Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
823/12.8JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: DESCONTO NA PENA DE PRISÃO ANTERIOR
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ACTO SEXUAL DE RELEVO
TENTATIVA
Data do Acordão: 03/18/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 80.º, 171.º, N.º 1 E 22.º, DO CP
Sumário: I - Se o «desconto» previsto no n.º 1 do artigo 80.º do CP não assume relevância no momento da decisão condenatória - evidencia-a, nessa fase, quando a privação da liberdade já sofrida pelo condenado iguala ou ultrapassa a pena aplicada -, pode ser considerado em decisão posterior.

II - A acção traduzida em «puxar o “top”, com o propósito de beijar o peito da menor» encerra um acto com manifesta conotação sexual dotado de gravidade objectiva que, conjugado com a intenção de o agente, dessa forma, satisfazer os seus instintos libidinosos, integra o conceito de «acto sexual de relevo», nos termos e para os efeitos previstos no artigo 171.º, n.º 1, do CP.

III - Não resultando do acervo factual que, com o puxão do “top”, a vítima tenha, desde logo, ficado desnudada – circunstância que determinaria a consumação do referido ilícito penal – o acto sexual de relevo visado, qual seja o beijo no peito da menor, não logrou concretizar-se, quedando-se o crime pelo estádio da tentativa – [cf. artigo 22.º do C. Penal].

Decisão Texto Integral:

Acordam em audiência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do Proc. Comum Colectivo n.º 823/12.8JACBR da Vara de Competência Mista de Coimbra – 2.ª Secção, mediante acusação pública, foi submetido a julgamento o arguido A..., melhor identificado nos autos, sendo-lhe, então, imputada a prática, como autor material e em concurso real, de:

- Dois crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art.º 171º nº 2 do C.P. (práticas de sexo oral e introdução parcial dos dedos do arguido na vagina da menor);

- Um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art.º 171º nº 1 do C.P. (práticas sexuais que incluíam beijos na boca e carícias nas zonas genitais e seios da menor);

- Um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artº 171º nº 3 do C.P. (visionamento de filmes de cariz pornográfico) e

- Um crime de recurso a prostituição de menores, p. e p. pelo artº 174 nº 2 do C.P. [cf. fls. 378 a 387].

2. Finda a fase de Instrução – requerida pelo arguido, ora recorrente – foi proferida decisão instrutória, culminando na pronúncia do arguido no seguintes termos:

«(…), pronuncio:

- A... (…)

Pelos factos, pelos crimes e normas legais constantes da acusação de fls. 378 a 387) (à excepção do crime de recurso a prostituição de menores, previsto e punido pelo artigo 174º, n.º 2 do Código Penal, objecto de despacho de não pronúncia), que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, nos termos do artigo 307º, nº 1 do Código de Processo Penal.

(…)» [cf. fls. 464 a 468].

3. Realizada a audiência de discussão e julgamento – no decurso da qual foi comunicada uma alteração não substancial dos factos, nos termos e para o efeito do artigo 358.º do CPP (cf. acta de fls. 779 a 781) – por acórdão de 23.04.2014 [depositado na mesma data], decidiu o Colectivo [transcrição parcial]:

«Por todo o exposto e nos termos das disposições legais supra citadas, os juízes que compõem o Tribunal Colectivo da Vara Mista de Coimbra decidem:

I. Condenar o arguido pela prática de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art.º 171º, nº 1 do Código Penal, na pena de 15 (quinze) meses de prisão [factos praticados no Algarve em junho de 2012];

II. Condenar o arguido pela prática de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art.º 171º, nº 2 do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão [factos reiterados praticados entre inícios de setembro de 2011 até ao verão de 2012];

III. Condenar o arguido pela prática de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art.º 171º, nº 2 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão [factos praticados em 14/9/2012];

IV. Absolver o arguido da prática de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art.º 171º, nº 3, al b) do Código Penal;

V. Condenar o arguido na pena única de seis anos e seis meses de prisão para efetivo cumprimento.

(…)».

4. Ainda no decurso da fase de Inquérito, por despacho judicial de 21.12.2012, decidiu a Exma. JIC [transcrição parcial]:

«Entende-se que são desnecessárias mais considerações, dando-se aqui por reproduzido o teor das fls. supra mencionadas, reafirmando-se que nenhuma nulidade foi cometida, pelo que vai indeferido o requerido a fls. 133 e seguintes e 167 e seguintes.

Notifique, com o envio de cópias das fls. que se deram por reproduzidas (120 144, 145, 147 a 149 e 152 a 156)» - [cf. fls. 173/174].

5. Inconformado quer com o despacho judicial de 21.12.2012, quer com o decidido no acórdão de 23.04.2014, recorreu o arguido – manifestando no recurso interposto do acórdão que pôs termo à causa o seu interesse na apreciação do recurso interlocutório -, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

a. Quanto ao despacho judicial de 21.12.2012 [cf. fls. 209 a 223]:

1. A douta decisão que indefere a arguição de nulidade da procedimentalidade atinente à convocação/realização da diligência de declarações para memória futura viola, desde logo, o disposto no artigo 97º, n.º 5 do CP Penal.

2. Na verdade, a decisão em causa peca no segmento da fundamentação, dado que não enuncia os fundamentos de direito e de facto em que se baseia para atingir a solução que preconiza.

3. Ora, o mencionado preceito normativo estatui o referenciado dever de fundamentação,

4. Visando, efectivamente, que as decisões se imponham pela sua validade intrínseca e já não pela circunstancial qualidade de Magistrado Judicial de quem as profere.

5. Por outra banda, a douta decisão esquece a peculiaridade e especificidade de tal tipologia de meio de aquisição da prova.

6. Na verdade, apesar de se tratar de acto de inquérito, a mesma adquire uma inusitada importância e relevância, uma vez que a Lei processual penal vigente lhe confere inequivocamente a potencialidade de relevar em sede de audiência de discussão e julgamento – cfr. Artigo 356º, n.º 2, al. a).

7. Assim, se por um lado é patente que o legislador entendeu que em específicos tipos de crime – aqueles contra a liberdade e autodeterminação sexuais de menor – a diligência é feita obrigatoriamente por razões conexas à protecção da presumível vítima e para conservação da prova, também visou criar um núcleo essencial de garantias para o arguido,

8. Designadamente procurando que a notícia da diligência chegue ao respectivo domínio cognitivo, bem como ao do seu defensor,

9. Estatuindo o artigo 271.º, n.º 3 do CP Penal que a presença deste – e a do Ministério Público – é obrigatória.

10. Na verdade, tal resulta da estrutura acusatória do processo penal que encara o arguido como um sujeito de direitos, entre os quais avulta o de contraditar activa e construtivamente os fundamentos da imputação que sobre ele impende.

11. Ora, a possibilidade do arguido e do seu defensor estarem presentes (sendo a presença deste taxada de obrigatória) almeja dar espessura e densidade a essa ideia material do contraditório, constitucionalmente plasmada no artigo 32, nº 5 da CRP.

12. Ora, a comunicação telefónica da alteração da diligência e o anúncio de que esta ocorrerá menos de 48 horas após o telefonema, quando o defensor adverte da impossibilidade de estar presente, esvazia completamente de sentido o sobredito direito ao contraditório.

13. De resto, o peso e relevância passíveis de serem outorgados ao acto, nomeadamente na vertente da valoração probatória em sede de audiência de discussão e julgamento, tornam ingente que o mesmo só se possa fazer quando o defensor nomeado ou constituído possa estar presente.

14. Na verdade, sendo diligência com potencialidade de repercussão em sede de julgamento, devem-lhe ser aplicadas as regras do julgamento, maxime o disposto no artigo 312º, nº 4 do CP Penal.

15. Dada, até, a forma de superação de lacunas disciplinada no artigo 4.º do CPP que impõe que se atenda aos casos análogos regulados em tal diploma processual.

16. Ora, ao decidir como decidiu, a Mma. Juiz violou as aludidas normas, bem como o artigo 20º, n.º 4 da CRP que estabelece o direito a um processo equitativo e justo.

17. Já no que tange ao acto que culminou na inquirição em sede de memórias futuras da Mãe da menor e do companheiro daquela, é patente que não se deu qualquer conhecimento ao arguido e ao seu defensor de tal diligência,

18. Em absoluta e incontornável violação do disposto no n.º 3 do artigo 271º do CPP,

19. O que implicou a ausência do arguido e defensor constituído ao acto.

20. Tal configura a nulidade insanável da al. c) do artigo 119º do CP Penal,

21. Ou, assim se não entendendo, a irregularidade nos termos do artigo 123º do mesmo diploma processual.

22. Com efeito, apesar do arguido, no requerimento que motivou a decisão recorrida, ter pugnado pela nulidade, o que é certo é que arguiu a invalidade do acto em três dias,

23. Ou seja, o requerimento emergiu tempestivo para o aludido efeito, nos termos da parte final do n.º 1 do citado artigo 123º do CPP.

Termos em que, na procedência do presente recurso, deve ser declarada a invalidade dos autos de declarações para memória futura, tomadas à menor, a sua Mãe e ao companheiro desta.

b. No que concerne ao acórdão final de 23.04.2014 [cf. fls. 865 a 887]

1. Desde logo, em cumprimento do disposto no artigo 412º, n.º 3 do CP Penal, atenta a natureza do presente recurso como sendo portador de um dissenso em matéria de facto, cumprirá indicar quais os factos que se reputam de “incorrectamente julgados”.

2. Assim, dando cumprimento ao comando legal, dir-se-á que, na óptica do recorrente, merecem tal epíteto aqueles consignados nos pontos 24; 25; 26; 27; 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 36; 37; 38; 39; 41; 42; 44; 45; 46; 47; 50; 51; 54; 55; da matéria de facto dada como provada – ou seja e principalmente, os pontos atinentes à prática dos crimes pelos quais foi condenado.

3. Assim, no que tange ao ponto 47 (atinente a episódios ocorridos a 14 de Setembro) há elementos probatórios que impõem decisão distinta da assumida no Acórdão recorrido.

4. Desde logo, deve assinalar-se, a menor desenvolve dois discursos absolutamente distintos sobre os factos alegadamente ocorridos na aludida data.

5. Na verdade, nas declarações para memória futura (elemento probatório passível de utilização, face ao disposto no artigo 356º, 2, al. a), do CP Penal e concretamente a fls. 21 do Apenso A) narrou que se viu obrigada a ligar ao recorrente por inexistência de outra solução e que ele e a E... a foram buscar e deslocaram-se ao cabeleireiro. Depois foi almoçar a sós com o recorrente, a casa dele, e foi em tal momento que foi alvo de actos sexuais enquadráveis na fattispecie do artigo 171/2 do CP.

6. O arguido refuta esta versão quando é ouvido (ficheiro 2014020610715_110601_139473, 6/2/2014, manhã, minuto 42`00`` ao minuto 51`17``), confirmando que foi buscar a menor na companhia da E... , que foram ao cabeleireiro as duas e ele se ausentou e almoçaram no restaurante McDonald`s da Solum, não tendo estado só com a B... à hora do almoço.

7. Todavia, ouvida em audiência de discussão e julgamento, depois do recorrente, a menor (ficheiro 20140206120226_110601_139473, Sessão de 6 de Fevereiro de 2014, manhã, precisamente do minuto 26`00s ao minuto 31`02s) diz que foi o recorrente quem a levou à escola, aí a foi buscar e que a levou para casa dele e abusou dela. Depois foram ao cabeleireiro.

8. E ainda disse (declarações que constam do ficheiro 0140206163540_110601_139473, do minuto 32`31 ao minuto 40`13s) que acha que foram almoçar ao MC Donald`s.

9. Ou seja, de um depoimento para o outro altera o momento do abuso e, consequentemente, o local e privacidade/publicidade do almoço, bem como quem a foi buscar à escola. O recorrente que teria ido com a E... passou a ir sozinho e a levá-la para casa antes de irem ao cabeleireiro.

10. O outro interveniente no episódio, a testemunha E... , (em sede de audiência de discussão e julgamento no dia 19 de Março de 2014 (3.ª Sessão), das 11h43m22s às 13h18m30s, em depoimento que foi gravado, através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, e que consta do ficheiro 20140319114320_110601_139473, concretamente do minuto 02`19s ao minuto 17`08s) referiu que foi juntamente com o recorrente apanhar a menor na escola, que foram ao cabeleireiro e cortaram ambas o cabelo e que só se juntaram ao arguido à hora de almoço; como não estivessem a contar com a menor para comer ela foi para casa e o recorrente e a B... foram a um restaurante – não os acompanhando porque não aprecia essa comida – o que constatou, após, por ter visto no carro um brinde que aí costumam dar a crianças.

11. Ou seja, a versão da menor, além de distinta em ambos os momentos em que foi prestada em segmentos nucleares, conflitua com a do recorrente e a da testemunha referida.

12. E, diga-se, no que tange ao local do almoço, aquela prestada na audiência, confirma as narrativas da testemunha e do arguido!

13. Ou seja, face aos depoimentos concatenados da menor, na audiência, da testemunha e do recorrente é impossível que os actos sexuais tenham ocorrido em casa do recorrente à hora de almoço!

14. De manhã, a mesma impossibilidade decorre dos depoimentos da testemunha E... e do recorrente – já que afirmam perentoriamente que foram buscar a menina à escola e daí directos para o cabeleireiro, onde só ficaram a testemunha e a menor (o que, de resto, decorria das declarações para memória futura da menor!).

15. Face a tal acervo probatório emerge absolutamente insustentável a valoração efectuada no facto em exame de que, neste dia 14 de Setembro, ocorreram abusos. Na verdade, não há hora nem momento do dia em que tais actos possam ter sido levados a cabo.

16. Insustentável é, ainda, que perante tais tergiversações das versões da menor se diga que as declarações da mesma não apresentam distorções significativas e que o depoimento da testemunha referida não pode ser valorado porque ela quer crer na inocência do recorrente.

17. Com efeito, tal espécie de asserções – meramente tabelares – não constituem o esforço de exame crítico da prova que a Lei e a Constituição imperativamente determinam,

18. Ora, o dever de fundamentação – imposto pelo artigo 374/2 do CP Penal e pelo artigo 205º, 1 da CRP, rectior, a falta do seu cumprimento – acarreta a nulidade da decisão, atento o disposto no artigo 379, 1, al. a), também do CP Penal.

19. Incompreensível é, também, que a Decisão recorrida não se tenha detido sobre um facto, decorrente com perspícua clareza dos depoimentos dos aludidos intervenientes processuais.

20. A menor, depois de alegadamente haver sido abusada em momento anterior pelo recorrente, foi recolhida na escola, durante a tarde, por este e pela testemunha E... .

21. Ficou com esta, enquanto o arguido foi para a sua própria casa; mas, aborreceu-se e foi, sozinha, para casa do arguido ter com este.

22. Menor que sentia asco, repulsa, nojo e repugnância pelo recorrente e os actos que este putativamente a obrigava a fazer, vai voluntária e espontaneamente para casa dele …

23. Será este um comportamento inteligível e compreensível face às chamadas regras da experiência comum a que alude o artigo 127º do CPP?

24. Para o Tribunal é – embora não cure de explicitar a razão. Para a menor não!

25. Com efeito, perguntada, respondeu que o fez porque pensava que a casa não tinha ninguém (declarações entre o minuto 39 e o 40`13 do ficheiro 20140206163540_110601_139473), mas que tinha chave de casa.

26. Ora, tal é desmentido pela testemunha E... (depoimento e local já citado) que diz que ela nunca teve chave nenhuma.

27. Ou seja, ao contrário do Douto Colectivo a menor apercebeu-se da falta de sentido da respectiva acção de se ir fechar em casa do abusador, com ele, por simples aborrecimento face à escassez de diversões no local onde se encontrava …

28. Ainda incompatível quer com as regras de experiência comum quer com outra prova é a afirmação da menor de que tinha pedido que se telefonasse ao arguido neste dia de manhã, por absoluta falta de alternativa.

29. É que a testemunha F... (ficheiro 20140220152658_110601_139473 e do ficheiro 20140220165427_110601_139473, respectivamente das 15h27m01s às 16h36m05s e – quanto ao segundo ficheiro – das 16h54m31s às 17h11m56s e das 17h15m19s às 17h43m37s) do minuto 46`12s ao minuto 47`21s do ficheiro 20140220152658_110601_139473 narra que meteu vinte euros no saco da menor para que esta, numa emergência, recorresse a um táxi.

30. Isto é: havia alternativa, previamente combinada e sustentada em meios disponibilizados, para que a menor não contactasse o arguido.

31. Não obstante, fá-lo logo.

32. Para surpresa (certo que é uma emoção …) da testemunha como resulta do ficheiro 20140220165427_110601_139473, a partir do minuto 7`38”.

33. No que tange aos factos 38 e 39 (concretamente este último, continente da materialidade alusiva aos abusos no Algarve) a prova a examinar que impõe decisão diversa radica na distonia de versões manifestadas pela menor, nos dois momentos em que foi ouvida.

34. Assim, em sede do artigo 271º do CPP, a menor narrou um verdadeiro calvário de sevícias a que foi submetida, que só não incluíram sexo oral (Fls. 21 e 22, do Apenso A).

35. E os mesmos ocorriam quando a E... se ausentava, estava de costas ou distraída, e que tal concedesse uma oportunidade ao recorrente.

36. Evidentemente que se avantajava a hipótese de abusos quando a sobredita testemunha se ausentava em passeios ou para a piscina, dado que isso daria ao arguido a privacidade para atacar sexualmente a menor.

37. Todavia, no depoimento prestado em audiência (que constam do ficheiro 20140206120226_110601_139473, Sessão de 6 de Fevereiro de 2014, manhã), precisamente do minuto 20`41s ao minuto 23`12s, reduz os ataques ao episódio referido no ponto 39.

38. E, no ficheiro 20140206120226_110601_139473, do minuto 37`23`` ao minuto 39`05`` diz que o alojamento era do TIPO TO, o que inviabilizaria qualquer possibilidade da menor ser alvo de ataques de índole sexual, excepto quando a E... estivesse ausente.

39. Do minuto 01`10s ao minuto 03`47 do ficheiro 20140206163540_110601_139473 refere, taxativamente, que a testemunha nunca se ausentava, porque tem um problema de visão e geralmente, na rua, se apoiava na menor ou no recorrente!

40. Todavia, esta discrepância verdadeiramente gritante não percutiu minimamente o espírito dos Julgadores, que nada fizeram constar sobre as razões pelas quais a menor, nas declarações para memória futura, omitiu a incapacidade da testemunha E... sair sozinha para a piscina ou para passear …

41. Ora é facto processual incontornável que a menor, por uma outra vez, fez dois relatos inconciliáveis e que na diligência prévia de prova narrou uma versão bastante hiperbolizada dos eventuais actos de abuso.

42. Ora, tal radical antinomia de versões, suscita dúvidas fundadas sobre a veracidade do(s) respectivo(s) depoimento(s) e impõe que estes pontos em exame mereçam resposta diversa daquela assumida pelo Colectivo.

43. No que tange aos factos constantes dos pontos 24; 25; 26; 27; 28; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 35; 36; 37; 41; 42; 44; 45; 46; 50; 51; 54; 55 a prova que impõe decisão diversa é, desde logo, o contributo da menor e as suas intrínsecas fragilidades e incoerências.

44. Além das já apontadas, tenha-se presente o que a mesma relata quanto ao facto do recorrente ejacular ou não.

45. Em audiência, no ficheiro 20140206120226_110601_139473, concretamente do minuto 46`18s ao minuto 47`03s, a menor afirma que o arguido tinha sempre o pénis erecto quando praticava com ela sexo oral e que ejaculava sempre, o que a obrigava a cuspir.

46. Ao minuto 09`11s ao minuto 10`02s do ficheiro 20140206163540_110601_139473, já diz que houve ocasiões em que tal não ocorria.

47. A testemunha F... (em declarações prestadas na segunda sessão de audiência de discussão e julgamento no dia 20 de Fevereiro de 2014, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal e que constam do ficheiro 200140220152658_110601_139473 e do ficheiro 20140220165427_110601_139473, respectivamente das 15h27m01s às 16h36m05s e – quanto ao segundo ficheiro – das 16h54m31s às 17h11m56s e das 17h15m19s às 17h43m37s) do minuto 12`32`` ao minuto 14`54`` relata que algo que a fez “desconfiar” foi a menor ter associado o aspecto de claras de ovo batido ao esperma de um homem quando se “vem”, depois vomitando.

48. Todavia, nas declarações para memória futura a menor nada diz sobre ejaculações.

49. E nas declarações perante a Polícia Judiciária (lidas, cumprido o formalismo legal, na sessão de 19 de Março à tarde, como consta da respectiva Acta) nega que isso alguma vez tenha ocorrido, dizendo que tinha visto em filmes que isso acontecia aos homens que ficavam todos sujos mas com o recorrente nunca se apercebeu que isso ocorresse.

50. É certo que o Acórdão desvaloriza tal insuprível aporia, aventando que a menor não percebeu a referência a filmes.

51. Ora, é a própria menor que fala, graficamente, dos filmes, pelo que a explicação é incompreensível, como o é “arrumá-la” na categoria das irrelevâncias, sem curar de motivar tal pensamento.

52. Assim, ignorando-se, por outra vez, o dever de fundamentação.

53. Por outro lado, interrogada sobre o aspecto do órgão sexual do recorrente (ficheiro 20140206163540_110601_139473, designadamente do minuto 44`40 ao minuto 46`38) refere que não lhe discerniu qualquer particularidade, e perante o complemento da pergunta feita pelo Juiz Presidente, se tinha inchaço, inclinação diferente da normal se não era direito, reafirmou que o mesmo nada tinha de especial.

54. Todavia, o arguido (primeira sessão da audiência de julgamento, concretamente do minuto 54`50s ao minuto 57`11 do ficheiro 20140206101715_110601_139473) o arguido diz-se portador de uma doença – de Peyronie – e esclarece as respectivas consequências.

55. Patologia que resulta da declaração médica e das ecografias juntas na acta da audiência de 6 de Fevereiro de 2014.

56. Ora, tal doença caracteriza-se por uma curvatura bastante pronunciada do pénis, resultante de uma atrofia muscular, que torna tal órgão de aspecto anormal, face à curva que ostenta.

57. Todavia, a menor nada reparou ou notou, mau grado visioná-lo e manuseá-lo quase todos os dias …

58. Sobre tal facto, o Acórdão nada diz, nem como justifica que um membro afectado pela doença em causa e de um homem de sessenta e três anos quase todos os dias mantivesse a capacidade de estar erecto e de ejacular,

59. Olvidando, ainda por outra vez, o dever de examinar criticamente a prova, emergente da obrigação de “fundamentação”.

60. Também as declarações da testemunha F... máxime quando incompatíveis com outras anteriormente prestadas (gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal e que constam do ficheiro 20140220152658_110601_139473 e do ficheiro 20140220165427_110601_139473, respectivamente das 15h27m01s às 16h36m05s e – quanto ao segundo ficheiro – das 16h54m31s às 17h11m56s e das 17h15m19s às 17h43m37s), concretamente do minuto 57`34s ao minuto 01h09`03s do ficheiro 20140220152658_110601_139473) deveriam ter sido alvo de pertinente exame crítico.

61. Na verdade, a mesma nesta sede relatou estados de espírito da Mãe da B... e Companheiro daquela quando lhes deu a notícia de eventuais abusos, daqueles que disse ter constatado aquando das suas declarações na Polícia Judiciária.

62. E nunca conseguiu dar qualquer explicação plausível para as diferentes narrativas, não obstante lhe terem sido concedidos alguns minutos à testemunha, nomeadamente para ler as declarações que havia prestado na polícia judiciária e reflectir (ou inflectir) sobre as apontadas contradições (minuto 00`00s ao minuto 04`13s do ficheiro 20140220165427_110601_139473).

63. No entanto, também tal circunstancialismo não logrou percutir a mente dos julgadores – que sobre ele não se pronunciaram – que qualificaram o depoimento de credível, isento e imparcial.

64. Não obstante o seu carácter subjectivo, eivado de interpretações pessoais e de pensamentos próprios da testemunha que, quando chamada a depor sobre algo que vivenciou, deu versões inconciliáveis e demonstrou absoluta incapacidade de suprir a anomia que ela própria potenciou.

65. Ora, os factos que aqui se reputam de incorrectamente julgados assentam, sobretudo, no depoimento da B... e, ainda que difusamente, no depoimento da testemunha F... .

66. Ora, é indiscutível a emergência de insofismáveis fragilidades internas que inquinam, de forma inabalável, o depoimento da Menor, tantas são as contradições, lacunas e impossibilidades de que enferma.

67. Que o Tribunal olvidou integralmente, apenas aventando uma explicação absolutamente incompreensível para um dos exemplos dessa actuação – existência, ou não, de ejaculações.

68. E omitindo qualquer espécie de consideração sobre as outras examinadas.

69. Ignorando, em absoluto, a doença que afecta o órgão sexual do arguido/recorrente e as repercussões que a mesma causa.

70. Por outro lado, o exame médico-legal (constante de fls. 248 a 250 dos autos) atesta a inexistência de vestígios físicos de actos sexuais.

71. E o exame “avaliação psicológica” adverte que haverá indícios comportamentais e psicológicos – não constituindo tal nada de definitivo – de que a menor poderá ter sido vítima de abusos.

72. Neste quadro, a conclusão ressuma perspícua e linear;

73. Ao agir como se agiu sacrificou-se – inexoravelmente – o princípio da presunção da inocência com plasmação constitucional no artigo 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

74. Exactamente enquanto princípio probatório traduzido na ideia do in dubio pro reo.

75. Este postulado impunha, de facto, que a escassez probatória demonstrada nos autos fosse valorada a favor da posição processual do arguido, ora recorrente.

76. Na medida em que, de acordo com a respectiva impressiva formulação, mais vale absolver um culpado do que condenar um inocente.

77. Ora as mencionadas alterações factuais – impostas face ao que supra se adiantou – não deixarão de reconhecer importantes refracções na decisão.

78. Com efeito, deixará de existir razão para a emergência da condenação do arguido como autor dos crimes p.p. pelos n.º 1 do artigo 171º e do artigo 171, nº 2 (por duas vezes), ambos do Código Penal.

79. Na verdade, os mencionados preceitos incriminadores exigem a comissão da factualidade – dita típica – que o arguido, manifestamente, não perpetrou,

80. Razão pela qual é mister concluir que o seu comportamento não preencheu os tipos-de-ilícito por que foi condenado,

81. O que leva à fácil conclusão que as normas dos artigos 171, n.º 2 (por duas vezes) e 171, nº 1, do C. Penal, se mostram violadas.

Sem prescindir,

82. Todavia, mesmo que assim se não entenda, a dupla condenação por um crime de trato sucessivo, ou exaurido, do artigo 171/2 do CP (por factualidade compreendida até ao Verão de 2012) e por um acto isolado que terá sido perpetrado em 14/09/2012 emerge juridicamente insustentável.

83. Com efeito, a lógica imanente à dita categoria de crime ancora na reiteração sucessiva de factos de idêntica natureza e na subsequente impossibilidade de os determinar.

84. Supõe, assim, a convenção da existência de um só crime – apesar das condutas que, isoladas, constituiriam um crime – tanto mais grave quanto mais repetido.

85. Ora, a espécie de condenação, pela natureza da figura, é unificadora e esgotante, como inculca o sentido da palavra exaurido.

86. No entanto, em absoluta antinomia com tal significado semântico e jurídico, condenou-se o arguido por conduta isolada, já contida no período temporal abrangido pela sobredita condenação.

87. Ou seja, o episódio de 14 de Setembro de 2012 é punido como actividade integrada nos abusos diários decorridos até ao Verão de 2012 e como acto isolado …

88. Em flagrante colisão com o disposto no artigo 29º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa que comanda que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, assim consagrando o chamado princípio do non bis in idem.

89. Princípio que proíbe a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo crime.

90. Por outro lado, também se reputa de violada a norma do artigo 171, n.º 1, do CP.

91. Com efeito, o recorrente foi condenado pelo crime previsto na sobredita norma por “ter puxado o «top» à menor e ter tentado beijá-la no peito”.

92. Ora, muito embora se conceda que a concatenação de actos descritos em tal ponto tenha uma leitura passível de os tornar objectivamente sexuais, os mesmos não se erigem como de “relevo”.

93. Com efeito, tal qualificação tem de resultar da perigosidade intrínseca da acção para o bem jurídico protegido em função da sua natureza, duração ou intensidade;

94. Ora, uma tentativa de beijo – efémera e inconsequente – não se erige com tais características,

95. Pelo que não se mostra reunida factualidade passível de suportar a condenação por tal tipo de ilícito.

96. Mesmo que assim se não entenda, sempre a factualidade em causa não representa o crime na sua forma consumada, dado que para que tal ocorra carece-se da verificação do acto sexual.

97. E este, in casu, não se verificou, dado que tudo se quedou pelo estágio da tentativa (frustrada).

98. Assim, mostram-se, identicamente, violadas as normas dos artigos 22º e 23º do CP (por omissão), bem como a referida norma do 171/2, ainda do CP.

99. Como, consequentemente – e ainda por absoluta desconsideração – aquelas que definem o regime da punição dentro do quadro da tentativa (23/2, 73, 1, als. a) e b), também do Código Penal).

100. Finalmente – independentemente do destino das anteriores conclusões – quer o recorrente dar nota do seu dissídio relativamente à pena que lhe foi aplicada.

101. Efectivamente as medidas concretas das penas aplicadas surgem claramente desfasadas dos preceitos normativos reitores deste segmento da juridicidade.

102. Designadamente mostram-se violados os art.s 71º/1 e 30/2, ambos do CP.

103. Os sobreditos incisos plasmam os critérios determinantes da fixação da medida da pena elegendo, a esse propósito, uma teleologia essencialmente preventiva, todavia temperada pela ideia de culpa.

104. Ora é manifesto que a punição que se verbera não levou em conta, nomeadamente, que a prevenção especial ao nível da ressocialização se encontrava sensivelmente diminuída, face à idade do arguido e à sua inserção social, laboral e familiar.

105. Razão pela qual a pena aplicada surge como draconiana e em distonia com os preceitos invocados,

106. Impondo a predita normatividade que as penas se fixem num patamar sensivelmente menor.

107. Violado se mostra, também, o artigo 77º do CP, na medida em que das novas penas a aplicar deverá resultar uma pena única que não ultrapasse os quatro anos e dez meses.

108. Por outro lado, tal pena proposta (em cúmulo) deverá ser suspensa como impõe o comando inserto no artigo 50º, n.º 1, do Código Penal.

109. Na verdade, o sobredito preceito estatui que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

110. Ou seja, a suspensão da execução da pena não obedece a qualquer ideia de discricionariedade, decorrendo, ao invés, do exercício de um poder-dever vinculado, que impõe que seja decretada sempre que se verifiquem os pressupostos legalmente enunciados.

111. Ora, tal medida – de insofismável carácter pedagógico – depende da respectiva adequação à socialização do arguido – atendendo à respectiva personalidade, condições de vida e conduta anterior e posterior aos factos – e do facto da censura e ameaça de prisão realizarem as finalidades da punição.

112. Isto é, são as razões preventivas de natureza especial que se alcandoram a um patamar de indesmentível relevância no que tange ao funcionamento do sobredito mecanismo, sem que se possa, todavia, olvidar a prevenção geral.

113. Assim, sob pena de violação irremissível do disposto no n.º 1 do mencionado artigo 50º do CP deve a pena aplicada ao arguido ser suspensa na sua execução.

114. Efectivamente, a personalidade do agente, o seu comportamento anterior e posterior aos crimes e as circunstâncias destes permitem o juízo de prognose que a ameaça da pena e a censura traduzida nesta realizam as finalidades da punição.

115. Finalmente, mostra-se violado o disposto no artigo 80º, nº 1, do Código Penal.

116. Com efeito, o aludido inciso legal manda descontar na pena aplicada o tempo de privação da liberdade do condenado, por força da sua submissão a detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação.

117. Ora o recorrente esteve detido de 8 até 9 de Novembro de 2012 e desta data até 24 de Abril de 2013,

118. Pelo que o referido inciso normativo impunha que tal tempo de privação de liberdade fosse descontado na pena que lhe foi aplicada.

119. Ora, ao ignorar-se tal decorrência legal, deixou o Tribunal de pronunciar-se sobre questão que lhe incumbia conhecer – dado que a mesma implica actividade de valoração pelo Tribunal,

120. O que torna o Acórdão nulo, nos termos da al. c) do n.º 1, do artigo 379º do CP Penal.

112. Por outro lado, o recorrente mantém interesse em que seja apreciado o recurso por si interposto a 15 de Janeiro de 2013 e que suscita invalidades na convocação para as declarações para memória futura, agora reduzidas à testemunha D... , a única das ouvidas em tal sede que não compareceu na audiência de discussão e julgamento.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, extraídos os corolários dimanados das “conclusões” tecidas.

6. Os recursos foram admitidos por despacho de 05.02.2013 e de 29.05.2014, respectivamente, ocasião em que lhes veio a ser fixado o regime de subida e efeito [cf. fls. 289 e 889], regime, esse, que, no respeitante ao recurso do despacho de 21.12.2012 veio a ser alterado por decisão sumária, confirmada pelo acórdão da Relação de Coimbra de 05.06.2013, determinando a sua subida com o recurso que viesse a ser interposto da decisão final.

7. Aos recursos respondeu o Ministério Público, concluindo:

a. No que tange ao recurso interposto do despacho de 21.12.2012 [fls. 305 a 311]

«A douta decisão recorrida valorou devida e coerentemente os elementos e interesses em confronto, não contém erro, vício ou contradição que importe conhecer, nem violou qualquer norma legal ou constitucional, designadamente as invocadas pelo recorrente.

Deverá pois ser mantida na íntegra, negando-se provimento ao recurso».

 

b. Quanto ao recurso do acórdão final [cf. fls. 893 a 909]

I. O Tribunal a quo pronunciou-se sobre todas as questões de facto e de direito relevantes para a boa decisão da causa, tendo fundamentado com acerto, precisão, sem contradições e de acordo com as regras da experiência comum a posição assumida no acórdão.

II. O Tribunal a quo ponderou com equilíbrio o disposto no art. 71º do Código Penal, tendo em conta, designadamente, a culpa do arguido, as exigências de prevenção geral e especial e ainda as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a seu favor e contra ele, mostrando-se, pois, adequadas as penas parcelares e a pena única que lhe foram aplicadas.

III. O acórdão recorrido não padece de qualquer vício nem foram violadas quaisquer disposições legais.

Nesta conformidade, afigura-se-nos que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.

Porém, os Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores farão, como sempre, JUSTIÇA.

8. Remetidos ao autos à Relação a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no que ao primeiro recurso concerne [despacho judicial de 21.12.2012], cujo regime de subida, na forma predita, veio a ser alterado, emitiu o parecer que se mostra junto a fls. 207 a 208, refutando que haja ocorrido violação do artigo 32.º, n.º 5 da CRP, concluindo no sentido de não ter o despacho judicial em crise, que indeferiu o requerimento do arguido, desrespeitado as normas invocadas pelo recorrente, não merecendo, como tal censura, devendo, pois, o mesmo ser julgado improcedente.

Já no que tange ao recurso do acórdão final, vindo requerida a respectiva apreciação em sede de audiência, apôs, em consonância com o disposto no artigo 416.º, n.º 2 do CPP, o visto.

9. O recorrente, notificado nos termos e para o efeito do artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não reagiu ao parecer emitido pelo Ministério Público quanto ao recurso do despacho judicial de 21.12.2012 – [cf. fls. 212 e ss].

10. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a audiência de julgamento, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto dos recursos

                      De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

Sendo estes os parâmetros, cabe a este tribunal pronunciar-se sobre se:

Recurso do despacho de 21.12.2012:

- Ocorre violação do artigo 97.º, n.º 5 do CPP;

- Enferma a decisão de invalidade, designadamente da nulidade insanável do artigo 119.º, alínea c) do CPP, encerrando ofensa aos princípios do contraditório, do processo justo e equitativo e, ainda, derrogação do n.º 3 do artigo 271 do citado diploma legal.

Recurso do acórdão final:

- Padece o acórdão recorrido das nulidades previstas no artigo 379.º, n.º 1, alíneas a) e c) do CPP;

- Incorre o mesmo em erro de julgamento;

- Mostra-se violado o artigo 127.º do CPP;

- Foi preterido o princípio in dubio pro reo;

- Foram violados os artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 22.º do Código Penal, no que ao enquadramento jurídico-penal concerne;

- Ao punir o arguido/recorrente por dois crimes p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 2 e por um crime p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 violou o tribunal o princípio non bis in idem;

- A medida concreta das penas - parcelares e única – foram encontradas em violação do disposto nas normas ínsitas nos artigos 71.º, n.º 1, 30.º, n.º 2 e 77.º, todos do C. Penal;

- Deve a pena única ser suspensa na sua execução.

2. As decisões recorridas

a. O despacho de 21.12.2012

É do seguinte teor [transcrição]:

«Fls. 133: A data das declarações para memória futura foi antecipada para o dia 22.11.2012, pelas 11H30, face à urgência manifestada pelo facto da testemunha ir emigrar para o estrangeiro no dia 27.11.2012.

A antecipação da data foi requerida pelo M.P. a fls. 113 e a 20.11.2012. Foi apenas possível a marcação do dia 22.11, pelas 11h30.

Assim, face a tamanha urgência e à proximidade da data designada, o Tribunal socorreu-se do M.P. para efectuar as diligências necessárias de notificação. O M.P. diligenciou nesse sentido, com a ajuda da PJ.

Ora, face à situação de urgência verificada, ao disposto no artigo 112º, nº 1 e 2 do Código de Processo Penal e ao teor de fls. 120 144, 145, 147 a 149 e 152 a 156, entende-se que nenhuma nulidade foi cometida, tendo sido respeitados os formalismos da referida norma legal.

No que respeita ao local da diligência, sabia a Ilustre mandatária onde a mesma iria ter lugar, tanto mais que o seu escritório recebeu um telefonema do Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra. Por outro lado, se disse que iria tentar falar com a Dra k... saberia que a diligência seria no Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra, por ser ela a Juiz desse tribunal.

Entende-se que são desnecessárias mais considerações, dando-se aqui por reproduzido o teor das fls. supra mencionadas, reafirmando-se que nenhuma nulidade foi cometida, pelo que vai indeferido o requerido a fls. 133 e seguintes e 167 e seguintes.

Notifique, com o envio de cópias das fls. que se deram por reproduzidas (120 144, 145, 147 a 149 e 152 a 156)».

b. O acórdão recorrido

Ficou a constar do acórdão recorrido [transcrição parcial]:

FACTOS PROVADOS

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

1. A menor B... é filha de C... e nasceu na Irlanda, país de onde é nacional, a 03/10/1999.

2. A mãe da menor vivia maritalmente com D... .

3. A mãe deste, E... , mantém uma relação de namoro com o arguido A... , vivendo no mesmo prédio, em casas pertença do arguido, sendo que a ocupada pela E... tem apenas um quarto e a ocupada pelo arguido é maior.

4. A E... ainda mantém atividade laboral, sendo que o arguido se encontra reformado.

5. No verão de 2010 a mãe da menor acima indicada, acompanhada da filha e companheiro vieram passar férias a Portugal.

6. Decidiram, na ocasião, passar a viver definitivamente neste país, mais concretamente em Coimbra, local onde o D... tem família.

7. Para tal trataram de toda a documentação necessária para a inscrição da menor na escola e a sua inserção a título definitivo neste país.

8. Acontece que a mãe da menor e seu companheiro tinham ainda contratos de trabalho na Irlanda que importava completar.

9. Para evitar prejuízos escolares para a menor e uma vez que, findos os mesmos, era intenção do casal passar a residir em Coimbra, ficou decidido que a menor ficaria nesta cidade, a cargo da E... e namorado desta, o aqui arguido.

10. Por acordo de todos e porque o arguido assumia o papel social de “avô de facto”, a menor passou a viver em casa do arguido.

11. Como acima foi referido, a E... e o arguido mantêm uma relação de namoro e residem em casas distintas mas situadas no mesmo prédio, sendo que a casa do arguido é maior e por isso com melhores condições físicas para acolher condignamente a menor.

12. Acresce que encontrando-se ainda a E... com atividade laboral regular, era o arguido quem tinha maior disponibilidade para acompanhar a menor nas suas idas e vindas da escola, bem como das atividades inerentes a uma criança desta idade.

13. Inclusivamente foi por todos acordado que seria o arguido quem ficaria como encarregado de educação da menor, como aconteceu.

14. A mãe da menor e companheiro regressaram à irlanda em inícios de Setembro de 2010, tendo a menor ficado em Coimbra, a residir com o arguido na Rua (...) .

15. Em finais de Setembro de 2010, a mãe da menor e companheiro regressaram a Portugal, passando todos a residir na Vivenda (...) , nesta cidade.

16. Acontece que não obstante a menor ter passado a residir em local diverso do arguido, atenta esta proximidade familiar e o facto de todos – mãe da menor, companheiro e mãe deste – terem horários laborais a cumprir, era o arguido que acompanhava a menor nas suas atividades, levando-a à escola, ali a indo buscar, levando-a para sua casa enquanto a restante família estava a trabalhar, ou seja, assumindo um papel muito presente na vida desta criança e passando longo tempo sozinho com esta, sobretudo em casa do arguido e acima indicada.

17. Por uma questão de facilidade e compatibilidade com os horários e responsabilidades laborais da mãe da menor e companheiro desta, a menor por vezes pernoitava em casa do arguido.

18. A mãe da menor e companheiro desta confiavam completamente no arguido para que este cuidasse da criança, sendo que era este que se oferecia, alegando ser do seu agrado tratar da sua “neta”, pois assim até ocupava o tempo enquanto todos estavam ausentes em trabalho.

19. Acresce que atento o poder económico do arguido, muito superior ao dos restantes membros desta família, passou este a comprar os livros, a custear os gastos com a criança e sobretudo a comprar-lhe roupa, muita, e sobretudo de tamanho muito reduzido – com especial relevo para as saias e calções muito curtos.

20. Tudo por iniciativa do arguido.

21. Durante o ano letivo 2010/2011, o arguido manteve para com a menor B... um comportamento absolutamente compatível com o típico relacionamento avô carinhoso/neta querida.

22. Acompanhava-a no seu dia-a-dia, brincava e cuidava dela.

23. A menor foi-se afeiçoando ao arguido, passando a vê-lo como um avô carinhoso, passando todos a encarar o tempo que os dois estavam juntos como perfeitamente natural e aceitável.

24. Acontece que a menor foi crescendo e começou a evidenciar características típicas femininas, com o inerente crescimento dos seios, passando de uma criança a uma “pequena” adolescente.

24. Modificou-se, igualmente, o modo como o arguido passou a tratar a menor.

25. No início do ano letivo 2011/2012, ou seja, em momento não concretamente apurado do mês de Setembro de 2011, na sala da casa do arguido sita na morada acima indicada, estando os dois sentados no sofá, aproveitando-se da confiança que a menor tinha para consigo, o arguido começou a mostrar à menor B... filmes com cenas em que eram visíveis homens e mulheres nus e que mantinham entre si relações sexuais explícitas de sexo vaginal, oral e anal.

26. Ao mesmo tempo que ia mostrando tais filmes, vulgarmente conhecidos por filmes pornográficos, o arguido começou a acariciar a menor pelo corpo, inicialmente por cima da roupa e depois introduziu a mão por dentro das cuecas que a criança tinha vestidas, começando a acariciar a vagina da menor com os dedos.

27. Desde inícios de Setembro de 2011, o arguido passou então, quase diariamente, a aproveitar o tempo que estava com a menor para práticas idênticas.

28. Assim, quando estavam os dois na sala do arguido, sozinhos a ver televisão, o arguido pegava no seu lPod e mostrava à menor filmes contendo cenas de sexo explícito.

29. Ao mesmo tempo, começava a beijar a menor na boca e introduzindo-lhe as mãos por dentro da roupa, acariciava-lhe a zona do peito e a vagina.

30. Nestas práticas, o arguido procurava introduzir o dedo na vagina da menor.

31. No decurso do visionamento deste tipo de filmes, que acontecia nas ocasiões acima indicadas, o arguido tirava também o seu pénis do interior das calças e cuecas que trazia vestidas, ficando o mesmo visível à menor.

32. Em seguida dizia à menor para lhe beijar o pénis e o lamber, ao mesmo tempo que encaminhava a cabeça e a boca da menor em direção ao mesmo.

33. A criança ia acedendo ao que o arguido lhe dizia.

34. Nestas ocasiões o arguido dizia ainda à menor para abrir a boca, ali lhe introduzindo o pénis, dizendo-lhe como proceder a gestos de sucção enquanto mantinha o pénis no interior da boca da menor.

35. Acompanhado do visionamento dos supra referidos filmes contendo cenas de sexo explícito, o arguido pegava nas mãos da menor e conseguia que esta lhe fizesse massagem no pénis em movimentos ritmados.

36. A menor a tudo acedia, com muita vergonha em contar o sucedido, pelo que se mantinha em silêncio.

37. Essas práticas mantiveram-se, como acima foi referido, desde inícios de Setembro de 2011 até ao Verão de 2012, sempre no interior da residência do arguido acima mencionada e enquanto os dois ali estavam sozinhos, práticas estas que o arguido repetiu quase DIARIAMENTE durante tal lapso de tempo, ou seja, sujeitando a menor às supra referidas práticas sexuais, quase todos os dias e durante cerca de um ano.

38. Em Junho de 2012, altura em que a menor entrou em férias letivas, o arguido levou a menor para o Algarve, juntamente com a namorada E... , com o pretexto de irem para a praia.

39. Ali, durante o período de férias que a menor passou com o arguido, este puxou-lhe o “top” e tentou beijar-lhe o peito, o que ocorreu no interior da casa de férias que todos ocupavam e enquanto a namorada E... estava na casa de banho.

40. Quando a estada na praia acabou, regressou a Coimbra e passou a residir com a sua mãe outra vez.

41. A menor, que entretanto estava a crescer e começava a interiorizar a repulsa e vergonha que estas condutas que o arguido tinha para consigo lhe causavam, começou a evitar estar a sós com o arguido.

42. A menor não explicava a razão da sua resistência em sair com o arguido.

43. Este, por sua vez, surgia junto da mãe da menor e pedia para levar a criança “aqui e ali”, sempre “muito simpático”, pelo que a menor não tinha forma de evitar estar a sós com ele, fazendo-o para que a mãe não desconfiasse o que se passava – e que era fonte de grande vergonha para a menor.

44. Quando a criança tentava evitar ir com o arguido, este demonstrava efusivamente grande desapontamento, de tal modo que a mãe da menor e companheiro desta – que desconheciam em absoluto qual a razão da conduta da menor e interpretando-a como mero capricho da criança – obrigavam-na a sair com o arguido.

45. Assim, o arguido conseguia estar sozinho com a criança para as práticas acima descritas.

46. O que fazia quase diariamente.

47. A última vez que a menor esteve a sós com o arguido – e que este a acariciou no peito e vagina, e lhe introduziu o pénis na sua boca, bem como lhe pegou nas mãos e a levou a acariciar-lhe o pénis, ao mesmo tempo que viam filmes de conteúdo sexual explícito – aconteceu no primeiro dia de aulas do ano letivo 2012/2013 ou seja, no dia 14 de Setembro de 2012, uma sexta-feira, o que ocorreu mais uma vez dentro de casa do arguido.

50. O arguido bem sabia a idade da menor, sabia a sua incapacidade em avaliar o desvalor das condutas que sobre esta praticava, manipulando-a do ponto de vista psicológico, de modo a treiná-la para ser seu objecto de uso pessoal para satisfação libidinosa.

51. O arguido queria e conseguiu manter com a menor as práticas acima indicadas, bem como expô-la a cenas de sexo explícito, querendo e conseguindo deste modo satisfazer os seus instintos libidinosos.

53. ELIMINADO

54. O arguido bem sabia que tais condutas por si praticadas na menor eram lesivas do recato e pudor sexual que é devido a uma criança.

55. O arguido sempre agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas lhe estavam vedadas por lei.

DA CONTESTAÇÃO:

8. O arguido é pessoa socialmente inserida e respeitadora.

9. Sendo reconhecido como pessoa estimada, honrada, civilizada.

13. A existência do presente processo causou-lhe perturbação.

14. Fez-se examinar por psicólogo e psiquiatra que traçaram perfil indicativo de sujeito mentalmente saudável e capaz sem indícios de patologias e efetuaram um teste de personalidade dentro dos padrões da normalidade.

MAIS SE PROVOU:

A... é natural de (...) Cantanhede, de onde era originária sua mãe.

Descendente de uma família de remediada condição económica; o pai era fornecedor de cantarias e alvenarias e a mãe doméstica.

No seu processo educativo beneficiou de uma educação regrada e normativa, com maior rigidez por parte da figura paterna, a qual impunha maios autoridade perante os 3 filhos.

Pelos 9 anos do arguido a família mudou-se para Coimbra, durante 2 anos, com a finalidade de poderem garantir melhores condições educacionais e de vigilância aos filhos. Ainda em Coimbra, A... completou uma das secções do antigo 5º ano liceal, tendo completado a segunda secção num colégio particular, em Cantanhede.

Quando o arguido entrou para o antigo 6º ano liceal, a família mudou novamente para Coimbra, tendo A... permanecido nesta cidade até aos 22 anos, altura em que iniciou o cumprimento do Serviço Militar Obrigatório e esteve destacado 3 anos em Angola.

Em 1973 terminou o serviço militar e regressou a Coimbra, continuando os estudos a nível superior – Licenciatura em Engenharia Eletrotécnica.

Quando terminou a licenciatura já se encontrava casado com a mãe dos seus dois filhos – G... de 37 anos e H... de 30 anos. Sua mulher exercia a profissão de professora do ensino preparatório. Por conveniência familiar, o casal optou por ir viver para Cabo Verde, onde conseguiram trabalho como professores cooperantes e onde se mantiveram cerca de dois anos e meio. A família regressou novamente a Coimbra, tendo o arguido exercido a profissão de professor na Escola x....

A... refere ter sido, entretanto, convidado para trabalhar numa empresa informática, onde esteve cerca de um ano, após o que recebeu o convite de uma empresa multinacional – y...– para dar formação. Mais tarde foi nomeado Diretor Técnico da filial dessa firma em Angola, onde permaneceu 6 anos, findos os quais passou a trabalhar na y..., em Coimbra, até ao ano 2000. Nessa altura a empresa mostrava-se debilitada e A... optou por criar o seu próprio negócio, abrindo uma firma do mesmo ramo de atividade em conjunto com sua mulher. Esta firma funcionou até 2006, altura em que decidiu reformar-se.

Relativamente à relação familiar de casal, foi uma relação gratificante até ao momento em que sua mulher começou a apresentar problemas de natureza depressiva. A partir de então a relação foi-se degradando, com desentendimentos frequentes que culminaram em separação e divórcio, em 2006.

A... passou, então, a residir sozinho, na anterior casa morada de família, tendo posteriormente vendido a habitação e comprado o apartamento onde ainda reside atualmente.

Com os filhos, o arguido tem um relacionamento gratificante e, embora ambos estejam a residir fora do país ( G... reside no Brasil e H... reside na Irlanda, países onde constituíram família), vão mantendo ligação e contactos regulares.

Em 2007, A... conheceu a atual companheira – E... , de 57 anos, licenciada em Sociologia e funcionária do Centro (...) onde exerce funções técnicas na Equipa (...). O casal mantém um relacionamento bastante gratificante, quer na opinião do arguido, quer na de sua companheira. Optaram por não coabitar em conjunto, vivendo em prédios contíguos, embora mantenham diariamente um funcionamento de casal.

Economicamente o arguido beneficia da pensão de reforma, no valor de 1200,00€ mensais, a que acresce o valor de aproximadamente 1300,00€ mensais correspondentes ao valor das rendas de 3 apartamentos que possuiu.

Os seus tempos livres são normalmente passados em atividades sociais – ginásio, café, convívio com amigos e em casa, onde se entretém com atividades ligadas à informática. O casal frequenta o convívio com grupos de amigos, sendo igualmente frequente integrarem jantares e convívios do serviço da Dra. E... .

No âmbito deste relacionamento afetivo o arguido conheceu o filho de sua companheira, o qual reside na Irlanda com a mulher Laura e a filha desta, a menor B... , vítima no presente processo.

O casal já havia estado em Portugal de férias e em 2010 decidiram vir residir para este país, onde perspetivavam conseguir melhores condições de vida. Trataram da inscrição da menor B... na Escola, mas tiveram necessidade de se deslocar à Irlanda por algumas semanas, deixando a menor a cargo do casal E... e A... .

A menor “estabeleceu com os mesmos um relacionamento bastante próximo afetivamente, considerando-os como avós e sendo considerada por eles como neta”, tal como ambos os membros do casal nos mencionam. Seria, no entanto, “o arguido quem dispunha de maior tempo disponível para ir levar e buscar a menor à escola, após o que iam buscar E... ao serviço e passavam o restante tempo em casa do arguido, onde a menor pernoitava por maior comodidade em termos de espaço”. Contudo, ambos os membros do casal nos referem que “habitualmente jantavam e conviviam um pouco à noite, em família, até à hora da menor se ir deitar”.

A relação que ambos mantinham com a menor e esta com eles era, no dizer de ambos, de tal forma afetiva que todos os amigos do casal já a tratavam como se de neta se tratasse. B... tinha o seu tempo livre bastante ocupado, frequentando aulas de piano e de judo três dias por semana, tudo isso proporcionado pelo casal, sendo normalmente o arguido quem tinha maior disponibilidade para levar e trazer a menor a essas atividades.

Terá sido, pois, tal como nos referem, com grande surpresa e indignação que o casal terá tomado conhecimento do presente processo judicial, tendo o arguido ficado bastante afectado em termos emocionais perante a situação de indiciação nos presentes factos, necessitando de recorrer aos serviços de um médico psiquiatra, Dr. I... por quem se encontra a ser devidamente medicado desde há cerca de um ano.

Esteve sujeito a medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica de Novembro de 2012 a Abril de 2013, situação que lhe terá causado bastante stress e um enorme constrangimento pessoal, apesar de todo o apoio de que foi alvo, por parte de amigos, da sua família direta – irmã e sobrinha e da própria companheira.

A... não assume os factos de que se encontra indiciado. Apresenta, no entanto, capacidade crítica face à presente situação, mostrando-se consciente e capaz de interiorizar a gravidade e a reprovação social e moral dos mesmos, mas mencionando “não os poder assumir em consciência”. Mostra-se, contudo, confiante no Sistema de Justiça.

FICOU AINDA PROVADO:

O arguido evidenciou falta de arrependimento em audiência.

Nada consta do CRC do arguido.

FACTOS NÃO PROVADOS

Não ficou provado que:

19. … dispendiosa …

39. O arguido no Algarve tenha mantido com a menor outras práticas sexuais além daquela descrita no ponto correspondente na parte provada enquanto a namorada E... estava na piscina ou tinha saído para dar algum passeio.

48. Nesta ocasião o arguido, como “recompensa” por tais práticas, ofereceu à menor um urso de peluche.

49. Acresce que durante o período acima indicado, nas ocasiões em que estavam sozinho e o arguido mantinha as práticas sexuais acima indicadas com a menor, depois ia com esta a lojas de roupa, onde lhe comprava muita e diversificada roupa, que depois insistia que esta vestisse, designadamente saias e calções muito curtos.

Não se provou o alegado nos artºs 3º a 7º e o mais alegado em 13º da contestação e não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa, não se referindo a demais matéria vertida pelo arguido na contestação, por ser conclusiva, de direito ou sem relevo para a decisão da causa.

MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:

No que concerne às circunstâncias em que a menor veio para Portugal e ao desenvolvimento de um relacionamento próximo com o arguido, quase como se de avô e neta se tratasse, atendeu-se às declarações do próprio arguido e aos depoimentos da menor, da sua mãe e da companheira do arguido já que todos, nesta parte, assim descreveram esses factos de forma sensivelmente unânime.

Das roupas a que se alude em 19 constam fotografias a fls. 28 a 32 dos autos. O arguido disse que era a menor que as escolhia mas esta revelou que era o arguido que as escolhia para si evidenciando até algum desconforto. Já ao valor das mesmas ninguém se referiu.

A idade da menor de que o arguido revelou conhecimento também resulta evidenciada pelo documento de fls. 427.

No que respeita às concretas condutas imputadas ao arguido valorou-se o depoimento da menor B... que assim descreveu os factos de forma emotiva quer em julgamento quer anteriormente, em declarações para memória futura, perante a Juiz de Instrução Criminal.

O seu relato dos factos mereceu inteira credibilidade tanto mais que foi assim que a testemunha veio a relatar os factos à testemunha F... que, na sequência do convívio que veio desenvolvendo com a menor, em virtude de esta frequentar aulas de piano ministradas pela sua mãe e ainda por falar a língua inglesa, logrou conquistar a confiança da menor e levá-la a relatar os abusos de que foi vítima. Foi também assim que a menor descreveu os factos à mãe e ao então companheiro desta, a testemunha D... . Apesar do choque que sofreram, todos acharam credível o referido relato dos factos tal como foi descrito pela menor. É aliás bem impressivo a esse respeito o depoimento da mãe da menor que referiu em julgamento que ainda hoje há coisas que ainda não sabe porque a filha tem medo de falar consigo, como se ela tivesse vergonha, o que é uma característica das vítimas de crimes sexuais. E também particularmente impressivo o depoimento da testemunha D... que referiu de forma muito simples o que o determinou a acreditar na menor: “Será que aconteceu mesmo? Mas é que a questão da maneira como ela contou (…) como ela disse as coisas … não é filme … não é uma história … é verdade”.

E foi desta forma simples que a testemunha explicou o que ficou também no espírito do julgador. A forma simples, emotiva, envergonhada, como a menor relatou os factos determina a firme convicção de que o fez com verdade. Igualmente no sentido de corroborar a credibilidade merecida pela menor o relatório de avaliação psicológica de fls. 52 a 57 no qual se dá conta das características específicas da sua personalidade, concluindo-se que do ponto de vista cognitivo a menor apresenta um funcionamento muito superior. Ali se refere que “Analisando o relato da menor à luz dos indicadores de veracidade das alegações de abuso verificamos que este apresenta, na globalidade, características semelhantes às de um relato verdadeiro. Para além disso, apuraram-se indicadores comportamentais e psicológicos que podem funcionar como “sinais de alerta” por serem compatíveis com uma situação de abuso e ocorrerem como frequência em menores vítimas de abuso sexual.

Também não se determinaram distorções significativas de memória ou indicação de eventual mentira da autoria da menor ou induzida por terceiros. E isto que se refere no relatório surgiu de forma evidente da concatenação dos relatos feitos em audiência pela mãe da menor, pelo seu companheiro e pela testemunha F... .

Com efeito, o arguido negou os factos pretendendo passar a imagem de que tudo não passará de uma cabala urdida pela testemunha F... determinada pelo desejo de a menor ficar à sua guarda por a mãe e o companheiro desta terem em vista regressar à Irlanda. Mas não convenceu, pelas razões supra referidas que levaram a considerar provados os factos da acusação. Tanto mais que o relato da testemunha F... , a qual gere uma empresa com vários empregados ao seu serviço, nada tendo a ver com a imagem que o arguido dela pretendeu fazer passar, foi desinteressado, isento pois não conhece o arguido que viu apenas numa única vez, e inteiramente credível.

Quanto às declarações da testemunha E... adotou claramente uma postura de favor ao arguido determinada pelo seu desejo de acreditar na inocência do companheiro. Daí que o seu depoimento não tenha sido inteiramente credível designadamente no que respeita ao ocorrido na data do último do último dos episódios em causa, no primeiro dia de aulas da menor no ano letivo de 2012/2013.

Em suma, a menor prestou um depoimento credível na forma como contou o que se passou consigo na forma emotiva como o fez. Essas declarações foram corroboradas pelas declarações da mãe, havendo sintonia entre esses depoimentos e também o da testemunha D... , testemunhos prestados com emoção mas de forma desinteressada. Dos seus depoimentos não resultou qualquer motivo no sentido de se estar a armar um embuste ou cabala contra o arguido. Para além disso, a testemunha F... relatou a forma como vivenciou toda a situação por parte da criança e mostrou como tudo acabou por ser desvendado. Foi esta que, com cuidado e paciência, conseguiu interpretar os sinais de abuso por parte da criança. Não se vislumbra nesta testemunha qualquer outro interesse que não fosse pôr cobro ao abuso. Tudo em sintonia com o relatório de avaliação psicológica da criança. A apontada contradição entre o depoimento da menor prestado em audiência e aquele prestado perante a PJ a fls. 9 (linhas 45 a 50) surge como irrelevante sendo de admitir que a perceção da criança naquele momento, relacionada com os filmes, tenha sido essa.

Quanto aos depoimentos das testemunhas da defesa é comum que o agente seja pessoa inserida socialmente virtuosa em termos sociais. Os amigos e conhecidos não poderiam de forma alguma ter conhecimento destas atividades. Normalmente também não há testemunhas destes crimes a não ser os protagonistas. Todas deram boas referências do arguido no que dele conhecem socialmente, o que, todavia, não corresponde senão a um aspeto parcelar da sua personalidade e nada adiantou quanto ao afastamento dos factos em questão.

Ninguém estabeleceu uma relação direta entre as ofertas do arguido e as descritas práticas sexuais. Daí que se tenha considerado não provado o vertido nos parágrafos 48 e 49 da acusação.

No que respeita aos factos provados da contestação do arguido assim o descreveram as testemunhas da defesa. O relatório social evidencia também positiva e consolidada inserção nos meios familiar e social, onde o arguido beneficia de imagem positiva. Atendeu-se aos documentos de fls. 527 e 528 quanto aos factos dos pontos 13 e 14. O provado com os fundamentos supra aduzidos determinaram a convicção do tribunal para considerar não provado o vertido nos pontos 3º a 7º e quanto ao mais alegado em 13º da contestação.

No que concerne à falta de arrependimento porque o arguido negou os factos contra a manifesta evidência. Mas não se ficou por aqui. Já supra se referiu que justificou que tudo será uma trama engendrada pela testemunha F... e como essa explicação surgiu absolutamente torpe.

Atendeu-se ao certificado de registo criminal do arguido quanto aos seus antecedentes criminais e ao relatório social que foi solicitado e consta de fls. 576 e ss. quanto às suas condições pessoais e sociais.

3. Apreciação

1. Recurso da decisão interlocutória [despacho judicial de 21.12.2012]

a.

Nos pontos 1. a 4. das respectivas conclusões defende o recorrente violar a decisão recorrida, por falta de fundamentação, o artigo 97.º, n.º 5 do C.P.P.

Tendo presente, como por certo o terá, que a complexidade do dever de fundamentação dos despachos – ao menos daqueles que não põem termo à causa - não se confunde, pela própria natureza e objecto da decisão, com o correspondente dever relativo à sentença, cujo grau de densificação não merece contestação – aspecto bem patente ao nível da consequência da violação no artigo 379.º, n.º 1, al. a) do CPP - muito singelamente diremos não lhe assistir razão dado resultarem suficientemente apreensíveis os motivos de facto e de direito que sustentam a decisão, sem menosprezar a circunstância de surgir a mesma em resposta ao requerimento apresentado a fls. 133 e ss., no qual foi, ao abrigo do preceituado no artigo 119º c) do C.P.P., arguida a nulidade «de acto processual», não se tratando, assim, de decisão desgarrada dos actos antecedentes, protagonizados, em primeira linha, pelo ora recorrente, reflectindo, antes, um raciocínio argumentativo, quer de facto quer de direito, entendível, desde logo, pelo seu destinatário.

Conclui-se, pois, no sentido de não ocorrer violação da norma em referência.

b.

Em matéria de conclusões apresentadas por ocasião do recurso interposto do acórdão final [cf. ponto 112] restringe o recorrente o requerimento recursório, ora em apreço, às «invalidades» alegadamente verificadas na convocação para as declarações para memória futura da testemunha D... , limitação que – aduz – encontra fundamento no facto de se tratar da «única das ouvidas em tal sede que não compareceu na audiência de discussão e julgamento», não resultando, assim, ao invés do sucedido com esta, quanto às demais – cuja audição em sede de julgamento veio a ocorrer – comprometido o exercício do contraditório.

Em abono da sua tese, considerando a compressão, agora operada, quanto objecto do recurso, invoca não lhe haver, bem como ao seu defensor, sido dado conhecimento da realização do acto de inquirição para memória futura, em clara violação do disposto no n.º 3 do artigo 271.º do CPP, omissão que teria consequenciado a respectiva ausência, o que configuraria a nulidade insanável da alínea c), do artigo 119.º do CPP ou, assim não se entendendo, irregularidade nos termos do artigo 123.º do mesmo compêndio normativo - [cf. pontos 17. a 21].

A questão ou questões colocadas não dispensam um breve excurso sobre o que a propósito, de relevante, decorre dos autos.

Temos assim:

1. Mediante promoção do titular do inquérito, por despacho judicial de 15.11.2012 foi designado o dia 27 de Novembro, pelas 15 h, para tomada de declarações para memória futura da menor;

2. Despacho, esse, que veio a ser notificado, entre outros, ao Ministério Público ao arguido e seu mandatário [com procuração junta a fls. 68];

3. Na sequência de requerimento remetido aos autos por correio electrónico em 19.11.2012 a mãe da menor [testemunha C... ], informando não ser possível a sua [dela, do companheiro – a testemunha D... - e da menor] comparência no tribunal na data agendada em virtude de terem passagem marcada para Dublin [país para onde iam emigrar] nesse mesmo dia [do que juntou prova], solicitando, em simultâneo, a designação das declarações para qualquer outro dia anterior a 27 de Novembro, após contacto com a Senhora juiz que dada a urgência da situação determinou a antecipação da diligência já designada para o dia 22.11.2012, pelas 11h30m, a realizar nas instalações do TIC, o Ministério Público, considerando a premência do caso, requereu à Polícia Judiciária a notificação do arguido e defensor da nova data agendada, do mesmo passo que, em face das circunstâncias, promoveu, a inquirição [na mesma data] para memória futura da mãe e padrasto da menor (testemunha D... ) – [cf. fls.113/114];

4. Nesse dia, ou seja a 20.11.2012, a Senhora juiz, constatando a impossibilidade da notificação «a tão curto espaço de tempo», exarou em despacho proceder, na mesma ocasião, à tomada de declarações da mãe e padrasto da menor, caso o Ministério Público diligenciasse pela sua comparência, no tribunal, no dia e hora designada [cf. fls. 114];

5. Em 21.11.2012 foi comunicado à D.G.R.S., com referência à pessoa do arguido [que então se encontrava sujeito à obrigação de permanência na habitação, mediante vigilância electrónica], a data designada para declarações para memória futura, aí se consignando haver sido o arguido, telefonicamente, notificado - [cf. o ofício de fls. 117 e OK de fls. 118];

6. Por «TERMO» lavrado nos autos, em 22.11.2012, fez a Senhora escrivã – adjunta constar: «Consigno que ontem contactei o escritório da Dr.ª J... , no sentido de a informar do despacho que antecede [o identificado em 4.], notificando a sr.ª advogada para a diligência de amanhã.

A Sr.ª advogada estava ausente e solicitei ao Sr. funcionário que informasse a Dr.ª J... do teor do despacho, que lhe transmiti.

Hoje contactei com o escritório da Dr.ª J...s e pela funcionária, D.ª L... , foi informado que não é possível a Sr.ª advogada comparecer à diligência, em virtude de se encontrar impedida em julgamento» (cf. fls. 120) – [destaques nossos];

7. Com data de 23.11.2012 deu entrada nos autos requerimento dirigido à Senhora juiz do TIC de Coimbra, subscrito pela Exma. mandatária do arguido, solicitando «… se digne mandar gravar cópia das declarações para memória futura da menor B... , bem como das demais testemunhas que foram ouvidas» - (cf. fls. 128) – [destaques nossos];

8. Em 27.11.2012, veio o arguido « … ao abrigo do preceituado no artigo 119º c) e, subsidiariamente, das disposições conjugadas dos artigos 120º, nº 1, e 123º do CPC, arguir a nulidade de acto processual …», concluindo: «NESTES TERMOS (…) DEVE A PRESENTE ARGUIÇÃO DE NULIDADE SER JULGADA PROVADA E PROCEDENTE E, CONSEQUENTEMENTE, SEREM DECLARADOS NULOS OS ACTOS PROCESSUAIS DE TOMADA DE DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA DE B... , DE C... E DE D... , COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS»;

9. No dia 20.11.2012 o Senhor inspector-chefe da Polícia Judiciária lavrou «COTA» nos autos, consignando: «Faço constar que, por determinação da Exma. Procuradora –Adjunta Dra N... , e em cumprimento do ordenado pela Mma Juíza do TIC de Coimbra, contactei, telefonicamente, com a Dra. J... , através do n.º … (pertencente à firma “ M... , J... , O... e Associados – Soc. De Advogados”) advogada do arguido, A... , a quem, depois de me identificar e dar conta do cargo que desempenho, informei que a finalidade do contacto era para a notificar que o acto processual de tomada de declarações para memória futura à vítima B... , no âmbito do inquérito com o NUIPC 823/12.8JACBR, iria decorrer no dia 22 de Novembro de 2012, pelas 11h30, no Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra.

Solicitou-me esclarecimentos, pois tinha sido notificada para estar presente nesse mesmo acto no dia 27 de Novembro, tendo sido informada que a razão da urgência se devia ao facto da vítima ir, naquela data, regressar ao seu país de origem. Após consultar a sua agenda profissional, referiu que nessa data lhe era impossível estar presente e que iria contactar o TIC para falar com a Juíza Dra. K... , no sentido de tentar alterar para o dia 23. Pedi-lhe, então, que me informasse do resultado desse contacto, caso houvesse alguma alteração» - [destaques nossos];

10. Em 21.11.2012, o mesmo inspector-chefe lavra nova «COTA» nos autos do seguinte teor: «Faço constar que, nesta data, da parte da manhã, contactei o escritório da Dra. J... , tendo sido atendido por uma senhora, que me informou que a Dra. se encontrava em Lisboa, numa audiência de julgamento. Após ter informado da razão do meu telefonema, nomeadamente do facto de ter ficado a aguardar, no dia de ontem, um contacto da sua parte, o que não aconteceu, a mesma disponibilizou-se para entrar em contacto com a mesma, para obter melhores esclarecimentos e depois me informaria. Da parte da tarde, fui contactado por aquela, que me transmitiu a resposta Dra. J... , e que foi mandar informar que na data agendada não lhe era possível estar presente e que apenas podia no dia 23 ou 26 de Novembro.

Em contacto com o TIC foi-me transmitido que não havia qualquer alteração à data agendada, desconhecendo aquele tribunal qualquer contacto efectuado pela Sra. Advogada, com vista a alterar a data. Mais transmitiram, que também aquele tribunal tinha contactado o respectivo escritório de advogados, para informar da realização da diligência.

Ao final da tarde, entrei novamente em contacto com o escritório, tendo desta vez sido atendido por um senhor (que informou ser colega da Dra. J... ) ao qual, após lhe explicar a razão do meu telefonema, pedi, face à impossibilidade de contactar directamente com a Dra. J... , que fosse a mesma informada que a diligência iria, conforme determinado pela Mma. JIC, realizar-se na data que lhe tinha sido, por mim, já comunicada.

A notificação foi também efectuada por fax.

Nesta data, foi também notificado, pessoalmente, o arguido A... , que informou ter tido conhecimento da diligência, quer pelo Instituto de Reinserção Social, quer pela sua defensora, que lhe comunicou a impossibilidade de estar presente na data determinada, por razões de agenda profissional» [destaques nossos];

11. Ouvido nos autos o inspector - chefe da PJ [autor das informações a que se alude supra em 9. e 10.], declarou, além do mais, que: «Na qualidade de Inspector Chefe da Polícia Judiciária a prestar serviço na brigada dos crimes sexuais, foi contactado pela Magistrada do Ministério Público titular do Inquérito no dia 20/11/2012, da parte da manhã, tendo-lhe sido solicitados os bons ofícios no sentido de notificar o Arguido, Advogada deste, a menor ofendida, sua mãe e companheiro desta, para a realização da diligência de declarações para memória futura da menor, mãe e companheiro desta, a efectuar no TIC no dia 22/11/2012, pelas 11h e 30 m.

(…)

O signatário, utilizando o número do escritório da Advogada constituída do arguido, identificou-se e solicitou falar com a mesma.

Foi atendido por uma voz feminina que se identificou como sendo a Sra J... , Advogada do Arguido.

Na ocasião e por telefone notificou-a para estar presente no dia 22/11/2012, pelas 11 horas e 30 minutos, no TIC de Coimbra, a fim de comparecer à diligência da menor ofendida, a efectuar nestes autos.

Mais a informou que a razão da antecipação desta diligência que inicialmente já se encontrava agendada para o dia 27/11/2012, tinha a ver com o facto da menor e família se irem ausentar para a Irlanda nesse dia e por isso era necessário antecipar a diligência.

Mais foi informada que devido ao pouco tempo até àquela data esta notificação era efectuada com urgência.

A ilustre Advogada, informou que nesse dia e hora não lhe dava jeito por já ter agendadas diligências.

A este propósito a ilustre Advogada disse o seguinte: «Nesse dia e hora estou impedida porque tenho um julgamento fora de Coimbra». Mais referiu a Senhora Advogada «A diligência é no TIC não é? Vou falar com a Dra k... (Ilustre Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra) para ver se alterava a data para sexta-feira (dia 23/11/2012)».

(…)

Nesse dia 21, depois do almoço recebeu no serviço uma chamada telefónica de uma funcionária da Ex.ª Advogada do arguido que lhe comunicou que a Dra J... mandou informar que não tinha disponibilidade para estar presente no dia da diligência 22/11/2012, pelas 11h30 no TIC, sendo que só podia ali comparecer na sexta ou segunda-feira seguintes.

Perante esta resposta o signatário voltou a contactar telefonicamente com o DIAP de Coimbra onde falou com a Magistrada titular do processo, para saber se neste entretanto tinha havido alguma alteração ao dia e/ou hora já agendado para a diligência tendo sido informado que não havendo nenhuma alteração e perante a absoluta impossibilidade de agenda do TIC para outra data, deveria proceder às notificações solicitadas para o dia, hora e local inicialmente identificado.

Assim, foi o que fez.

Deste modo para lá de ter diligenciado no sentido de serem notificados o arguido, a ofendida, a mãe desta e o companheiro da mesma, ao final do dia telefonou para o escritório da Ex.ª Advogada do Arguido (…)

Foi atendido por uma voz masculina que se identificou como sendo colega da Dra J... , que o informou que a mesma continuava indisponível e a quem informou que as data para as diligências acima indicadas se mantinham para o dia 22/11/2012, pelas 11h30 no TIC de Coimbra.

(…)

Depois do último contacto que teve para o escritório da Ilustre Advogada e falou com o colega, o signatário enviou um fax onde, por escrito se limitava a relembrar a Ex.ª Sra Advogada daquilo que já lhe tinha sido transmitido pessoalmente no dia 20/11 de manhã e via telefone, ou seja que a diligência em apreço tinha sido antecipada por motivo de urgência e iria ser realizada no dia 22/11/2012 (pelas 11h30m, no TIC de Coimbra).

(…)

Quer referir que após o envio do fax acima mencionado não recebeu, nem nenhum dos funcionários da secção que chefia qualquer contacto posterior quer da Ilustre Advogada quer das pessoas do seu escritório designadamente a solicitar esclarecimentos sobre o conteúdo das notificações que efectuou.

Por último quer referir que quando procedeu à notificação do arguido para a antecipação da realização das diligências acima indicadas o mesmo de imediato lhe disse que já sabia da situação porque a Dra J... , sua Advogada já lhe tinha dito e que o tinha informado que não podia comparecer no dia 22/11/2012, pelas 11h30m no TIC, por se encontrar impedida noutra diligência.

(…)» [destaques nossos].

Vejamos, no que para o caso interessa, o regime legal das declarações para memória futura.

Dispõe o n.º 3 do artigo 271.º do C.P.P. que ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis é comunicada a data da diligência [declarações para memória futura] para que possam estar presentes, presença, essa, obrigatória para o Ministério Público e defensor.

O legislador não consente, pois, mesmo em caso de urgência – v.g. de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha – a dispensa da comunicação aos sujeitos processuais, designadamente ao defensor, cuja presença no acto, é, como vimos, obrigatória, culminando, na nossa perspectiva, em nulidade insanável [artigo 119.º, alínea c) do CPP], em consequência de haver sido omitida a comunicação da diligência, a sua falta; já não assim, porém, relativamente ao arguido, cuja presença é facultativa.

Retomando a resenha supra sobre o encadeado de actos tendentes à comunicação das declarações para memória futura, designadamente da testemunha D... , nenhuma dúvida séria pode subsistir sobre a respectiva verificação [quer quanto ao defensor, quer quanto ao arguido – cf. vg. os pontos 4., 5., 6., 10.] pela forma prevista nos n.ºs 1 e 2 do artigo 112º do CPP –, sendo certo não se inscrever a diligência em questão em qualquer das alíneas do n.º 3 do citado preceito, não assumindo, por conseguinte, a «forma de notificação».

Não será por mero acaso que o n.º 3 do artigo 271º se reporta à «comunicação» e não já à «notificação», não sendo correcta a asserção de que todos os princípios e normas atinentes à audiência de discussão e julgamento encontram aplicação [mais que não fosse, ex vi do artigo 4.º do CPP], no domínio das declarações para memória futura.

Com efeito, como salienta Cruz Bucho, reportando-se ao instituto, no Estudo “Declarações para memória futura” [disponível no site do TRG], «… a diligência deve desenrolar-se em moldes só tendencialmente semelhantes àqueles que regem a produção de prova em audiência, sujeita aos princípios da imediação, da oralidade e do contraditório», prosseguindo «É, aliás, sintomático que o artigo 271º não contenha uma norma a determinar que a tomada de declarações para memória futura se processa “com observância das formalidades estabelecidas para a audiência” (cfr. artigos 318.º, n.º 4, 319.º, n.º 3 e 320.º)», adiantando «O legislador português em vez de determinar, na parte respeitante à produção da prova antecipada, o reenvio geral para a disciplina da audiência de julgamento, limitou-se a estatuir que “é correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º” (artigo 271.º, n.º 6), para concluir «Na verdade, não obstante se ter procurado configurar a produção antecipada de prova como “uma antecipação parcial da audiência de julgamento”, existem importantes desvios às regras que imperam em audiência».

De tão esclarecedor que é o sentido dos actos, com o devido respeito, não passa de sofisma a afirmação de que nem o recorrente, nem o respectivo defensor tomaram conhecimento da diligência, também, no que à dita testemunha concerne.

Como se mostra de todo irrazoável, em face do cenário traçado, dizer ou mesmo insinuar que a ausência do defensor e/ou do arguido na diligência em questão radica na sua não comunicação – o que, como vimos, não encontra arrimo nos «factos» -, quando é cristalino ter-se aquela ficado a dever, como foi pela Ilustre mandatária – directa ou por interposta pessoa - transmitido, a questões de natureza profissional, isto não obstante o teor da procuração junta a fls. 68, da qual resulta serem vários os mandatários constituídos pelo arguido/recorrente.

Questionando, ainda, o recorrente o tempo da «comunicação», circunstância que pode igualmente ser vista no confronto com a testemunha D... , é de salientar não impor a lei que aquela ocorra com uma determinada antecedência.

Neste sentido pronunciou-se o acórdão do STJ de 29.01.2007 [proc. n.º 761/06 – 3.ª, disponível em www.pgdlisboa.pt], de cujo sumário se respiga: «IV. Uma das diligência de prova que pode ser realizada no decurso do inquérito e a que o arguido tem o direito de assistir é a da tomada de declarações para memória futura, conforme o disposto no n.º 2 do art. 271.º do CPP (…), o que se compreende porque, ao contrário da regra geral, essa prova pode ser considerada na audiência de julgamento, nos termos dos arts. 355.º e 356.º do CPP. V. Não se trata ainda da possibilidade do exercício pleno do contraditório. O que se quer evitar, sob pena de violação grosseira do princípio inscrito no n.º 1 do art. 32.º da CRP, é que, mesmo nesta fase, o objectivo de investigar com eficácia seja prosseguida à custa de restrições substanciais das garantias de defesa (…). VI. O prazo para a prática de certo acto pelos sujeitos processuais e a antecedência com que lhes deve ser (se tiver de ser) notificada a realização de certa diligência são realidades bem diferentes. Enquanto para a primeira hipótese o CPP estabelece prazos fixos ou, na sua ausência, se aplica o prazo geral de 10 dias do art. 105º, para a segunda só excepcionalmente se estabelecem prazos mínimos, como, por exemplo, acontece com a comunicação da data para interrogatório do arguido (art. 272º, n.º 2), com a comunicação da data para o debate instrutório (art. 297.º, n.º 3), ou com a notificação do despacho que designou data para a audiência (art. 313º, n.º 2). VII. No caso do art. 271º do CPP não se fixa qualquer antecedência mínima para a notificação da data designada para a diligência. (…)» [destaques nossos].

Acresce que a urgência, declarada no despacho judicial, na realização da diligência justificou a respectiva comunicação a um curto espaço de tempo, mas ainda, assim, suficiente para que a Exma. advogada requeresse [contactando-a por qualquer forma] à JIC o seu adiamento, o que não sucedeu, tão pouco, decorrendo haver-se apresentado em juízo qualquer dos Ilustres advogados a quem o arguido outorgou procuração.

Serve para dizer não se assistir, em consequência de «acto» ou «omissão» do tribunal, à violação dos direitos de defesa do arguido – a quem veio, como não podia deixar de ser, nomeado defensor oficioso.

Em suma, a adequação em função da necessidade - consequência da urgência, resultante da iminente emigração das pessoas a ouvir, designadamente da testemunha em questão, para a Irlanda - na antecipação da diligência, sem que qualquer dos interessados, designadamente arguido e/ou sua Ilustre mandatária, na sequência da comunicação que nesse sentido lhes foi feita, se tenha dirigida à Senhora Juiz única entidade que poderia proceder à alteração do agendamento – solicitando o respectivo adiamento, não nos suscita reserva, revelando-se, igualmente, justificada a comunicação do acto com a dilação temporal, em face das circunstâncias, possível.

Por outro lado, não sendo obrigatória, a presença do arguido nunca a sua ausência poderia conduzir à invocada nulidade insanável [artigo 119.º, alínea c) do CPP], tão pouco a consequenciar, no caso, a dita invalidade a não comparência da sua Ilustre mandatária, a quem foi comunicada a realização da diligência, não se assistindo, assim, à violação do n.º 5, do artigo 32.º da CRP e/ou do n.º 4, do artigo 20.º da lei fundamental e/ou do n.º 3 do artigo 271.º do CPP, tão pouco da alínea c), do artigo 119.º deste último diploma legal.

Por fim - pese embora, enfatiza-se, a comunicação em causa não ter de revestir a forma de notificação -, consciente - como estará o recorrente - da distinção entre omissão de notificação e meros vícios da notificação – desde logo ao nível das respectivas consequências -, sempre se dirá que tendo o despacho em crise recaído sobre requerimento em que vinha arguida a identificada nulidade insanável - não verificada, porém - não tinha o decisor de se pronunciar sobre uma eventual irregularidade procedimentalque, diga-se, não se vê qual -, muito menos o tendo este tribunal, já que, consabidamente, os recursos se destinam à reapreciação da decisão e não a responder a questões novas, ou seja que não foram colocadas perante a 1.ª instância, consentindo o princípio, apenas, a excepção das matérias de conhecimento oficioso, o que não é o caso, carecendo, assim, de sentido convocar, agora, à luz da disciplina do artigo 123.º do CPP, qualquer irregularidade.

Falece, pois, razão ao recorrente.

2. Recurso do acórdão de 23.04.2014

a.

Invocando a ausência do exame crítico, já por haver desconsiderado meios de prova que reputa relevantes, já pela utilização do que designa por «asserções meramente tabelares», em detrimento de um exame crítico da prova, imputa o recorrente ao acórdão o «vício» da nulidade tal como configurado no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), decorrente da violação do artigo 374.º, n.º 2, ambos do CPP – [cf. os pontos 17., 18., 19., 52., 58., 59., 60., 63., 68.].

A ordenação lógica das matérias que submete à apreciação deste tribunal leva, pela consequência que daí pode advir, a que nos detenhamos em primeiro lugar nesta questão.

Não merece controvérsia que elemento básico constitutivo da sentença penal, enquanto exigência de processo equitativo e garantia de defesa do arguido, é a fundamentação ou motivação.

Isso mesmo é salientado pela doutrina e jurisprudência, escrevendo, a propósito, Gomes Canotilho e Vital Moreira «… o dever de fundamentação é uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de Direito Democrático, ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo, como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso» – [cf. “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 2.ª Vol., 3.ª Edição, Coimbra Editora].

E, como decorre da lei, o dever constitucional de fundamentação da sentença, basta-se com a exposição dos motivos de facto e de direito que suportam a decisão, bem como com o exame crítico das provas de que o tribunal se socorreu para formar a sua convicção, incluindo os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios de lógica, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção se formasse em determinado sentido – [cf., por todos, acórdão do STJ de 14.06.2007 (proc. n.º 1387/07 – 5.ª].

Bem expressivas, tendo em conta o plano em que o recorrente coloca a alegação, condensando o que de importante, em face da qualidade da mesma, é possível retorquir, são as palavras que se respigam do acórdão do TRG de 21.01.2013 - [proc. n.º 1080/10.6PBGMR.G1], enquanto com referência ao n.º 2 do artigo 374.º, reproduzindo, além do mais, o segmento final da norma prossegue: «Decorre, por conseguinte, do aludido preceito legal que o exame crítico tem por objecto as “provas que serviram para formar a convicção do tribunal” – [destaque nosso].

Por isso, o tribunal não é obrigado, como bem se compreende, a examinar criticamente provas que nada serviram para formar a sua convicção.

Se o tribunal a quo não fez a mínima referência ao teor do depoimento daquela testemunha foi porque entendeu que o mesmo era neste domínio irrelevante porque, tal como foi valorado, o mesmo em nada contribuiu para a formação da convicção dos julgadores (cfr., neste sentido e para casos paralelos os Acs. do S.T.J. de 13-11-1996, proc.º n.º 710/96, citado por Simas Santos-Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, Lisboa 2000, vol. II, pág. 545, de 7-1-1998, proc.º n.º 1209/97 e o Ac. da Rel. de Évora de 24-5-2005, proc.º n.º 756/05 -1, rel. Fernando Ribeiro Cardoso, in www.dgsi.pt/), aduzindo sobre tal entendimento não enfermar de qualquer inconstitucionalidade «porquanto, conforme o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de salientar no seu Ac. n.º 27/2007 (Proc. n.º 784/05), in D.ºR.ª n.º 39, 2.ª Série, de 23 de Fevereiro de 2007:

“(a fundamentação não tem de ser uma espécie de assentada, em que o tribunal reproduza os depoimentos de todas as pessoas ouvidas, ainda que de forma sintética. Nem, por outro lado, a fundamentação tem de obedecer a qualquer modelo único uniforme, podendo (e devendo) variar de acordo com as circunstâncias de cada caso e as razões que neste determinaram a convicção do tribunal.

Com o dever de fundamentação das decisões judiciais, a Constituição não impõe, na verdade, um modelo único de fundamentação, com descrição ou, ainda mais, transcrição, de todos os depoimentos apresentados no julgamento, ou a menção do conteúdo de cada um deles. Estes depoimentos, mesmo quando são depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa, podem, com efeito, não ter sido decisivos para a formação da convicção do tribunal, podendo então bastar que o tribunal indique aqueles que o foram. Isto, sendo certo que, por um lado, o que está em causa em sede de fundamentação das sentenças não é um princípio de paridade de consideração e explicitação da prova produzida por todos os sujeitos processuais, mas antes de explicitação do juízo decisório e das provas em que este se baseou (…)» [destaques nossos].

Juízo, este, extensivo, naturalmente, à prova documental.

Significa, pois, não assistir razão ao recorrente quando por referência a determinada prova – seja pessoal, seja documental – omitida na análise e exame crítico, levado a efeito pelos julgadores, obviamente por nela não ter assentado a respectiva convicção – desde logo por não ser compatível com aquela outra que os julgadores tiveram por credível -, pretende nisso ver violação do dever de fundamentação, quer na vertente de análise dos meios de prova, quer ao nível da sua apreciação crítica, a qual – ao invés do que pretende fazer crer – não se quedou por meras fórmulas tabelares.

Numa outra frente, concretamente no ponto 120. das conclusões, lido em articulação com os pontos antecedentes [115. a 119.], aponta o recorrente para a nulidade do acórdão, desta feita, por omissão de pronúncia [artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP], na medida em que não teria procedido ao desconto do período de privação da liberdade sofrido à ordem dos autos [detenção, prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação] na pena aplicada, violando, assim, o artigo 80.º, n.º 1 do C. Penal.

Efectivamente, não consta do acórdão o dito «desconto».

Contudo, cientes embora da divergência que gira em torno da matéria, temos para nós que tratando-se de «omissão» sem interferência na decisão da causa isto é não revelando, no caso concreto, para a aplicação do direito no «momento processual» em questão – note-se que a pena (que vale para todos os efeitos) é fixada independentemente do desconto do tempo de privação da liberdade já sofrido -, salvo o devido respeito, não estava o tribunal obrigado a, sobre a mesma, emitir pronúncia, circunstância que afasta a preconizada nulidade.

Com efeito, se o «desconto» a que se reporta o n.º 1 do artigo 80.º do C. Penal, não assumir relevância no momento da decisão condenatória, como manifestamente sucede quando a privação da liberdade já sofrida pelo agente igualar ou ultrapassar a pena aplicada, pode o mesmo ocorrer por ocasião de decisão posterior do juiz, a qual será sempre passível de recurso.

Acompanhamos, por conseguinte Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette quando no seu Código Penal Anotado, Quid Juris, 2008, págs. 242/243, escrevem: «Decorre do n.º 1 e é lógica e cronologicamente exacto, que num primeiro momento se condena e num outro, posterior, se faz o desconto. Este, entretanto, pode ter lugar no mesmo acto, ou seja, na própria decisão condenatória, mas pode também ocorrer por via de decisão posterior. O STJ, a respeito e em consequência, já decidiu assim: «o desconto da prisão preventiva não tem que ter lugar na decisão condenatória, resultando imperativamente da lei» (BMJ, 345/228). Obviamente no sentido da não preclusão do desconto naquela não operado. Como, aliás, não poderia deixar de ser» - [destaques nossos].

Em síntese, não ocorrem as invocadas nulidades do acórdão.

b.

Não se conforma o recorrente com o que vem consignado sob os números 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 41, 42, 44, 45, 46, 47, 50, 51, 54 e 55 da matéria de facto provada, os quais reputa de «incorrectamente julgados».

Tendo sido documentadas, através de gravação, as declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento [aqui se incluindo as que tiveram lugar para memória futura] pode, efectivamente, este tribunal conhecer de facto [cf. artigos 363.º e 428.º do CPP], na vertente alargada, isto é para além do que resulta do texto da decisão recorrida, por si, ou conjugado com as regras de experiência, posto que se mostrem cumpridos os ónus previstos no artigo 412.º do CPP.

E porque assim é, com vista a evitar, a cada passo, o retorno às linhas mestras que – não temos dúvida – ditam os parâmetros e limites da sindicância/conhecimento da matéria de facto, impõe-se deixar expressas algumas considerações de âmbito geral.

Assim:

1. De harmonia com o n.º 3 do citado preceito, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente especificar:

a. Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b. As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, eventualmente

c. As provas que devem ser renovadas [sublinhados nossos], prescrevendo, por seu turno, o n.º 4 [artigo 412.º do CPP] que «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação».

2. O nível de exigência do recurso em sede de matéria de facto, reforçado com a Reforma de 2007, tem de ser encarado à luz do entendimento, sistematicamente afirmado pelos tribunais superiores, de que os recursos constituem remédios jurídicos destinados a corrigir erros de julgamento, não configurando, como tal, o recurso da matéria de facto para a Relação um novo julgamento em que o tribunal aprecia toda a prova produzida na 1.ª instância como se o julgamento ali realizado não tivesse existido – [cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 15.12.2005, 09.03.2006 e 04.01.2007, proferidos respectivamente nos procs. n.ºs 05P2951, 06P461 e 4093/06 – 3.ª].

3. «A especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida … que considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença, sendo que A exigência legal de especificação das “concretas provas” só se queda satisfeita com a indicação do conteúdo específico do meio de prova …» - [cf. acórdão do TRC de 22.10.2008, proferido no proc. n.º 1121/03.3TACBR.C1].

Quer isto dizer que «… o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso da matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (…), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (…) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no seu entender, impõem decisão diversa da recorrida» – [cf. acórdão do STJ de 24.10.2002, proferido no proc. n.º 2124/2] (destaque nosso).

Acrescente-se, por fim, que a não observância nem nas conclusões nem na correspondente motivação, em toda a sua extensão, dos ónus de impugnação inviabiliza o convite ao aperfeiçoamento.

Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça tem-se vindo a pronunciar no sentido de que o seu não cumprimento não justifica o «convite» em referência uma vez que só se pode corrigir o que está mal cumprido e não o que se tem por incumprido - [cf., entre outros, os acórdãos de 17.02.2005 (proc. n.º 05P058), 09.03.2006 (proc. n.º 06P461), 28.06.2006 (proc. n.º 06P1940), 04.10.2006 (proc. n.º 812/06 – 3.ª), 04.01.2007 (proc. n.º 4093/06 – 3.ª) e de 10.01.2007 (proc. n.º 3518/06 – 3.ª)], solução que o Tribunal Constitucional já considerou não violar o direito ao recurso, como decidiu no acórdão n.º 259/02, de 18.06.2002 [DR II Série, de 13.12.2002], posição retomada no acórdão n.º 140/04 [DR II Série, de 17.04.2004].

Isto dito, vejamos, então, a impugnação.

Numa primeira fase destaca o recorrente o ponto 47., evidenciando, após, os pontos 38. e 39. e, por fim, os pontos 24., 25., 26., 27., 28., 29., 30., 31., 32., 33., 34., 35., 36., 37., 41., 42., 44., 45., 46., 50., 51., 54. e 55., todos dos factos provados – [cf., respectivamente fls. 5 a 28, 28 a 34 e 34 a 51 da motivação], relativamente aos quais teria ocorrido «erro de julgamento».

Contudo, no exercício tendente a por a nú os ditos «erros», convocando, embora, as suas declarações, o depoimento das testemunhas E... e F... e, sobretudo, as declarações da menor – quer em sede de declarações para memória futura, quer no decurso da audiência de julgamento, quer as prestadas perante a Polícia Judiciária [sendo que estas últimas foram objecto de leitura em audiência] - sem que haja descurado os documentos médicos versando sobre a sua patologia ao nível do órgão sexual, enceta um caminho que, distanciando-se em absoluto do procedimento, atrás exposto, a que se mostrava legalmente vinculado na prossecução do seu desiderato, manifestamente se destina a colocar em crise o processo de formação da convicção do tribunal, realçando, para tanto, ora contradições entre as diversas declarações da menor, bem como da testemunha F... [esta também, em sede de julgamento, confrontada com determinado segmento do depoimento prestado no decurso do inquérito], ora distorções, incongruências nos relatos das mesmas, ora a assertividade do depoimento da testemunha E... , a qual teria corroborado a sua versão quanto ao decurso dos acontecimentos, com especial enfoque para o dia 14.09.2012, ora a irrazoabilidade, à luz das regras da experiência comum, das manifestações de afecto que a menor lhe dedicava, inconciliáveis, portanto, com os alegados abusos sexuais.

Claro está, aspecto que não traduz qualquer novidade - tal a frequência com que surge nos recursos que visam o(s) tipo(s) de crime em questão – que a opção do Colectivo quando atribuiu credibilidade a determinados meios de prova em detrimento de outros, não se mostraria sustentada, tão pouco sustentável, certo, porém, revelarem-se as «contraditórias» e «incongruentes» declarações da menor desapoiadas de qualquer prova, falta de arrimo que nem o Relatório da Perícia Médico – Legal (Avaliação Psicológica) resolveria, assumindo, contudo, papel de relevo – no sentido de contraditá-las – o Relatório da Perícia de Natureza Sexual em Direito Penal.

Posta a coisa nestes termos, inviabilizada se torna a sindicância, alargada, da matéria de facto, prejudicada por uma impugnação em bloco, que não cuida de identificar os «concretos pontos de facto» tão pouco «as concretas provas» que, no confronto com cada um deles, imporiam decisão diversa da recorrida – [circunstância, aliás, de que o recorrente estará ciente, pois só assim se entendem determinadas referências, tais como: «O recorrente ousa repetir (…) que tal conduta emerge nos antípodas da “normalidade do acontecer” e, como tal, deveria (…) motivar resposta diversa (…)»; «Na verdade, as incongruências, desconformidades e diferentes enquadramentos emergentes dos discursos da menor, a inexistência de quaisquer elementos objectivos corroborantes das suas distintas versões e a colisão em que entra com os depoimentos do arguido e da testemunha E... , têm de impor uma resposta negativa à factualidade em apreço», isto reportando-se aos factos inscritos no ponto 43. das conclusões, onde consigna: «(…) a prova que impõe decisão diversa é, desde logo, o contributo da menor e as suas intrínsecas fragilidades e incoerências»], resultando óbvio o incumprimento dos ónus de impugnação específicada, o que conduz ao não conhecimento/rejeição do recurso, na vertente alargada, da matéria de facto – [artigo 412.º do CPP].

b.a.

 Dirigido que se mostra, no caso, o recurso, a abalar o processo de convicção do tribunal, não será destituído de sentido relembrar, o que há muito tem vindo a ser repetidamente afirmado pelos tribunais superiores, realçando-se:

- Caso a prova consinta duas ou mais decisões de facto e o julgador, fundamentadamente, optar por uma delas em detrimento das outras, a decisão proferida sobre a matéria de facto é, em princípio, inatacável.

Disso mesmo dá nota Paulo Saragoça da Matta, quando escreve: «Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração» - [cf. “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253].

- Significa, pois, que em sede de apreciação pelo tribunal superior, o recorrente não lhe poderá opor a sua convicção e reclamar que por ela opte ou sufrague, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova, ignorando que «Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova» - [cf. acórdão do STJ de 27.05.2010 (proc. n.º 11/04.7GCABT.C1.S1];

- Donde decorre que se o ataque desferido pelo recorrente visa, no essencial, pôr em causa a livre apreciação da prova, de forma a impor a sua própria convicção “isolando” os depoimentos que vão de encontro aos seus interesses processuais, então, o recurso estará irremediavelmente votado ao insucesso;

- Sem escamotear que na livre convicção, subordinada à razão e à lógica, desempenham um papel relevante as presunções naturais – que mais não são do que «o produto das regras da experiência que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido, quando um facto é a consequência típica de outro» - [cf. acórdão do STJ de 09.02.2005 (proc. n.º 04P47219)].

Vale a pena, contudo, até porque vem colocado em crise o uso que o tribunal fez do artigo 127.º do CPP, deixar algumas considerações, tendo presente, por um lado, as objecções colocadas pelo recorrente e, por outro lado, a tranquilidade que nos advém do facto de havermos procedido à audição integral dos registos de prova concernentes quer às declarações para memória futura, quer à audiência de discussão e julgamento.

Assim:

b.a.a.

Alguma ambivalência, tradutora de sentimentos antagónicos, é, efectivamente, passível de ser detectada no comportamento da menor relativamente ao arguido.

Não cremos, contudo, em face das circunstâncias [reflectidas nos factos provados], incorrer em equívoco na identificação dos motivos a tal subjacentes.

Na verdade, não pode deixar de se realçar a «ajuda preciosa» que o arguido representava para si e, não menos importante, para o agregado familiar em que se inseria, concretizada quer através do auxílio económico prestado – v.g. o encargo com a alimentação da menor, despesas de educação, vestuário -, quer por via da disponibilidade para tratar da sua vida escolar, chegando mesmo a assumir o papel de seu encarregado de educação, transportando-a para e da escola, acolhendo-a em sua casa, onde frequentemente pernoitava, auxiliando-a nas tarefas escolares, proporcionando-lhe condições de conforto que não encontrava na casa da mãe, férias no Algarve, tudo «regalias» que, dada a situação económica [muito menos desafogada do que a do arguido] e os compromissos profissionais, não lhe podiam ser propiciadas por aquela e seu companheiro.

A menor, que do ponto de vista cognitivo «apresenta um funcionamento muito superior…» - [cf. o Relatório da Perícia Médico – Legal de Avaliação Psicológica a fls. 192 a 198], apercebia-se, naturalmente, dos reflexos positivos de todos estes aspectos na sua vida e na da sua família.

Neste contexto, percebe-se o dito antagonismo com tradução em atitudes de sinal contrário no confronto com o arguido, o qual, se por um lado, representava o seu salvo-conduto para um conforto que jamais lhe podia ser oferecido pela mãe, por outro lado, por via das prática sexuais que persistia em levar a efeito na sua pessoa, causava-lhe sentimento de repulsa.

Donde não sejam de estranhar as manifestações de carinho que adoptava para com o arguido e, simultaneamente, a raiva que lhe dedicava.

A somar a isto a relação quase familiar que os ligava em nada facilitava a denúncia do abusador. A circunstância de se aperceber do sentimento de reconhecimento da mãe e respectivo companheiro para com o arguido [companheiro da mãe do D... , por sua vez companheiro da sua mãe] colocava-a numa posição difícil, receando, por um lado, que não acreditassem nela [como seria possível que uma pessoa tão prestativa levasse a cabo actos tão desprezíveis?], sendo que, com o arrastar da situação, a sua vergonha ia aumentando. Daí que faça todo o sentido que tenha sido junto de uma pessoa [testemunha F... ] estranha ao seu agregado, mas que paulatinamente foi ganhando a sua confiança, que conseguiu, aos poucos, ir exteriorizando, por intermédio de palavras e acções, a sua revolta, acabando por lhe contar o que se passava.

É claro que em grande parte o mérito esteve do lado dessa pessoa que soube estar atenta aos sinais – a menor frequentava a sua casa, onde recebia aulas de piano – por forma a concluir que algo de errado estava a acontecer com a miúda, dispensando-lhe uma atenção que a mãe, eventualmente por razões de ordem vária, não foi capaz ou não estava à altura de lhe dedicar.

Não é, pois, necessário ser especialmente perspicaz em relação às «coisas da vida» para entender a razão de ser das condutas, não raras vezes, dissonantes, adoptadas pela menor em relação ao arguido, não necessariamente perante ele próprio, mas junto de terceiros.

E nisto reside - estamos profundamente convictos – a correcta aplicação do normativo em apreço [artigo 127.º do CPP], enquanto impõe que a livre convicção não seja adquirida contra as regras da experiência comum, impondo-se, com frequência, na execução desse exercício «atar as pontas», ou seja «procurar o sentido das coisas», para além do que numa análise perfunctória se nos apresenta, mas não é, óbvio.

b.a.b.

Do mesmo passo, não se encontra fundamento na tentativa de descredibilização das declarações da menor, nem mesmo quando entra em algumas «contradições» - irrelevantes, embora, como bem dá nota o Colectivo [por acaso a criança entrou em contradição sobre o núcleo essencial dos actos praticados? Ou do local onde ocorreram?] -, não nos suscitando qualquer perplexidade a tendência, detectada no confronto entre aquelas [prestadas perante a PJ, para memória futura e em sede de julgamento], para restringir o âmbito das acções do arguido, tendo presente que entre as primeiras e as últimas mediou um período superior a um ano e entre a data dos últimos factos e a da sessão do julgamento em que foi ouvida cerca de 1 ano e 5 meses, afigurando-se-nos de todo compreensível que com os 14 anos já feitos (à data do julgamento) - sendo que um/dois anos de diferença em tal faixa etária faz toda a diferença, designadamente ao nível da vergonha, sentimento que, naturalmente, assume uma dimensão tanto maior quanto maior for a capacidade para avaliar a natureza e gravidade dos actos em que participou - e num momento da sua vida em que se encontrava há mais de um ano fora do país, a sua vontade fosse esquecer uma experiência fortemente traumática, a qual, acredita-se, sempre sairia aliviada quanto menos profundo fosse o mergulho nos factos vivenciados.

Não é uma questão de subjectivismo – como retorquirá o recorrente – é a vida, afinal o «acontecer normal das coisas da vida», por que tanto reclama!

E, para concluir que assim é pouco serve «ler», é necessário «ouvir» - como ouvimos - para constatar o modo emocionado, envergonhado e contido como prestou as suas declarações.

De resto, a orientação para a delapidação das declarações das vítimas é, por razões evidentes, uma constante nos crimes sexuais, querendo, apenas, a propósito deixar este tribunal claro que se revê no acórdão do TRG de 12.04.2010 [proc. n.º 42/06.2TAMLG.G1] quando, a respeito da valia de tais declarações, assim discorre: «É sabido que em matéria de “crimes sexuais” as declarações do ofendido têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante (cfr. v.g. Ac. da Rel. do Porto de 6-3-1991, in Col. de Jur., ano XIII, tomo 2, pág. 287, Ac. do STJ de 2-2-2004 apud, Ac. da Rel. de Coimbra de 22-4-2009, proc.º n.º 376/04.0GAALB.C1, in www.dgsi.pt), pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais».

b.a.c.

Igualmente, falha de razão nos surge a asserção de haver o Colectivo formado a sua convicção, devotando uma indevida credibilidade às declarações da vítima, as quais não encontrariam suporte em qualquer outro meio de prova, o que se apresentaria inequívoco no confronto com o Relatório da Perícia de Natureza Sexual, perícia a que, em 16.11.2012, a menor foi submetida.

Ora, do respectivo Relatório e, em sede de conclusões, a única coisa que se pode retirar é a de não permitir o exame sexual «inferir pela prática dos actos alegados, dado o período de tempo decorrido e a natureza dos mesmos» - [destaques nossos].

Pelo contrário, o Relatório de Avaliação Psicológica abala, de modo muito significativo, a tese implícita de pura efabulação da menor, enquanto, além do mais, consigna: «… Revela, ainda, capacidade para corrigir a perita, quando esta propositadamente comete lapsos (…), mostrando-se capaz de distinguir claramente a fantasia da realidade, de compreender a diferença entre verdade e mentira e a necessidade de falar verdade.

Analisando o relato da menor à luz dos indicadores de veracidade das alegações de abuso, verificamos que este apresenta, na globalidade, características semelhantes às de um relato verdadeiro. Trata-se de um relato congruente com o nível desenvolvimental em que se encontra; consistente e espontâneo na sua organização; com um nível de detalhe semelhante ao que seria de esperar para a sua idade e nível cognitivo, incluindo pormenores referentes ao contexto e à interação abusiva, assim como detalhes típicos da ofensa (existência de segredo). Concomitantemente, não nos parece que existam, neste caso específico, processos que possam contaminar a veracidade do testemunho, nomeadamente a presença de distorções significativas de memória ou indicação de eventual mentira da autoria da menor ou induzida por terceiros.

Apuraram-se (…), alguns indicadores comportamentais e psicológicos que, embora não possam ser encarados como dados definitivos e inquestionáveis, podem funcionar como um “sinal de alerta”, pois são compatíveis com uma situação de abuso e ocorrem, com frequência, em menores vítimas de abuso sexual. Com efeito a B... revelou:

Medo – de ser considerada mentirosa.

Ansiedade – quando antecipava a eventualidade de surgirem novos abusos

Insegurança – ausência de sentimento de proteção assegurado por uma figura que considerava como família e fonte de segurança.

Impotência/Desamparo – sentia que não conseguia controlar os acontecimentos

Perturbação do sono – quando estava a dormir em casa do presumível abusador, não conseguia dormir

Culpa - de não conseguir denunciar a situação

Vergonha – ao permitir a continuidade dos comportamentos abusivos.

Imagens/lembranças intrusivas dos comportamentos que lhe suscitam grande desconforto

Conhecimentos sexuais pormenorizados, só compatíveis com uma vida sexual ativa.

(…)», fazendo, ainda, referência, à circunstância de a menor ter passado a ser acompanhada por psicóloga.

Isto já para não trazer a lume o depoimento da testemunha F... , o qual, se apresentou ao Colectivo - tal como a este tribunal, embora com uma intervenção de segunda linha – convincente e credível. Atributos, estes, que nem a discrepância entre as respectivas declarações [no decurso do inquérito e no julgamento], tal como evidenciado pelo recorrente, confinada à reacção da mãe da menor e respectivo companheiro por ocasião do confronto com os factos, é susceptível de abalar.

Teria, eventualmente, a testemunha algum interesse em urdir plano tão maquiavélico contra o arguido?

Sinceramente, talvez insuficiência nossa, não se vislumbra, nem o recorrente convictamente o foi capaz de apresentar!

b.a.d.

Ainda sem razão de ser a crítica à não valoração – pelo menos ao nível preconizado pelo recorrente – do depoimento da testemunha E... , à data dos factos como no momento em que foi ouvida em sede de audiência de julgamento, companheira do arguido, cujas declarações dão conta, em função de limitações de saúde – como o próprio recorrente reconhece -, de um significativo grau de dependência do próprio, apresentando-se de todo razoável, não constituindo – bem ao invés – afronta às regras da experiência comum a apreciação do Colectivo quando refere: «Quanto às declarações da testemunha E... adotou claramente uma postura de favor ao arguido determinada pelo seu desejo de acreditar na inocência do companheiro. Daí que o seu depoimento não tenha sido inteiramente credível designadamente no que respeita ao ocorrido na data do último dos episódios em causa, no primeiro dia de aulas da menor no ano letivo de 2012/2013».

b.a.e.

Também irrealista surge a pretensão de querer ver na não valoração da patologia do recorrente ao nível do seu órgão sexual, violação do preceito em questão, porquanto suporia que a menor tivesse, a esse nível, experiência – o que não ressuma da decisão, tão pouco da prova – sendo caso para perguntar se seria, na sua faixa etária, suposto haver a mesma ter tido qualquer contacto com órgãos sexuais masculinos de homens adultos? É que nem as imagens que terá visualizado – em filmes e/ou livros – surgiriam aptas, com a sua idade/inexperiência, a que estabelecesse comparações que lhe permitissem detectar a dita patologia. Pensar de outra forma é que redundaria num raciocínio contrário às regras da experiência comum, fazendo, assim, todo o sentido que para a menor o pénis do arguido fosse «normal».

Por outro lado, e ainda quanto a eventuais efeitos dolorosos da sobredita patologia, teima o recorrente em ler o que não consta do acórdão, não resultando deste, designadamente, que todos os actos sexuais descritos tenham tido lugar quase todos os dias.

Torna-se, pois, apodíctico, vir a convicção suportada na regra da livre apreciação da prova, em sintonia com a experiência comum, de acordo, com o normal acontecer das coisas da vida, sem recurso a juízos arbitrários, irrazoáveis, a denunciar arbitrariedades e/ou puro subjectivismo, não resultando, em consequência, violado o artigo 127.º do CPP.

b.a.f.

Dedica o recorrente os pontos 73., 74., 75. e 76. das conclusões à invocada preterição do princípio da presunção de inocência, na vertente do pro reo, exercício que encontra, quer com recurso a elementos doutrinários, quer jurisprudenciais, eloquente concretização em sede de motivação.

Com efeito, após delinear os parâmetros a que deve obedecer o processo subjacente à apreciação/valoração da prova, revelando a maior lucidez na conformação dos princípios inerentes, com referência v.g. à relevância, para o efeito, da imediação, do inevitável grau de subjectividade, da livre convicção, das injunções/inferências, constatando-se o acerto, a tal nível, da análise, conclui por que « … as incongruências, desconformidades e diferentes enquadramentos emergentes dos discursos da menor, a inexistência de quaisquer elementos objectivos corroborantes das suas distintas versões e a colisão em que entra com os depoimentos do arguido e da testemunha E... , têm de impor uma resposta negativa à factualidade em apreço».

Como ensina Cavaleiro de Ferreira, «Lições de Direito Penal», I, pág. 86, respeita o princípio ao direito probatório, implicando a presunção de inocência que, sendo incerta a prova, se não use um critério formal para decidir da condenação do arguido, decisão que terá sempre de assentar na certeza dos factos probandos.

O julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência, tiver dúvidas sobre qualquer facto.

Significa, pois, que um non liquet na questão da prova tem de ser valorado a favor do arguido, conforme escreve Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, I, pág. 213.

Todavia, não é qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido. Na realidade, a dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos actos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja alguns motivos de dúvida – [cf. Cristina Líbano Monteiro, “In Dubio Pro Reo”, Coimbra Editora, 1997].

A propósito da derrogação do princípio em questão, entre muitos outros, pronunciou-se o acórdão do STJ de 17.10.2012 [proc. n.º 1243/10.4PAALM.L1.S1], do qual se extracta: «Só se verifica quando, seguindo o processo decisório, se chega à conclusão que o tribunal, tendo ficado na dúvida, decidiu contra o arguido ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis.

Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à condenação do arguido, ficam afastados os princípios do in dubio pro reo e da presunção de inocência, sendo que tal juízo factual não teve por fundamento uma imposição de inversão da prova ou o ónus da prova a cargo do arguido, mas resultou do exame livre das provas produzidas em audiência, como impõe o n.º 1 do art. 355.º do CPP, subordinadas ao princípio do contraditório, conforme dispõe o n.º 1 do art. 32.º da CRP» - [vide no mesmo sentido os acórdãos do STJ de 15.10.2003, (proc. n.º 1882/03-3.ª), 20.10.2005 (proc. n.º 2431/05-5.ª), 11.04.2007, (proc. n.º 3193/06 -3.ª)].

Isto é, como se lê no acórdão do TRC de 09.09.2009 (proc. n.º 564/07.8PAVCD.P1), «Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste».

Ora, aqui chegados, não vamos repetir, por fastidioso, o que nos pontos antecedentes já tivemos oportunidade de esclarecer.

Reafirmamos, isso sim, revelar-se a fundamentação da decisão [processo de convicção do tribunal] suficientemente consistente, racional, clara, com respeito pelas regras da experiência comum, reflectindo uma tomada de posição inequívoca relativamente aos factos que, em qualquer das suas dimensões, suportam a responsabilidade do arguido.

Não ficou o Colectivo em estado de dúvida, tão pouco este tribunal de recurso, o qual - repete-se -, tendo procedido à integral audição dos registos de prova, partilha aquela convicção, ou seja, também, não é assolado por qualquer dúvida, muito menos irremovível.

É quanto basta para afastar a alegada violação da presunção de inocência, na vertente do pro reo.

De facto, numa linguagem metafórica casos há em que a dicotomia – como diz o recorrente – bem poderia estabelecer-se entre «Anjos» e «Demónios»!

Na presente situação, o confronto ocorre seguramente entre, por um lado, a fragilidade de quem, seja por via da sua pouca idade, seja por via da vergonha, seja por via de uma menor atenção da respectiva progenitora, seja por via da consciência de uma situação de dependência, seja por via de um conforto de outra forma inatingível, seja pela conjugação de todos estes factores, se foi sujeitando a actos de cariz sexual com repercussões no seu são desenvolvimento ao nível da sexualidade, e, por outro lado, a determinação de um adulto – capaz de ser seu avô – que, com vista a satisfazer os seus instintos sexuais, soube interpretar e tirar partido das circunstâncias, encetando e reiterando a prática de actos deploráveis, em elevado grau comprometedores do desenvolvimento da menor e cujas reais repercussões só o futuro poderá, exactamente, esclarecer.

Concluindo, em função do que ficou dito ao longo diferentes itens do ponto b., não se detectando insuficiências comprometedoras da decisão de direito, contradições irremovíveis, apreciações irrazoáveis, ao arrepio das regras da experiência, tão pouco desrespeito por prova vinculada, têm-se a matéria de facto vertida no acórdão recorrido por definitivamente fixada.

c.

Invoca o recorrente resultar violada a norma do artigo 171.º, n.º 1 do C. Penal, já porque o “ter puxado o «top» à menor e ter tentado beijá-la no peito” não integraria o conceito de «acto sexual de relevo», já porque, ainda que esse não seja o entendimento, tal tipo de ilícito ter-se-ia quedado pelo «estágio da tentativa», enquadramento, este, não acolhido pelo Colectivo, o que conduziria à derrogação dos artigos 22.º, 23.º e 73.º do mesmo diploma legal – [cf. pontos 90., 91., 92., 93., 94., 95., 96., 97., 98. e 99. das conclusões].

Sobre o conceito em referência tem-se pronunciado a doutrina configurando-o, em termos gerais, como «… a acção de conotação sexual de uma certa gravidade objectiva realizada na vítima» - [cf. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, pág. 442].

A propósito, refere Maia Gonçalves [C. Penal Português Anotado, 18ª ed., pág. 624]: «Trata-se de um conceito novo a que se faz apelo em outros preceitos; (…). Tanto a cópula como o coito anal e oral são actos sexuais de relevo, precisamente os mais graves.

Dentro da orientação já traçada para os limites que se devem estabelecer em moldes hodiernos para a criminalidade sexual, estava sendo inconveniente, como já foi acentuado, a referência na versão originária do Código à moralidade sexual. A referência a acto sexual de relevo ajusta-se melhor ao novo posicionamento e vinca ainda mais o pensamento legislativo de restringir o tipo. Assim se erradica (…) do direito criminal todo o dogmatismo moral, ficando no entanto dele somente condutas sexuais que ofendam bens jurídicos fundamentais das pessoas no que concerne à sua livre expressão do sexo.

Não é porém possível estabelecer em parâmetros exactos o que se deve entender por condutas ou actos sexuais. E saliente-se a propósito que as dificuldades na definição desses parâmetros sempre serão mais facilmente superadas do que as que surgiram na definição do abandonado conceito de atentado ao pudor. O conceito tem gerado alguma polémica, designadamente no que concerne à relevância que nele devem desempenhar os elementos objectivos e subjectivos. Parece-nos, porém, certo que acto sexual só pode ser considerado aquele que tem relação com o sexo (relação objectiva) e em que, além disso haja por parte do seu autor a intenção de satisfazer apetites sexuais (…).

Esta definição do conceito de acto sexual, em que entra uma conotação subjectiva, que supomos predominante, não é porém unânime. Entre nós o Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, I, 448, sustenta uma interpretação objectivista, resolvendo depois os casos de escola como o do médico que examina o corpo de uma paciente ou o pai que beija uma filha através de causas de justificação ou de não correspondência à teleologia hodierna dos crimes sexuais.

De qualquer modo, o tipo está limitado pelo uso de expressão restritiva de relevo.

O direito criminal, como ultima ratio, implica que só seja tutelada a liberdade sexual contra acções que revistam certa gravidade. Em tais termos, actos como o coito oral e a masturbação devem aqui ser incluídos; o mesmo não sucederá, em regra, com os beliscões e os beijos, que só o deverão ser em casos extremos, ou seja naqueles em que existem grande intensidade objectiva e intuitos sexuais atentatórios da autodeterminação sexual.

Trata-se, afinal, de afloramento do princípio bagatelar – de minimis non curat praetor. Deve em todo o caso anotar-se que não é indispensável o contacto mútuo com o corpo da vítima. (…). Mesmo o comportamento por omissão, como permanecer nu perante a vítima, pode eventualmente ser considerado acto sexual de relevo, tudo dependendo das circunstâncias em que esse comportamento tem lugar (…)».

No mesmo sentido Mouraz Lopes, quando escreve: «Trata-se de um conceito que, embora indeterminado, se pretendeu liberto de conteúdos moralistas. É, nas palavras de Figueiredo Dias, in «O Código Penal de 1982 e a sua Reforma», RPCC, pág. 191, «o conceito chave» na matéria dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexuais. O mesmo professor refere que «(…) se trata sempre de “actos graves” e não, por exemplo, um beliscão passageiro» (Código Penal – Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, 1993, pág. 251).

(…)

Importa não esquecer que o «acto sexual de relevo» terá de configurar, em primeiro lugar, um acto sexual. Mas não só. É o carácter grave, de «importância» do acto que o faz transportar para o iter criminis, quando é este acto que está em causa no tipo de crime» - [cf. “Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual no Código Penal”, Coimbra Editora, 4.ª edição, pág. 23 e ss.].

A propósito pondera Sénio Alves (Crimes Sexuais, pág. 8): «O acariciar dos seios é um acto sexual? E se sim, é de relevo? (…) Numa noção pouco rigorosa (diria sociológica) de acto sexual têm cabimento actos como os supra referidos (o acariciar dos seios e de outras partes do corpo). São aquilo que vulgarmente se designa como preliminares da cópula e, por isso, são actos de natureza sexual ou, se se preferir, actos com fim sexual, pelo que o acto sexual de relevo é, assim, todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas e a relevância ou irrelevância de um acto sexual só lhe pode ser atribuída pelo sentir geral da comunidade (…) que considerará relevante ou irrelevante um determinado acto sexual consoante ofenda, com gravidade ou não, o sentimento de vergonha e timidez (relacionado com o instinto sexual) da generalidade das pessoas».

Retomando o caso concreto, sem necessidade de apelar a qualquer subjectivismo, nenhuma dúvida se nos coloca de que a acção em questão, traduzida no puxar o top, com o propósito de beijar o peito da menor encerra um acto com manifesta conotação sexual dotado de gravidade objectiva, o qual, conjugado com a intenção do arguido de, assim, satisfazer os seus instintos libidinosos, integra, naturalmente, o conceito de «acto sexual de relevo».

Com efeito, conforme sentencia acórdão do STJ de 05.07.2007 «acto sexual de relevo é todo aquele que assume uma natureza ou significado directamente relacionado com a esfera da sexualidade de quem o sofre ou pratica, que pela sua gravidade contende com a liberdade de determinação sexual da vítima», prosseguindo «No abuso sexual de crianças será sempre relevante qualquer actuação objectivamente libidinosa por mais simples que ela seja ou pareça ser, em virtude de tais menores não disporem do discernimento suficiente para se relacionarem sexualmente em liberdade» - [cf., CJSTJ 2/07, 242].

Entendimento, igualmente, sustentado no acórdão do STJ de 05.09.2007, acessível em www.dgsi.pt, donde se respiga: «a lei presume que a prática de actos sexuais em menor, com menor ou por menor de certa idade, prejudica o seu desenvolvimento global, e considera este interesse tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob a tutela da pena criminal.

Protege-se, pois, uma vontade individual ainda insuficientemente desenvolvida, e apenas parcialmente autónoma, dos abusos que sobre ela executa um agente, aproveitando-se da imaturidade do jovem (…). O que está em causa não é somente a autodeterminação sexual mas, essencialmente, o direito da menor a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso, presumindo-se que este estará sempre em perigo quando a idade se situe dentro dos limites definidos pela lei» - [destaques nossos].

Sobre o conceito, basicamente no mesmo sentido, podem, ainda, ver-se os acórdãos do TRC de 02.02.2011 [proc. n.º 888/09.8TAPBL.C1], 21.03.2012 [proc. n.º 490/09.6JAAVR.C1], 05.06.2013 [proc. n.º 204/10.8TASEI.C1].

Porém, já se nos afigura estar a razão da parte do recorrente quando defende não haver o ilícito típico em causa ultrapassado a forma tentada.

E isto porque não resultando do acervo factual que com o puxão do top, a vítima tenha, desde logo, ficado desnudada – circunstância em que não hesitaríamos em ter o ilícito por consumado – o acto sexual de relevo visado, qual seja o beijo no peito da menor, não logrou concretizar-se, quedando-se o crime pelo estádio da tentativa – [cf. artigo 22.º do C. Penal].

Podemos, assim, assentar em que a factualidade apurada é subsumível ao tipo de crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º, n.º 1 e 22.º, ambos do C. Penal, pois que dúvidas não restam de que se tratou de acto conotado com a sexualidade, objectivamente de relevo, visando a satisfação dos instintos libidinosos do arguido, que, embora, conhecedor da idade da vítima [11 anos], visou concretizá-lo, praticando actos de execução, no que se determinou livre, voluntária e conscientemente, nenhuma reserva merecendo o juízo sobre os efeitos traumáticos da conduta, dada a imaturidade e o inerente fraco desenvolvimento volitivo da criança, no respectivo desenvolvimento psíquico, que se quer harmonioso, designadamente ao nível da sexualidade.

d.

Já a sustentada violação do artigo 171.º, n.º 2 do C. Penal, reportada aos demais [dois] ilícitos típicos subsumidos à norma em questão, vindo fundamentada na preconizada [mas não bem-sucedida] alteração da matéria de facto - aliada à evidente presença, à luz do acervo factual, dos respectivos elementos objectivos e subjectivos, que nem o recorrente, a esse nível, contesta - dispensa outras considerações que vão além da constatação da falência da pretensão.

e.

Não se conforma, ainda, o recorrente com a sua condenação pela prática dos três crimes de abuso sexual de crianças, um deles p. e p. pelo artigo 171.º, nº 1 do C. Penal e os outros dois, p. e p. pelo n.º 2 do citado preceito, porquanto - aduz - a natureza de exaurido do crime e o lapso temporal considerado [cf. o ponto 37. dos factos provados] conduziriam, necessariamente, à inclusão das duas acções isoladas – reportadas a Junho de 2012 e a 14 de Setembro do mesmo ano – sob pena de violação do princípio non bis in idem, no seio do período contemplado no ponto 37., isto é «desde inícios de Setembro de 2011 até ao Verão de 2012».

«Crime exaurido», «crime de empreendimento» ou «crime excutido», diz-se relativamente àquele que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo, verificando-se a consumação «com a comissão de um só acto de execução, ainda que sem se chegar à realização completa e integral do tipo legal pretendido pelo agente» - [cf. acórdão do STJ de 05.12.2007, proc. n.º 07P3406, disponível em www.dgsi.pt].

A questão tem sido objecto de atenção por parte dos tribunais superiores, designadamente a propósito do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º do D.L. n.º 15/93, de 22.01, cuja descrição da respectiva factualidade típica é de tal forma alargada que o reconduz a «um tipo plural, com actividade típica ampla e diversificada (…) em que todos os actos têm entre si um denominador comum: a sua aptidão para colocar em perigo os bens e os interesses protegidos com a incriminação».

Isso mesmo decorre do acórdão do STJ de 16.06.2010 [proc. 273/08.0JELSB-B.E1.A.S1], onde se lê: «O crime de tráfico, como crime exaurido, consuma-se, pois, imediatamente no momento da ocorrência de um qualquer dos vários momentos ou das condutas implicados na ampla descrição típica do artigo 21º do D.L 15/93, de 15.1, sendo, por isso, indiferente a ocorrência e a adjunção, posterior ou sequente, de um ou outro dos vários momentos de tipicidade; qualquer deles determina, por si, a consumação do crime».

No mesmo sentido já se havia pronunciado o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 12-07-2006 [proc. 1709/06 – 3.ª], consignando: «o crime exaurido é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de corresponderem a uma execução completa do facto, e em que a imputação dos actos múltiplos e sequentes é imputada a uma realização única. Mas a incidência do tempo naquela unicidade não pode deixar de se tomar em apreço, e até comprometê-la mesmo, se decorrer um largo hiato de tempo entre as múltiplas condutas; não já se interceder um momento volitivo a despoletá-las todas, que aglutine as primeiras e subsequentes, ainda dentro daquela volição, hipótese que exclui o concurso real de infrações, nos termos do art.º 30.º, n.º 1, do CP».

Também no âmbito dos crimes sexuais a construção tem merecido um certo acolhimento, não já em função da respectiva estrutura típica – a qual não beneficia da amplitude da previsão do tráfico de estupefacientes, mas sim – se bem o interpretamos – por uma razão mais de ordem pragmática, que se prende, em primeira linha, com a dificuldade, em determinadas situações de chegar ao número de crimes, efectivamente, praticados pelo agente.

Que assim é decorre do acórdão do STJ de 29.11.2012 - [proc. n.º 862/11.6TAPFR.S1], de cujo sumário se respiga: «I. Quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crime sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem.

II. O mesmo sucede com outro tipo de crimes que, tal como o sexo, facilmente se transformam numa “atividade”, como, por exemplo, o crime de tráfico de droga. Pergunta-se, por isso, se nesses casos de “atividade criminosa”, o traficante de rua que, por exemplo, se vem a apurar que vendeu droga diariamente durante um ano, recebendo do «fornecedor» pequenas doses de cada vez, praticou, «pelo menos», 200, 300 ou 365 crimes de tráfico [o que aparentava ser uma contagem arbitrária ou, pelo menos, “imaginativa”] ou se praticou um único crime de tráfico, objectiva e subjectivamente mais grave, dentro da sua moldura típica, em função do período de tempo durante o qual se prolongou a atividade.

III. A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há um só crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime – tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido.

IV. Ao contrário do crime continuado (…), nos crimes prolongados não há uma diminuição censurável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»] (…).

V. O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» [Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P.P. Albuquerque].

VI. Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma.

(…)

VIII. Ora, no caso dos crimes de trato sucessivo, a punição faz-se pelo ilícito mais grave entretanto cometido, agravada, nos termos gerais, pela sobreposição dos demais.

(…)».

Admitindo, igualmente, a figura no domínio de tal tipo de criminalidade veja-se o acórdão do STJ de 22.01.2013 [proc. n.º 182/10.3TAVPV.L1.S1], donde se extracta: «Em alguns casos a situação de abuso sexual de criança tem sido enquadrada na figura do crime único de trato sucessivo, entendendo-se haver lugar a uma unificação das condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma mesma só resolução criminosa desde o início assumida pelo agente. Configura trato sucessivo a existência de um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal. Porém, no caso, nenhum elemento da materialidade provada permite a redução do processo volitivo do arguido a uma linha uniforme sem qualquer fractura temporal. (…) Eventualmente poderia argumentar-se no sentido da decisão recorrida procurando, numa visão holística do comportamento do arguido, atribuir um significado à conexão temporal existente. Na verdade, em alguns casos a situação de abuso sexual de criança tem sido enquadrada na figura do crime único de trato sucessivo, entendendo-se haver lugar a uma unificação das condutas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma mesma só resolução criminosa desde o início assumida pelo agente.

Tal unidade de resolução, a par da homogeneidade de actuação e, da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos actos sucessivos num só crime. O dolo do agente engloba ab initio uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispõe logo a praticar, para tanto preparando, se necessário, as condições de realização, estando-se no plano da unidade criminosa; a reiteração, revelando uma resolução determinada e persistente do agente, traduz uma culpa agravada.

Haverá aqui um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal, configura o trato sucessivo».

A vertente pragmática que, em grau significativo, se nos afigura surgir a justificar a figura, não deixa, ainda, de resultar do acórdão do STJ de 12.06.2013 [proc. 1291/10.4JDLSB.S1], onde se lê: «A solução do crime de trato sucessivo serve também hipóteses de pluralidade de crimes mas cuja prática conforma uma “actividade”, prolongada no tempo, e em que se torna tarefa muito difícil, se não arbitrária, definir o concreto número de actos parcelares que a integram».

E foi, efectivamente, esse o caminho trilhado pelo Colectivo relativamente às condutas descritas nos pontos 25 a 37. dos factos provados, sendo, elucidativa, nesse sentido a seguinte passagem do acórdão: «No caso dos autos é possível isolar o episódio ocorrido em junho de 2012, no Algarve. O arguido puxou o top da criança e tentou beijar-lhe o peito, integrando essa conduta a factualidade típica prevista no art.º 171º, nº 1. Também é possível isolar o último episódio ocorrido em 14 de setembro de 2012. Houve carícias no peito e zona genital, integrando essas condutas a factualidade típica prevista no art.º 171º, n.º 1. Houve coito oral, integrando essas condutas a factualidade típica prevista no art.º 171º, n.º 2. Relativamente aos demais factos imputados ao arguido, não sendo possível, face à sua prática reiterada, determinar o número concreto de vezes em que tiveram lugar, entende-se, assim, que o arguido praticou um único crime de trato sucessivo de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art.º 171.º n.º 2 do C.P».

Assistirá razão ao recorrente quando pretende que os factos isolados de Junho de 2012 e de 14 de Setembro do mesmo ano sejam integrados no crime de trato sucessivo, figura que o Colectivo entendeu – matéria que não se encontra, agora, em discussão – estar presente no confronto com as demais condutas?

Afigura-se-nos que não!

Com efeito, não só as acções em causa se encontram isoladas, identificadas com referência à natureza das condutas praticadas e ao tempo em que ocorreram – não emergindo qualquer obstáculo quanto ao respectivo número – como, manifesto se torna, no contexto da decisão, não se reconduzir a referência a «desde inícios de Setembro de 2011 até ao Verão de 2012» [cf. ponto 37.] às precisas datas do calendário, concretamente às que se reportam ao início e termo das estações do ano, antes procurando reflectir três lapsos temporais: desenvolvendo-se o primeiro durante o período de aulas até às férias; o segundo o das próprias férias e o terceiro após férias, coincidindo com o início do ano lectivo.

Acresce que o contexto em que se desenrolaram as condutas, v.g. ao nível do espaço, mas também do esforço, por certo desenvolvido pelo arguido na acção que levou a efeito em Junho de 2012 – durante as férias, portanto – no sentido de se precaver, escolhendo o momento adequado, por forma a evitar que a sua companheira se apercebesse da conduta encetada, não foi sempre coincidente.

Por outro lado, não decorre da decisão – e julga-se que, em face das circunstâncias, dificilmente assim podia ser - que tenha estado presente uma única resolução criminosa, tão pouco a mesma unidade resolutiva, para cuja afirmação «é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» - [cf. Eduardo Correia, 1968:201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P.P.Albuquerque].

Na verdade, a «materialidade considerada provada não permite a redução do processo volitivo do arguido a uma linha uniforme sem qualquer fractura temporal» - [cf. o acórdão do STJ de 14.05.2009 (proc. n.º 07P0035)].

Por fim, deixando de parte situações excepcionais, às quais só é possível responder, designadamente pela impossibilidade prática de chegar ao número de crimes, por via da figura do crime de trato sucessivo, tal como Pinto de Albuquerque somos tentados a dizer que se o resultado prático querido pelo legislador foi banir do crime continuado as condutas contra bens eminentemente pessoais, por regra, parece « … inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime «de trato sucessivo, ficcionando o julgador um dolo inicial que engloba todas as acções. Tal ficção constituiria uma fraude ao propósito do legislador» - [cf. Comentário do Código Penal, 2.ª edição, Universidade Católica Editora, pág. 162].

Concluindo, o crime reportado ao período que antecedeu as férias da menor não abarca as duas acções isoladas, verificadas em Junho de 2012 e 14 de Setembro do mesmo ano, não esgotando aquele o desvalor contido nestas últimas, não ocorrendo, assim, violação do princípio non bis in idem [artigo 29.º, n.º 5 da CRP], tendo nós por relativamente seguro não se integrar o tipo de ilícito em questão [abuso sexual de crianças], cuja previsão típica não é comparável àquela outra do tráfico de estupefacientes, na categoria do crime exaurido.

Em suma, na parte contestada não merece reparo a decisão.

f.

Dissente, igualmente, o arguido das penas parcelares encontradas relativamente a cada um dos crimes, indicando como disposições violadas os artigos 71.º, nº 1 e 30.º, n.º 2 do C. Penal.

Na apreciação das penas aplicadas, o ponto de partida e enquadramento geral da tarefa a realizar prende-se com o disposto no art. 40.º do CP, segundo o qual toda a pena tem como finalidade «a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», não podendo em caso algum a pena ultrapassar a medida da culpa.

Vem a jurisprudência reiteradamente afirmado, seguindo a doutrina de Figueiredo Dias [Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005, pág. 227 e ss], que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-à encontrar uma submoldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar”; será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão actuar os pontos de vista da reinserção social; quanto à culpa, para além do suporte axiológico-normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar - [cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 24.04.2008 e de 16.10.2008, ambos sumariados in www.stj.pt.].

Isto dito vejamos o caso concreto.

A cada um dos crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, nº 2 do C. Penal, corresponde a moldura penal abstracta de pena de prisão de três a dez anos.

A propósito ponderou o Colectivo:

«O grau de ilicitude das condutas é muitíssimo elevado, porque se prolongaram no tempo com práticas sexuais reiteradas s´atingidas com violência psicológica sobre a criança.

O arguido agiu com dolo e muito intenso, aproveitando a ausência da sua companheira e da progenitora da menor para praticar os atos criminosos.

A gravidade objetiva dos factos imputados ao arguido suscita alarme social, sendo prementes as exigências de prevenção geral, havendo hoje mais do que nunca um sentimento de repugnância social pelos indivíduos que se aproveitam da menoridade da vítima e da sua dependência para dela abusarem sexualmente. Há também uma atenção crescente aos direitos das crianças, aos valores relativos ao desenvolvimento equilibrado da sua personalidade e à inviolabilidade da sua vida sexual (…).

Além disso, pese embora a circunstância de não ter antecedentes criminais, o que não pode deixar de relevar a seu favor, o arguido evidenciou falta de arrependimento em audiência, sendo por isso de franco relevo as exigências de prevenção especial».

À luz destas circunstâncias teve o tribunal como adequadas as penas de 4 [quatro] anos e 6 [seis] meses de prisão quanto ao crime qualificado como de trato sucessivo; 3 [três] anos e 4 [quatro] meses de prisão relativamente ao crime respeitante à conduta de 14.09.2012.

Diz o recorrente que tais penas ignoraram encontrar-se a «prevenção especial ao nível da ressocialização (…) sensivelmente diminuída» face à sua idade, à sua inserção social, laboral e familiar.

Com o devido respeito, só por mero dever de ofício se compreende que no seio da moldura abstracta estabelecida, as penas alcançadas - uma praticamente encostada ao mínimo legal consentido [3 anos e 4 meses de prisão]; a outra, dada a gravidade dos factos; o longo período por que se arrastaram; o muito intenso grau de culpa, as fortes exigências de prevenção geral, fixada de forma muito parcimoniosa em 4 anos e 6 meses de prisão – se tenham por «draconianas», já que se pecam é por defeito.

Como tal, nenhuma razão de ressocialização surge, no quadro traçado, idónea a provocar diminuição nas duas penas concretas encontradas, as quais, seguramente, não violam por excesso as normas que conformam a matéria, designadamente os artigos 40.º e 71.º, ambos do C. Penal, mostrando-se, a respeito, infundada a invocação do n.º 2 do artigo 30º do C. Penal – [cf. ponto 102 das conclusões].

São, pois, de manter inalteradas as duas penas parcelares em análise.

No que tange à punição pelo crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, nº 1 do C. Penal, necessário se torna, por força do disposto nos artigos 22.º, n.º 2, 23.º, 73.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 41.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, encontrar a pena concreta, agora, no seio de uma moldura abstracta especialmente atenuada situada entre o limite mínimo de 1 [um] mês e o limite máximo de 5 [cinco] anos e 4 [quatro] meses de prisão.

Sopesadas as circunstâncias levadas em linha de conta pelo Colectivo e acima reproduzidas, à luz dos artigos 40.º e 71.º do C. Penal, mostra-se ajustado fixar a pena em 9 [nove] meses de prisão, a qual respondendo de forma adequada às exigências de prevenção, não ultrapassa a medida da culpa.

g.

Já em função da alteração operada relativamente à pena concreta aplicada ao arguido pelo crime p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 do C. Penal, já pela circunstância de o mesmo se insurgir quanto à pena única, impõe-se reformular o cúmulo jurídico.

Na concretização da regra estabelecida no nº 1 in fine, do artigo 77º do Código Penal, de acordo com o qual na medida da pena - no que à punição do concurso concerne - são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, tem sido pacífico, designadamente ao nível da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que essencial «na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse bocado de vida criminosa com a personalidade, de tal forma que a pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares» [cf. Ac. STJ de 05.07.2012, Proc. n.º 145/06.SPBBRG.S1], o que, contudo, não dispensa o recurso às exigências de prevenção geral e especial, encontrando, também, a pena conjunta o seu limite na medida da culpa.

Traçadas, no essencial, as coordenadas relevantes na matéria, vejamos, então, o caso concreto.

Com vista a alcançar a pena unitária há que considerar as seguintes penas parcelares:

- A pena especialmente atenuada de 9 [nove] meses de prisão pela prática, na forma tentada, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 do C. Penal;

- A pena de 4 [quatro] anos e 6 [seis] meses pela prática de um crime [de trato sucessivo] de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 2 do C. Penal;

- A pena de 3 [três] anos e 4 [quatro] meses de prisão pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 2 do C. Penal.

Significa, pois, à luz do n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal, que a moldura penal abstracta a atender para efeitos do concurso de crimes, no seio da qual há-de ser encontrada a pena conjunta, se situa entre um limite mínimo de 4 [quatro] anos e 6 [seis] meses de prisão [correspondente à mais elevada das penas parcelares aplicadas aos vários crimes em concurso] e um limite máximo de 8 [oito] anos e 7 [sete] meses [resultante da soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes].

Pretendendo-se com a fixação da pena conjunta sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas especialmente pelo seu conjunto enquanto tradutor da dimensão e da gravidade global do comportamento delituoso, na determinação da mesma importa averiguar se ocorre ou não conexão entre os factos em concurso, se existe ou não, qualquer relação entre uns e outros, indagar da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e a gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderado em conjunto com a personalidade do agente, com vista à obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos … de modo a decidir se o ilícito global é ou não produto de uma tendência criminosa do agente e a fixar a medida concreta da pena dentro da moldura do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que a pena irá exercer sobre ele – [cf. Acórdão do STJ de 27.06.2012, Proc. n.º 151/08.3PAGDM – A.S1].

Na situação em apreço, na concretização dos elementos determinadores da pena conjunta – os factos e a personalidade do agente, considerados no seu conjunto como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado - é de ponderar tratar-se de um complexo delituoso integrado por três crimes, um dos quais se arrastou por um lapso temporal considerável, dirigidos todos eles à ofensa – embora com graus de gravidade distinta – do mesmo bem jurídico, não se distanciando uns dos outros de forma muito significativa.

Por outro lado, é de atender à relativa proximidade entre as várias resoluções criminosas, que, em parte, foram executadas pela mesma forma.

A medida da gravidade do ilícito global apresenta-se muito elevada quando se considera a dimensão, intensidade e persistência na prática dos sobreditos crimes.

A gravidade que assumiram os factos criminosos, com um aproveitamento muito hábil, por parte do arguido, das relações quase familiares, de grande confiança, que o uniam aos elementos do agregado onde se inseria a menor, agrava sensivelmente a sua responsabilidade, não sendo o tempo por que perduraram as condutas delituosas, com os contornos resultantes do acervo factual apurado, compatível com um juízo de pluri-ocasionalidade que não radique na sua personalidade, detectando-se, antes, uma inegável propensão para a reiteração de tais práticas criminosas.

Ponderando, ainda – o que não escapou ao Colectivo – a idade do arguido [com 66 anos à data do julgamento], a sua inserção social e familiar, tendo presente que a medida da pena conjunta, respondendo a exigências de prevenção geral, não pode deixar de ser perspectivada nos efeitos que possa ter no comportamento futuro do agente, a razão de proporcionalidade entre finalidades deve estar presente para não comprometer definitivamente, pela duração, a possibilidade de realização, ainda, de finalidades especiais de prevenção e de ressocialização, têm-se por adequado fixar a pena única em 6 [seis] anos de prisão efectiva, pena esta, que não excedendo a culpa, satisfaz suficientemente as exigências preventivas e atende, tanto quanto possível, aos ditos interesses de ressocialização.

h.

No que concerne à preconizada aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da prisão, considerando o que se acaba de decidir relativamente à medida da pena única, desde logo por não se mostrar verificado o respectivo pressuposto formal – condenação em pena de prisão não superior a cinco anos – artigo 50.º, n.º 1 do C. Penal, improcede o recurso.

III. Decisão

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em:

I.

a. Julgar improcedente o recurso interlocutório, interposto do despacho de 21.12.2012;

b. Condenar o recorrente em 3 [três] Ucs de taxa de justiça [artigos 513.º do CPP e 8.º do RCP, com referência à tabela III].

II.

c. Julgar parcialmente procedente o recurso interposto do acórdão final e, em consequência:

d. Condenar o arguido A... pela prática de um crime de abuso sexual de criança, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, 22º, 23º, 72.º e 73.º, todos do C. Penal na pena especialmente atenuada de 9 [nove] meses de prisão, revogando em correspondência, o ponto I do dispositivo do acórdão recorrido;

e. Operando o cúmulo jurídico das penas aplicadas em d. supra e nos pontos II e III do dispositivo do acórdão recorrido, condenar o arguido A... na pena única de 6 [seis] anos de prisão efectiva, revogando em correspondência o ponto V. do dito acórdão;

f. No mais manter o acórdão recorrido;

g. Sem tributação.

[Maria José Nogueira - relatora]

[Isabel Valongo - adjunta]

[Alberto Mira - presidente da 5.º secção (criminal)]