Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1180/09.5TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: CONSTRUÇÃO SEM LICENÇA
ILÍCITO INSTANTÂNEO COM EFEITOS DURADOUROS
CONSUMAÇÃO
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 01/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS27°, B), E 32° DO RGCOC , 86°, 1, AL. B) DO DL 46/94 DE 22/2
Sumário: 1. A execução de uma construção sem a necessária licença integra a categoria dos chamados ilícitos instantâneos com efeitos duradouros e não, os ilícitos permanentes.
2. A violação do art. 86°, 1, al. b) do DL 46/94 de 22 de Fevereiro consuma-se no momento em que se executa .
Decisão Texto Integral: Recurso próprio, interposto por quem tem legitimidade para o efeito, não se suscitando qualquer questão que obste ao seu conhecimento ou que implique a sua rejeição.
Verifica-se, no entanto, causa extintiva do procedimento contra-ordenacional pelo que, nos termos do disposto no art. 417º, nº 6, al. c), do CPP, há que proferir

DECISÃO SUMÁRIA


Por decisão da Administração do Ministério do ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional – Administração da Região Hidrográfica do Centro, I.P., foi o arguido Município da Z... condenado na coima de € 3000,00 pela contra-ordenação prevista no art. 86º, nº 1, do DL 46/94, de 22 de Fevereiro.
Inconformado, o arguido interpôs recurso de impugnação judicial para o Tribunal Judicial da Z..., sustentando a prescrição do procedimento contra-ordenacional e, a não se entender assim, a nulidade insanável do procedimento por violação do princípio do contraditório.
O recurso, decidido por despacho, foi julgado improcedente com base na consideração de que a contra-ordenação em causa tem carácter permanente, pelo que o prazo de prescrição nem sequer corre; e que não se verifica a invocada nulidade por violação do princípio do contraditório, por se reportar à junção de documento publicado em Diário da República e que o foi, aliás, a requerimento da Câmara Municipal da Z..., pelo que era do conhecimento do arguido.
Novamente inconformado, o arguido interpôs recurso para esta Relação extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:
I. A execução de uma construção sem a necessária licença integra a categoria dos chamados ilícitos instantâneos com efeitos duradouros e não, como defende a sentença, os ilícitos permanentes. Assim, a violação do art. 86°, 1, al. b) do DL 46/94 de 22 de Fevereiro consumou-se no momento em que o arguido executou o muro, esgotando-se também nesse momento.
II. Perfilhando do entendimento consagrado no Ac. do Trib, da Relação de Coimbra de 04-06-2008, Processo 2631/07.9TBPBL. dir-se-á que o tipo contra-ordenacional imputado ao arguido é consumado e exaurido com a finalização da obra sem a devida licença ou autorização. Diferente seria se a infracção fosse a ocupação de habitação sem a correspondente licença de utilização, essa sim, contra­-ordenação que só fica exaurida quando cessa a ocupação não licenciada.
III. Assim, considerando as regras vertidas nos artigos 86°, 1°, al. b) e nº 2 do DL 46/94 de 22.02 conjugadas com os artigos 27° a 28° e 32º do DL 433/82 de 27.10 e com o artigo 119°/1 do Cód. Penal, é de concluir que o procedimento por contra-ordenação prescreveu e, em consequência, deverá ser considerado extinto, com a consequente absolvição do arguido;
IV. O tribunal recorrido, ao integrar o ilícito por que o arguido vem condenado na categoria dos chamados crimes permanentes e mantendo, desse modo, a decisão da autoridade administrativa, violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto no artigo 86°, 1, b) do DL 46/94 e no art. 119º/2, a) do Cód. Penal, quando os autos reclamavam a aplicação do art. 119º/1 do Cód. Penal, do art. 27°, b), e 32° do RGCOC.
Nestes termos e demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve a sentença recorrida ser revogada e, em consequência, julgar-se extinto o procedimento por prescrição, absolvendo-se o arguido e assim se fazendo JUSTIÇA!

O M.P. junto do tribunal recorrido, em resposta bem fundamentada e tecnicamente precisa, pugnou pela procedência do recurso.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto acompanhou a posição assumida pelo M.P. no tribunal recorrido.

*

A decisão da primeira instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1 – No dia 30.6.2005, na Praia da …, verificou-se que o arguido levava a cabo uma construção em área do Domínio Público Marítimo.
2 – As obras consistiam num muro de betão armado com cerca de 122m, distando 12 m da linha máxima praia-mar de águas vivas equinociais com agitação média das águas do mar.
3 – Foi contactado o director de serviços do Litoral da CCDRC tendo este informado que nenhum licenciamento ou autorização havia sido emitido para aqueles trabalhos.
4 – A obra foi embargada em 7.7.2005.
5 – Foi apresentado o abaixo-assinado de 19.7.2005 contra o embargo das obras.

A contra-ordenação em causa nos autos – a prevista no art. 86º, nº 1, al. b), do DL nº 46/94, de 22 de Fevereiro – está manifestamente prescrita. Com efeito, o auto de notícia com que se iniciou o procedimento contra-ordenacional foi lavrado em 30/06/2005. As obras forma embargadas em 07/07/2005. A decisão do processo de contra-ordenação, datada de 03/03/2009, apenas foi notificada ao arguido em 16/03/2009 (fls. 113). Por seu turno, a decisão do recurso de impugnação judicial pelo tribunal recorrido, datada de 09/10/2009, tem-se por notificada em 16/10/2009 (cfr. fls. 135). Nessa decisão, o tribunal recorrido conheceu da prescrição invocada pelo recorrente, considerando que a contra-ordenação em que o arguido incorreu tem carácter permanente. Pode ler-se, a dado passo daquela decisão que “no caso a violação da lei iniciou-se com a construção sem licença e vem-se prolongando continuamente e sem interrupção, desde aquela data até quando cessar a acção/omissão ilícita, o que ainda não ocorreu, pois ainda subsiste o ininterrupto estado anti-jurídico (Simas Santos e Lopes de Sousa, Contra-Ordenações, anotações ao regime geral, pág. 221). Daí que, enquanto não cessar a utilização sem licença, o prazo de prescrição nem sequer corra; por isso não faz qualquer sentido falar em prescrição, o que no caso dos autos acontece pois não só não foi obtida licença, como estando a obra embargada e tendo havido oposição a mesma não foi destruída, estando no estado em que se encontrava, …”. Mais adiante, conclui a decisão recorrida pela improcedência da prescrição por perdurar a situação de ilicitude dado não haver ainda licença.
Esta decisão incorre em erro considerável quer no que tange à determinação do ilícito em causa e dos respectivos requisitos, quer no que concerne à classificação conceptual da infracção verificada, confundindo infracções de natureza duradoura ou permanente com infracções de efeito duradouro.
Luís Osório, duma forma simples mas elucidativa (ainda que não muito precisa), distingue assim entre crimes instantâneos e crimes permanentes: Os crimes serão instantâneos ou permanentes “conforme se prolonga ou não, depois de produzidos, a mesma actividade que os produziu” - Cfr. “Notas ao Código Penal Português”, vol. I..
Tipos de crimes permanentes - A distinção foi originariamente gizada para os crimes, mas aplica-se nos mesmos termos às infracções de natureza contra-ordenacional., no dizer de Eduardo Correia - Cfr. “Direito Criminal”, Vol. I, pag. 309, Ed. de 1971, cuja exposição acompanhámos de perto na redacção deste parágrafo., que cita como exemplo o crime de cárcere privado (actualmente, crime de sequestro), “são aqueles em que o evento se prolonga por mais ou menos tempo” e em que é possível distinguir duas fases: uma primeira fase correspondente à produção de um estado antijurídico, sem nada de característico em relação a qualquer outro crime; e uma outra, típica, correspondente à permanência ou à manutenção do evento, “… que consiste no não cumprimento do comando que impõe a remoção, pelo agente, dessa compressão de bens ou interesses jurídicos em que a lesão produzida pela primeira conduta se traduz”. Figueiredo Dias, numa visão mais actual, clarifica os conceitos nestes termos: “O crime não será instantâneo, mas antes duradouro (também chamado, embora com menor correcção, permanente) quando a consumação se prolongue no tempo, por vontade do autor. Assim, se um estado antijurídico típico tiver uma certa duração e se protrair no tempo enquanto tal for vontade do agente, que tem a faculdade de por termo a esse estado de coisas, o crime será duradouro. Nestes crimes, a consumação, anote-se, ocorre logo que se cria o estado anti-jurídico; só que ela persiste (ou dura) até que um tal estado tenha cessado. O sequestro (art. 158º) e a violação de domicílio (art. 190º-1) são exemplos desta espécie de crimes” - Cfr. “Direito Penal”, Parte Geral, tomo 1, pag. 314..
Os crimes permanentes são assim designados por contraposição aos crimes instantâneos, ainda que estes possam ter efeitos permanentes. A diferença entre os dois tipos de ilícito reside na consumação (ou, com maior propriedade, na relação entre os efeitos do crime e a sua consumação). Assim, por exemplo, no crime de sequestro, “a pluralidade de actos necessários à detenção e encerramento da vítima, à manutenção da privação da sua liberdade e ao impedimento da fuga constitui uma única acção (típica) de sequestro” - Idem, a fls. 984, a propósito da unidade típica de acção.. Enquanto se mantiver a privação da liberdade da vítima subsiste a consumação do crime (a sua consumação material inicia-se com a efectiva privação da liberdade e só termina com a libertação da vítima) - Cfr. Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, anot. ao art. 158º, pag. 409.. Daí que relativamente aos crimes permanentes, o prazo de prescrição só corra desde o dia em que cessar a consumação [art. 119º, nº 2, al. a), do Código Penal]. Já no crime de furto, que é um crime instantâneo, a consumação ocorre com a pacífica apropriação do bem pelo agente, ainda que subsistam os efeitos do crime (subsiste o desapossamento do proprietário relativamente ao bem furtado). Trata-se, como refere Maia Gonçalves, de “… infracções em que a reunião dos seus elementos constitutivos (…) se adquire num determinado momento e só as suas consequências se prolongam no tempo, tratando-se, apesar das aparências, de uma verdadeira infracção instantânea que deve reputar-se definitivamente cometida na data da sua realização”. - Cfr. “Código Penal Português”, anot. ao art. 13º, Ed., pag. 63.
Aplicando os mesmos princípios às contra-ordenações, resulta com linear clareza que a infracção imputada ao arguido se insere nesta última categoria – infracção instantânea com efeitos duradouros – tanto quanto é certo que a manutenção da obra ilícita não constitui elemento do tipo. Com efeito, dispõe assim, a norma violada [art. 86º, nº 1, al. b), do DL nº 46/94, de 22 de Fevereiro]:
“Constitui contra-ordenação a prática dos actos seguintes:
(…)
b) Execução de obras, infra-estruturas, plantações ou trabalhos de natureza diversa, sem a respectiva licença ou de forma diferente das condições previstas no respectivo título de utilização”.
Nesta medida, a contra-ordenação consumou-se com a verificação do facto contra-ordenacional e levantamento do respectivo auto de notícia pela autoridade policial (Polícia Marítima), em 30/06/2005.
A contra-ordenação ao disposto no art. 86º, nº 1, al. b), do DL nº 46/94, de 22 de Fevereiro, era, à data da prática dos factos, punível com a coima de € 249,40 a € 4987,98, por força do disposto no nº 2, al. a), do mesmo artigo.
Visto o disposto no art. 27º, al. b), do DL nº 433/82, de 27 de Outubro (diploma a que se reportam as demais disposições legais seguidamente citadas sem menção de origem), o procedimento extingue-se por efeito da prescrição logo que sobre a prática da contra-ordenação haja decorrido o prazo de três anos, correndo este prazo desde a data em que o facto se consumou.
Por força do disposto no art. 28º, nº 1, a), no caso vertente, a prescrição interrompeu-se com a notificação do embargo da obra, ocorrida em 13/07/05.
Interrompeu-se, novamente, com a apresentação da defesa pelo arguido, em 31/01/05 – art. 28º, nº 1, al. c);
E apenas se voltou a interromper com o ofício da autoridade administrativa ao Comando Local da PSP da Z..., solicitando a inquirição das testemunhas arroladas pelo arguido, em 19/01/09 – art. 28º, nº 1, al. b) – ou seja, depois de volvidos mais de três anos desde a última interrupção.
Não ocorreu, nesse ínterim, qualquer causa de suspensão.
Nesta medida, apresenta-se como indesmentível a verificação da prescrição pelo integral decurso do respectivo prazo.

*
*

Pelo exposto, declara-se extinto, por prescrição, o procedimento pela contra-ordenação imputada ao arguido nos presentes autos.
Sem tributação.
Notifique