Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
222/03.2TBALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: GRAVAÇÃO DA PROVA
DEFICIÊNCIA DESSE REGISTO
NULIDADE
PRAZO DE ARGUIÇÃO
Data do Acordão: 10/31/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALBERGARIA-A-VELHA - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTº 655º, Nº 1, E 690º-A, Nº 5, DO CPC
Sumário: I – O facto de na acta de julgamento não constar que uma determinada testemunha tenha sido indicada a depor sobre um determinado quesito da base instrutória não constitui obstáculo a que o seu depoimento seja relevado para o efeito da resposta dada a esse dito quesito, dado o princípio geral da aquisição processual de todas as provas produzidas em audiência e verificando-se que esse quesito se encontra relacionado ou em conexão com outro ou outros quesitos a que a testemunha tenha sido indicada a depor.

II – Verificando-se, em recurso interposto com impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, que a gravação da prova produzida em audiência de julgamento, ou parte dela, não está audível, é doutrina prevalecente que tal situação configura uma nulidade (secundária) processual – artº 201º, nºs 1 e 2, do CPC -, já que é manifesto que tal vício é susceptível de influir no exame e decisão da causa, pois ao impedir que o Tribunal superior reaprecie essa prova impede também que a matéria de facto fixada pela 1ª instância possa ser alterada, o que pode reflectir-se na decisão de mérito.

III – Essa nulidade deve ter-se como arguida pelos recorrentes quando nas suas alegações de recurso levantam a questão, insurgindo-se contra a aludida situação de deficiência e, em consequência, se pede a repetição do julgamento.

IV – Nestes casos, embora o recorrente tenha estado presente em audiência de julgamento, através do seu mandatário, não lhe pode ser exigido que, substituindo-se ao tribunal, controlasse ali a qualidade da gravação, com vista a detectar qualquer deficiência da mesma.

V – Deve considerar-se como arguida em tempo a nulidade decorrente de deficiências no registo da gravação que impeçam a reapreciação da prova, quando tal arguição tem lugar com a apresentação das alegações de recurso onde, para além do mais, se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1 Os autores, A... e sua mulher B..., instauraram a presente acção declarativa condenatória, sob a forma ordinária, contra C..., (actualmente, em virtude de uma operação de fusão, denominada D...), alegando para o efeito, e em síntese, o seguinte:
Em 5/2/99, na sequência de um contrato celebrado para o efeito, obtiveram junto da E... um empréstimo, no montante de esc. 8.500.000$00, para garantia do qual constituíram uma hipoteca sobre a sua casa de habitação.
Paralelamente, celebraram com a ré um contrato de seguro vida grupo, através do qual a última, mediante o pagamento de determinado prémio, se comprometeu a assegurar o pagamento das prestações que os autores se obrigaram a pagar ao Banco mutuante no caso de qualquer um deles vir a ser afectado de morte ou incapacidade física permanente.
Porém, como os autores deixaram, mais tarde, de pagar ao banco mutuante as prestações mensais a que se vincularam pela respectivo contrato, este último instaurou contra os autores uma execução ordinária com vista a obter o pagamento do montante em dívida, no decurso da qual foi posta à venda a sobredita casa que se encontrava hipotecada.
Porém, tal falta de pagamento ficou a dever-se ao facto de o autor ter sido entretanto acometido de doença grave que o incapacita para o trabalho.
Porém, a ré não obstante a tal estar obrigada por virtude daquele contrato de seguro vida, vem-se recusando a assumir ou a garantir o pagamento daquelas prestações bancárias da responsabilidade dos autores.
Pelo que terminaram pedindo que a ré seja condenada a pagar ao tomador daquele seguro, a E..., a quantia exequenda de € 47.273,86, reclamada naquela Execução Ordinária nº 348/2000, e bem assim os juros já vencidos, no montante de € 9.003,07, e vincendos, até integral pagamento.

2. Na sua contestação, a ré defendeu-se, alegando, em síntese, que ela própria outorgou com o E... um contrato de seguro de vida grupo, ao qual os autores aderiram, como clientes daquela instituição, mas a situação de doença e incapacidade que o autor invoca não faz funcionar as garantias daquele contrato, já que aqueles subscreveram na altura um termo de responsabilidade, que consta da proposta, onde cada um deles declarou, além do mais, não ser portador de qualquer doença, nem ter sofrido, nos últimos três anos, qualquer incapacidade laboral ou internamento, o que, todavia, não correspondia à verdade, já que, posteriormente, veio a verificar-se que o autor já então sofria de patologia do foro renal, como bem sabia, que escondeu para poder beneficiar das coberturas daquele seguro, cuja adesão ela não aceitaria se conhecesse tal doença.
A omissão tais informações, e face ao disposto no artº 6, nº 2, das condições gerais da apólice e do artº 429 do CCom, torna nula a adesão dos autores ao referido seguro de vida.

3. Replicaram os autores para contradizer a essencialidade dos factos aduzidos pela ré, tendo ainda, em articulado autónomo, deduzindo incidente de intervenção principal da sobredita mutuante, E..., para intervir nos autos como sua associada.

4. Admitido que foi o seu chamamento, a referida E..., limitou-se, no essencial, a dizer não serem verdadeiros alguns dos factos articulados na petição inicial e desconhecer, por não serem pessoais, se outros alegados na pi e na contestação da ré o seriam, concluindo que, a proceder a acção, deverá a ré ser condenada a pagar-lhe o montante peticionado naquela acção executiva

5. No despacho saneador afirmou-se a validade e a regularidade da instância, tendo-se depois passado à elaboração da selecção da matéria de facto, que não foi objecto de censura por qualquer das partes.

6. Realizou-se o julgamento – com a gravação da audiência.

7. Seguiu-se a prolação da sentença, que – aderindo, no essencial, aos fundamentos aduzidos pela ré -, a final, julgou a acção improcedente, absolvendo a ré do pedido.

8. Não se tendo conformado com tal sentença, os autores dela interpuseram recurso, o qual foi admitido como apelação.

9. Nas respectivas das alegações desse recurso, os autores concluíram as mesmas nos seguintes termos:
1- Vem o presente recurso da douta decisão do Tribunal “a quo” proferida sobre a matéria de facto e que, consequentemente, julgou a acção improcedente e absolveu a Ré do pedido.
2- Os recorrentes não concordam com a resposta dada ao quesito 21) da Base Instrutória e que consta de bb) dos factos dados como provados.
3- Na nossa modesta opinião, interessava apurar quais os factos ocultados pelo Autor referentes ao período entre 28 de Agosto de 1996 e 13 de Outubro de 1998, data em que assinou a proposta de seguro, e se o Autor tinha perfeito conhecimento desses factos.
4- Dos autos não consta que o Autor em 13 de Outubro de 1998, data em que assinou a proposta de seguro, tivesse conhecimento que padecia de doença grave do foro renal, tivesse conhecimento que já tinha feito uma biopsia e qual o diagnóstico definitivo.
5- A Ré devia ter alegado e não alegou que o Autor sabia que padecia de doença grave do foro renal, que sabia que tinha feito uma biópsia em Abril de 1998 e que sabia que o seu estado de saúde se tinha agravado desde a biópsia até à assinatura do termo de responsabilidade, quando assinou a proposta de seguro em 13 de Outubro de 1998.
6- Era necessário apurar se o Autor tinha ou não conhecimento da sua doença e enfermidade quando assinou a proposta de seguro.
7- E quando é que se agravou o seu estado de saúde, se antes ou depois de ter assinado a proposta de seguro.
8- Só se pode considerar que o Autor ocultou estes factos se dos mesmos tivesse perfeito conhecimento.
9- Impunha uma decisão sobre o ponto da matéria de facto impugnada diversa da aqui recorrida, os concretos meios probatórios produzidos pelas testemunhas da Ré, Dr. F... e Dra. G....
10- Acontece que os depoimentos efectuados por estas testemunhas são completamente imperceptíveis, pelo que se encontra cerceado o direito de os ora recorrentes especificarem os concretos depoimentos em que se fundam e que impunham decisão diversa sobre o ponto da matéria de facto impugnada, conforme estabelece o artigo 690º, nº 1 e 2 do CPCivil.
11- Encontrando-se cerceado o direito de os recorrentes fundamentarem erro na apreciação da prova que impunha decisão diversa sobre o ponto da matéria de facto impugnada.
12- Deve, assim, ser ordenada a repetição do julgamento para inquirição das testemunhas Dr. F... e Dra. G..., por forma a que possa ser efectuada uma adequada gravação da prova
13- Sem prescindir, o Meritíssimo Juiz fundamenta a sua decisão no pressuposto de o Autor ter perfeito conhecimento dos factos dados como provados em u) e x) e ainda do termo de responsabilidade dado como provado em s).
14- Com o devido respeito, de modo nenhum concordamos com a fundamentação do Meritíssimo Juiz e que o Autor tenha ocultado factos que tornem o contrato de seguro nulo.
15- São dois os factos relevantes até a assinatura da proposta de seguro assinada pelo Autor em 13 de Outubro de 1998: ter estado internado no serviço de Medicina III dos HUC de 28.08.96 a 30.08.96 e ter sido submetido a uma biópsia renal em Abril de 1998 nos HUC
16- E a experiência e o senso comum diz-nos que o Autor não tomou qualquer conhecimento dos resultados ali previstos.
17- Quanto à primeira situação, por o resultado dos exames não ser apresentado de imediato, o diagnóstico ser provisório e o método usado pelos Senhores Médicos ser o de não transmitir para não alarmar os doentes.
18- Quanto à situação da biópsia, todos sabemos que o resultado do diagnóstico só aparece muitos dias depois e não resultou provado que o mesmo tivesse sido informado ao Autor.
19- Foram violados os artigos 522º-C, 661º e 690º-A do Código de Processo Civil
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, devendo ser revogada a douta sentença recorrida e ser ordenada a repetição do julgamento para inquirição das testemunhas Dr. F... e Dra.G..., por forma a que possa ser efectuada uma adequada gravação da prova, para eventual exercício do direito de recurso (...)”.

10. Não foram apresentadas contra-alegações.

11. Colhidos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
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II- Fundamentação
1. Delimitação do objecto de recurso
É sabido que é pelas conclusões do recurso que se fixa e delimita o objecto dos mesmos (artºs 684, nº 3, 690, nº 1, do CPC).
Ora, compulsando as conclusões de recurso as questões que nele importa aqui apreciar são as seguintes:
a) Da impugnação da decisão da matéria de facto.
b) Da bondade da solução jurídica final encontrada, quanto ao mérito da causa.
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2. Questão prévia.
Como resulta do supra exposto, os autores-apelantes impugnam a decisão proferida sobre a matéria de facto no que concerne à resposta que foi dada ao ponto ou quesito 21º da base instrutória, o qual tem a seguinte redacção: “ao subscrever a proposta de adesão ao contrato de seguro, o Autor ocultou estes factos?” (factos esses, esclarecemos nós aqui, que se referem àqueles descritos nos quesitos anteriores e que, no essencial, estão relacionados com estado de saúde do autor aquando da subscrição da proposta da adesão ao dito contrato).
Resposta essa que foi (totalmente) positiva, mas defendem os apelantes que houve erro ou incorrecção da valoração da prova por parte do tribunal a quo. Na verdade, entendem os mesmos que o depoimento prestado pelas testemunhas, drº F... e drª G..., impunha precisamente que se désse uma resposta em sentido contrário àquela que se deu, ou seja, de não provado.
Dado o facto inserto em tal quesito, facilmente se verifica estarmos no domínio de prova não vinculada (cfr. artº 655, nº 2, do CPC), e daí que o srº juiz a quo tenha, à luz do disposto no nº 1 daquele normativo (onde se consagra o princípio da liberdade do julgador na apreciação das provas e na formação da sua convicção quanto aos factos controvertidos), fundamentado especificamente aquela sua resposta ao dito quesito no depoimento da testemunha Fernanda Maria Monteiro Ferreira do Passo e com base ainda numa presunção judicial retirada das regras da experiência da vida (cfr. decisão de fls. 265-verso).
Sendo assim, e dado que houve gravação da audiência de julgamento, com o registo dos depoimentos nela prestados, nada impediria, em principio, que se reapreciasse, neste tribunal superior, a prova produzida e se alterasse eventualmente a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo, e particularmente no que concerne ao facto inserto no aludido quesito cuja resposta foi objecto de impugnação (cfr. artºs 712, nºs 1 al. a) e 2, e 690-A, do CPC).
O facto de na acta de julgamento (cfr. fls. 261) não constar que aquelas duas testemunhas referidas pelos apelantes para contraditar a resposta dada ao dito quesito tenham sido especificamente indicadas a depor sobre o mesmo (mas tão só aos quesitos imediatamente anteriores, sob os nºs 14 a 20), não constitui obstáculo a tal reapreciação da prova, dado, por um lado, o princípio geral da aquisição processual de todas as provas produzidas em julgamento (e que resulta, desde logo, daquele penúltimo normativo) e, por outro, dado que, como se extrai daquilo que acima se deixou exarado, o quesito objecto de impugnação encontra-se correlacionado ou em conexão com aqueles outros imediatamente anteriores.
Porém, um obstáculo surge que nos impede de proceder à aludida reapreciação da prova, e que já foi suscitado expressamente pelos apelantes nas suas alegações de recurso, e daí que atrás tenhamos utilizado a expressão “em princípio”.
Obstáculo que tem a ver com o facto de quando decidimos proceder à audição da gravação dos depoimentos daquelas duas testemunhas (tal como impõe o nº 5 do artº 690-A do CPC, já que não houve transcrição dos mesmos e nem a poderia haver pelos motivos que vão ser adiantados) indicadas pelos apelantes, na cassete nº 2 que nos foi remetida, termos sido confrontados com a situação (desconfortante) de os seus depoimentos se mostrarem na sua quasi totalidade imperceptíveis. Na verdade, calcorreando a audição da dita cassete, podemos constatar que a voz, quer do srº juiz a quo, quer dos ilustres mandatários das partes, se mostra sempre audível ao longo de toda a gravação, com uma percepção clara, nomeadamente, das suas perguntas formuladas às referidas testemunhas, mas o mesmo já não sucedendo com a voz destas, a qual, muito embora se consiga ouvir, aparece, todavia, sempre com registo de som muito baixo, que torna imperceptível ou ininteligível praticamente todo o teor dos seus depoimentos, em resposta às diversas perguntas que por aqueles lhes vão sendo feitas, com uma pequena excepção e que ocorre com a testemunha dr José Crespo e no momento em que é convidada, pelo srº juiz a quo, a levantar-se da cadeira, em que se encontra sentada a depor, para ir, junto dele, consultar uns documentos juntos aos autos e que ali lhe são exibidos (vg. fls. 153/154 e 155). Breve momento esse em que o seu depoimento se mostra perfeitamente perceptível (tudo apontando que então é utilizado o microfone do srº juiz a quo), deixando tal de suceder logo que é mandada retomar o seu anterior lugar. Problema esse de imperceptibilidade cuja raíz do problema tudo aponta ter a ver com os microfones utilizados pelas referidas duas testemunhas ou, provavelmente, com a forma (certamente distante) como falavam para eles. Infelizmente é um problema que ocorre com alguma frequência nos nossos tribunais e que quasi sempre está ligado à tecnologia obsoleta e à metodologia artesenal utilizadas para o efeito, e para o qual desde há muito as entidades responsáveis vêm sendo alertadas....
Porém, numa derradeira tentativa de ultrapassar tal dificuldade, e com a leve esperança de que as condições de audição das aludidas testemunhas melhorasse, ainda solicitamos ao tribunal a quo, que nos remetesse o duplicado do original da dita cassete (cfr. fls. 320 e verso). Porém, após tal remessa e ao procedermos à sua audição (muito embora tivéssemos ficado com a sensação de que as condições de audição melhoraram ligeiramente) continuamos a sentir as mesmas deficiências daquela 1ª cassete ouvida e que acima já assinalámos (imperceptibilidade do depoimento das aludidas testemunhas).
Desse modo, perante tal deficiência de gravação fica este tribunal ad quem impedido de proceder à reapreciação da prova que lhe foi pedida.
Que fazer então?
É doutrina prevalecente que tal situação configura uma nulidade (secundária) processual (cfr. artº 201, nºs 1 e 2, do CPC), já que é manifesto, por aquilo que supra deixámos exposto, que é susceptível de influir no exame e decisão da causa, pois ao impedir que o tribunal superior reaprecie a prova, impede concomitantemente que a matéria de facto fixada pela 1ª instância possa eventualmente ser alterada, podendo, consequentemente, assim vir a reflectir-se na decisão de mérito, levando-a, porventura, a alterá-la, e tanto mais ainda que o facto concreto objecto de impugnação se mostra deveras relevante para a solução plausível da questão de direito no caso em apreço (cfr. ainda a propósito, e por todos, Ac. RC de 8/10/2002, in “CJ, Ano XXVIII, T4 – 19”; Ac. RLx de 3/5/2001, in “CJ, Ano XXVI, T3 – 77” e Ac. RLx de 3/5/2001, in “CJ, Ano XXVI, T3 – 80”).
Nulidade essa que deve ter-se (pelo menos tácita ou implicitamente) arguida pelos autores quando nas suas alegações de recurso levantam a questão, insurgindo-se contra a aludida situação de deficiência (alegadamente cerceadora dos seus direitos), acabando, em consequência dela, por pedir a repetição do julgamento, e a revogação da sentença recorrida, sendo certo que a ré, não obstante não ter contra-alegado, teve conhecimento de tal arguição ao ser notificada das alegações apresentadas pelos apelantes (cfr. fls. 304).
A aqui chegados, a questão que se põe traduz-se em saber se os apelantes ainda estavam em tempo para arguir tal nulidade?
Dando “de barato” que tal nulidade não é de conhecimento oficioso (artº 202 do CPC), deve ser invocada pelo interessado prejudicado dentro do prazo previsto no artº 205º, nº 1, do CPC.
Dispõe esse preceito legal que se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que a nulidade foi cometida, pode a mesma ser arguida enquanto o acto não terminar; e que, se não estiver, o prazo (que é então de 10 dias – cfr. artº 153 do CPC) para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.
No caso em análise, embora o autor tenha estado presente na audiência, por si e representado pelo seu mandatário e da sua mulher, não se lhe podia exigir que, substituindo-se ao tribunal, controlasse ali a qualidade da gravação com vista a detectar qualquer deficiência e logo arguir a pertinente nulidade.
Por outro lado, muito embora os apelantes, tal como qualquer outra parte, pudessem, ao abrigo do artº 7, nº 2, do DL nº 39/95 de 15/2, ter requerido a entrega das cassetes no prazo de oito dias após a realização da respectiva audiência de julgamento e poder então verificar se as mesmas sofriam ou não de alguma anomalia ou deficiência no que toca ao registo dos depoimentos, não se pode sequer dizer que tal seria um acto diligente da sua parte, já que para além de não haver indícios de que tais deficiências pudessem ocorrer, não faria sequer sentido que o fizesse antes de ser notificado do teor da sentença (pois só com o conhecimento do teor da sentença e da sua fundamentação ficam em condições de saber se a sua pretensão foi ou não atendida, e neste caso a razão que esteve na base de tal).
É certo que após a notificação de tal peça, e depois de dela ter interposto recurso e o mesmo ter sido admitido, a seu pedido, com vista à impugnação da decisão da matéria de facto, foram entregues, por termo lavrado em 10/3/2006 (cfr. fls. 289), ao ilustre mandatário dos apelantes as cassetes da gravação da prova em audiência de julgamento.
Porém, e ao contrário do que defende alguma jurisprudência (vidé, por ex., aqueles dois últimos acordãos da RLx), não vemos por que é que tal prazo se deve contar após a entrega das referidas cassetes.
Na verdade, para além de não existir qualquer disposição legal que imponha aos recorrentes qualquer altura ou prazo específicos para pedirem as cópias da gravação das provas e consequentemente a obrigação de procederem à audição das cassetes naquele prazo de 10 dias, nada também permite presumir que a partir do momento dessa entrega das cassetes a parte logo as ouviu ou que logo ali tomou conhecimento das suas deficiências quanto ao registo de gravação (cfr., a propósito, Ac. RLx de 29/6/2004, in “CJ, Ano XXIX, T3 - 127”).
Por outro lado, dispondo a parte recorrente de um prazo de 40 dias (no caso de reapreciação de prova gravada) – contados da data da notificação do despacho que recebeu o recurso - para apresentar as suas alegações de recurso (cfr. artº 698, nºs 2 e 6, do CPC), não seria, a nosso ver, razoável que se obrigasse a mesma ter que ouvir as referidas cassetes logo nos primeiros 10 dias (sendo este o limite máximo para também arguir a nulidade em causa), quando é certo que a lei lhe confere ainda mais 30 dias para o efeito, prazo esse que a parte deve gerir de acordo com os seus interesses e disponibilidades. Aliás, pense-se ainda na hipótese de serem várias dezenas de cassetes gravadas. Será que nesse caso se deveria presumir que teve conhecimento das deficiências, que todas ou alguma delas (que até podia ser a última) porventura padecesse, logo após a sua entrega, começando, desde então, logo a correr o prazo de 10 dias para arguição da respectiva nulidade? Será que a parte conseguiria, em termos razoabilidade, naquele prazo proceder à audição de todas aquelas cassetes, sabendo-se ainda que é necessário tomar diversas notas relacionadas com a impugnação da matéria de facto, quer para efeitos de minuta das motivações do recurso, quer para cumprimento das imposições legais fixadas a esse propósito (cfr. artºs 690, nºs 2 e 3, e 522-C, nº 2, do CPC)?. E tudo isso quando a lei lhe confere um prazo de 40 dias para alegar. E daí que, numa gestão do seu tempo e dentro daquele prazo legal, o recorrente tanto possa, legalmente, apresentar as suas alegações (que podem incluir a impugnação da matéria de facto gravada, o que, em princípio, pressuporá a audição da respectiva prova) no primeiro como no último dia daquele prazo legal.
E daí a conclusão de que tendo aos apelantes sido entregues as cassetes da gravação da prova na fase do decurso do prazo legal para as alegações do recurso por si interposto, se deve considerar arguida em tempo a nulidade decorrente de deficiências do registo da gravação que impedem a reapreciação da prova por si solicitada, quando tal é feito com a apresentação das respectivas alegações de recurso (onde, para além do mais, se impugna a decisão da matéria de facto).
Assim, por tudo o supra exposto, deferindo-se a sobredita arguição de nulidade, a mesma importa a anulação do julgamento e dos actos processuais posteriores (onde se inclui a douta sentença proferida), devendo aquele ser repetido na parte tão somente relativa aos depoimentos – cuja gravação sem deficiências deve ser assegurada – das testemunhas drº F... e drª G....
Pelo que procedendo a sobredita questão prévia, tal prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas pelos recorrentes.
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III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em anular o julgamento e bem assim os actos processuais a ele posteriores (onde se inclui a douta sentença proferida), devendo aquele ser repetido na parte tão somente relativa aos depoimentos – cuja gravação sem deficiências, nomeadamente a nível da audição, deve agora ser assegurada – das testemunhas drº F... e drª G....

Custas a cargo da parte que, a final, venha a decair.