Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
255/09.5TBFZZ.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
INVALIDADE DO CASAMENTO
ANULAÇÃO
Data do Acordão: 06/28/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FERREIRA DO ZÊZERE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 3.º, 1, A) E 17.º DO REGULAMENTO (CE) N.º 2201/2003, DE 27/11; ARTIGO 65.º, N.º 1. D) DO CPC
Sumário: Na Europa Comunitária é internacionalmente competente para conhecer da acção de anulação de casamento o tribunal do Estado – Membro onde o réu foi citado, quando nos articulados se omite a alegação de factos que permitam determinar a residência habitual dos cônjuges.
Decisão Texto Integral:             Tribunal Judicial de Ferreira do Zêzere

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

            A..., intentou a presente acção declarativa comum, com processo ordinário, contra B..., de nacionalidade marroquina, pedindo seja decretada a anulação do casamento celebrado entre ambos, com o fundamento em que contraíram casamento, em 26/08/2005, na Conservatória do Registo Civil de Ferreira do Zêzere, sendo que, nesta data, a ré ainda se encontrava casada com uma terceira pessoa, facto que a ré omitiu quando contraiu matrimónio com o ora autor, o que constituía impedimento dirimente ao casamento aqui celebrado e que a acarreta a respectiva anulação.

            Na petição inicial, o autor indica que a ré reside em Marrocos, mas a mesma veio a ser citada para os termos da presente causa, em França – cf. consta de fl.s 73.

            Concomitantemente, o autor indica, na parte em que, na petição inicial, se identificam as partes, como sua residência, ..., Ferreira do Zêzere, sendo que no articulado propriamente dito, nada refere acerca das condições em que ali vive, designadamente há quanto tempo e porque períodos, isto é, a única referência que neste articulado se faz à residência do autor é a que acima se referiu.

            Consumada a aludida citação da ré, a mesma não apresentou contestação.

            Conclusos os autos ao Ex.mo Juiz a quo, este, cf. despacho de fl.s 127 e 128, em cumprimento do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, ordenou fossem as partes notificadas acerca da possibilidade de vir a ser decretada a incompetência internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento e decisão dos presentes autos, atribuindo-a aos tribunais franceses, com o fundamento em que o autor não indicou a residência habitual dos cônjuges, nem a sua própria, com indicação de que aqui residiu no ano anterior à propositura da acção ou que aqui residiu habitualmente, nos seis meses anteriores a tal facto, pelo que apenas se poderia ater à residência da ré, em França, o que, por força do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27/11, confere a mencionada competência aos tribunais franceses.

            Só o autor respondeu, referindo que na petição inicial se encontra espelhado o domicílio do requerente e não a que indica na procuração (França), onde se encontra apenas para trabalhar.

            Mais refere que residiu em Portugal no período de 12/03 a 15/12/2009, indicando testemunhas para o comprovar, pelo que à luz do supra citado Regulamento, são os tribunais portugueses os competentes para o conhecimento e decisão dos presentes autos.

            Através da decisão de fl.s 139 a 143, o M.mo Juiz a quo, indeferiu as diligências de prova requeridas pelo autor, com o fundamento em que não se estava na fase de instrução do processo, nem tais factos tinham sido alegados na petição inicial.

            E veio a decidir-se pela existência da excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses, com a consequente absolvição da ré da instância, com o fundamento em que o autor não indicou a residência habitual dos cônjuges; não indicou a residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida; não indica que a morada que indicou na p.i. seja a sua residência habitual ou que, pelo menos, aí tivesse residido nos últimos seis meses e que o pedido não foi conjunto, pelo que, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, al. a), do aludido Regulamento, resta a residência habitual da ré, o local onde foi citada, o que atribui a competência aos tribunais franceses.

            Inconformado com a mesma, interpôs recurso o autor, A..., recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo (cf. despacho de fl.s 160), finalizando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

a) Encontra-se provado que A. casou com R. em 26/8/2005,

b) Que o mesmo foi celebrado na conservatória do registo civil de Ferreira do Zêzere.

c) Convencionaram os conjugues por convenção antenupcial o regime de separação de bens.

d) À data da propositura da acção A. vivia efectivamente em Portugal.

e) A. é cidadão Português.

f) R. é cidadã Marroquina residente em França.

g) Não se consegui aferir da residência habitual de R.

h) A mesma foi notificada na sua residência em Marrocos tal como consta da morada constante do Auto de Convenção antenupcial.

i) Verifique-se a morada habitual nos cônjuges versada no Auto de convenção Antenupcial.

j) A sua residência por um período superior a seis meses foi em ..., Ferreira do Zêzere.

k) Existe efectivamente menção à residência do A. na Petição inicial.

l) Apenas e só o A. colocou na Procuração Forense junto aos autos a sua morada de França, pois sabia que iria ser notificado de futuro e estaria a residir em França por motivos profissionais.

m) O tribunal “a quo” fundamenta a sua razão de incompetência com base no proémio do art. 3º do regulamento 2201/2003.

n) É-nos evidente que o art. 3º do supra citado regulamento abre várias sub-hipóteses.

o) Nomeadamente no seu item 6; a residência habitual do requerente, se este tiver residido pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado-membro em questão quer, no caso do reino Unido e da Irlanda, ai tenha o seu domicílio.

p) O requerente residiu em Portugal nos períodos compreendidos de 12/03/2009 a 15/12/2009.

q) Tal facto é comprovável através da prova testemunhal que foi indeferida.

r) Celebraram ainda A. e R. convenção antenupcial em território nacional.

s) Tal facto transporta para a esfera do direito interno o pleito.

Nestes termos e nos demais de Direito que serão doutamente supridos por V. Exas., Senhores Juízes Desembargadores, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, afastar todas as excepções dilatórias de incompetência absoluta, substituindo a mesma por Acórdão desse Tribunal que julgue a acção procedente e em consequência não dar lugar à absolvição da Instancia da R., bem como oficiar que se promovam todas as diligências probatórias requeridas pelo A..

 

            Não foram apresentadas contra-alegações.

           

            Dispensados os vistos legais, há que decidir.  

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de averiguar da competência internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento e decisão dos presentes autos.

           

            A matéria de facto a ter em conta é a que consta do relatório que antecede.

Passando à análise da questão de averiguar se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para o conhecimento e decisão dos presentes autos, cumpre ter presente o que se dispõe no Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental.

Como é consabido, a legislação comunitária sobrepõe-se à legislação nacional de cada um dos Estados Membros, pelo que prefere à legislação portuguesa em sede de atribuição da competência internacional.

Ora, de acordo com o artigo 1.º, n.º 1, al. a), tal Regulamento aplica-se, independentemente da natureza do tribunal, às matérias civis relativas ao divórcio, à separação e à anulação do casamento.

Assim, dado que no caso dos autos se pede a anulação do casamento celebrado entre autor e ré, aplicam-se as regras de tal Regulamento.

Dispõe este, no seu artigo 3.º, n.º 1, o seguinte:

“São competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento, os tribunais do Estado-Membro:

a) - a residência habitual dos cônjuges, ou

- a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida, ou

- a residência habitual do requerido, ou

- em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges, ou

- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, no ano imediatamente anterior à data do pedido, ou

- a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos, nos seis meses imediatamente anteriores à data do pedido, quer seja nacional do Estado-Membro em questão quer, no caso do Reino Unido e da Irlanda, aí tenha o seu 'domicílio'".

Como resulta da disjuntiva “ou” que é usada no preceito em causa são vários os critérios alternativos que o legislador previu para a fixação da competência dos tribunais dos diversos Estados-Membros.

            Como é óbvio, os factos tendentes a integrar-se em cada uma das hipóteses nele previstas têm de ser alegados e demonstrados pelos interessados.

            Assim, impõe-se que, nos articulados, as partes mencionem as respectivas residências de molde a que o tribunal nacional possa aferir da sua competência em face de tal alegação e por reporte a cada um de tais critérios.

            Compulsando a petição inicial, constata-se que a única e exclusiva referência que se faz à residência dos cônjuges é a que acompanha a identificação das partes, sem mais, isto é, designadamente, que se refira onde é a residência habitual de qualquer deles ou ambos, nem a última residência habitual de qualquer deles, ou por quanto tempo se verifica tal “residência habitual”.

            De igual forma se conclui que o pedido foi apenas deduzido pelo autor.

            Assim, tal como decidido em 1.ª instância tem de concluir-se que o único critério a que pode atender-se é o da residência da requerida, por referência ao local onde foi citada, sob pena de inexistir qualquer elemento que fixe a competência internacional dos tribunais de um dos Estados-Membros em causa.

            E nem a referência na convenção antenupcial à morada habitual dos cônjuges supre tal falta de alegação, desde logo porque não basta a junção de um documento desacompanhado da alegação do facto respectivo, para que o mesmo se tenha por alegado e por outro lado porque tal declaração é feita pelos interessados e, por isso, apenas se prova que foi prestada tal informação, como decorre da força probatória dos documentos autênticos – cf. artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil.

            Efectivamente, reitera-se, se o autor queria alegar e provar que tinha a sua residência habitual em Portugal, devia, logo na p.i., descrever os factos que permitissem ao tribunal aferir da respectiva veracidade, não podendo suprir tal falha com a alegação tardia, em requerimento autónomo, em resposta à aludida notificação que lhe foi feita para se pronunciar sobre a incompetência internacional (sendo que tal falta de alegação poderia, ainda, ter dado lugar a despacho de aperfeiçoamento, mas tal questão não faz parte do objecto do presente recurso).

            Só que, como já referido, a p.i. é completamente omissa quanto à indicação da residência habitual, sendo que esta, para estes efeitos, “… exige um elevado grau de estabilidade e permanência. Uma residência só passa a ser habitual quando, tendo sido estabelecida sem um limite temporal próximo, dure efectivamente durante um considerável lapso de tempo.

            Podemos então definir residência habitual como centro efectivo e estável da vida pessoal do indivíduo.

            Um indivíduo pode ter mais de uma residência habitual, dando azo a um problema de conteúdo múltiplo. Neste caso deve relevar a residência habitual do Estado a que o indivíduo esteja mais estreitamente ligado.” – cf. Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Vol. I Introdução e Direito de Conflitos, Parte Geral, Almedina, 2001, a pág. 352.

            In casu, é seguro que a ré reside em França, onde foi citada e aí reside, igualmente, o autor, conforme residência que consta da procuração que outorgou.

            No entanto, decisivo para a atribuição da competência internacional aos tribunais franceses para o conhecimento e decisão do presente pleito é o facto de o autor não ter alegado a localização da residência habitual de qualquer dos cônjuges, pelo que, nos termos do mencionado artigo 3.º, n.º 1, al. a), do Regulamento, não resta outra alternativa que não seja a de a fixar por referência à residência onde a ré foi citada, de que resulta que a competência para a decisão do caso em apreço se encontra atribuída aos tribunais franceses, questão esta de conhecimento oficioso, com base nos preceitos para tal já referidos na decisão recorrida, a que se acrescenta o artigo 17.º do atinente Regulamento.

            Por último, de referir que a citação que os recorrentes fazem ao estudo de Lima Pinheiro, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor I. Galvão Telles, vol. V, pág. 696 e 687, tem por referência o Regulamento (CE) 44/2001, que versa sobre as matérias civis e comerciais, ao passo que o Regulamento aqui aplicado tem em vista, especificamente as relações de índole matrimonial, sendo que como aí se refere, a pág. 696, “A fonte mais importante é, sem dúvida, o Regulamento comunitário.”, daí que se sobreponha à fonte interna (os artigos 65.º e 65.º-A, do CPC), imperando sobre estes e afastando a respectiva aplicação.

            Por outro lado, atente-se que a invocação que o recorrente faz do disposto no artigo 65.º, n.º 1, al. d), CPC, não releva porquanto não é o facto de o casamento ter sido celebrado e se encontrar registado em Portugal que obsta a que ao mesmo se ponha termo através de divórcio ou outra causa, num tribunal de outro Estado Membro, podendo, posteriormente, tal decisão ser reconhecida em Portugal através do competente processo de revisão de sentença estrangeira, como, amiúde, acontece.

            E, para além do mais, o autor reside (tal como a ré) em França, pelo que também não se verificam os demais óbices referidos neste preceito.

            Concluindo, dada a falta de alegação pelo autor dos elementos que permitissem aferir de outro critério, tem de ater-se à residência onde a ré foi citada e daí resulta serem os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para a apreciação e decisão da presente acção, que se atribui aos tribunais franceses, Estado-Membro (França) onde ambos residem, nos termos expostos.

Pelo que, improcede o recurso interposto.

Nestes termos se decide:       

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Arlindo Oliveira (Relator)

Emídio Francisco Santos

António Beça Pereira