Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
607/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: ESCUTAS
CORRESPONDÊNCIA
TELECOMUNICAÇÕES MÓVEIS
Data do Acordão: 03/29/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ÍLHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº.S 187º, 188º E 190º DO C. P. PENAL
Sumário: O artº. 190º do Código de Processo Penal regula a intercepção e a gravação da transmissão das conversações ou comunicações efectuadas por qualquer meio diverso do telefone, nelas não cabendo as mensagens recebidas em telemóvel e mantidas em suporte digital depois de recebidas e lidas, que não terão mais protecção do que as cartas recebidas, abertas e guardadas pelo seu destinatário.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal da Relação de Coimbra:
I-
1- No processo comum com o n.º 207/05 do 2º Juízo da comarca de Ílhavo, A... foi condenado na pena de em 6 anos e 6 meses de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21º/1 do DL. n.º 15/93, de 22/1 [Por lapso de escrita consta na decisão a prática do crime p. e p. pelo art.º 25º alínea a) do dito DL. mas que a fls. 1271 o colectivo corrigiu no âmbito dos poderes que a lei processual lhe conferia.].
2- O arguido recorre, concluindo –
1) Ao condenar o arguido o tribunal não fez correcta interpretação dos factos , por isso julgou mal e extraiu dos factos conclusões e considerações que os mesmos não permitem;
2) Não aplicou correctamente o direito , tendo violado os art.ºs 2, 126, 174, 170, 170 , 180, 188, 189, 190, 262, 267, 275, 355 356, 357 e 379 do Código de Processo Penal e os art.ºs 13, l5, 18, 26, 32 340 e 205 da Constituição da República Portuguesa;
3) Haverá fraude ã Lei se se permitir assentar uma acusação em conversas informais não documentadas, nos termos exigidos por lei e, por isso, fora de controlo;
4) Não valem em julgamento para a formação da convicção do tribunal, ressalvados os autos cuja leitura é permitida, quaisquer provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência nos termos do disposto no art. 355/ 1 e 2 do Cód. Proc. Penal.
5) Não pode a fundamentação da sentença assentar em operações intelectuais e processuais em clara violação das normas, uma vez que o fim do processo não é apenas o da descoberta da verdade a todo o transe mas a descoberta da verdade usando regras processuais admissíveis e legitimas;
6) É nula a acusação pela ausência de factos subsumíveis a prova, pelo que não deveriam os autos ter seguido para julgamento, declarando-se nulo tudo o que anteriormente fora processado;
7) A matéria de facto que no acórdão está dada como provada e a que esta dada como não provada vai ao arrepio da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
8) Na exposição da motivação da decisão é manifestamente errada a apreciação e valoração da prova produzida;
9) Não curou o acórdão das flagrantes contradições nos depoimentos das testemunhas arroladas pelo Ministério Público, tendo partido para a decisão condenatória com base na tese que melhor servia os interesses da acusação;
10) Diz-se no acórdão que em Dezembro de 2004 o arguido A... arrendou um apartamento com garagem fechada na Barra, com o propósito de ali vir a guardar substancias estupefacientes, sendo que tal não resulta de forma alguma do depoimento de nenhuma das testemunhas ouvidas na audiência de discussão e julgamento;
11) Está também dado como provado que no inicio de Fevereiro de 2005 o arguido deslocou-se de Espanha para Portugal a fim de diligenciar pelo armazenamento, de cocaína e pela sua posterior distribuição por locais não apurados, matéria que não foi corroborada de forma alguma por nenhum depoimento;
12) É manifestamente conclusiva a observação que leva a considerar-se como provado que o arguido conhecia as características do produto que detinha destinando-o à distribuição e venda a terceiros e que ele agiu de forma voluntária e consciente, factos que também não foram corroborados por nenhum testemunho;
13) Conclusiva a consideração de que no dia 2 de Fevereiro, por volta das 14, 40 horas, o arguido mantinha guardado no interior da garagem três fardos com noventa embalagens, de um quilo cada, contendo cocaína ; seis sacos de serapilheira rasgados e vazios semelhantes aos que envolviam os fardos ; um x-acto ; um alicate e uma pá com cabo de madeira, tanto mais que é dado como não provado que o arguido com a sua actuação procurasse auferir lucros económicos de montante muito elevado;
14) A condenação criminal de alguém não pode basear-se na lógica e nos critérios de experiência, sob pena de se estar a violar o principio da presunção de inocência do arguido e o de que não existe pena sem culpa -, art.ºs 13, 15, 32 e 205 da Constituição da República Portuguesa;
15) Após se ter visto a falta de fundamento e correspondência da matéria dada como provada com os depoimentos produzidos em audiência de julgamento, constata-se que na motivação que conduz à decisão condenatória são considerados com carácter de exclusividade os testemunhos dos agentes da policia judiciária;
16) Uma audição atenta do registo sonoro de tais depoimentos permite constatar as inúmeras contradições entre eles, aliada a um certo desconhecimento por alguns dos inquiridos sobre a realidade fáctica, donde resulta que se deveria ter absolvido o arguido com base no direito à sua presunção de inocência;
17) As testemunhas arroladas pelo Ministério Público, designadamente os inspectores da policia judiciária, brindam os autos, no que concerne aos acontecimentos ocorridos com versões distintas dos mesmos acontecimentos;
18) Apenas num ponto os depoimentos são coincidentes, é quando referem que o arguido entrou à noite no apartamento pela porta da frente e ninguém o viu sair, daqui resultando que ele saiu pela porta das traseiras e que tal porta não dá apenas acesso às garagens;
19) É sem ponderar as referidas contradições que o acórdão, olvidando o principio da presunção de inocência, decide no sentido da condenação;
20) Considerou-se como provado que o arguido tinha consigo os telemóveis 937227435, 947436377 e um outro marca Nokia. Todavia, não só tais factos não foram corroborados por nenhum depoimento proferido em audiência como não foi feita prova de que tais telemóveis fossem propriedade do arguido, resultando dos documentos juntos aos autos, designadamente do próprio relatório da Policia Judiciária, qual o telemóvel que ele sempre utilizou e os contactos que com o mesmo fez;
21) Sem qualquer suporte fáctico dá-se como provado que o arguido recebeu uma mensagem quando é ele a reconhecer ter sido avisado através de um telefonema onde se lhe dava noticia que havia estupefacientes na garagem, não constando dos autos que o arguido tenha aberto tal mensagem e a tenha lido, como também não consta que o telemóvel receptor fosse o de sua propriedade;
22) O acórdão revela imprecisões que passam mesmo por uma errada interpretação dos factos constantes dos autos, dando-os como provados ou considerando-os como não provados ao arrepio da prova constante dos mesmos;
23) Na motivação do acórdão, e em manifesta contradição e incoerência, que o facto da mensagens não estarem referenciadas com dia e hora em que são recebidas impossibilita relacionar as mesmas com as movimentações do arguido;
24) O acórdão perde-se em considerações sobre factos de todo irrelevantes para a boa decisão da causa, atribuindo-lhe relevância que tal matéria não tem;
25) Entendeu o tribunal , erradamente, que ao caso se aplicariam os dispositivos do artigo 179 do C.P.Penal e não o art.º 190, 187, 1880 e l89 a respeito da nulidade da leitura dos cartões de telemóvel junta aos autos, entendendo que tais mensagens escritas são válidas não carecendo de autorização ou posterior validação;
26) A referida prova é nula por três razões: primeiro porque o regime perfilhado pelo art.º 179 do C.P.Penal sempre o juiz deveria ter ordenado ou validado tal prova, o que não sucedeu;
27) Depois porque quer tratando-se do regime dos artigos l87 a 190 do C. P. P. quer do regime do artigo 179, o certo é que o tribunal parte de um errado pressuposto;
28) Na verdade sejam mensagens ou correio electrónico, aplicando-se um ou outro regime, têm como único ponto diferenciador o facto de que as mesmas se encontrarem em lugar reservado -, um telemóvel -, ao invés das cartas abertas, sendo que quanto à intromissão em lugar reservado está constitucionalmente consagrada a precedência de autorização judicial, o que não sucedeu nos autos;
29) No que toca às mensagens que se encontrem no telefone, a sua análise terá que ser precedida de ordem judicial;
30) Os dados de conteúdo são dados relativos ao conteúdo da correspondência enviada através da utilização da rede pelo que a protecção e a garantia contra qualquer intromissão, intercepção ou decifração da mensagem por pessoa não autorizada constitui um elemento nuclear dos utilizadores do sistema suscitando garantias inscritas no texto constitucional.
31) Nos termos prevenidos nos n.ºs 1 e 4 do art.º 34º da C.R.P., o domicilio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis, sendo proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal;
32) As restrições estão assim autorizadas apenas em processo criminal e estão igualmente sob reserva de lei (art. 18/ 2 e 3) só podendo ser decididas por um juiz (art.º 32/ 4);
33) Em caso de lesão do principio da intervenção mínima ou do principio da proporcionalidade, a prova obtida é nula -, art.º 32/8 da C.R.P. e art.ºs 126/ 3 e 189 do C.P.P.;
34) Se é necessária uma ordem judicial para obtenção de facturação detalhada, por maioria de razão será sempre necessário obter a autorização judicial para a leitura do cartão de telemóvel e portanto dos chamados dados de conteúdo das mensagens nele encontradas;
35) Na ausência de tais despachos judiciais, desconhece-se para os devidos efeitos legais se as referidas leituras traduzem a realidade factual, isto é se são fiéis e se foram reproduzidas com fidelidade, acompanhadas pelo juiz do processo, e se as transcrições são relevantes;
36) Constituindo a preterição daquelas formalidades nulidade processual;
37) As leituras são nulas porquanto das mesmas não consta qualquer data, hora, minuto ou segundo em que as mesmas foram enviadas e/ou recebidas em tal telemóvel e ao não estabelecermos os modos de tempo e lugar não poderemos da mesma forma estabelecer qualquer ligação entre as referidas mensagens e os factos em análise nos autos e impossível se torna estabelecer qualquer conexão entre os factos, as mensagens e o arguido, pelo que não poderão ser tomadas em linha de conta para formar a convicção do tribunal ;
38) Não existe nos autos qualquer documento que faça prova da titularidade do contrato do telemóvel e/ou cartão donde foram recolhidas as mensagens ora postas em crise, pelo que não poderia o tribunal ter-se contentado com uma qualquer presunção de propriedade aparente.
39) Não resulta provado que as mensagens fossem mensagens já lidas ou que ainda não tivessem sido abertas e lidas, pelo que mal andou o tribunal ao partir do pressuposto errado de que as mesmas fossem mensagens já abertas e portanto lidas para as equiparar a cartas abertas, pelo que também por esta razão aquela prova deveria ter sido julgada nula.
40) Não existindo nos autos qualquer despacho no sentido de ordenar tais diligencias probatórias ou por outro lado qualquer despacho a validar tais leituras, as mesmas deveriam ter sido julgadas nulas e de nenhum efeito;
41) O arguido é cidadão de nacionalidade espanhola, ali tendo a sua residência fixa, conforme aliás consta dos próprios autos e foi demonstrado em audiência de julgamento;
42) Para a realização da busca domiciliária o arguido assinou uma declaração de autorização para a sua realização por inexistência de mandados judiciais;
43) A diligência foi levada a efeito não só no apartamento que supostamente o arguido habitava mas também na garagem fechada destinada a tal habitação;
44) Mas tem vindo a ser entendido pela jurisprudência que para a efectuação duma busca domiciliária aquele consentimento terá de ser prestado pelo visado com a diligência e seja titular do direito de inviolabilidade de domicilio, não bastando a disponibilidade do local, conforme a alínea b) do n.º 4 do art.º 174, art.º 177/2 do C.P.P. e art.º 34/2 e 3 da C.R.P., pelo que a busca levada a efeito é nula ;
45) Apesar do aludido consentimento do visado, o facto é que esse consentimento tem de ser dado por quem seja visado pela diligência e seja titular do direito à inviolabilidade do domicílio, não bastando a mera disponibilidade do lugar da habitação;
46) Trata-se de nulidade insanável pelo facto de que o suposto consentimento do arguido documentado nos autos se restringe única e exclusivamente à residência habitacional, sendo que a garagem não deve ser considerada parte integrante do domicilio, logo teria de ser objecto de ordem judicial ou validação posterior o que não sucedeu, entendendo-se acrescidamente que, não tendo o arguido consentido por qualquer forma na realização de busca á dependência onde terá sido apreendido o estupefaciente, a busca levada a cabo é nula por inexistência de consentimento do visado. Acresce o facto da diligência não ter sido ordenada nem autorizada pelo JI o que a torna insanavelmente nula;
47) Encontra-se sobejamente demonstrado que existe clara contradição e dúvida bastante sobre qual terá sido a pessoa que terá consentido/permitido a realização da busca à garagem, tornando-a insanavelmente nula;
48) Quanto à apreensão do estupefaciente, resulta claro inexistir qualquer validação da apreensão efectuada;
49) A validação ou invalidação de um acto processual deve ser sujeita a despacho ponderado, cauteloso, rigoroso e exacto, não bastando a mera referência a folhas dos autos para que a referida apreensão possa e deva ser validamente aceite, ou que a sujeição a uma qualquer medida de coacção por parte do arguido feita por referência á quantidade de produto estupefaciente constitua só por si a validação de qualquer apreensão;
50) A não ser assim, ter-se-ão que declaram inócuos os dispositivos legais do C.P.Penal que refiram que determinadas diligências deverão ser ordenadas pelo juiz, porquanto tal ordem se mostrará sempre desnecessária a partir do momento em que o mesmo juiz no primeiro interrogatório se refira às folhas dos autos donde resultem essas mesmas diligências probatórias, sejam elas escutas telefónicas, apreensões, buscas domiciliárias ou outras, ou tome como base essas mesmas diligências probatórias para aplicar uma qualquer medida de coacção ao arguido;
51) Banir-se-ão assim do processo penal as nulidades e os métodos proibidos de prova, pois uns e outros de uma maneira ou de outra serão sempre válidas e/ou validadas a posteriori;
52) Não se mostram preenchidos os requisitos legais para a validação da apreensão em causa. Deveria a mesma ser considerada nula;
53) O acórdão enferma de vicio adicional ao condenar o arguido na pena de seis anos e seis meses como autor material de um crime p. e p. pelo art.º 25º, alínea a), do DL. n.º 15/93, de 22/1, já que o preceito legal que serve de fundamento à condenação [ art.º 25º, alínea a) ] estipula como pena máxima admissível cinco anos de prisão;
54) Na formulação actual o acórdão viola uma disposição legal de carácter imperativo ao estabelecer uma pena de prisão efectiva que vai para além da moldura penal admissível por lei para aquele tipo de ilícito penal, devendo concluir-se que a decisão padece de vicio que põe em causa a sua validade.
55) O acórdão viola princípios basilares do Direito Penal, a saber,
56) Nullum crimen sine lege e nulla poena sine culpa,
57) bem como os princípios da presunção de inocência do arguido e in dúbio pro reo;
58) Mesmo sem necessidade de se fazer a invocação destoutro de que mais vale absolver um criminoso do que condenar um inocente.
3- Respondeu pelo infundado do recurso o magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido. No mesmo sentido vai o parecer do Ex.mo Procurador - Geral Adjunto, a que o arguido deu resposta.
4- Colheram-se os vistos e realizou-se a audiência. Cumpre apreciar e decidir!
II-
1- Decisão de facto e sua fundamentação insertas no acórdão recorrido -
Factos provados -
1. Em Dezembro de 2004, o arguido A... arrendou um apartamento, com garagem fechada, sito na Av. João Corte Real, n0 111, 1º , direito, na Barra, com o propósito de ali vir a guardar substâncias estupefacientes.
2. No início de Fevereiro de 2005, o arguido A... deslocou-se de Espanha para Portugal, a fim de diligenciar pela armazenagem, na referida garagem, de cocaína e pela sua posterior distribuição por locais não apurados.
3. Com vista a efectuar os contactos necessários ã concretização de tais propósitos, o arguido tinha consigo os telemóveis com os n0s 93 7227435, 947436337 e um outro, da marca Nokia, modelo 100, sem qualquer cartão.
4. No dia 2 de Fevereiro, por volta das 14h40m, o arguido mantinha guardado no interior da garagem em questão três fardos, com noventa embalagens, de um quilograma cada, contendo cocaína; seis sacos de serapilheira rasgados e vazios, semelhantes aos que envolviam os “fardos”; um x-acto; um alicate e uma pá com cabo em madeira.
5. O arguido conhecia as características do produto que detinha, destinando-o à distribuição e venda a terceiros, bem sabendo que a sua detenção e venda eram proibidas e punidos pela lei penal.
6. O arguido agiu de forma voluntária e consciente.
7. A arguida, até à data destes factos, vivia e trabalhava há mais de 15 anos na cidade de Marbella, em Espanha.
8. Tem a seu cargo a guarda do seu sobrinho menor, nascido em 23.10.95, que frequenta o 20 ano da escola primária.
9. A arguida dedica-se profissionalmente à cartomancia, misticismo e esoterismo, deslocando-se a Portugal, de quando em vez, para ser consultada por pessoas crentes na área da sua especialidade.
10. Para o efeito, a arguida constituiu em Marbella uma sociedade civil — La Magia Venezuelana, S.C. - que se encontra registada em Espanha..
11. Durante o período que esteve em Portugal a arguida desenvolveu a sua referida actividade, dando consultas quando esteve no Hotel Lezíria Parque, em Vila Franca de Xira.
1 2. Os arguidos, no dia 28 de Janeiro de 2005, viajaram juntos num FIAI PUNTO que o arguido alugou em Espanha.
13. Na primeira noite que passaram em Portugal ficaram hospedados no Hotel Lezíria Parque Hotel, em Vila Franca de Xira.
14. A arguida pernoitou com o arguido PabIo, desde a noite do dia 29 e até ã noite do dia 1 de Fevereiro, inclusive, no Hotel Arcada, na cidade de Aveiro.
15. A arguida pernoitou no Hotel Moliceiro, em Aveiro, na noite de 2 para 3 de Fevereiro.
16. O arguido vivia e trabalhava há mais de 15 anos na cidade de Marbella, em Espanha, exercendo a actividade profissional de vendedor de automóveis, actividade essa que se ressentia pela dificuldade em vender automóveis em segunda mão.
17. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
Factos não provados -
a) Que a arguida, no início de Fevereiro de 2005, se tivesse deslocado com o arguido A..., de Espanha para Portugal, com o fim de diligenciar pela armazenagem, na referida garagem, de cocaína e pela sua posterior distribuição por locais não apurados; que para esse efeito tivesse consigo o telemóvel com o n0 608848562; que mantivesse guardada no interior da garagem os produtos e objectos ref. em 4.; que conhecesse as características desse produto, destinando-o à distribuição e venda a terceiros, bem sabendo que a sua detenção e venda eram proibidas e punidos pela lei penal; que procurasse auferir lucros económicos, de montante muito elevado, que sabia ser ilícito; que tivesse agido de forma voluntária e consciente.
b) Que o arguido, com a sua actuação, procurasse auferir lucros económicos, de montante muito elevado, o que sabia ser ilícito.
c) Que o arguido se deslocasse frequentemente a Portugal para comprar e vender automóveis.
d) Que ao arguido tivesse sido solicitado, no final do ano passado em Marbella para que diligenciasse pelo arrendamento de um apartamento na zona de Aveiro, para uns cidadãos de nacionalidade francesa, que aqui precisavam vir tratar de negócios logo a seguir ao início do ano.
e) Que o arguido tivesse arrendado o apartamento em causa em virtude dessa solicitação.
f) Que no dia 28 de Janeiro de 2005 o arguido tivesse vindo a Portugal unicamente para entregar as chaves do apartamento que arrendara, nunca tendo usufruído do mesmo.
g) Que ao arguido tivesse sido solicitado que ficasse mais uns dias para que, quando eles se fossem embora, o arguido entregasse a chave do apartamento a alguém que chegaria mais tarde.
h) Que a arguida se tivesse mudado para o Hotel Moliceiro, por lhe ter desagradado o serviço e as instalações do Hotel Arcada.
i) Que os arguidos tencionassem regressar a Espanha no dia 2 de Fevereiro e tivessem alterado os seus planos por o arguido ter que pernoitar no apartamento na Barra, por causa da entrega da chave do mesmo.
Motivação -
A convicção do tribunal relativamente às circunstâncias que rodearam a detenção, por parte do arguido, da quantidade de cocaína apreendida bem como o conhecimento do mesmo de que detinha tal substância, resultou da análise conjugada dos seguintes meios de prova.
O arguido, nas declarações que prestou em audiência de julgamento, confirmou que se deslocou Portugal (em Dezembro de 2004) para arrendar uma casa com garagem, em Aveiro, mediante o pagamento, a si, de 6.000 euros, o que fez a solicitação de uma pessoa que apenas sabe chamar-se “Mustafa”. Logo afirmou que, muito embora soubesse que algo de ilícito estava associado a este arrendamento, aceitou o “negócio” porque estava com dificuldades económicas.
O arrendamento foi confirmado por João Carlos Pacheco, proprietário da casa. Quanto a esta matéria as declarações prestadas pelo arguido não coincidem na totalidade com o depoimento do proprietário da casa, situando-se as divergências quanto ao modo como o arguido teve conhecimento de que aquele apartamento se arrendaria e à perspectiva de reduzirem ou não a escrito o contrato de arrendamento. Contudo, a testemunha referiu e o arguido reconheceu que só estava interessado num apartamento com garagem, tendo aquela testemunha indicado ao arguido o local onde se situava a garagem.
Posteriormente, deslocou-se a Portugal neste período porque, afirmou o arguido, o “Mustafa” lhe disse que teria que aqui vir para entregar a chave do apartamento a pessoas que o iriam contactar.
O arguido explicou, então, como foi contactado por dois franceses, que não conhecia, e o facto de lhe terem dito que teria que aguardar e posteriormente, que teria que dormir no apartamento, pois o “francês” (Alain) tinha que sair de manhã cedo.
Durante essa noite afirmou que só saiu uma vez, cerca das 24 horas, para falar com a sua companheira. Fê-lo fora do apartamento e próximo da rotunda, porque não a queria envolvida numa história que ele sabia ser ilegal.
De manhã, saiu com o Alain e estiveram a conversar em frente do apartamento. Depois, a pedido do Alain, colocou e deixou a chave da Citroen Berlingo na ignição e alguém, que desconhece quem, veio buscar essa viatura. Após, o Alain foi-se embora num Toyotta, pelas 9h 30m.
O arguido explicou, ainda, as circunstâncias em que foi detido. Afirmou que recebeu uma chamada a avisá-lo de que estava por ali muita policia, que já não iriam ter consigo e que havia cocaína na garagem. Ficou assustado e chamou a arguida, que o veio buscar de carro, tendo-se por esse motivo escondido na parte de trás da viatura.
Ora, pelas declarações que prestou e aqui referidas, o arguido pretende fazer passar a ideia que a sua actuação. muito embora censurável, esteve sempre à margem da alegada detenção da cocaína, cuja presença diz desconhecer. A troco do pagamento da quantia de 6.000 euros ter-se-á limitado a arrendar um apartamento e a facultar a sua chave a terceiros. Muito embora calculasse que aquele arrendamento pudesse estar relacionado com alguma actividade ilícita, mais concretamente com emigração ilegal, desconhecia que pudesse estar relacionado com o tráfico de droga.
Contudo, da prova produzida em sede de audiência de julgamento resultou, de forma clara e inequívoca, o contrário. Resultou provado que o arguido sabia da existência de cocaína na garagem do apartamento que arrendara.
Esse conhecimento resultou evidente pela circunstância de o arguido ter demonstrado uma atitude claramente protectora relativamente ao apartamento, pela preocupação de se encontrar com a arguida longe do mesmo e pela colaboração activa com terceiros na protecção desse mesmo apartamento.
Apesar de o arguido ter afirmado que só contactou com o tal “francês” debaixo das arcadas e quando foi passar a noite no apartamento, não mencionando quaisquer outros contactos pessoais com aquela pessoa ou com outras, das vigilâncias efectuadas resulta o contrário. O inspector Filipe Pereira mencionou que no dia anterior à detenção, pelas 20h30m, o condutor da Citroên Berlingo contactou o arguido numa das avenidas da Barro. Aquela viatura parou (com uma pessoa lá dentro, que não conseguiu identificar) e uns instantes depois apareceu o arguido, tendo ambos conversado por uns momentos.
Também o inspector Edgar Ribeiro nesse mesmo dia viu o arguido a circular dentro da Berlingo, com outra pessoa que não sabe identificar e que conduzia esse veículo.
Por outro lado, o arguido afirma desconhecer o que se encontrava na garagem pois nunca aí entrara. Contudo, das vigilâncias resulta o contrário.
No dia 2/2 (que antecedeu a detenção dos arguidos), o arguido e o francês, cerca das 21 horas saem juntos de uma confeitaria e dirigiram-se, a pé, para o bloco de apartamentos. Mas, não entraram na porta principal de acesso aos apartamentos, mas antes pelo portão de garagem que, através de um túnel por baixo do prédio, dó acesso a todas as garagens. A este comportamento referiram-se os inspectores António Castro e Filipe Pereira.
O inspector Filipe Pereira referiu, ainda, que no dia seguinte, cerca das 9h 30m o arguido saiu com o francês” peja porta principal dos apartamentos. Uma vez na rua. entraram ambos pelo referido portão de garagem.
Destas duas situações concluímos que o arguido, mais do que saber o que estava na garagem acedeu à mesma.
É verdade que o arguido podia entrar pelo portão de garagem que depois dó acesso ao logradouro onde se situam todas as garagens apenas para entrar novamente no prédio pela porta das traseiras. Contudo, se num puro exercício de raciocínio isso seria possível, tal comportamento mostra-se totalmente inverosímil quando o arguido entra nesse portão (na manhã do dia 3/2) após ter saído da porta do seu prédio, como mencionou o inspector Filipe Pereira. Seguramente não eslava a sair do apartamento para. de imediato, entrar para o mesmo, mas agora pela porta das traseiras.
Passemos a analisar comportamentos dos quais resulta a colaboração e empenho do arguido na protecção do apartamento em questão.
Nessa mesma manhã o arguido, como mencionou o inspector António Cardoso Gomes, passou a manhã a entrar e sair de casa” sem qualquer destino como resultou das vigilâncias, e como também salientou também inspector Alexandre Granhão. E quando se vai encontrar com a arguida, ao final da manhã, o modo como se encontram não corresponde à descrição factual apresentada pelo arguido. O arguido não se limita a esperar pela arguida e entrar no seu carro para aí se esconder. O inspector Edgar Ribeiro relatou que a arguida primeiro estacionou o carro e depois, anda a pé no passeio. cruzando-se ambos, ombro com ombro, sem trocarem uma palavra. Após, a arguida entra novamente no carro e só então o arguido entra no carro para aí se esconder, deitado na parte traseira.
Apesar de o arguido negar que tivesse visto a arguida, a sua compleição física corpulenta associado ao facto de ser calvo, inviabiliza essa possibilidade.
Logo, tal atitude, que denuncia um comportamento deliberado e pensado para iludir a vigilância policial de que o arguido já se sabia alvo, contraria a hipótese de este, acabando de saber da existência da cocaína, pretender precipitadamente fugir (como o mesmo afirma).
Por todo o exposto, repetimos, o comportamento do arguido denuncia uma atitude de vigilância e de protecção do apartamento que arrendara que não é compatível com a mera possibilidade de esse apartamento estar apenas relacionado com uma qualquer actividade ilícita, talvez de imigração ilegal. Tanto mais que, nas palavras do arguido, no período em que aí permaneceu nada se passou.
Essa vigilância é também patente nas mensagens recebidas pelo arguido no telemóvel, concretamente naquele a que corresponde o n0 947436337. O facto de as mensagens não estarem referenciadas com o dia e a hora em que foram recebidas impossibilita relacionar as mesmas com as movimentações do arguido. Contudo, das mesmas é possível concluir que o arguido estava vigilante antes do “francês” se ir embora, ao contrário do que este afirmou. De acordo com o arguido, este só teria sido avisado da presença da policia e da existência de cocaína quando o francês já se tinha ido embora e enquanto estava à espera de uma pessoa a quem tinha que entregar as chaves do apartamento. Mas recebeu uma mensagem com o seguinte teor: “mucho cuidado por que dicen que hay 3 coches dando bueltas avisa cuando salga el frances”.
Essa atitude de vigilância e protecção, o facto de o arguido ter acedido à garagem do apartamento que arrendou e onde pernoitou na noite que antecedeu a sua detenção, permitem-nos concluir que sabia da existência da quantidade de substância estupefaciente que foi apreendida na garagem. Tanto mais que o arguido facilitou o acesso de “terceiros” à Citroên Berlingo na manhã do dia 3 de Fevereiro. O arguido colocou as chaves na ignição daquele veículo, que estava estacionado na via pública, assim o deixando por forma a que depois “alguém” a ele acedesse e se fosse embora, o que veio a acontecer. Ora, esta colaboração, que o arguido reconheceu ter acontecido, excede a simples “tarefa” de arrendar uma casa com garagem e de trazer a respectiva chave da mesma, como pretendia o arguido.
Enformando tudo o referido, com base na lógica e nos critérios de experiência. existem outros elementos objectivos que apontam para a afirmação positiva do conhecimento do arguido. O facto de se deslocar de Espanha a um país estrangeiro, com o qual não mantém qualquer ligação, arrendando um apartamento sem uma finalidade atendível, com a expressa exigência de uma garagem, e o regresso ao pais de origem algum tempo após, em momento coincidente com o da existência da droga, aponta para uma dinâmica organizacional, da qual o arguido faz parte, detendo domínio do locado, com disponibilidade para conhecer todo o conteúdo aí existente.
Considerou-se, ainda, o depoimento de Rui Meireles e de Alexandre Granhão, que deram apoio ás vigilâncias no dia da detenção. Por sua vez, os inspectores Fernando Teixeira e António Castra detectaram a Citroen Berlingo no dia 1 de Fevereiro em Aveiro, quando o seu condutor esteve a falar com o arguido debaixo das arcadas.
Quanto ao destino a dar àquele produto considerou-se, se acordo com as regras de experiência, a sua quantidade, bem como os indícios de já lá ter estado muito mais (embalagens vazias). Contudo, não resultou provado que o arguido procurasse. com tal conduta auferir lucros económicos de montante elevado, na medida em que se desconhece qual a posição que o mesmo ocupava na organização que necessariamente rodeava esta detenção e a posterior transação.
A convicção do tribunal, para além do exposto, baseou-se no auto de revista pessoal (fls. 27), na autorização subscrita pelo arguido (fls. 28), no auto de busca e apreensão (fls. 29), nas fotografias juntas a fls. 31 a 41 e 994 a 996, no auto de leitura de cartão de telemóvel (fls. 42 a 46), no resultado do exame efectuado á substancia apreendida (fls. 650), nos documentos referentes à permanência da arguida em Espanha (doc. de fls. 264, 266, 268 e 269), relativos ao menor que se encontra a seu cargo (doc. de fls. 294 a 303), à sociedade que a arguida constituiu em Espanha (doc. de fls. 271 a 292), à ausência de antecedentes criminais (fls. 305), à cópia do contrato de aluguer do Fiat Punto (fls. 211), e aos documentos referentes aos dois hotéis (fls. 53, 93 e 94).
No que concerne à arguida, não foi produzida prova de que a droga apreendida estava no seu domínio, nem de que tinha conhecimento da sua existência. Apesar do seu comportamento, objectivado nos numerosos telefonemas que efectuou ao arguido num curto espaço de tempo, no modo como se encontram, antes de o arguido entrar no seu carro, faz supor que tinha conhecimento, pelo menos, da actividade do arguido. Contudo, tal conhecimento, por si só a nada conduz, no que à acusação diz respeito.
Relativamente á actividade exercida pela arguida, considerou-se tombem o depoimento de Alfredo Manuel Lima, cuja tia consultava a arguida, tendo-a a testemunha conduzido ao Hotel Lezíria Parque em finais de Janeiro deste ano. A testemunha Henrique Sousa, conduziu pelo mesmo motivo e ao mesmo local a sua esposa. Também a testemunha Maria de Fátima Antunes confirmou que se consultava com a arguida, datando a última consulta de finais de Janeiro, data em que a arguida foi a sua casa, em Lisboa.
Bernardete Martinez Martinez, com quem o arguido viveu em união de facto durante cerca de 10 anos, referiu-se à actividade profissional a que o arguido se dedica, bem como á situação económica difícil vivida pelo arguido.
Refere-se, em último lugar que, parte dos factos que foram considerados como não provados estão em oposição com aqueles que resultaram provados. Sobre os demais não se fez prova ou aquela que se fez é inconsistente, como supra se refere.
Os restantes factos não especificamente dados como provados ou não provados, ou são a negação de outros especificamente considerados provados ou não provados ou são irrelevantes para a decisão, por serem conclusivos ou encerrarem questões de direito.
2- Como questões a resolver suscitam-se no recurso as seguintes –
a) Discordância do recorrente com a decisão da matéria de facto; b) A nulidade das buscas, das apreensões e do exame das mensagens insertas nos telemóveis usados elo arguido; c) Nulidade resultante da diversa qualificação inserta na parte decisória do acórdão da que consta da acusação .
3- Apreciação
Por razão de ordenamento lógico, começaremos pela abordagem das invocadas nulidades da busca, das apreensões e do conhecimento das mensagens gravadas em telemóvel. Antes, porém, -
3.1- O presente recurso é do acórdão condenatório de fls. 1095 e ss. pelo que se estranha vir nele o recorrente alegar nulidade da acusação, ainda por cima com o fundamento de que se estriba em «conversas informais».
As nulidades da acusação são as referidas no art.º 283º/3 do CPP, cuja previsão não cabe no alegado do recorrente. De resto , se dela [ acusação] discordava deveria ter requerido a fase de instrução, não prescindindo de tal fase como o deixou claro a fls. 671.
O recorrente alega também a violação do art.º 355º do Código de Processo Penal ( cfr. concl. n.º4) mas não concretiza que provas serviram para a convicção do tribunal em violação de tal preceito. Se o recorrente pretendeu referir-se à prova documentada no inquérito invocada na motivação da decisão da matéria de facto, então andou mal já que deveria ter presente que valem em julgamento , independentemente da sua leitura em audiência, as provas contidas em actos processuais cuja leitura é permitida. Os documentos juntos ao processo não têm, em regra, que ser lidos em audiência. A prova documental junta ao processo e do conhecimento do arguido e dos outros sujeitos processuais considera-se produzida em audiência, independentemente de nesta ser feita a respectiva leitura, desde que se trate de caso em que esta leitura não seja proibida.
3.2- Nulidades da busca
3.2.1- O arguido afirma a nulidade da busca efectuada por falta de autorização prévia para a mesma dada pela autoridade judiciária competente, pretendendo a todo o custo descontextualizá-la da previsão da alínea b) do n.º4 do art.º 174º do Código de Processo Penal. Para tanto começa por negar a sua legitimidade de disponibilização do local de que não era o arrendatário. Depois, que a autorização dada não compreendia a garagem do locado.
Aquela primeira linha de argumentação não tem correspondência com os dados fornecidos pelo processo pois que é seguro que foi o arguido quem arrendou o apartamento ao proprietário; foi a ele a quem este entregara as chaves do locado e era ele quem se mantinha na posse das chaves à data da busca.
O art.º 174º/4 alínea b) do Código de Processo Penal permite que buscas sem prévia autorização da autoridade judiciária competente desde que o «visado» nela consinta. E não há dúvida que o arguido era um visado. As vigilâncias policiais denunciaram o seu compromisso com o locado. Foi ele quem o arrendara e quem dele detinha as chaves; um daqueles que na véspera e no dia da sua detenção nele estivera e um dos que nele pernoitara.
É óbvio que a garagem, por onde se iniciou a busca, constituía uma das suas dependências. Aliás, de suma importância para a finalidade pretendida no arrendamento feito pelo arguido, tanto que é o locador a referir que nas conversações entre ambos havidas com vista à locação o arguido fez-lhe ver que era a garagem o que mais lhe interessava.
Ao dar o consentimento à busca, a autoridade policial entendeu que ela incluía a garagem tanto que, no dizer da testemunha Raul Almeida, se dispensou a obtenção duma prévia autorização judicial. De resto é o próprio arguido a referir que sempre colaborou na realização da mesma. [cfr. as suas declarações de fls. 223 ( “assinei e lá fomos para a garagem; primeiro fomos na garagem e depois fomos ao apartamento”)]
A propósito dir-se-á que nos merece reservas tratar-se duma busca domiciliária, tudo levando no sentido de que o apartamento não era residência de ninguém, ou seja, não era centro de qualquer vivência familiar, antes mero interposto duma actividade de tráfico de estupefacientes, sem ligação à vivência pessoal fosse de quem fosse [Note-se que o próprio arguido ao chegar à região de Aveiro se foi hospedar com a sua companheira em hotéis da zona e não no locado, nunca com ela tendo nele permanecido...].
Esta situação coloca-nos fora da previsão do art.º 32º/8 da CRP, i é, fora das proibições de prova ou nulidades insanáveis. Sanada estaria eventual nulidade pois sendo a busca de 2/2/05 só a 30/9/05 foi invocada ( art.º 120º/3, alínea c) do C.P.P.)
Os art.ºs 174º e 177º do CPP ressalvam da exigência de ordem ou autorização da autoridade judiciária a busca consentida pelo «visado», desde que tal consentimento fique, por qualquer forma, documentado.
Tal como a situação se apresenta no processo em que apenas foram arguidos o recorrente e a sua companheira, esta absolvida, é óbvio que com o seu consentimento se enquadra a previsão do art.º 174/4, alínea b) do Código de Processo Penal.
3.2.2- Mesmo que a busca não tivesse sido consentida pelo visado, ainda assim haveria a considerar que tratando-se de investigação no âmbito das medidas cautelares e de polícia ligadas ao tráfico de estupefacientes, ela não carecia de prévia autorização pelas autoridades judiciárias já que dispensável por força do que conjugadamente resulta do art.º 174/4 alínea a) do Código de Processo Penal e art.º 51 do DL. n.º 15/, de 22/1, apenas devendo ser imediatamente comunicada ao JI com vista à sua apreciação.
A busca foi efectuada a 3/2/2005 (cfr. fls. 29) e nesse mesmo dia comunicada ao MP que logo determinou a apresentação do expediente e detidos « nos termos e para os efeitos previstos no art.º 141º/1 do CPP » ( cfr. despacho de fls. 2).
O preceito estatui que o detido é interrogado pelo JI no prazo máximo de 48 horas após a detenção, logo que lhe for presente com a indicação dos motivos e das provas que a fundamentaram.
Esta apresentação foi efectuada no dia seguinte [ 4/2/2005 -, cfr. fls. 121 e ss.] , pelo que pode dizer-se que foi dado cumprimento ao n.º 5 do art.º 174º do Código de Processo Penal .
Deste desiderato se dá conta no despacho lavrado no dito expediente a fls. 115/116, lavrado pelo Ex.mo Coordenador de Inspecção.
3.2.3 - É certo que o JI não procedeu a uma pronúncia expressa sobre a valia da busca, mas de modo implícito teve-a por válida pois que no despacho que proferiu após o interrogatório judicial dos arguidos teve por fortemente indiciada a prática do crime de tráfico fazendo para isso apelo ao resultado da busca ( cfr. fls. 129).
Neste apelo e subsequente decisão de prisão preventiva subjaz um juízo judicial da valia da busca e apreensões efectuadas.
Pode, assim, afirmar-se -, na esteira do Ac de 12/12/98 do STJ citado pelo M P a fls. 1029 -, que uma vez banidas as fórmulas sacramentais, a validação da busca resulta inequivocamente do despacho do M.mo JI proferido no dia imediato ao da realização da busca, despacho onde se validou a detenção e ditou a prisão preventiva com base nos elementos probatórios constantes do expediente que lhe foi presente no qual é relatada a detenção, a busca efectuada, a declaração de consentimento para esta e o auto de apreensão da droga.
3.3- Nulidade das apreensões –
Sendo válida a busca efectuada , válidas são as apreensões já que por força do art.º 178º/4 e 5 do Código de Processo Penal os órgãos de polícia criminal podem efectuar apreensões no decurso de revistas e de buscas, ficando aquelas sujeitas a validação pela autoridade judiciária no prazo de 72 horas.
Esta validação foi efectuada nos termos por nós já referidos anteriormente quanto à validação da busca.
Como se escreveu em Ac do TC [Ac TC n.º 410/01, de 2/9/2001- Pro n.º 522/01-3ª secção.], “garantia para o arguido é a exigência de que a apreensão feita por órgão de polícia criminal seja validada, num curto prazo, por uma autoridade judiciária (...), sendo irrelevante que a mesma tenha tradução numa declaração expressa ou apenas se revele implicitamente (...) por se deduzir de um acto por ela praticado dentro do prazo máximo legal”.
Ao decretar-se a prisão do arguido com base na droga apreendida está o M.mo JI também a validar a mesma apreensão.
3.4- Nulidade decorrente da leitura dos cartões do telemóvel
O recorrente advoga a nulidade da leitura dos cartões de telemóvel quer porque não autorizadas ou validadas quer porque não acatada a estatuição dos art.ºs 187 e 188º para que remete o art.º 190º, todos do Código de Processo Penal .
O que o art.º 190º prevê e regula por remissão para os artigos antecedentes é a intercepção e a gravação da transmissão das conversações ou comunicações efectuadas por qualquer meio diverso do telefone, designadamente pelo correio electrónico.
Como em qualquer outra comunicação, também as comunicações por via electrónica ocorrem durante certo lapso de tempo; começam quando entram na rede e acabam quando saem da rede. É a sus intercepção neste lapso de tempo o assunto do preceito.
Quando o momento do seu recebimento já pertence ao passado, qualquer contacto com a comunicação feita não tem qualquer correspondência com a ideia de intercepção a se reportam os art.ºs 187º a 190º.
As mensagens que depois de recebidas ficam gravadas no receptor deixam de ter a natureza de comunicação em transmissão; são comunicações recebidas pelo que deverão ter o mesmo tratamento da correspondência escrita já recebida e guardada pelo destinatário.
Tal como acontece na correspondência efectuada pelo correio tradicional diferenciar-se-á a mensagem já recebida mas ainda não aberta da mensagem já recebida e aberta. Na apreensão daquela rege o art.º 179º do Código de Processo Penal, mas a apreensão da já recebida e aberta não terá mais protecção do que as cartas recebidas , abertas e guardadas pelo seu destinatário. E a mensagem recebida em telemóvel , atenta a natureza e finalidade do aparelho e o seu porte pelo arguido no momento da revista, é de presumir que uma vez recebida foi lida pelo seu destinatário.
Na sua essência a mensagem mantida em suporte digital depois de recebida e lida terá a mesma protecção da carta em papel que tenha sido recebida pelo correio e que foi aberta e guardada em arquivo pessoal. Sendo meros documentos escritos, estas mensagens não gozam de aplicação de regime de protecção da reserva da correspondência e das comunicações.
E quanto à validação da sua apreensão cabem as considerações anteriores sobre a validação tácita constante do despacho judicial em que se validou a prisão efectuada, no qual o M.mo JI refere ter analisado conjugadamente os elementos dos autos que lhe foram presentes, i é, todos os elementos deles constantes. Conclui-se, pois, pela ausência da invocada nulidade.
3.5- Discordância com a decisão de facto –
3.5.1- No nosso ordenamento jurídico/ processual penal vigora o princípio da livre apreciação da prova, sendo esta valorada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador -, art.º 127ºdo C. P. Penal.
Não se trata de apreciação arbitrária, antes tendo como pressupostos valorativos os critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica [cfr. Maia Gonçalves , C.P.P. Anotado ,10ª ed., pág. 322.].
O princípio da livre apreciação da prova está intimamente ligado à obrigatoriedade de motivação ou fundamentação fáctica das sentenças criminais, com consagração no art.º 374º/2 do Código de Processo Penal .
Cumpre também aqui referir que o juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa como em prova indiciária da qual se infere o facto probando , não estando excluída a possibilidade do julgador valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta só por si conduzir à sua convicção [cfr. Ac. RC. de 6/3/96, CJ XXI, II,44] .
E não dispensa a prova testemunhal um tratamento cognitivo por parte do julgador mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objecto de formulação de deduções ou induções baseadas na correcção de raciocino mediante a utilização das regras de experiência.
A propósito do art.º 127º refere o Ac. de 9.11.95 do TC citado no Ac. n.º 197/97 [de 11.3.97] do mesmo Tribunal, publicado no DR, IIª Série, de 29.12.98, que o juiz aí pressuposto pelo legislador é o juiz responsável e livre, capaz de pôr o melhor da sua cultura, inteligência e conhecimento das realidades da vida na apreciação do material probatório que lhe é fornecido.
Observe-se que a decisão da primeira instância será sempre o resultado duma «convicção pessoal» nela desempenhando papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionais não explicáveis -, v. g. a credibilidade que se concede a determinado meio de prova -, pelo que o tribunal de recurso ao apreciar a prova por declarações deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido.
Paulo Saragoça da Matta [ Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, 2004, pág. 253.] refere que se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração.
Diga-se também que a prova processual, ao invés do que acontece com a demonstração no campo da matemática ou com a experimentação no âmbito das ciências naturais, não visa a certeza lógica ou absoluta mas apenas a convicção essencial às relações práticas da vida social [Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª ed., 407.] .
3.5.2- Lido o apenso de transcrição das declarações e depoimentos e examinadas as restantes provas a que se faz apelo na motivação da decisão de facto, constata-se a correcção do exame crítico delas efectuado, que se desenvolve fiel aos depoimentos e manifestando um raciocínio coerente, lógico e conforme às regras da experiência comum.
O arguido afirma que ignorava a existência da cocaína na garagem até ao momento que diz ter recebido uma mensagem a dar-lhe notícia da mesma, mas o tribunal não credibilizou essa afirmação, coerentemente justificando o contrário.
Veja-se, quanto à prova testemunhal, o depoimento de João Pacheco ( o locador ) onde se afirma que o arguido centrou a sua preocupação na garagem, sendo esta o que mais lhe interessava ( fls. 55); os depoimentos de António Castro, Edgar Ribeiro e Filipe Pereira quanto aos movimentos do arguido e do seu acompanhante em direcção à zona das garagens do prédio ( fls. 78, 86, 95, 137, 206, 209, 210 e 211) e às atentas e vigilantes deambulações que fizeram nas proximidades ( cfr. fls. 82, 83, 140,141) e o que também a testemunha António Gomes refere destas “vigílias” do acompanhante do arguido ( fls. 178/179).
A justificação do arguido não casa com tais depoimentos e restantes provas sendo incoerente com a posse das chaves pelo arguido e o que na busca se encontrou de sacos já vazios denunciadores de anteriores transfegas de droga.
O que parece mover o recorrente é uma aparente debilidade da prova em que assentou a convicção do tribunal, levando-o a que se insurja contra os raciocínios lógico/mentais do tribunal firmados em regras da experiência na descoberta da verdade. Contudo, estes raciocínios constituem muitas das vezes um mecanismo necessário para levar o tribunal a afirmar a verificação de factos controvertidos servindo-se de indícios, ou seja, servindo-se da ocorrência de certos factos indiciários para deles inferir a verificação de outros carecidos de prova directa.
O art.º 127º do Código de Processo Penal não proíbe o uso desses raciocínios lógico/mentais, nem a nossa lei processual penal faz qualquer referência a requisitos especiais no uso da prova indiciária. E no caso dos autos tais raciocínios expressos pelo tribunal recorrido são conformes às regras da lógica e da experiência comum.
Na motivação da decisão da matéria de facto estão cabalmente explicitadas as razões que levaram o tribunal a dar como assente a matéria impugnada, aí se especificando a motivação do tribunal.
Ao que o recorrente refere de contradições nos depoimentos ( cfr. conclusões 9,16,17 e 19) dir-se-á que o tribunal é livre de valorar os depoimentos apenas naquilo em que os mesmos lhe merecerem credibilidade, não tendo de os aceitar como correctos ou incorrectos na sua globalidade. De resto, o juiz é livre de formar a sua convicção na base de um só depoimento ou do referido por um só declarante em desfavor de testemunhos contrários. [Figueiredo Dias, Direito Processo. Penal, 1, 207; Ed. Correia, Processo Criminal, Lições ao 5º Ano Jurídico de 1953/54, pág. 165.]
Tudo se mostrando motivado e perfeitamente aceitável à luz da prova produzida conjugada com as regras da experiência comum, não tem este tribunal razões para alterar o decidido, com o esclarecimento de que à mesma decisão se chega sem necessidade do lançar de mão da prova constante de fls.45/46 que o recorrente tanto contesta.
3.5.3- A decisão não viola o princípio da presunção de inocência do arguido. Do princípio retira-se que é à Acusação que incumbe a prova da mesma, ónus temperado pelo princípio da investigação oficiosa consagrado no art.º 340º/1 do CPP.
Feita a prova da voluntária participação do arguido no tráfico em causa, não pode ele vir invocar a violação de tal princípio ou a destoutro de «nulla poena sune culpa». Como não pode vir invocar a violação do princípio « in dubio pro reo», o qual só é violado quando o tribunal em estado de dúvida insanável quanto aos factos sobre eles decidir contra o arguido . Ora, em lado algum da decisão o tribunal manifestou qualquer dúvida quanto ao que deu por provado e não provado.
3.5.4- Inexiste qualquer contradição interna na decisão da matéria de facto, esclarecendo-se que não é contraditório com o provado o facto não provado acima elencado sob a alínea b) dos factos «não provados», já que desconhecendo-se o número de implicados naquele tráfico desconhecida ficou qual a participação do arguido nos lucros do mesmo. Disso dá conta o tribunal na motivação ao referir que as provas apontam “para uma dinâmica organizacional da qual o arguido faz parte ”.
3.6- Nulidade decorrente de condenação do arguido por crime diverso do constante da acusação
Como já se deixou referido em nota de rodapé ( cfr. nota 1), só por lapso de escrita é que o tribunal recorrido mencionou o art.º 25º, alínea a), do DL. n.º 15/93 na parte decisória do acórdão, lapso que o colectivo se corrigiu conforme despacho a fls. 1271.
Todos os raciocínios expendidos quanto ao «Enquadramento Jurídico-penal» e à « Escolha e medida da pena» denunciavam o lapso, pelo que bem andou o colectivo em corrigi-lo de acordo com o art.º 380º do Código de Processo Penal .
III -
Decisão -
Termos em que se tem o recurso por improcedente.
Custas pelo recorrente , com a taxa de justiça que se fixa em 10 UCs

Coimbra,