Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1242/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. AGOSTINHO TORRES
Descritores: ASSISTENTE
ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
Data do Acordão: 05/26/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DE FRADES
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 68°, N.º1, DO CPP, 27°-B, DO RJIFNA E 106° E 107.º, DO RGIT
Sumário:

I Nos crimes contra a segurança social em especial nos crimes de abuso de confiança em relação à segurança social, o bem jurídico tutelado é o património da segurança social, concretizado na função de arrecadação das contribuições que lhe são devidas.
II O titular desse bem jurídico é o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.
III Por isso, aquele Instituto tem legitimidade para se constituir assistente no processo penal cujo objecto é o crime de abuso de confiança em relação à segurança social.
Decisão Texto Integral:


Acordam os Juízes em conferência na Secção Criminal da Relação de Coimbra

I-RELATÓRIO

1.1-No processo de Inquérito supra identificado, foi indeferido por despacho judicial de 6.1.2004 (TJ de Oliveira de Frades) o pedido de constituição como assistente por parte do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social ( IGFSS)
Trata-se ali de processo crime onde se investigam ilícitos de abuso de confiança contra a segurança social.
Tal despacho entendeu, basicamente, que não havia norma expressa que conferisse a legitimidade para tal constituição àquele Instituto, após revogação do artº 46º do RJIFNA pelo RGIT aprovado pela lei 15/2001 de 5 de Junho e que ele não era “ofendido” para os efeitos do artº 68º do CPP, seguindo orientação jurisprudencial firmada no Ac Rlxa de 25.02.2003 que considerou que o interesse protegido nestee tipo de infracções não é próprio do requerente mas antes um interesse próprio do Estado.

1.2- Inconformado recorreu o IGFSS formulando as conclusões seguintes:

1ª-O facto de não existir no novo regime jurídico das infracções tributárias , aprovado pela Lei nº 15/01 de 5/6, uma norma que expressamente preveja a possibilidade de a administração tributária se constituir como assistente, não inviabiliza por si só a possibilidade de a segurança social se constituir como tal.
2ª-A legitimidade da segurança social provém directamente da disposição do artº 68º, nº 1 al. a) do CPP, uma vez que é representada pelo Instituto de Gestão Financeira da segurança Social(IGFSS) – instituto público dotado de autonomia administrativa e financeira , com personalidade jurídica e património próprio – artº 1º do D.L. nº 260/99 de 7/6, e titular de interesses patrimoniais que a lei quis proteger com a incriminação.
3ª-O nosso ordenamento jurídico parte de um conceito restrito de ofendido na determinação do circulo de pessoas com legitimidade para intervir como assistente em processo penal (Figueiredo Dias – Direito Processual Penal, Vol. I , 1996 pags. 512 e 513).
4ª-Com efeito , e de acordo com o estabelecido no referido artº 68º, nº 1 al. a) para efeitos de constituição como assistente, não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime , mas sim o titular do interesse que constitui objecto imediato do crime.
5ª-O bem jurídico tutelado pela incriminação do abuso de confiança em relação à segurança social tem um carácter patrimonial , assente na satisfação dos créditos contributivos de que a segurança social é titular que integram o seu património.
6ª-Pelo que se verifica, ainda que de forma indirecta , que os fins a que se encontra afecto o património de segurança social beneficiam da tutela da norma jurídica , já que o bem jurídico tutelado é o direito de crédito da segurança social.
7ª-Por outro lado ,o IGFSS, enquanto instituição da segurança social , é um instituto público , dotado de autonomia administrativa e financeira com personalidade jurídica e património próprio – artº 1º dpo D.L. nº 260/99 de 7/6.
8ª-Nessa medida , o IGFSS reponde pelos seus actos, agindo em nome próprio e não em nome do Estado.
9ª-Assim , forçoso se torna concluir que o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social é o titular do interesse que constitui objecto imediato do crime de abuso de confiança contra a segurança social, pelo que lhe assiste toda a legitimidade para se constituir como assistente no âmbito dos presentes autos.
10ª-Decidir em contrário implica a violação da disposição do artº 68º, nº 1 al. a) do CPP” bem como as disposições conjugadas do nº 4 do artº 7º do DL nº 316-A/2000 de 7 de Dezembro, do DL 260/99 de 7 de Julho e do artº 16º alª K) da Portaria nº 409/2000 de 17 de Julho.

Deve a decisão recorrida ser revogada e ser substituída por outra que admita o recorrente a intervir como assistente.

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1.3- O Ministério Público na 1ª instância respondeu no sentido de o despacho ser mantido e de igual modo emitiu parecer idêntico nesta Relação.
Também os arguidos emitiram idêntica posição.

1.4- O Sr Juiz manteve o despacho nos seus precisos termos.



II- ANALISANDO

2.1- O âmbito dos recursos encontra-se delimitado em função das conclusões extraídas, pelos recorrentes , da respectiva motivação, sem prejuízo, no entanto, das questões que sejam de conhecimento oficioso , cfr se extrai do disposto no artº 412º nº 1 e no artº 410 nºs 2 e 3 do Código de Processo Penal (c.p.p.)
Tais conclusões visam permitir ou habilitar o tribunal ad quem a conhecer as razões de discordância dos recorrentes em relação à decisão recorrida vide ,entre outros, o Ac STJ de 19.06.96, BMJ 458, págª 98 e o Ac STJ de 13.03.91, procº 416794, 3ª sec., tb citº em anot. ao artº 412º do CPP de Maia Gonçalves 12ª ed; e Germano Marques da Silva, Curso Procº Penal ,III, 2ª ed., págª 335


2.2-Em debate nos presentes autos está a questão de saber se o IGFSS, em processo crime por abuso de confiança contra a segurança social, tem ou não legitimidade para se constituir assistente.

2.2.1-Tanto quanto apurámos até agora, são os seguintes os argumentos em posição para resolução da questão:
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A)-De um lado, pela denegação judicial da possibilidade de constituição de assistente por parte do IGFSS, dizendo-se que o mesmo não tinha legitimidade porque o interesse público protegido na norma incriminatória não é um interesse próprio do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, mas antes um interesse próprio do Estado .
É acompanhado este argumento por parte do MºPº afirmando-se que Instituto de Gestão Financeira da segurança Social mais não é que a corporização da organização administrativa do estado para assegurar o direito fundamental à segurança social previsto no artº 63º da Constituição, através dele se cumprindo a organização e coordenação do sistema da segurança social, tendo em vista a finalidade de protecção dos cidadãos na doença, velhice, invalidez,etc.
Em suma, basicamente, o argumento preponderante é o de que o interesse protegido não é um interesse próprio do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, mas antes um interesse próprio do Estado.
E de forma argumentativa mais desenvolvida, que:
-Com a entrada em vigor da Lei no 15/2001, de 05/06, que aprovou o RGIT e nos termos previsto no art° 2°, al. b) da cita. Lei, foi revogado o RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei n° 20-A/90, de 15/01, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n° 394/93, de 24/11 e Decreto-Lei n° 140/95, de 14/06.
-Tal diploma, no que concerne as normas processuais do mesmo constantes, e de aplicação imediata, dado o disposto no art° 5° n° 1 do Código de Processo Penal.
Sucede, porém, que o RGIT não contém nenhuma norma idêntica a do revogado art° 46° e 51° do RJIFNA, que conferia a administração fiscal ou da Segurança Social a legitimidade para se constituir assistente no processo penal por crimes fiscais.
-Com a vigência do RGIT, prevê-se apenas que a Administração Fiscal ou a Segurança Social assistam tecnicamente o Ministério Público em todas as fases do processo, podendo inclusivamente designar agente da administração ou perito tributário a quem e conferida a faculdade de consultar o processo e de ser informado da sua tramitação.
-Donde resulta que foi intenção do legislador retirar a Administração Fiscal ou da Segurança Social a legitimidade para, na qualidade e com o estatuto de assistente, intervir no processo penal (cfr. nesse sentido Paulo José Rodrigues Antunes, in Infracções Fiscais e Seu Processo, Almedina, pp. 71).

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B)-De outro lado, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social dizendo ter legitmidade porque:
O facto de não existir no novo regime jurídico das infracções tributárias , aprovado pela Lei nº 15/01 de 5/6, uma norma que expressamente preveja a possibilidade de a administração tributária se constituir como assistente, não inviabiliza por si só a possibilidade de a segurança social se constituir como tal.
A legitimidade da segurança social provém directamente da disposição do artº 68º, nº 1 al. a) do CPP, uma vez que é representada pelo Instituto de Gestão Financeira da segurança Social(IGFSS) – instituto público dotado de autonomia administrativa e financeira , com personalidade jurídica e património próprio – artº 1º do D.L. nº 260/99 de 7/6, e titular de interesses patrimoniais que a lei quis proteger com a incriminação.
O nosso ordenamento jurídico parte de um conceito restrito de ofendido na determinação do circulo de pessoas com legitimidade para intervir como assistente em processo penal (Figueiredo Dias – Direito Processual Penal, Vol. I , 1996 pags. 512 e 513).
Com efeito , e de acordo com o estabelecido no referido artº 68º, nº 1 al. a) para efeitos de constituição como assistente, não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime , mas sim o titular do interesse que constitui objecto imediato do crime.
O bem jurídico tutelado pela incriminação do abuso de confiança em relação à segurança social tem um carácter patrimonial , assente na satisfação dos créditos contributivos de que a segurança social é titular que integram o seu património.
Pelo que se verifica, ainda que de forma indirecta , que os fins a que se encontra afecto o património de segurança social beneficiam da tutela da norma jurídica , já que o bem jurídico tutelado é o direito de crédito da segurança social.
Por outro lado ,o IGFSS, enquanto instituição da segurança social , é um instituto público , dotado de autonomia administrativa e financeira com personalidade jurídica e património próprio – artº 1º dpo D.L. nº 260/99 de 7/6.
Nessa medida , o IGFSS reponde pelos seus actos, agindo em nome próprio e não em nome do Estado.
Assim , forçoso se torna concluir que o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social é o titular do interesse que constitui objecto imediato do crime de abuso de confiança contra a segurança social, pelo que lhe assiste toda a legitimidade para se constituir como assistente no âmbito dos presentes autos.
Decidir em contrário implica a violação da disposição do artº 68º, nº 1 al. a) do CPP” bem como as disposições conjugadas do nº 4 do artº 7º do DL nº 316-A/2000 de 7 de Dezembro, do DL 260/99 de 7 de Julho e do artº 16º alª K) da Portaria nº 409/2000 de 17 de Julho.

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C)-Na jurisprudência mais recente:

Em sentido positivo, admitindo a legitimidade do IGFSS, anotamos: (relator João Trindade, Ac RC- 2004, no recurso 3948/03-5); R C de 17.03.2004 (relator Inácio Monteiro) no recurso 238/04-4.;
Para além deles, outros ainda, no mesmo sentido, da Relação do Porto-AC de 07/01/2004 (relator Dias Cabral) e do mesmo relator o acórdão de RP 29/10/03, proferido no recurso nº 3867/03; Ac RP 04/06/2003 ( relator André da Silva) ; de 18/02/2004 -Ac RP (relator Agostinho Freitas); de 04-06-2003 no rec. n.º 1829/03, (relator: André Silva), publicado na C.J., XXVIII, Tomo III, p. 222) e de 15-10-2003, no rec. n.º 2719/03 (relator: António Gama), com texto integral no site da DGSI, n.º convencional: JTRP00035447 os quais seguiremos de perto no caso ora em apreço.
[No sentido ainda da legitimidade do IGFSS para se constituir assistente em processo por crime contra em relação à Segurança Social, citamos ainda os acórdãos de 29-10-2003, no rec. n.º 3687/03-4 (relator: Dias Cabral); de 15-10-2003, no rec. n.º 2397/03-4 (relatora: Conceição Gomes, com um voto de vencido); de 15-10-2003, no rec. n.º 4181/03-1 (relator: Borges Martins); e de 7-01-2004, no rec. n.º 5253/03-4 (relatora: Isabel Pais Martins)

Contra a admissibilidade, porém - vide acórdãos da RL infra em nota de rodapé. -RL 26/09/2003-Relator RODRIGUES SIMÃO: “À questão de saber se o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social deve ser admitido como assistente em autos onde se procede por crime de abuso de confiança fiscal tem que responder-se pela determinação da eventual existência ou não de interesse também tutelado pela norma incriminatória e que acessoriamente aquela também proteja.
Sendo certo que nas infracções tributárias o único interesse protegido é evidentemente público, sendo mesmo um dos mais fundamentais "...interesses do Estado na correcta e mais larga recolha de impostos ou de receitas da Segurança Social...", tem que concluir-se não ter aquele IGFSS qualquer interesse autónomo do principal que determinasse a admissão como assistente em processo penal, nos termos do artº 68º, nº 1, al. a) do C.P.Penal.
-RL 25/02/2003 (relatora Ana Sebastião)
I - Nos crimes de abuso de confiança em relação à Segurança Social o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social não tem legitimidade para se constituir assistente.
II - Nos crimes de abuso de confiança em relação à Segurança Social, o interesse protegido não é um interesse próprio do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, mas antes um interesse próprio do Estado.
- de 26/09/2003 (Rodrigues Simão); e de 25/02/2003 (relatora Ana Sebastião)
No mesmo sentido, também o Ac RP o acórdão de 10-12-2003 no rec. n.º 4355/03-4 (relator: Coelho Vieira, com um voto de vencido)


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2.2.2-Para decidir esta questão iremos desde logo posicionar-nos do lado da tese que afirma a legitmidade do IGFSS, basicamente com um painel de argumentos que são similares aos já amplamente conhecidos através dos acórdãos citados no mesmo sentido e aos quais apenas acrescentaremos uma breve nota final complementar.

a)- Começar-se-à por ter de se chamar à atenção, desde logo, para a necessidade de fazer acentuação da distinção entre os interesses tutelados nos diversos crimes previstos na parte III do RGIT, sob a epígrafe «Das infracções tributárias em especial», que contém quatro capítulos, referindo-se o Capítulo III aos «crimes fiscais» e o Capítulo IV aos «crimes contra a segurança social», sendo de salientar que este último capítulo, ou seja, esta última tipologia de crimes, nem sequer existia no primitivo RJIFNA, sendo-lhe aditada pelo Decreto-Lei n.º 140/95 de 14/06, no uso da autorização legislativa concedida pelo art.º 58.º da Lei n.º 39-B/ de 27/12.
E que, sendo certo que os crimes contra a segurança social se reportam a condutas paralelas ou similares às dos crimes fiscais, deverá ter-se em conta, como se ponderou no acórdão da Relação Porto de 15-10-2003 (recurso n.º 4181/03-1), o seguinte:

«Nos crimes contra a administração fiscal os valores tutelados são os inerentes ao regular e efectivo funcionamento do sistema fiscal e de política social estabelecidos pelo Estado.
O sistema fiscal não visa apenas arrecadar receitas, mas também, e primordialmente, a repartição justa dos rendimentos e da riqueza e a diminuição das desigualdades entre os cidadãos - arts. 103º e 104º da CRP.»
«Diferentemente, nos crimes contra a segurança social o bem jurídico tutelado é o património (lato sensu) da Segurança Social, ou seja, "a tutela do respectivo erário, assente na satisfação dos créditos contributivos de que a segurança social é titular".
Ao contrário do que acontece com as receitas fiscais, as contribuições para a Segurança Social não servem para, indistintamente, o Estado realizar os seus fins (sociais ou outros).
Não são receitas do Estado, mas do recorrente IGFSS (art.º 25.º n.° 1, al. a), do Dec.-Lei 260/99 de 7-7), destinando-se à prossecução dos seus fins específicos, de que não beneficiam, sequer, todos os cidadãos - "As quotizações dos beneficiários são receitas do sistema e uma fonte primordial de financiamento do mesmo" (art.º 84.º, al. a) da Lei 17/00 de 8-8).»

«Acresce que é ao próprio recorrente (e não ao Estado, em primeira linha) que compete não só "assegurar e controlar a cobrança das contribuições", mas também "a cobrança coerciva das dívidas, acompanhando o respectivo processo" (art.º 3 n.° 1 do Dec.Lei 260/99)».
Por outro lado, e como se tem entendido na jurisprudência (maioritariamente favorável à pretensão do recorrente), a revogação da lei especial não é argumento forte nem decisivo para não admitir o IGFSS como assistente nos processos por crime de abuso de confiança fiscal, pois o que interessa à resolução do problema é saber se o IGFSS, face ao seu estatuto orgânico, aprovado pelo DL 260/99, de 07/07, é, ou não, titular do interesse, ou de algum dos interesses que a lei especialmente quis proteger com o tipo incriminador - concretamente no crime de abuso de confiança contra a segurança social - e, como tal, a sua pretensão, independentemente de lei especial, merece acolhimento ao abrigo da lei geral (art.o 68.º, n.º 1, al. a) do CPP).


b)- A resposta deve ser pois afirmativa.
Citando o acórdão de 15-10-2003, proc. n.º 2719/03 (com texto integral no site da DGSI), nele, a propósito, como também concordamos, pode ler-se:
«Não é de grande valor o argumento equívoco da revogação do regime legal pré-vigente, em que o direito de constituição de assistente era conferido por lei especial, art.º 68º n.º 1 do Código Processo Penal e art.º 46.º do RJIFNA e art.º 51º-A da Lei n.º 39-B/94. [trata-se do art.º 51.º-A que foi aditado ao RJIFNA pelo D.L. n.º 140/95 de 14/06, no uso da autorização legislativa concedida pelo art.º 58.º da Lei n.º 39-B/94, de 27/12.]
Em primeiro lugar, (…) não é líquido que no regime pré-vigente, e no que à segurança social respeita, o direito à sua constituição como assistente estivesse especialmente consagrado, pois o art.º 51º-A, limita-se a regular o alargamento dos poderes conferidos ao director distrital de finanças e aos agentes da administração fiscal ao presidente do conselho directivo do CRSS e aos funcionários e agentes integrados na estrutura....
Depois o art.º 46º do RJIFNA, na redacção do Decreto Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, foi pensado para a Administração Fiscal, e esta é uma estrutura do Ministério das Finanças, sem personalidade jurídica distinta da do Estado. Daquela extensão legislativa, desnecessária, quanto a nós, à segurança social, não se podem retirar argumentos seguros.
Até porque os bens jurídicos em causa são diversos: o sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e uma repartição dos rendimentos e da riqueza, art.os 103º e 104º da Constituição;
Já as contribuições para a segurança social, não são receitas do Estado mas do IGFSS, destinando-se à prossecução dos seus fins específicos, art.º 25º n.º 1 al. a) do Decreto Lei n.º 260/99 de 7.7 e art.º 84º al. a) da Lei n.º 17/00 de 8.8.»


c)- A partir deste ponto, poderá entender-se e a nosso ver com opção de razoabilidade jurídica, que a resposta deverá procurar-se no Código Processo Penal.

«O princípio geral nesta matéria é o de que podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação - art.º 68º n.º 1 al. a) do Código Processo Penal.
Não é ofendido, para este efeito, qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime, mas somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime. O objecto jurídico mediato é sempre de natureza pública; o imediato pode ter por titular um particular ou uma pessoa colectiva. Mas nem todos os crimes têm ofendido particular; só o têm aqueles cujo objecto imediato de tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular.
Como refere Maia Gonçalves [Código Processo Penal Anotado, 13.ª ed. pág. 221], a questão é, por vezes, de indagação melindrosa, mas indispensável, porque só mediante ela é possível averiguar da viabilidade de constituição de assistente.»

«A nossa lei parte de um conceito estrito, imediato ou típico de ofendido [F. Dias, Direito Processual Penal, 1974, pág. 506] abrangendo apenas os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger quando formulou a norma penal [Beleza dos Santos, RLJ 57.º pág. 3].»
«Do princípio geral enunciado deriva a conclusão de que existem crimes públicos relativamente aos quais ninguém poderá constituir-se assistente, uma vez que o interesse protegido pela incriminação é, a qualquer luz, exclusivamente público [F. Dias, ob. cit. pág. 513].
Só assim não será se esse direito - de constituição de assistente - for conferido por lei especial, art.º 68º n.º 1 do Código Processo Penal.»

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d)- Em todo caso , acerca da inserção do problema no âmbito do conceito de ofendido plasmado no campo processual, pensamos ter alguma utilidade referir algumas notas sobre o assunto. Seguiremos de perto, pela sua enorme utilidade, o Ac STJ para fixação de jurisprudência de 16/01/2003 (in site da DGSI - SJ200301160006095) relator Simas Santos.

«Prosseguindo, prescreve a Constituição, a propósito da função jurisdicional, que na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (art. 202.º, n.º 2); competindo ao Ministério Público, além do mais, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática (art. 219.º).
Dispõe agora igualmente a Lei Fundamental, quanto às garantias de processo criminal, que o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei (n.º 7 do art. 32.º); tendo entendido o Tribunal Constitucional que «a revisão constitucional de 1997 faz-se no contexto da vigência do artigo 68º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal e nada indica que tenha querido outra coisa senão dar dignidade constitucional ao que aí se estabelece» Ac. n.º 76/02, de 26.2.02,proc. n.º 647/98.

Dispõe o Código de Processo Penal (art. 48.º) que o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos art.ºs 49.º (procedimento dependente de queixa), 50.º (procedimento dependente de acusação particular) a 52.º (concurso de crimes).
Neste diploma instrumental definem-se a posição e atribuições do Ministério Público no processo. Dali se retira que , no nosso ordenamento, o exercício da acção penal foi confiado a um órgão de Estado - ao Ministério Público, pela forma especificada nos referidos dispositivos do Código de Processo Penal, de acordo com a concepção de que o jus puniendi e o correlativo jus procedendi são de interesse eminentemente público.
Mas não se esqueceu que «para uma autêntica protecção da vítima, mais decisivo ainda que o auxílio "social" em sentido amplo que lhe possa ser prestado é o conferir-lhe voz autónoma, logo ao nível do processo penal, permitindo-lhe uma acção conformadora do sentido da decisão final» Figueiredo Dias, Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Processo Penal, CEJ pág. 10, pelo que manteve a figura do assistente.

Na verdade, a consideração de que o crime ofende principalmente interesses da comunidade «não pode fazer olvidar que em grande número de crimes quem primeiro sofre o mal do crime são os particulares e, por isso, a sua participação activa no processo, permite dar-lhes satisfação pela ofensa sofrida convencendo-os da efectivação da justiça no caso, e trazer ao processo a sua colaboração» Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, pág. 240.


Referia Luís Osório, que a atribuição da titularidade do exercício da acção penal ao Ministério Público era o resultado de uma evolução regressiva quanto à intervenção nessa área dos particulares de sorte que, primitivamente a eles pertencendo tal exercício, a evolução se deu no sentido de lhes restringir esses poderes, mas não de os extinguir, pois que não deixando de ter presente que «o indivíduo que foi ofendido com um crime não parece a pessoa mais própria para incarnar o interesse geral da repressão do crime», é certo, no entanto, que «os motivos que levaram o nosso legislador a manter o sistema existente e afastar-se dos outros geralmente referidos no estrangeiro, baseia-se na demonstração que a experiência nos patenteia do quanto é eficaz e benéfica a ampla colaboração dos particulares na acusação, pois que se bem que eles possam, muitas vezes, levar para o processo uma natural paixão que desvirtua a função da acusação, essa paixão pode e deve ser eficazmente contrabalançada pela imparcialidade tanto do Ministério Público como do Juiz» Comentário ao Código de Processo Penal Português, I, pág. 192 e ss.

A Novíssima Reforma Judiciária interveio no sentido de evitar a complexidade da instrução e do julgamento das causas com a múltipla intervenção de representantes forenses das partes acusadoras Cfr. art. 21.º do CPP de 192910 José António Barreiros, Sistema e Estrutura do Processo Penal Português, II, pág. 156 e ss, critica, nos seguintes termos, essa qualificação no direito actual: «Não faz sentido hoje designar os assistentes como partes acessórias, fundamentalmente por duas ordens de razões (i) primeiro pela circunstância de o próprio conceito de parte não se coadunar com a estrutura do sistema processual penal (ii) segundo porque eles são tomados na sistemática do Código de Processo Penal como verdadeiros sujeitos principais e não como participantes. Na verdade os assistentes podem constituir, modificar ou fazer extinguir relações jurídico processuais, nomeadamente em função do seu direito de acusar - mormente em matéria de crimes particulares de requerer instrução ou de desistir da acusação, tudo conforme melhor veremos adiante a propósito do estatuto desta figura.»

E a reforma do processo penal empreendida pelo Decreto n.º 35007 de 13 de Outubro de 1945 deixou de se referir à "parte acusadora", que passou a designar como assistente, vincando assim o seu carácter de parte acessória . Figueiredo Dias, Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Processo Penal, CEJ pág. 10
Reafirmou, então, o legislador que «o exercício da acção penal pertence ao Ministério Público como órgão do Estado. O direito de punir é um direito exclusivo do Estado e por isso os particulares podem, nos termos que a lei determina, colaborar no exercício da acção penal pelo Ministério Público, mas não exerce-la como direito próprio» (Preâmbulo do Decreto-Lei n.° 35007).

O que retomou na Lei de Autorização Legislativa do actual Código de Processo Penal (Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro) indicando (art. 2°, n.º 1, 7), o sentido da mesma:
Fixação da competência exclusiva do Ministério Público para promover o processo penal, ressalvado o regime dos crimes semipúblicos e particulares, e da subordinação estrita da intervenção processual dos assistentes, salvo nos crimes particulares e semipúblicos, à actuação do Ministério Público, sem prejuízo do direito de recorrerem autonomamente das decisões que os afectem (art. 2.º, n.º 1, 11).

Na sequência tem-se afirmado que a figura do assistente corresponde a uma especificidade do processo penal português, sem correspondência no direito comparado Damião da Cunha, Algumas Reflexões sobre o Estatuto do Assistente e seu representante no Direito Processual Penal Português, RPCC, 5°, 1995, pág. 153, e A Participação dos particulares no exercício da acção penal, mesma RPCC, 8°, págs. 593 e segs.
Como se sintetiza na resposta à motivação do Ministério Público no processo n.º 1052/01 da Relação do Porto «em termos de Direito Comparado, os sistemas predominantemente acusatórios tendem a autonomizar a acção privada - que se não confunde com a acção penal pública - facto "que dá à acção da vítima a natureza de uma acção penal privada (poursuite privée), e, de modo correlativo, a reparação do prejuízo causado à vítima releva tradicionalmente, e de modo ainda principal, do domínio civil, podendo, porém, ser determinada logo uma compensação pecuniário pelo juiz no final da instância penal, em que a vítima apenas figura enquanto simples testemunha, salvo se ela própria desencadear a acção penal (Procédures Pénales d'Europe, obra colectiva sob a direcção de Mireille Delmas-Marty, Paris, 1995, pág. 387). Em contrapartida, nos sistemas de inspiração originariamente inquisitória, o monopólio do exercício da acção penal adquirido pelo Ministério Público acarretou, por esse facto, a outorga do estatuto de parte no processo à vítima, que viu ser-lhe concedido a possibilidade, em alternativa à via civil, de fazer valer os seus interesses civis perante as jurisdições penais, através do meio de junção da acção privada à acção pública" (ibidem). Uma situação especial é constituída pelo Direito alemão, em que é reconhecida, de forma residual, a acção penal privada (Privatklage) à vítima, a qual é parificada ao Ministério Público, mas somente quanto a infracção de pouca importância e no caso de estas porem em causa interesses essencialmente privados (§ 374, 1 da Strafprozessordnung), sendo certo que o ofendido pode constituir-se, em alguns casos, parte acessória ou assistente (Nebenklage. § 395 do mesmo diploma).
E a nossa Doutrina, sem deixar de advertir para o factor eventualmente perturbador que pode representar a intervenção do particular nesta sede, uma vez que dele não será de esperar a objectividade, a imparcialidade, o que impõe especiais cautelas na sua intervenção, não deixa de reconhecer os benefícios decorrentes dessa mesma intervenção Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, pág. 137 e ss, Figueiredo Dias Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal, o novo Código de Processo Penal, CEJ, 1995, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I , pág. 307 e ss. e Damião da Cunha, como em nota anterior..
Do estatuto de assistente destacam-se, pois, a sua qualificação como sujeito processual, mesmo quando se trate de processos por crimes públicos e os poderes processuais alargados que lhe são conferidos, nomeadamente o direito de recurso relativamente a todos os tipos de crimes Com a ressalva de que, de acordo com o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 8/99 do STJ, de 30-10-97, publicado no DR de 10-09-99, «o assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir
Foi definido como «o sujeito processual que intervém no processo como colaborador do Ministério Público na promoção da justa aplicação da lei ao caso e legitimado em virtude da sua qualidade de ofendido ou de especiais relações com o ofendido pelo crime ou da natureza deste (art. 69.º, n.º 1)»

E, na verdade, a concepção legal de assistente acolhida pela lei traduz-se na qualificação dele como um sujeito processual, um mero colaborador do Ministério Público podendo «co-determinar, dentro de certos limites e circunstâncias, a decisão final do processo» subordinado à actuação do Ministério Público). O que não quer dizer que não possam ocorrer conflitos . cfr vários:-N.º 1 do art. 69.º do CPP.;
-Figueiredo Dias, Jornadas de Direito Processual Penal;
-José António Barreiros, Sistema e Estrutura do Processo Penal Português, II, pág. 156 e ss. :“É na fase de inquérito e na fase eventual de instrução que mais se fará sentir, em regra, a intervenção processual do assistente na contribuição para a definição do objecto do processo. Da dedução da acusação em diante - e estando fixado definitivamente o objecto do processo - é que verdadeiramente a actuação do assistente é subordinada à do Ministério Público
- Cfr. Ainda Damião da Cunha, como em nota anterior, pág. 156.
-Cfr. tb os art.ºs 277° e 287°, n.º 1, al. b), do CPP].

Mas, «o assistente está legitimado a agir no processo penal, enquanto detentor de um específico interesse na questão de direito sujeita a apreciação judicial. Sendo que esse interesse, embora particular, é um elemento de ponderação na concreta decisão do caso, pelo que a intervenção do assistente é também uma exigência de ordem pública (pois que a decisão justa é aquela que tem por suporte a consideração de todos os pontos juridicamente relevantes - incluindo o do assistente)» Damião da Cunha, A participação dos particulares no exercício da acção penal, RPCC, 8, pág. 593

Como se vê dos textos do Código de Processo Penal este não providencia directamente um conceito de assistente, limitando-se a indicar quem se pode constituir como tal e a estruturar a sua posição processual e atribuições.
E, entre os ali indicados , os ofendidos, .../..., considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação O Código Penal no n.º 1 do art. 113.ºao dispor sobre os titulares do direito de queixa refere-se igualmente ao «ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação». [al. a) do n.º 1 do art. 68.º].
Centrando agora a atenção sobre esta última categoria determinante para a solução da questão de direito colocada no presente recurso o ofendido, titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Constata-se, desde logo, que não se trata de todo e qualquer ofendido, quando é sabido que o Código de Processo Penal também utiliza esse vocábulo com um sentido mais vasto Fá-lo designadamente nos art.ºs 30.º, 39.º, 87.º, 88.º, 138.º, 203.º, 215.º, 243.º, 283.º, 383.º, 387.mas só do que for titular daqueles interesses.
Retomou-se assim a fórmula usual no nosso direito processual anterior Art. 4.º, n.º 2 do DL n.º 35007, com referência ao art. 11.º do CPP de 1929e que o Código Penal de 1982 consagrara no n.º 1 do art. 111.º Sobre as diferenças das duas disposições, cfr. Teresa Beleza, Apontamentos de Direito Processual Penal, III, pág. 207, e afastou-se o conceito lato de lesado ou ofendido de que o CPP também se socorre: «todas as pessoas civilmente lesadas pela infracção penal»
No domínio daquela legislação ponderava-se: «o que deve entender-se pela expressão partes particularmente ofendidas?
Pensamos que devem assim considerar-se os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger quando o legislador formulou a norma penal. Quando prevê e pune os crimes, o legislador quis defender certos interesses: o interesse da vida no homicídio, o da integridade corporal nas ofensas corporais, o da posse ou propriedade no furto, no dano ou na usurpação de coisa alheia. Praticada a infracção, ofenderam-se ou puseram-se em perigo estes interesses que especialmente se tiveram em vista na protecção penal, podendo também prejudicar-se secundariamente, acessoriamente, outros interesses. Os titulares dos interesses que a lei penal tem especialmente por fim proteger quando previu e puniu a infracção e que esta ofendeu ou pôs em perigo, são as partes particularmente ofendidas, ou directamente ofendidas e que, por isso, se podem constituir acusadores» Beleza dos Santos, Partes particularmente ofendidas em processo criminal, na Revista de Legislação e Jurisprudência, 57, pág. 2..

O vocábulo «especialmente» usado pela Lei, significa, pois, de modo especial, num sentido de «particular», como se referiu, e não «exclusivo».
Estas considerações mantêm validade, tanto mais que, como se viu, o legislador actual adoptou a mesma formulação, devendo entender-se, pois, que se adoptou o conceito estrito, imediato ou típico de ofendido.
Nesse sentido se tem pronunciado a Doutrina Cfr., v.g., Figueiredo Dias, op. cit., pág. 512-3 e Direito Penal - As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 75 e 670, Figueiredo Dias e Anabela Miranda Rodrigues, A Sociedade Portuguesa de Autores em Processo Penal, Temas de Direito de Autor, III, Damião da Cunha, ob. cit., pág., José António Barreiros, ob. cit., pág. 167, Teresa Beleza, Apontamentos de Direito Processual Penal, III, pág. 206, Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, Maia Gonçalves CPP Anotado e Simas Santos e Leal-Henriques, CPP Anotado.
e a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, designadamente do Supremo Tribunal de Justiça Cfr., v.g., os Acs. do STJ de 23.11.88; BMJ 381-544, de 18.9.97, processo n.º 527/97; de 20.1.98, processo nº 1326/97; de 17.6.98, processo n.º 217/98, de 29.3.00, Acs do STJ VIII, 1, pág. 234
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Importa, assim, reter que deriva da própria expressão da lei que não basta uma ofensa indirecta a um determinado interesse para que o seu titular se possa constituir assistente, pois que não se integram no âmbito do conceito de ofendido, da al. a) do n.º 1 do art. 68.º do CPP, os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os seus próprios e específicos.
A legitimidade do ofendido deve ser aferida em relação ao crime específico que estiver em causa... “
“Deve atender-se ao Código Penal, à sistemática da sua Parte Especial Sem esquecer, quanto ao valor da sistemática, a posição de Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, pág. 232: «O bem jurídico constitui a base reconhecida da estrutura e da interpretação dos tipos. No entanto, o conceito de bem jurídico não deve ser equiparado sem mais com a ratio legis, mas que deve atribuir-se um sentido real próprio, anterior à norma penal concludente em si mesmo, pois de outra maneira não poderia cumprir a sua função sistemática como indicador do conteúdo e da delimitação do preceito penal e como contraponto das causas de justificação nas colisões valorativas.»
e, em especial, interpretar o tipo incriminador em causa «atendendo aos elementos específicos do tipo legal do crime e ao dado sistemático resultante do capítulo da parte especial em que o crime se integra», Ac. do STJ de 29.3.2000, Acs do STJ VIII, 2, 243.em ordem a determinar caso a caso se há uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos com essa incriminação e não confundir essa indagação com a constatação da natureza pública ou não pública do crime. “
No caso concreto, mutatis mutandis, o que se acabou de dizer deve referir-se ao regime de punição das infracções contra a segurança social (RJIFNA e, actualmente, o RGIT).

“A tarefa, que é fácil em muitos casos, como o homicídio, as ofensas contra a integridade física, os crimes contra a liberdade, oferece já dificuldades em relação aos crimes agrupados em determinados capítulos, como os crimes de perigo comum ou os crimes contra a realização da Justiça em que «o interesse protegido por ser claramente um interesse de ordem pública, no sentido mais forte do termo e, portanto aparentemente, não é possível encontrar a pessoa concreta, individual, que se possa dizer ofendida» Na expressão de Teresa Beleza, Apontamentos de Direito Processual Penal, III, pág. 206-7.
Mas, só caso a caso, e perante o tipo incriminador, se poderá afirmar, em última análise, se é admissível a constituição de assistente.
E esta análise do tipo legal interessado deve ter presente que a circunstância de ser aí protegido um interesse de ordem pública não afasta, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente Cfr. sobre a formulação, Figueiredo Dias e Anabela Miranda Rodrigues, A Sociedade Portuguesa de Autores em Processo Penal, Temas de Direito de Autor, III
Mas não se pode esquecer que, como refere Jescheck Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4.ª Edição, pág. 6
«o direito penal tem por missão proteger bens jurídicos. Em todas a normas juridico-penais subjazem juízos de valor positivo sobre bens vitais que são indispensáveis para a convivência humana na comunidade e que consequentemente devem ser protegidos, pelo poder coactivo do Estado através da pena pública. (...) Todos os preceitos penais podem reconduzir-se à protecção de um ou vários bens jurídicos.
O desvalor do resultado radica na lesão ou o colocar em perigo de um objecto da acção (ou do ataque) (v.g. a vida de uma pessoa ou a segurança de quem participa no tráfico), que o preceito penal deseja assegurar, do titular do bem jurídico protegido» (sublinhado agora).
O que significa que poderá um só tipo legal proteger «especialmente», mais do que um bem jurídico, questão a dilucidar, perante cada tipo e cada acção dele violadora.”

*
e)- Após esta rápida incursão sobre a conceptualização do termo “ofendido em processo penal”, voltemos agora ao ponto a se chegara na análise do problema e à posição do IGFSS:

Nos termos do art.º 3.º, n.º 2, al. b) do Estatuto anexo ao DL n.º 260/99, de 7/7, são atribuições do IGFSS (...) na área dos contribuintes:
i) Zelar pelo cumprimento das obrigações dos contribuintes, procedendo, para tanto, à definição do conteúdo e da utilização da base nacional de contribuintes;
ii) Assegurar e controlar a cobrança das contribuições e das formas de recuperação da dívida à segurança social;
iii) Promover a regularização das situações de incumprimento contributivo na forma, condições e requisitos estabelecidos na lei;
iv) Assegurar a cobrança coerciva da dívida à segurança social, acompanhando o respectivo processo;
v) Exercer a acção fiscalizadora junto dos contribuintes e exigir o cumprimento das respectivas obrigações;
vi) Promover a recolha, organização e análise da informação sobre os contribuintes em incumprimento, necessária à gestão das cobranças;

No crime de abuso de confiança contra a segurança social (actualmente punido pelo art.º 107.º, n.ºs 1 e 2 do RGIT, e anteriormente punido pelo art.º 27.º-B do RJIFNA), «o bem jurídico tutelado é um bem jurídico multifacetado: tem como pano de fundo e perspectiva-se a partir do direito fundamental à segurança social, art.º 63º da Constituição, mas abrange também, como interesse que a lei especialmente quis proteger, o património da Segurança Social.

Ao Estado e aos seus organismos, concretamente ao IGFSS, cabe, como vimos e impõe a Constituição, organizar, coordenar e subsidiar o sistema da segurança social tendo em vista a finalidade de protecção dos cidadãos na doença, velhice, invalidez, etc., - art.º 63º n.os 1 e 2 da Constituição. Para cumprir esse objectivo compete ao IGFSS e são suas atribuições, entre outras, aquelas aque acabámos de enunciar.
«Daí que se possa afirmar que, também no crime de abuso de confiança contra a segurança social se visa proteger especialmente mais de um interesse.»
Como se refere no Acórdão do STJ n.° 1/2003, de 16-01-03, [Publicado no D.R. I-A, de 27-02-2003] (que fixou jurisprudência quanto à legitimidade para a constituição de assistente por crime do art.º 256.º, n.º 1, a) do C. Penal), o vocábulo «especialmente» usado pela lei significa de modo especial, num sentido de «particular» e «não exclusivo».
Deste modo, pelo que expendido fica, há que reconhecer ao recorrente IGFSS, como instituição da segurança social e instituto público, dotado de autonomia administrativa e financeira, com personalidade jurídica e património próprio, a qualidade de ofendido, considerando-se como tal, o titular do interesse, ou de um dos interesses, que a lei especialmente quis proteger no tipo incriminador, concretamente, no crime de abuso de confiança contra a segurança social, tendo, por isso, legitimidade para, nos termos dos art.os 68º, n.º 1, al. a), e 69.º do Código Processo Penal, ser admitido como assistente no processo que tem por objecto tal ilícito.

f)- Voltando um pouco atrás, diremos também que a questão foi clara e lapidarmente colocada já no citado Ac RP de 15.10.2003 , para onde de novo remetemos e aqui transcrevemos o seguinte, como exemplo:
“Apesar do silêncio da Lei n.º 89/89 de 11 de Setembro, que autorizou o governo a legislar em matéria de infracções fiscais, o Decreto Lei n.º 20-A/90 de 15 de Janeiro, no uso da autorização legislativa concedida por aquela Lei, introduziu a possibilidade de a administração fiscal se constituir assistente, art.º 46º.
Posteriormente, a Lei n.º 61/93 de 20 de Agosto autorizou o governo a rever o RJIFNA, aprovado pelo Decreto Lei n.º 20-A/90 e nomeadamente a alterar o regime da constituição da administração fiscal como assistente, cfr. art.º 8º. No uso dessa autorização o Governo publicou o Decreto Lei n.º 394/93 de 24 de Novembro, que no art.º 46º continuou a prever a possibilidade de as administração fiscal se constituir assistente.
Sintomaticamente no Preambulo deste último diploma, último parágrafo, escreveu-se:No processo penal fiscal é determinada a constituição automática da administração fiscal como assistente, regulamentando-se a sua representação e assegurando-se a isenção de custas e taxa de justiça.
Na origem da solução legislativa pré-vigente parece ter estado o Anteprojecto Figueiredo Dias/ Faria Costa [15.9.88], segundo informa Alfredo de Sousa, Infracções Fiscais, 2ª ed. pág. 207.
A constitucionalidade desta solução legislativa chegou a ser questionada por várias vezes, tendo o TC decidido que a norma do art.º 46º do RJIFNA não violava o art.º 221º n.º 1, nem o art.º 168º. N.º 1, al. c.) da Constituição [Acórdão n.º 672/25 Processo n.º 514/94 DR II Série 20.3.96 pág. 3784 e segts].
A Lei n.º 39-B/94, de 27 de Dezembro autorizou o Governo a rever o RJIFNA de forma a nele incluir novos tipos de ilícitos penais relativos às infracções às normas reguladoras dos regimes da segurança social, o que veio a acontecer mediante a publicação do Decreto Lei n.º 140/95 de 14 de Junho, cfr. art.º 51-A. A partir desta alteração, segundo um entendimento generalizado, a segurança social passou a beneficiar de lei especial que lhe conferia o poder constituir-se assistente em processo penal.
Cumpre, no entanto, notar que o art.º 51-A, limita-se a regular o alargamento dos poderes conferidos ao director distrital de finanças e aos agentes da administração fiscal ao presidente do conselho directivo do CRSS e aos funcionários e agentes integrados na estrutura....
Acontece que a Lei n.º 15/01, de 5 de Junho, que aprovou RGIT, no seu art.º 2º al. b) revogou o RJIFNA, e do seu articulado não consta qualquer disposição que expressamente confira à segurança social o direito de se constituir assistente.
Debalde a procura nos trabalhos preparatórios de explicação para esta alteração legislativa [A proposta de Lei n.º 53/VIII, DAR II Série, n.º 19 de 14 de Dezembro de 2000, na respectiva Exposição de Motivos apenas refere que em sede processual se acaba com a fase denominada de « averiguações» atribuindo-se ao Ministério Público a direcção da primeira fase do processo. O Relatório e Parecer da Comissão de Economia, Finanças e Plano, DAR, II Série –A, n.º 29, 2ª Sessão legislativa, de 27 de Janeiro de 2001, a discussão na generalidade, Reunião Plenária de 25 de Janeiro de 2001, DAR, I Série, n.º 41, o Relatório e Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos Liberdades e Garantias, DAR, II Série –A, n.º 29, 2ª Sessão legislativa, de 27 de Janeiro de 2001, a votação na generalidade DAR, I Série, n.º 44, 1 de Fevereiro e a votação na especialidade, DAR II Série-A n.º 46 de 31 de Março, também não esclarecem o porquê da alteração legislativa ]. “

E, rematando a abordagem à questão . :.”[ Será que a revogação expressa pelo legislador do regime legal pré-vigente só pode ter inequivocamente uma leitura, a de que não é agora possível a constituição de assistente ]? [Neste sentido João Ricardo e Nuno Victorino, Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, Vislis Editores, 2002, pág. 301; Paulo Antunes, Infracções Fiscais e seu Processo, Almedina, pág. 71. Em sentido contrário o Ac. desta Relação proferido no recurso n.º 2227/03


***

2.2.3- Na defesa da tese do recorrente IGFSS, podemos então recolher, em resumo, as seguintes ideias estruturantes da sua legitimidade ( aqui seguiremos, por identidade de razões, o já aludido no Ac desta Relação de 2004- relator João Trindade e que por sua vez também aquele seguiu de perto)

1-“No âmbito do DL nº 20-A/90 de 15JAN, que aprovou o regime jurídico das infracções fiscais não aduaneiras (RJIFNA), o art. 46º, do citado diploma previa a constituição como assistente por parte da administração fiscal «Se o auto de averiguações for remetido ao Ministério Público, a administração fiscal pode constitui-se assistente, assim o declarando no próprio auto», competindo à entidade referida no art. 44º, nº1, do mesmo diploma, que concluiu o processo de averiguações declarar no próprio auto, em representação da administração fiscal, que esta pretende constituir-se como assistente, ou seja «o director distrital de finanças que exercer funções na área em que o crime tiver sido cometido ou o funcionário em que aquele tenha, para tal fim, delegado genericamente competência».
A este propósito Alfredo José de Sousa, in Infracções Fiscais – Não aduaneiras – Anotado e Comentado, Almedina, 1990, pág. 153, na anotação 3. ao art. 46º, referia que «sendo a administração fiscal, um serviço simples do Ministério das Finanças, sem personalidade jurídica distinta do Estado, consubstanciada na estrutura da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, deveria ser representada pelo Ministério Público a quem cabe defender a legalidade e promover o interesse público.Nos processos contenciosos fiscais cabe à estrutura da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, nos seus diversos escalões hierárquicos defender os legítimos interesses da Fazenda Pública (arts. 72º e 73º, do ETAF) nos tribunais fiscais.O legislador optou, todavia, nos processos por crimes fiscais, pelo regime da constituição de assistente por parte da administração fiscal»
2-No quadro legal aprovado pelo DL nº 20-A/90, de 15JAN, (RJIFNA), na sua redacção inicial, não tipificava qualquer conduta como crime no âmbito dos regimes de segurança social, prevendo apenas algumas das condutas neles previstas como contra-ordenações.Porém, o legislador reconhecendo, por um lado a ineficácia do quadro sancionatório dos regimes de segurança social para prevenir a violação dos preceitos legais relativos ao cumprimento das obrigações dos contribuintes perante a segurança social, e por outro lado, considerando quer a natureza dos interesses humanos e sociais que estão em causa, quer a indispensável tomada de medida que combatessem eficazmente tal situação e conduzissem à consciencialização dos cidadãos de uma certa impunidade pelas infracções praticadas no âmbito dos regimes de segurança social, veio alargar o campo de aplicação do RJIFNA às infracções praticadas no âmbito dos regimes de segurança social pelos respectivos contribuintes, definindo e penalizando os crimes contra a segurança social, através do DL nº 140/95, de 14JUN, (vide Preâmbulo do DL nº 140/95, de 14JUN).
Nesta conformidade, veio ser aditado o Capitulo II, do DL nº 20-A/90, de 15JAN, (RJINA), «Dos Crimes Contra a Segurança Social» pelo mencionado DL nº 140/95, de 14JUN, no qual se incluem os arts. 27º-A a 27º-E, ao RJIFNA, que prevêem precisamente os crimes de fraude à segurança social (art. 27º-A), abuso de confiança em relação à segurança social (art. 27º-B), frustração de créditos da segurança social (art. 27º-C) e violação de sigilo sobre a situação contributiva (art. 27º-D)
3-A Lei nº 15/2001 de 05JUN, veio aprovar o Regime Geral das Infracções Tributárias, (RJIT), nela se introduzindo não só as normas relativas às infracções tributárias, revogando o DL nº 20-A/90, de 15JAN, como também introduz alterações ao Código de Procedimento e de Processo Tributário e à Lei Geral Tributária.Assim, incluem-se no âmbito de aplicação do RGIT os crimes relativos às normas reguladoras das contribuições para a segurança social, ficando, porém, fora do seu âmbito de aplicação as respectivas contra-ordenações que venham a ser reguladas por lei especial, (art. 1º, al d), do RGIT «O regime geral da infracções tributárias aplica-se às infracções das normas reguladoras:d) Das contribuições e prestações relativas ao sistema de solidariedade e segurança social, sem prejuízo do regime das contra-ordenações que consta de legislação especial»Os crimes contra a segurança social vêm previstos no Capítulo IV do RGIT, designadamente nos arts. 106º a 107ª, sendo o processo penal tributário regulado nos arts. 35º a 50º.
No âmbito do mencionado diploma não prevê a lei agora a constituição como assistente, por parte quer da administração tributária, quer por parte da Segurança Social, prevendo apenas a assistência técnica ao Ministério Público em todas as fases do processo, por parte da administração tributária ou da segurança social, através da designação de um agente da administração ou de um perito tributário (art. 50º)
4-Importa pois saber se o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, pode ou não intervir como assistente nos processos penais em que estão em causa os crimes contra a segurança social, tendo em atenção que o actual regime (RGIT) contrariamente ao .anterior (RJIFNA) não prevê qualquer norma que admita que a administração tributária ou a segurança social a intervir como assistente nos autos.Importa, pois ter presente, à luz do art. 68º, do CPP, quais o (s) titular (s) dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação: "Podem constituir-se assistentes em processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de dezasseis anos".(art. 68º, nº1, do CPP)
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5-Qual o bem jurídico protegido pelo tipo legal em causa, ou seja, os crimes contra a segurança social, e em especial o crime de abuso de confiança em relação à segurança social?
A Constituição da República Portuguesa consagra no seu art. 103º, nº3, como princípio geral, que «Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da Constituição...», e no seu art. 63º, nº1, consagra que «Todos têm direito à segurança social» , sendo que, nos termos do nº2, do mesmo preceito constitucional, «Incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, com a participação das associações sindicais, de outras organizações representativas dos trabalhadores e de associações representativas dos demais beneficiários» .
Conforme afirma Alfredo José de Sousa, in Direito Penal Económico e Europeu, Textos Doutrinários, Vol II, pág. 156, «...todos são obrigados a pagar impostos criados nos termos da Constituição!Ora, para garantir o cumprimento desta obrigação fundamental que impende sobre os cidadãos, o ordenamento jurídico-fiscal teceu a mais complexa rede de cautelas e sanções, envolvendo não só o contribuinte mas todas as pessoas e instituições cujas relações com ele possam revelar capacidade contributiva. Além da obrigação principal de pagar imposto a lei impõe ao contribuinte e a terceiros certos deveres acessórios, tendentes a revelar ou obstar à ocultação da matéria tributável (dever de apresentar declarações à administração fiscal, dever de possuir escrita documentadora das suas actividades económicas, dever de exibir documentos ou de os manter arquivados, etc.).E a lei vai ao ponto de impor a terceiros a obrigação de pagar o imposto depois de o deduzir no rendimento que têm de pôr à disposição do contribuinte de facto.
Assim, é correcto o conceito de infracção fiscal como a violação culposa das obrigações fiscais acessórias – pelo contribuinte ou terceiros – ou da obrigação principal do pagamento do imposto, quando deva ser o contribuinte a determinar o seu montante e a entregá-lo em certos prazos nos Cofres do Estado, para o qual a lei comina a pena de multa, e por vezes, a pena de prisão, apenas ou cumulativamente com sanções acessórias».E, acrescenta ainda o mesmo autor, in ob cit., pág. 168-170, «No nosso sistema fiscal, em regra, a definição de obrigação fiscal principal, isto é, da obrigação de pagar impostos não depende de uma vontade unilateral e exclusiva da Administração.
Sobre o contribuinte ou terceiro ligado à sua situação tributária, recaem deveres gerais de colaboração com a Administração para alcançar tal objectivo (...)Casos há em que por racionalidade técnica o legislador atribuiu ao contribuinte ou à entidade encarregada de lhe entregar rendimentos tributáveis a obrigação de calcular o montante do imposto e de fazer a sua entrega nos cofres do Estado (auto-liquidação ou retenção na fonte)
Nestas situações entre o momento da ocorrência do facto tributário e do cálculo do imposto, e o momento do seu pagamento o contribuinte tem de considerar-se fiel depositário do respectivo montante com o dever de não lhe dar destino diferente.
Sobretudo nos casos em que o obrigado ao pagamento do imposto não é o titular do rendimento donde o respectivo montante foi deduzido, como por ex., nos descontos do imposto profissional sobre os rendimentos dos trabalhadores por conta de outrem, nos descontos para a Segurança Social ou nos descontos sobre os rendimentos do capital mutuado. Entre o obrigado tributário e a Fazenda Nacional estabelece-se uma relação de confiança fundada na lei, cuja violação por aquele se torna passível de juízo de censura ético-jurídica .
Para além disso, ao lado dos deveres gerais do contribuinte ou de terceiros a ele ligado de prestar informações à Administração Fiscal sobre a sua situação tributária, há deveres específicos de verdade, de boa-fé, de confiança, de obediência a ordens legais dos seus agentes, que devem ser observados quando ou posteriormente ao concreto cumprimento daqueles deveres gerais. Ora só a violação desses deveres específicos com o propósito de enganar a Administração ou obstar à sua acção, e consequentemente alcançar benefícios indevidos, é que releva inequívoca ressonância ético-jurídica..(...)Em suma: todos aqueles deveres convergem para a revelação da real capacidade contributiva de cada um e de todos os cidadãos obrigados a pagar impostos, tendo em vista a realização da igualdade e justiça tributárias.

6-Daí que, e continuando a seguir a lógica do Acordão citado, os bens jurídicos a tutelar nos crimes fiscais sejam similares aos tutelados em crimes idênticos previstos no Código Penal, integrando o bem jurídico mais amplo: a confiança da administração Fiscal na verdadeira capacidade contributiva do contribuinte.
Na mesma linha argumentativa o Ac. do TC nº 516/00, de 29NOV00, a propósito da norma do art. 27º-B do RJIFNA, afirma que «A solução de punir criminalmente as infracções às normas reguladoras dos regimes de segurança social revela a importância atribuída à defesa dos interesses públicos subjacentes à legislação em causa, em consonância aliás com a incumbência atribuída ao Estado, pelo artigo 63º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, de "organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social".
Nos termos do artigo 27º-B do RJIFNA – e do mesmo modo que perante a norma apreciada no acórdão nº 312/00 –, são elementos constitutivos do crime de abuso de confiança em relação à segurança social: a apropriação, total ou parcial, pelas entidades empregadoras, das contribuições que tenham deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores e que por estes sejam legalmente devidas; a não entrega do respectivo montante às instituições de segurança social, no prazo de 90 dias.
Não estando expressamente prevista a punição por negligência, os factos integradores do crime só podem ser punidos se praticados com dolo (artigo 13º do Código Penal); se não se provar o dolo mas apenas a negligência, pode existir a contra-ordenação prevista no artigo 29º, nº 2, do RJIFNA.A obrigação em causa não é meramente contratual, antes deriva da lei – que impõe a entrega pelas entidades empregadoras às instituições de segurança social do montante das contribuições que aquelas entidades tenham deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores e que por estes sejam legalmente devidas.
Nestas situações, as entidades empregadoras encontram-se instituídas "em posição que poderemos aproximar da do fiel depositário".A mera impossibilidade do cumprimento não é elemento do crime de abuso de confiança em relação à segurança social. A não entrega atempada da prestação torna possível a instauração do procedimento criminal nos termos do nº 5 do artigo 24º do RJIFNA, mas o que importa para a punibilidade do comportamento, como se referiu, é a apropriação dolosa da referida prestação.
A situação pode aproximar-se do crime de abuso de confiança previsto e punido pelo Código Penal (artigos 205º a 207º), que é um crime contra o património, cuja consumação ocorre com a apropriação ilegítima de coisa móvel alheia entregue por título não translativo de propriedade.

7-Assim, e em conclusão, nos crimes contra a segurança social, e em especial nos crimes de abuso de confiança em relação à segurança social, o bem jurídico protegido, sendo de interesse e ordem pública, já que a incumbência atribuída ao Estado, pelo artigo 63º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, de "organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social", com vista à defesa dos interesses públicos subjacentes às normas reguladoras dos regimes de segurança social, no entanto também aí imediatamente se protege um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, isto é, protege-se o património da segurança social, concretizado na função de arrecadação das contribuições que lhe são devidas.
É esse bem jurídico que é directamente lesado quando as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores o montante das contribuições por estes legalmente devidas, o não entregam às instituições de segurança social, sendo o titular desse interesse o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, instituição de segurança social que, está dotada de autonomia administrativa e financeira, de personalidade jurídica e de património próprio, que tem por objectivo a gestão financeira unificada dos recursos económicos consignados no orçamento da segurança social, exercendo as suas atribuições nas áreas do planeamento, orçamento e conta dos contribuintes, do património e da gestão financeira do sistema de segurança social, e a quem a lei expressamente atribui competência para além do mais, assegurar e controlar a cobrança das contribuições e das formas recuperação da divida a segurança social e receber as contribuições, assegurando e controlando a sua arrecadação, bem como a aos demais recursos financeiros consignados no orçamento da segurança social- artigo 3°, nºs 1 e 2, alíneas b)-ii) e d)-ii) do Estatuto da Segurança Social.

8-Em suma:
O titular do bem jurídico protegido é o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, enquanto titular de interesses legítimos, ou seja, o interesse de ver asseguradas as respectivas prestações sociais, resultantes dos descontos efectuados nas remunerações dos trabalhadores, e que estes venham a ser a beneficiar de tais descontos.

Em nota final complementar diremos então e também que.
O IGFSS adquiriu estatutariamente e no plano dessas funções uma posição claramente específica, autónoma e particular na defesa e protecção não só da gestão mas sobretudo da boa e eficaz recolha das prestações contributivas sociais. Tem uma natureza institucional própria que lhe confere até a peculiaridade de dominar tecnicamente uma matéria de alto relevo técnico e de utilidade públicas que lhe devem conferir o suporte e a garantia de se assumir um verdadeiro sujeito processual em defesa daqueles interesses ao lado do MºPº, à semelhança do que já acontece em outro tipo de infracções relativamente a outros sujeitos que o legislador assume como intervenientes legítimos ( caso do artº 68º nº 1 e)- pte final).

Porque razão haveria então que se negar ao IGFSS essa posição, face à evidente conveniência dessa intervenção como assistente penal em conjugação com a natureza dos bens jurídicos a proteger directamente por si e a seu cargo estatutariamente ?

Pensar o contrário é, salvo melhor opinião, abrir caminho ao prestar de um serviço provavelmente insuficiente e inadequado à causa dessa defesa apoiada num rigor aparentemente formal na interpretação da lei, tanto mais que as vantagens para o MºPº, com esse “acompanhamento” como assistente, como defendemos, são bastante evidentes, sendo certo que não é por um interesse poder mesmo ser “substancialmente” público que impede, em tantos outros casos, de ser concomitantemente acompanhado processualmente por sujeitos diferentes do MºPº.( cfr artº 68º nº 1 e) do CPP)
Arriscamos até em dizer que , com a crescente “democratização da justiça”, não é diabolizante o augúrio de um maior aperfeiçoamento funcional da “investigação” por outras entidades legítimas que não apenas o MºPº, cujos conhecimentos técnicos e poderes devem ser desejavelmente complementarizados segundo, ao menos, critérios de particular especialização.
Não sendo este no entanto, o argumento decisivo, ams apenas complementar, deixa-se consignado como mero sinal de algumas cautelas reflexivas acerca do tema.


III-DECISÃO

3.1-Nesta conformidade entende-se que o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, enquanto órgão com autonomia administrativa e financeira, dotado de personalidade jurídica e de património próprio, é o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, nos crimes contra a segurança social, e em especial, nos crimes de abuso de confiança em relação à segurança social sendo assim ofendido, nos termos e para os efeito do disposto no art. 68º, nº1, do CPP, tendo legitimidade para intervir nestes processos como assistente
3.2- E por isso se decide:
Julgar procedente o recurso e , em consequência, revogar-se o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que admita o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social a intervir nos autos como assistente.

Sem tributação.

Coimbra,
(texto revisto na íntegra- artº 94º,nº2 do CPP