criminais, o tribunal teve em consideração o teor objetivo dos seus Certificados de Registo Criminal juntos a fls. 786, 787- 788, 789-790 e 791-793.”


*

Cumpre decidir.

A - Da recusa a depor

A testemunha (…), mãe do arguido B., devidamente advertida do seu direito a recusar depor, usou de tal prerrogativa legal de não prestar depoimento acerca dos factos relacionados com o seu filho.

Conforme o disposto no artº 134º, do CPP:

1 - Podem recusar-se a depor como testemunhas:

a) Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao 2º grau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido;

b) Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação.

Como se assinala no acórdão do TC nº 1/2009, de 29 de Maio “Com o reconhecimento do direito de recusa pertencente aos familiares, a lei não só pretendeu evitar o conflito de consciência que resultaria para a testemunha caso tivesse de responder com verdade sobre os factos imputados a um familiar seu. Pretendeu, ainda e sobretudo, proteger as "relações de confiança, essenciais à instituição familiar"» Esta é também a opinião de Costa Andrade que conclui não haver razões para se afastar da teoria tradicional alemã na parte em que adscreve o primado no programa de tutela destas proibições de prova aos interesses pessoais da testemunha individualmente considerada ou na teia das relações de confiança e de solidariedade que a instituição familiar oferece (M. Costa de Andrade, Sobre as Proibições de Prova, ob. cit. pág. 75 a 78).

No caso dos autos a testemunha Teresa, mãe do arguido Rui Martins, foi admitida a prestar depoimento sobre factos que não os imputados ao filho.

Como adverte o acórdão da Rel de Coimbra  de 3 de Junho de 2015, relator Des Jorge França, “as razões que servem de fundamento a tal recusa a depor não são extensivas a qualquer outro arguido, à excepção dos casos em que os factos a este relativos sejam susceptíveis de interferir no estatuto processual do co-arguido relativamente ao qual se verificam os pressupostos da recusa a depor: falamos dos casos em que se verifique uma qualquer forma de comparticipação entre os dois arguidos, pois que neste caso a circunstância de se depor relativamente a um arguido pode atingir, directa ou indirectamente, o arguido que se pretendeu proteger com tal possibilidade de recusa.”

Em suma, em caso de comparticipação, não gozam do direito de recusar depor sobre factos imputados exclusivamente aos co-arguidos com quem as testemunhas não tenham relação de parentesco ou afinidade, sempre e só se tais factos não impliquem a responsabilidade criminal do co-arguido seu familiar ou afim.

No sentido da extensão absoluta dessa recusa a depor Ac. STJ de 17/1/1996, CJ, tomo 1, pag. 177).

Revertendo aos autos, resulta da fundamentação da matéria de facto que o tribunal baseou a sua convicção além do mais, no depoimento prestado pela mãe do arguido, depoimento que contemplou matéria factual não pertinente apenas aos demais co-arguidos.

Para melhor clarificação transcrevemos o excerto respectivo:

“A testemunha (…), mãe do arguido B., usou da prerrogativa legal de não prestar depoimento acerca dos factos relacionados com o seu filho tendo prestado depoimento sobre os demais.

Neste âmbito, declarou conhecer a firma ora arguida, por a mesma ser do filho, o que declarou de modo absolutamente espontâneo, imediato e sem quaisquer hesitações.

Relativamente ao arguido C., referiu conhecê-lo apenas por há alguns anos terem sido vizinhos, não conhecendo o arguido D.

Confrontada com o facto de uma conta bancária de sua titularidade ter recebido o depósito de alguns cheques emitidos à ordem da sociedade arguida e ali terem sido levantadas quantias monetárias, referiu desconhecer em absoluto quer a existência de tal conta bancária, quer as transações que lhe foram questionadas, referindo que é o seu filho, B., quem tem acesso integral a tal conta bancária e lida com a mesma.” ( sublinhados nossos)

Como resulta manifesto as declarações por nós sublinhadas exorbitam o quadro factual relativo aos demais co-arguidos, contendendo com factos imputados ao arguido B. e que interessam à respectiva definição da responsabilidade penal.

Desta forma resulta violado o direito da testemunha recusar depoimento sobre factos atinentes à responsabilidade criminal do filho.

De notar que se tal depoimento versar sobre matérias factuais incindíveis inseridas no âmbito de protecção da norma, não deverá ser objecto de valoração na estrita medida da responsabilidade penal do familiar da testemunha. Já quanto aos demais arguidos afigura-se-nos não haver obstáculo à valoração de tal prova.

Não podia pois o tribunal recorrido utilizar o depoimento da testemunha (…) nos segmentos (assinalados supra) que contendiam com a responsabilidade criminal do arguido B..

B - Proibição de prova/nulidade

Na sentença recorrida foi violada uma proibição de prova que dá lugar a prova nula - art 32º, nº 8 da CRP - PP Albuquerque, com do CPP, PAG 320 - que no caso é insanável por falta de consentimento do titular do direito.

De notar que tal prova proibida não contaminou a restante prova, por inexistência de nexo de dependência lógica e valorativa.

A sentença recorrida, porque fundada em prova nula, - a prova proibida foi utilizada da fundamentação da decisão - é também ela nula nos termos do art 122º, nº 1, do CPP - ob cit pag 322 nota 8. O que determina a prolação de nova decisão, expurgada do apontado vício.

Mostram-se prejudicadas as restantes questões objecto do recurso.

C - Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal deste tribunal em declarar a sentença nula, que deverá ser substituída por outra que supra a referida nulidade, decidindo em conformidade.

Notifique. Sem tributação.

Coimbra, 26 de Junho de 2019

(Processado informaticamente e revisto pela relatora)

Isabel Valongo (relatora)



Jorge França (ajunto)