Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
465-A/2002.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: FALÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
GARANTIA REAL
CITAÇÃO
CREDOR
INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
DEVEDOR
Data do Acordão: 09/23/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1º, Nº 1, 3º, Nº 1, 20º, Nº 1, 179º, Nº 1, 188º, NºS 1 E 2, E 209º DO CPEREF (D. L. Nº 132/93, DE 23/04); 604º, Nº 2, C.CIV.
Sumário: I – A intervenção, numa falência ou insolvência pendente, do credor que seja titular de uma garantia real é simples consequência da oponibilidade à execução colectiva (ou singular) – e à apreensão de bens – das causas de preferência no pagamento de que esse credor beneficia (artº 604º, nº 2, C. Civ.), destinando-se essa intervenção a permitir que esse credor possa fazer valer na execução colectiva pendente aquela causa de preferência.

II - A justificação da intervenção na execução, singular ou colectiva, de credores que são titulares de garantias reais sobre os bens penhorados ou apreendidos, encontra-se na extinção destas garantias através de venda executiva (artº 824º, nº 2, do C. Civ.).

III - Se for apreendido para a massa falida bem do falido onerado com garantia real constituída para assegurar crédito de que é devedor, não o falido, mas terceiro, ao credor deve ser facultada a intervenção no procedimento falimentar.

IV - Essa intervenção não tem de ser actuada nos prazos e através do procedimento de reclamação de créditos, dado que aquele prazo e este procedimento assenta na pressuposição de que os reclamantes são credores do falido.

V – Mesmo no caso de existir garantia sobre os bens apreendidos, o CPEREF não mandava citar pessoalmente o credor do falido para reclamar o seu crédito: o prazo para a reclamação da verificação dos créditos, quer comuns quer preferenciais, fixado na sentença declaratória da falência, contava-se da data da publicação dessa sentença no Diário da República (artº 188º, nºs 1 e 2, do CPEREF).

VI – Com a apreensão para a massa falida dos bens sobre que incide uma garantia real, surge a necessidade da intervenção dos garantes de tais bens, uma vez que só então é criado o risco de perda dessa garantia, em vista da regra da extinção, com a venda executiva, de todas as garantias reais, constituídas tanto anterior como posteriormente à apreensão dos bens.

VII - A necessidade de intervenção no procedimento falimentar do credor que disponha de garantia real constituída sobre bem do falido, mas que assegura crédito de que é devedor terceiro, resulta, não da declaração de falência, mas da apreensão do bem para a massa falida.

VIII - Essa intervenção justifica-se pelo princípio da audiência, construído como princípio de concessão de justiça ou de tutela jurídica que, no caso, se concretiza do modo seguinte: se a liquidação do património do falido, finalidade última do procedimento falimentar, implica uma consequência que afecta directa e pessoalmente o credor – a extinção da garantia que assegura o seu crédito de que é devedor terceiro – deve ser-lhe assegurada a possibilidade de participar constitutivamente na declaração do direito do caso e, através dessa participação, na conformação da sua situação jurídica futura.

Decisão Texto Integral:       Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

      1. Relatório.

      A A....CRL requereu, no processo de verificação do passivo do falido B.... , a adopção das medidas adequadas a evitar actos inúteis e futuros litígios entre os futuros adquirentes dos bens da massa falida e o credor hipotecário.

      Fundamentou esta pretensão no facto de nunca ter sido citada para reclamar os seus créditos garantidos por hipoteca, constituída por terceiro, que onera dezassete prédios apreendidos para a massa falida, de o liquidatário judicial não os ter incluído na relação de créditos não reclamados e de existência provável nem a ter avisado para se pronunciar sobre a situação, de não ter sido observada o disposto na lei de registo, desconhecendo que as aquisições a favor dos devedores hipotecários haviam sido judicialmente anuladas, pelo que mantendo-se as inscrições de hipoteca em vigor, não vê como no processo se poderá vender os bens livres de ónus e encargos, sem que seja ouvida.

      Ouvido sobre o requerimento, o Sr. Liquidatário Judicial observou que quando do registo da apreensão dos prédios, já se encontrava esgotado o prazo das reclamações de créditos, não lhe tendo sido possível proceder à notificação da requerente, credor cuja existência, até aquela data, desconhecia, que a segunda lista de credores de existência provável é meramente facultativa – mas que não colocará qualquer objecção ao reconhecimento e graduação do crédito daquela.

      O falido declarou que concorda com a requerente; um dos credores – C....– respondeu que os credores do falido foram citados por éditos publicados no DR de 24 de Setembro de 2003, tendo a A... reclamado o seu crédito, que foi verificado e graduado por sentenças de 3 de Maio e 24 de Maio de 2005, respectivamente, que a venda no processo de falência é feita livre de ónus ou encargos, e que a requerente, por decisão própria apenas reclamou os créditos que detinha sobre o falido, pelo que se houve erro, a si o deve, devendo, por isso, desatender-se a respectiva pretensão.

      A A..., notificada do parecer do Sr. Liquidatário Judicial, requereu que se declarasse a lacuna da lei e se ordenasse a sua citação para reclamar os seus créditos.

      Fundamentou a sua pretensão no facto de o CPEREF não prever a expressa e pessoal notificação do credor hipotecário para reclamar os seus créditos, sejam eles sobre o devedor, sejam eles sobre terceiro garante, de sem a sua admissão ao concurso de credores, os bens apreendidos não poderem ser transmitidos livres de ónus ou encargos e de a hipoteca não se destinar a garantir bens sobre o falido, mas sobre terceiro, razão pelo qual os não reclamou no tempo próprio.

      Por despacho de 26 de Setembro de 2007, a Sra. Juíza de Direito indeferiu os requerimentos.

      É este despacho que a D.... – que foi admitida a substituir-se à A..., entretanto extinta - impugna por via do recurso de agravo, pedindo a sua substituição por outro que lhe dê o direito a reclamar os seus créditos garantidos pela hipoteca de que é titular sobre os imóveis apreendidos, tendo cristalizado a sua discordância no tocante à decisão nele contida, nas conclusões seguintes:

      1. Existindo registo de ónus real sobre os bens apreendidos, com registo prévio ao registo da apreensão, deveria ter sido ordenado o cumprimento do disposto no art. 178°, n° 2 do CPEREF aplicável e, por via disso, deveria ter sido dado cumprimento às leis do Registo Predial e legislação complementar, ao menos que fosse em obediência a uma interpretação correctiva/extensiva do citado art. 178°, n° 2 do CPEREF, no respeito pelo espírito do Sistema, abrigo do art. 9°, n° 1 do CC;

      2. Não se entendo directamente aplicável, nem com esforço interpretativo preconizado, a norma do art. 178°, n° 2 do CPEREF, então estaremos perante uma lacuna legal que deveria ser integrada por recurso à analogia (art. 10°, n°s 1 e 2 do CC), caso em que é ostensiva a situação prevista no supra citado preceito, que assim, deveria aplicar.

3. Em qualquer caso, os direitos da titular activa do direito real com registo prévio à apreensão dos bens e ao registo desta mesma apreensão, não pode, sem mais, ser precludido sem que este seja expressamente chamado a pronunciar-se na instância própria em que terceiros pretenderam fazer valer os seus alegados direitos sobre os mesmos bens.

      4. Em qualquer caso, mantendo-se em vigor a inscrição registral de hipoteca sobre os bens apreendidos a favor de um terceiro, que não o credor dos falidos (no caso sub judice a recorrente não tem essa veste) e não havendo causa jurídica para o seu cancelamento, deve ao respectivo titular ser dada a oportunidade expressa de reclamar os seus créditos, garantidos por aquela hipoteca.

      5. Se tal não acontecer, para além do mais, serão postos em causa o Princípio do Contraditório e o Princípio da Confiança.

6. Enjeitando-se a interpretação correctiva do citado art. 178°, n° 2 do CPEREF, nos termos supra preconizados, ou sempre em outros semelhantes que contemple a situação configurada, ter-se-á de anuir que aquela norma padece de inconstitucionalidade, por omissão legiferante, constitucionalmente garantido que está, a todos, esse valor maior que é a segurança e certeza do comércio jurídico.

      Ninguém respondeu.

      2. Factos provados.

      É de considerar assente, por virtude da prova documental produzida, a factualidade seguinte:

      1. A aquisição de parte do direito real de propriedade sobre os prédios descritos sob os nºs 0419, 0439, 04188, 04201, 04202, 04120, 04186, 04187, 04189, 04190, 01902 na conservatória do registo predial de Soure encontra-se inscrita a favor do falido, B....

      2. A aquisição do direito real de propriedade sobre os prédios referidos em 1. encontra-se inscrita na conservatória do registo predial de Soure a favor de E... e F.... desde 18 de Setembro de 1996 e 24 de Abril de 1997.

      3. Sobre os prédios mencionados em 1. encontra-se inscrita hipoteca a favor da A...., para garantia do pagamento da quantia de 40 300 000$00, de capital, ao juro anual de 13,5%, elevável em caso de mora, da sobretaxa de 4%, e despesas no valor de 4 030 000$00, desde 24 de Abril de 1997.

      4. A declaração de nulidade das aquisições mencionadas em 2. encontra-se inscrita na conservatória do registo predial de Soure desde 2000.

      5. B... foi declarado falido por sentença de 1 de Setembro de 2003, tendo sido fixado, na sentença declaratória da falência, o prazo de 30 dias, contado desde a publicação da sentença no Diário da República, ocorrida no dia 24 de Setembro de 2003, para a reclamação de créditos.

      6. A apreensão, no processo de falência, dos prédios mencionados em 1. encontra-se inscrita na conservatória do registo predial de Soure desde 26 de Julho de 2004.

      7. A A..., entre outros credores, reclamou os seus créditos sobre o falido, B..., no valor de € 56 828.40.

      9. A sentença de verificação e graduação de créditos foi proferida no dia 24 de Maio de 2006[1].

      3. Fundamentos.

      3.1. Delimitação objectiva e subjectiva do âmbito do recurso.

      Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

      O recurso foi interposto do despacho que, no processo de verificação do passivo falimentar, indeferiu ao titular de um crédito assegurado por hipoteca que incide sobre bens imóveis objecto de apreensão para a massa falida o requerimento da sua citação para reclamar o seu pagamento.

       A questão concreta controversa que importa resolver é, assim, as de saber se o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por acórdão que ordene a citação da agravante para reclamar o seu crédito garantido por hipoteca.

      Tendo em conta os parâmetros de cognição representados pelo conteúdo da decisão recorrida e das alegações da recorrente, o litígio tem subjacentes as seguintes questões:

      - O carácter universal ou colectivo da execução falimentar;

      - A garantia disponibilizada pela hipoteca;

      - A justificação da intervenção dos credores titulares de garantias reais na execução;

      - O procedimento de reclamação para verificação de créditos;

      - O princípio da protecção da confiança e a inconstitucionalidade por omissão;

      - Fundamentos finais do registo predial;

      - A aplicação analógica da norma contida no artº 178 do CPEREF;

      - O princípio do contraditório.

      A sentença que declarou o estado de falência do devedor dos créditos reclamados foi proferida no dia de 1 de Setembro de 2003; a que procedeu à verificação e graduação desses créditos data de 24 de Maio de 2006; o recurso deve ser julgado em 2008.

      Durante este arco temporal, como resultado directo da volubilidade do legislador, nitidamente assente na confusão entre legislar muito e legislar bem, que nunca lhe censuraremos bastante, registaram-se modificações legislativas extraordinariamente relevantes, tanto no plano substantivo como no domínio adjectivo, o mesmo é dizer, no tocante à lei que regula a matéria do procedimento e da causa.

      Isto coloca naturalmente o problema de saber à luz de que lei deve este Tribunal julgar o recurso. É, por isso, inteiramente justificado que a exposição da argumentação do acórdão comece, precisamente, pelo problema da aplicação da lei no tempo e, correspondentemente, pela determinação da lei aplicável, tanto ao procedimento como ao objecto dele.

3.1. Aplicação da lei no tempo e determinação da lei reguladora do procedimento e da matéria do recurso.

O princípio geral da lei civil em matéria de aplicação da lei no tempo é o da aplicação prospectiva, que assume duas faces, distintas mas complementares (artº 12 nºs 1 e 2 do Código Civil)[2].

      A primeira é que contempla os simples factos: quanto a estes, na falta de disposição em contrário, a lei só se aplica aos factos futuros, entendendo-se como tais os factos que se produzem após a entrada em vigor da norma (artº 12 nº 1 do Código Civil).

      A segunda face do princípio é a que se refere às relações jurídicas que emergem desses factos. Neste domínio, o princípio da aplicação prospectiva da lei é já diferente: a lei nova aplica-se não só às relações jurídicas constituídas na sua vigência - mas também às relações que, constituídas antes, protelem a sua vida para além da entrada em vigor da norma nova (artº 12 nº 2 do Código Civil). Fala-se, neste caso, de retrospectividade ou de retroactividade imprópria ou inautêntica: uma norma retrospectiva não é uma norma retroactiva, mas antes uma norma que prevê consequências jurídicas para situações que se constituíram antes da sua entrada em vigor, mas que se mantêm nessa data[3].

      O princípio da aplicação prospectiva da lei possui, portanto, um carácter polifacetado ou poliédrico. Mas as duas faces do princípio não se excluem, não possuem áreas exclusivas de aplicação, antes podem completar-se uma a outra, como sucede sempre que a lei nova regule determinados factos na sua projecção sobre relações jurídicas duradouras que lhe servem de base.

      Da submissão às regras expostas exceptua-se, evidentemente, o caso de a lei nova ser acompanhada de normas de direito transitório ou de para ela valer uma norma transitória.

      O direito substantivo e o direito processual civil formam uma unidade, derivada da função específica deste ramo do direito: só através do direito processual logra o direito substantivo, ao aplicar-se aos casos reais da vida, a realização ou concretização para que originariamente tende.

      A relação entre o direito substantivo e o direito processual é, sob diversos pontos de vista, uma relação mútua de complementaridade. Prova disso é a existência indubitável de diversos institutos cuja pertinência ao direito substantivo ou ao direito processual se torna questionável e, mesmo, a circunstância de, relativamente a alguns deles, dever porventura concluir-se por uma sua natureza mista, simultaneamente participante de características jurídico-substantivas e jurídico-processuais[4].

      O direito substantivo estabelece e regula direitos subjectivos materiais;   o processo civil tem por fim a afirmação, exercício ou execução desses direitos materiais.

      Por lei substantiva deve, assim, entender-se aquela que permite o proferimento de uma decisão de procedência ou improcedência, isto é, uma decisão de condenação ou absolvição do pedido. Para essa qualificação não releva nem a localização do preceito nem a eventual relevância processual da norma substantiva. Por exemplo, a norma que permite determinar o conteúdo da decisão num caso de non liquet é uma norma substantiva (artº 516 do CPC); o mesmo ocorre com qualquer norma que contenha uma excepção peremptória (artº 493 nºs 1 e 2 do CPC). Isto é exacto, por exemplo, no tocante ao CPEREF e ao CIRE: qualquer destes Códigos contém tanto normas adjectivas como substantivas.

      Seja como for, o problema de saber se uma concreta norma ou instituto jurídico pertence ao direito substantivo ou ao direito processual civil, não assume, prima facie, no tocante ao problema do âmbito de aplicação temporal da lei, relevância particular. Porquê? Pela razão simples de que quanto à aplicação no tempo da lei processual, a regra é a mesma que vale na teoria geral do direito: a lei nova é de aplicação imediata aos processos pendentes, mas não possui qualquer eficácia retroactiva (artº 12 nº 1 do Código Civil)[5].

      Da submissão a esta regra exceptua-se, evidentemente, também o caso de a lei adjectiva nova ser acompanhada de normas de direito transitório ou de para ela valer uma norma transitória geral, como sucede, por exemplo, quanto á importante regra que enuncia o princípio tempus regit actum (artº 142 nº 1 do CPC) ou à que determina a perpetuatio jurisdiciones (artº 18 nº 2 da LOFTJ, aprovada pela Lei nº 3/99 de 13 de Janeiro).

      Na espécie do recurso, a sentença declarativa da falência foi proferida à sombra do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência – CPEREF - aprovado pelo DL nº 132/93, de 23 de Abril, sucessivamente alterado pelos DL 157/97, de 24 de Junho, 315/98, de 20 de Outubro, 323/01, de 17 de Dezembro e, finalmente, pelo DL nº 38/03, de 8 de Março. O CPEREF foi, porém, objecto de revogação expressa pelo artº 10 nº 1 do DL nº 53/04, de 18 de Março, que, simultaneamente, aprovou o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas – CIRE - que entrou em vigor no dia 15 de Setembro de 2004 (artº 13 do DL nº 53/04, de 18 de Março).

      A nova lei fez-se, porém, acompanhar de uma norma de direito intemporal, de harmonia com a qual o CPEREF continua a aplicar-se aos processos de recuperação da empresa e da falência pendentes à data da sua entrada em vigor (artº 12 nº 1 do DL nº 53/04, de 18 de Março). Com a estatuição expressa da ultractividade da lei revogada quis o legislador expressar simplesmente esta ideia: que o CIRE só é aplicável aos processos executivos universais instaurados depois do seu início de vigência.

      Estas considerações permitem estabelecer, à certeza, esta conclusão: a lei aplicável ao caso do recurso é, portanto, a contida no CPEREF. Será, portanto, à luz desta lei que a operação de graduação dos créditos verificados deverá fazer-se.

      3.2. A configuração do processo de falência como execução colectiva.

      O processo de falência é uma execução colectiva ou universal.

      Na acção executiva promove-se, em geral, a realização coactiva de uma única prestação contra um único devedor e, em observância de um princípio de proporcionalidade, apenas são penhorados e excutidos os bens do devedor que sejam suficientes para liquidar a dívida exequenda (artºs 828 nº 5, 833 nº 1 e 832 nº 1 a) do CPC). Esta execução distingue-se do processo de falência e de insolvência que é uma execução universal, tanto porque nela intervêm todos os credores do falido e do insolvente, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património deste devedor (artºs 1 nº 1, 3 nº 1, 20 nº 1 e 179 nº 1 e 188 nº 1 do CPEREF).

Como o devedor se encontra em situação de falência ou insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (artº 188 nº 1 e 209 do CPEREF).

      Na execução singular, um credor pretende ver satisfeito o seu direito a uma prestação; esse credor necessita de uma legitimação formal, que é um título executivo e se o devedor for solvente obtém na acção executiva a satisfação do seu crédito (artºs 45 nº 1 e 55 nº 1 do CPC).

      No processo de falência podem apresentar-se todos os credores do falido ou insolvente, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa falida.

      O processo de falência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores.

Admite-se, por isso, a par das reclamações preferenciais, a reclamação dos créditos comuns. Mas à igualdade dos credores na admissão ao concurso não corresponde necessariamente uma igualdade na satisfação dos créditos reclamados, em razão de uma diferente ponderação pelo legislador dos interesses da generalidade dos credores e dos titulares de direitos preferenciais de pagamento.

3.3. Constituição da hipoteca.

As garantias especiais das obrigações podem operar por via real, i.e., pela afectação de coisas com vista ao reforço de certos créditos. Quando isso ocorre, temos as garantias reais ou direitos reais de garantia. Dizem-se, portanto, direitos reais de garantia, aqueles que se destinam, globalmente, a assegurar a garantia dos direitos de crédito, a afectar bens, seja do devedor ou de terceiro, ao pagamento preferencial de certo crédito[6].

      Entre as garantias reais interessa, à economia do recurso, a hipoteca.

      A hipoteca – que confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certa coisa, imóvel ou equiparada, do devedor ou de terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo – traduz a mais sólida garantia das obrigações (artº 686 do Código Civil)[7].

      Ao contrário de outros sistemas, v.g., o alemão, os direitos constituem-se no Direito português independentemente do registo. A regra não foi alterada pelo encargo do registo: o registo exige-se, por banda do alienante, para a celebração formal válida do negócio e não, do lado do adquirente, para o ingresso efectivo, na sua esfera jurídica, da situação em causa.

      Exceptua-se, a esse princípio, a hipoteca: esta só produz efeitos – quaisquer efeitos – depois de registada. A qualificação deste fenómeno é controversa. Entende-se, porém, que uma posição privada de quaisquer efeitos não existe: o registo da hipoteca revela-se, pois, constitutivo (artºs 687 do Código Civil e 4 nº 2 do CR Predial)[8]. A hipoteca é, portanto, um direito real sujeito a publicidade registral constitutiva.

      De harmonia com a sua forma ou título de constituição, a hipoteca diz-se legal, judicial ou voluntária (artº 703 do Código Civil).

      A hipoteca voluntária é a constituída por acto jurídico, seja este contratual ou unilateral, negocial ou não negocial (artº 712 do Código Civil).

      A hipoteca é uma garantia real que pode ser constituída sobre bens de terceiro, i.e., sobre bens que não pertencem ao devedor da obrigação garantida (artº 717 do Código Civil). Trata-se de aspecto a reter e que requer uma leitura reconformadora do processo de reclamação.

3.4. Justificação de intervenção na falência pendente de credores que sejam titulares de garantias reais sobre os bens apreendidos.

      A intervenção do credor que seja titular de um garantia real é simples consequência da oponibilidade à execução colectiva – e à apreensão de bens – das causas de preferência no pagamento de que esse credor beneficia (artº 604 nº 2 do Código Civil). Essa intervenção destina-se a permitir que aquele credor possa fazer valer na execução pendente – universal ou colectiva - aquela causa de preferência.

      A justificação última da intervenção na execução pendente – singular ou colectiva - dos credores que são titulares de garantias reais sobre os bens apreendidos encontra-se na extinção destas garantias através da venda executiva (artº 824 nº 2 do Código Civil).

      A venda executiva dos bens penhorados extingue a garantia real e o respectivo direito de sequela, pelo que o seu titular deixa de poder exercer este direito contra o adquirente dos bens naquela venda.

      A venda executiva produz os mesmos efeitos da venda realizada através de negócio jurídico: as obrigações de entrega a coisa e de pagar o preço e a transmissão da propriedade da coisa (artº 879 a) a c) do Código Civil).

      Além destes efeitos obrigacionais e deste efeito translativo, comum a qualquer venda, a venda executiva produz ainda, entre outros mais, um efeito extintivo.

      Os bens alienados através da venda executiva são transmitidos livres dos direitos reais de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenha registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo (artº 824 nº 2 do Código Civil).

      O direito do executado extingue-se como consequência do efeito translativo da venda: o artº 824 nº 2 do Código Civil refere-se, por isso, à extinção de direitos de terceiros sobre os bens vendidos.

      Este efeito extintivo marca a principal diferença entre a venda executiva e a venda negocial e justifica-se pela necessidade de favorecer a posição do adquirente e de rentabilizar, tanto quanto possível, a venda do bem. Esta rentabilização beneficia não apenas o credor, porque obtém com maior facilidade a satisfação do seu crédito – como também o devedor, porque diminui o património que é necessário sacrificar para satisfazer aquele crédito.

      Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram (artº 824 nº 2, 1ª parte, do Código Civil). Assim, se os bens apreendidos e vendidos estiverem onerados com uma hipoteca, o comprador adquire-os desonerados destas garantias reais. As garantias reais que se extinguem com a venda executiva são quer aquelas que são anteriores à apreensão – quer aquelas que lhe são posteriores.

      Estas considerações são suficientes para por em evidência o desacerto de uma das proposições sustentadas pela recorrente: a de que caso venha a ocorrer a venda executiva dos bens abrangidos pela hipoteca, os bens se transmitirão para o adquirente onerados com essa garantia real. Não é de todo assim: quer se deva reconhecer à recorrente o direito de reclamar o crédito garantido pela hipoteca quer não, a venda executiva produzirá sempre o efeito extintivo assinalado: a supressão daquela garantia real.

       3.5. Processo de reclamação de créditos.

      Mesmo no caso de existir garantia sobre os bens apreendidos, o CPEREF não mandava citar pessoalmente o credor do falido para reclamar o seu crédito: o prazo para a reclamação da verificação dos créditos, quer comuns quer preferenciais, fixado na sentença declaratória da falência, contava-se da data da publicação dessa sentença no Diário da República (artº 188 nºs 1 e 2).

      Uma vez esgotado o prazo da reclamação, o reconhecimento dos créditos ainda era possível, no caso de o credor constar da relação dos créditos não reclamados que liquidatário podia acrescentar à lista dos reclamados ou através da acção para verificação ulterior de créditos, a propor no prazo de um ano subsequente ao trânsito em julgado da sentença de declaração da falência (artºs 191 nºs 1 e 2, 192 e 205 nºs 1 e 2 do CPEREF).

      Como decorre linearmente deste regime, o processo de reclamação assenta na clara pressuposição de que os reclamantes são credores do falido; mas não é o nosso caso. Na espécie sujeita, o devedor do crédito que a recorrente pretende ainda fazer verificar não é o falido, mas terceiro.

      A admissibilidade de apreensão de bens de terceiros não se refere à hipótese de alguém que não é parte na falência; a apreensão de bens de terceiro respeita apenas aos casos em que o responsável é alguém que não é o devedor: terceiro, neste sentido, é alguém que é estranho à obrigação exequenda falimentar – e não aquele que não é parte na execução.

      Em regra, a falência é instaurada contra o devedor e, por isso, igualmente em regra, são apreendidos bens do devedor. Neste caso, na falta de qualquer garantia real sobre bens do devedor, o património deste cumpre a sua função de garantia geral das suas obrigações (artº 601 nº 1 do Código Civil).

      A falência pode, porém, incidir sobre bens de um terceiro i.e., de alguém que não é devedor da obrigação exequenda.

      A apreensão de bens pode incidir sobre bens de um terceiro em dois casos: quando aqueles bens estejam vinculados à garantia do crédito ou quando sejam objecto de acto praticado em prejuízo do credor que tenha sido impugnado (artº 818 do CC).

      A afectação de bens de terceiro àquela garantia verifica-se, por sua vez, em duas situações: a constituição de uma garantia real sobre esses bens (artºs 657 nº 2, 666 nº 1 e 686 nº 1 do Código Civil) e a prestação de fiança (artº 627 nº 1 do Código Civil).

      O bem onerado para garantir o pagamento de uma obrigação pecuniária pode pertencer a pessoa diversa do devedor dela: se a garantia real tiver sido constituída ou incidir sobre um bem que não pertence ao devedor, o direito de execução recai sobre esse mesmo bem (artº 818 nº 1 do CC).

      No caso, o falido é titular do património responsável na acção executiva universal em que a falência se traduz – mas não é o devedor da obrigação exequenda. Verifica-se, portanto, uma cisão entre o titular do débito – que é o terceiro – e o património que é responsável – que é o do devedor.

       Sendo isto assim, segue-se naturalmente que a agravante, pelo simples facto da declaração de falência do devedor – B... – não estava autorizada a reclamar dele o pagamento dos créditos assegurados pela hipoteca. Por esta razão simples: o falido não é devedor desses créditos.

      A necessidade da intervenção só justificou com a apreensão para a massa falida dos bens sobre que incide aquela garantia real, uma vez que só então foi criado o risco de perda daquela garantia, em vista da regra da extinção, com a venda executiva, de todas as garantias reais, constituídas, tanto anterior como posteriormente à apreensão dos bens.

      Nestas condições, todas as considerações que, com a finalidade de recusar à agravante o direito de intervir na falência, se possam tirar da caducidade dos prazos de reclamação assinados na lei, deixam de valer. Estes mostram-se dispostos para a reclamação de créditos de que o falido seja sujeito passivo; eles não valem para os casos em que o devedor do crédito garantido não seja falido mas terceiro, embora a dívida deva ser satisfeita à custa do património do primeiro, objecto de apreensão para a massa.

      Resta, porém, saber se para admissibilidade dessa intervenção pode ser encontrada uma razão verdadeiramente procedente.

      Essa razão não pode decerto fazer-se derivar do princípio da confiança nem em qualquer juízo de desvalor ou desconformidade constitucional, assente numa omissão de legislar assacável ao legislador ordinário.

      3.6. O princípio da protecção da confiança e a inconstitucionalidade por omissão.

O princípio da protecção da confiança – ínsito no princípio do Estado de direito democrático, valor estruturante da Constituição da República - só pode ser atribuído um único e rigoroso conteúdo (artº 2 da CRP).

      Este princípio valora a estabilidade do direito vigente e assegura a previsibilidade e calculalibilidade das suas inevitáveis alterações futuras. Nos seus termos, devem os particulares poder saber com o que contam, de modo a que se tornem exequíveis aqueles projectos de vida cujo traço é indispensável para a realização autónoma e responsável do livre desenvolvimento da personalidade[9]. O que, portanto, o princípio proíbe são as alterações legislativas imprevisíveis, inimagináveis ou incalculáveis, que afectam a confiança que os privados legitimamente depositam no Direito e que os inibem de conceber, ou ordenar, a livre organização das suas vidas futuras. Como proíbe transformações bruscas de regimes legislativos ordinários que tragam consequências in pejus para os privados, sem lhes conceder tempo para se adequarem à transformação: nestes casos, a confiança legítima que os cidadãos depositaram na razoabilidade da ordem jurídica obriga o legislador a assegurar regimes de transição entre a lei velha, mais favorável ao particular, e lei nova, menos favorável, de modo que este possa reequacionar expectativas, projectos e previsões[10].

Mas o que nunca decorre deste princípio é a obrigação de legislação específica. O princípio da protecção da confiança é um princípio, meramente puramente negativo e estritamente defensivo: ele destina-se a garantir o razoável enquadramento externo que condiciona a livre acção individual e que apenas proíbe alterações incalculáveis e imprevisíveis da ordem do Direito. Dele é impossível extrair um conteúdo activo ou prestativo, que leve o Estado a uma obrigação ou a um dever de legislar.

Face ao nosso sistema constitucional não parece possível sustentar-se que os particulares detenham direitos subjectivos individuais à emissão de leis conformes à Constituição. Nenhum membro da comunidade jurídica se pode considerar titular de um direito fundamental à constitucionalidade da lei. A obrigação que impende sobre o legislador ordinário de não emitir normas inválidas, contrárias à Constituição, é uma obrigação de índole objectiva, que o vincula face à unidade e integridade da ordem jurídica e que serve o interesse da colectividade como um todo. Não é uma obrigação de índole subjectiva que vincule o legislador à satisfação de concretos interesses individuais.

Ainda que o dogma da incensurabilidade do legislador deva ser repensado, é mais que problemática a existência de qualquer direito subjectivo – público ou privado – processualmente accionável, à emanação de actos normativos em geral, mas sobretudo de actos normativos primários – os actos legislativos. Na verdade, não existe na nossa Constituição um direito subjectivo à lei – a que corresponda, em termos sinalagmáticos, uma obrigação de legislar das entidades legislativas - nem se consagra nela qualquer instituto que possibilite ao juiz, num caso concreto obviar à falta de medidas legislativas impeditivas da concreta realização de um direito, liberdade e garantia[11].

Todavia, ainda que existisse um omissão jurídico-constitucionalmente censurável, de acto legislativo, seria sempre problemático o juiz poder substituir-se aos órgãos legislativos, assumindo tarefas de emanação de normas, ou censurar o legislador quanto aos tempos de oportunidade de edição de normas legislativas. De um modo geral, não pertence ao juiz controlar os tempos das normas de forma a neutralizar a liberdade de conformação legislativa. A liberdade de conformação de legislador tem, desde logo por objecto, a oportunidade temporal da edição da norma. De resto, a Constituição é nitidamente restritiva quer quanto às entidades competentes para solicitar o reconhecimento de uma inconstitucionalidade por omissão e dinamizar o processo de fiscalização da omissão inconstitucional quer quanto ao órgão competente para a declarar: o Tribunal Constitucional (artº 283 nº 1 da CRP).

Aliás, a garantia ou parâmetro constitucional que melhor poderia confortar a pretensão da recorrente é o do acesso ao direito e à tutela judicial efectiva.

Não sofre dúvida relevante a atribuição, na Constituição Portuguesa, de um direito à jurisdição ou de acesso à justiça, que se desdobra na garantia de acesso aos tribunais e de uma garantia de acesso ao próprio direito (artº 20 nº 1)[12]. Este direito que constitui, de resto, simples decorrência do estado social de Direito também constitucionalmente consagrado, garante, de forma universal e geral, o direito de levar a sua causa à apreciação de um tribunal (artº 2 da Constituição da República Portuguesa).

      Como é evidente, não basta assegurar a qualquer interessado o acesso à justiça, sendo necessário que o processo a que se acede apresenta, quanto à sua própria estrutura, garantias de justiça. Tão indispensável como assegurar o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, é, por exemplo, garantir, àquele que recorre aos tribunais, um julgamento por um órgão imparcial, em plena igualdade de partes, o direito ao contraditório, uma duração razoável da acção, a publicidade do processo e a efectivação de um direito à prova[13]. O direito de actuar em juízo terá, pois, de efectivar-se através de um processo justo ou equitativo.

O direito de acesso ao direito ao direito e à tutela jurisdicional efectiva e o direito ao processo equitativo estão largamente dependentes de conformação através da lei e da disponibilização de processos garantidores de uma tutela judicial efectiva, dotados de uma estrutura informada pelo princípio da equitatividade.

      À ideia de processo liga-se indissoluvelmente à de formalismo e à de procedimento, quer dizer, à de conjunto ordenado e sequencial de actos processuais. O legislador goza, naturalmente, de uma ampla liberdade na conformação do processo ou do procedimento. Contudo, essa liberdade é limitada pelo dever de, na configuração concreta do processo, remover todos os obstáculos endógenos do processo que conflituem o direito de aceder e ele e, em geral, à efectividade da tutela judicial.

      Contudo, nem a garantia do acesso ao direito e á tutela efectiva nem a garantia do processo justo impõem que, na regulamentação ou conformação concreta do processo, o conhecimento da sua existência ou a possibilidade de nele intervir, só possa ser levado ao conhecimento dos interessados por acto de citação e mesmo de citação pessoal. Nalguns casos – v.g. de ausência ou incerteza do interessado – por impossibilidade; noutros por desnecessidade, quer dizer, por se considerar suficiente, em razão da específica intencionalidade do processo ou em obediência a outros valores axiologicamente relevantes – v.g. a simplicidade e celeridade processuais – a transmissão desse facto por outros meios adequados de publicidade – como por exemplo, a publicitação desse facto em jornal oficial.

      Seja como for, a verdade é que a resolução do problema concreto colocado no recurso não reclama o recurso a juízos graves de ilegitimidade ou impropriedade constitucionais.

      Por este lado, a argumentação do recorrente não procede.

      Como também não colhe a razão fundada no facto do registo.

      3.7. Fundamentos finais do registo predial.

      O registo predial tem essencialmente por escopo dar publicidade aos direitos reais inerentes às coisas imóveis: pretende-se patentear a história da situação jurídica da coisa, desde a data da descrição até á actualidade (artº 1 Código de Registo Predial)[14]. Exige-se, por isso, um nexo ininterrupto entre os vários sujeitos que aparecem investidos de poderes sobre o prédio.

      Trata-se do princípio do trato sucessivo que, a par dos princípios da instância, da legalidade e da prioridade, constitui uma dos elementos estruturantes do instituto (artºs 4, 67 nº 1, 34 nº 1 e 6 nº 1 do CR Predial)[15].

      A publicidade dada pelo registo às situações jurídicas dos prédios é feita, em princípio, de um modo indirecto: publicita, através do mecanismo da inscrição, os actos que, tendo eficácia real, ditam a configuração daquelas situações. Não raro, os actos visados têm natureza contratual i.e., implicam a manifestação de vontade de dois ou mais intervenientes. A necessidade de confirmação do panorama tabular com as vicissitudes jurídicas dos prédios dita a lógica do trato sucessivo: o registo só é possível quando o disponente surja, á face do registo, como titular da situação jurídica que publicita. Só assim, o registo representará uma sucessão de actos ligados pelos intervenientes.

      A publicidade assegurada pelo registo predial não visa escopos de mero conhecimento dentro do espaço jurídico: ela repercute-se no nível substantivo das situações jurídicas em jogo. Os reflexos materiais do registo implicam, pela sua própria existência, a definição prévia de quais as situações dotadas, efectivamente, de publicidade tabular. O problema põe-se quando situações jurídicas incompatíveis apresentem ou pretendam apresentar publicidades incompatíveis. A resposta é dada pelo princípio da prioridade (artº 6 nº 1 do CR Predial).

      As realidades tabulares repercutem-se nas situações jurídicas privadas subjacentes, ou, dito de outro modo, o registo produz efeitos substantivos.

      O primeiro desses efeitos é presuntivo: o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos termos em que o registo o define (artº 7 do CR Predial).

      Quem tem a seu favor um registo determinado escusa de provar: que o direito existe; que é titular dele; que ele tem a configuração dada pelo registo. Quem assim não entenda terá que provar a inexactidão do registo: a presunção é simplesmente iuris tantum (artº 350 nºs 1 e 2 do Código Civil)[16].

      A prova em contrário, destruidora da presunção tabular, pode derivar de um deste dois factos: ou da demonstração de o registo ser inexistente ou nulo, por alguma das causas referidas no Código de Registo Predial (artºs 14 e 16); ou da demonstração de o registo, válido em si, se reportar a factos substancialmente inválidos, o que implica o seu cancelamento (artº 13 do CR Predial). No primeiro caso há inexistência ou nulidade do registo ou invalidade extrínseca; no segundo invalidade substantiva ou extrínseca.

      Os vícios do registo não esgotam, pois, a delimitação negativa da eficácia tabular presuntiva: o registo perde os seus efeitos quando, se reportar a factos substancialmente inválidos, seja pedido o seu cancelamento. Mas não basta a mera existência do vício; exige-se, em qualquer caso, uma decisão judicial que o reconheça (artº 17 nº 1 do CR Predial).

      O registo e os seus efeitos podem, pois, ser destruídos por invalidade intrínseca ou extrínseca, como sucede nos casos de nulidade do registo. Pode, contudo, suceder que, antes da declaração de tal nulidade por sentença transitada em julgado, alguém, fiado no registo, adquira uma qualquer posição jurídica.

      Se houver registo nulo, se alguém, com base nesse registo, adquirir uma posição substantiva, a título oneroso e de boa fé, e registar a aquisição antes de regista a acção de nulidade, gera-se uma situação, por força do registo, que não pode ser impugnada. A presunção derivada do registo torna-se inilidível ou volve-se em iuris et de iure (artº 17 nº 2 do CR Predial).

      Fala-se, a este propósito, em aquisição tabular, que traduz a projecção substantiva mais relevante do registo predial, derivada da fé pública de que é dotado.

      Abstraindo do caso em que ao registo se deve assinalar uma eficácia constitutiva, o instituto tem simplesmente por finalidade conspícua dar publicidade às situações jurídicas prediais, através da inscrição dos factos que lhes tenham dado origem. Face à fé pública de que é dotado, o registo permite presumir que o direito pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o define (artº 7 do CR Predial).

      Mas qualquer destes efeitos não assegura, por si, o direito a ser chamado, por citação, pessoal ou não, a qualquer procedimento em que debatam direitos objecto de inscrição no registo.

      Portanto, o facto da inscrição da hipoteca no registo e o efeitos, constitutivo e de publicitação que se associa à inscrição, não decorre o direito da agravante a ser pessoalmente citada para o processo falimentar no qual tenha sido levado a cabo o acto de apreensão do bem sobre que incide a garantia real, com vista à satisfação do crédito garantido.

      Um tal direito também não pode fazer-se derivar da na aplicação analógica do artº 178 do CPEREF.

      3.8. Aplicação analógica do artº 178 do CPEREF.

      A apreensão de bens em processo de falência está sujeita a registo, predial ou comercial, conforme o caso, incumbindo ao liquidatário a sua realização (artº 178 nº 1 do CPEREF).

      Verificando-se a existência no registo da inscrição de qualquer acto de transmissão, do domínio ou da posse dos bens, em nome da pessoa diversa do falido, o liquidatário deve juntar ao processo nota dessas inscrições para se dar observância às leis do registo – os artºs 119 do Código Registo Predial e 80 do Código de Registo Comercial (artº 178 nº 2 do CPEREF).

      Mal vale a pena perder uma palavra para explicar que não é esse seguramente o caso: o registo não documentava, no momento da inscrição do facto da apreensão, a aquisição, por pessoa diversa do falido, dos bens objecto daquela.

      Também não ocorre qualquer lacuna que deva ser objecto de integração nem aliás, existe, a mínima analogia entre o caso figurado na lei e situação que a recorrente reputa omissa: a agravante é titular de um simples direito real de garantia que lhe outorga um direito de preferência no pagamento pelo produto da liquidação dos bens objecto da apreensão para a massa falida - e não do direito real de propriedade ou da posse sobre esse bens, o que sempre imporia a recusa da integração da lacuna que eventualmente existisse pelo modo propugnado pela impugnante (artº 10 nºs 1 e 2 do Código Civil).

      Cremos que o direito de intervenção no procedimento falimentar que deve ser reconhecido bem pode fazer-se decorrer do seu fundamental direito ao contraditório.

      3.9. Princípio do contraditório.  

O direito ao contraditório, que, decorre, em si mesmo do princípio estruturante da igualdade das partes, quando analisado em pormenor nos seus elementos essenciais, possui um conteúdo plural ou multifacetado (artº 3-A do CPC). Tomado no seu sentido mais compreensivo, o direito ao contraditório garante à parte um direito à audição prévia – quer dizer um direito à audição antes de ser tomada qualquer decisão – e um direito de resposta, e, portanto, o direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e tomar posição sobre elas (artº 3 nº 1, 1ª parte, do CPC)[17].

      O direito à audição prévia é objecto de consagração genérica (artº 3 nº 1, in fine, do CPC).

      A particular relevância do princípio justifica a imposição ao juiz, de modo programático, de um dever de observar e fazer cumprir o princípio do contraditório (artº 3 nº 3, 1ª parte, do CPC). Este dever surge referido na lei a propósito da garantia do contraditório na vertente do direito de resposta: mas ele vale, a fortiori, como garantia desse mesmo princípio, para a outra vertente dele: o de audição prévia.

      Careceria em absoluto de juridicidade uma decisão que importasse, ainda que indirectamente, a ablação da garantia real que assegura o crédito da recorrente e incide sobre bens do falido, apreendidos para a massa, sem lhe dar oportunidade de fazer valer, no procedimento de que decorre esse efeito extintivo, essa garantia.

      A actuação do princípio do contraditório, concebido como direito à audiência, justifica a concessão à recorrente da oportunidade de influir, através da sua intervenção no procedimento falimentar de reclamação para a verificação de créditos, no decurso do processo e de participar, constitutivamente, na conformação da decisão relativa à actuação ou extinção da garantia do seu crédito.

      Neste sentido, o princípio da audiência é ainda expressão de um direito à concessão de justiça ou de tutela jurídica, entendido como pretensão de participar no processo decisão do tribunal no caso concreto.

      A finalidade última do procedimento falimentar – liquidação do património do insolvente – implica uma consequência que afecta pessoalmente a recorrente: a extinção da garantia que assegura o seu crédito e, consequentemente, a consistência prática do direito garantido. Se a agravante será afectada, na esfera dos seus direitos por uma decisão a tomar em juízo, então deve ser-lhe assegurada a sua participação constitutiva na declaração do direito do caso e, através dela, na conformação da sua situação jurídica futura.

      Nestas condições, importa admitir a agravante a reclamar o seu crédito – sujeitando a reclamação, naturalmente, ao contraditório dos demais participantes processuais, rectior, do falido e demais credores reclamantes.

      Importa, portanto, revogar a decisão impugnada e ordenar a sua substituição por outra que admita a reclamação.

      Os agravados não deram causa à decisão recorrida; como também não aderiram a ela nem a acompanharam, beneficiam, assim, de uma isenção subjectiva de custas (artº 2 nº 1 g) do CC Judiciais); a recorrente obteve vencimento. O recurso não está, por isso, sujeito a custas.

      4. Decisão.

      Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão impugnada e determina-se a sua substituição por outra que admita a recorrente, D....., a reclamar a verificação do seu crédito.

      Sem custas.


[1] Rectificada, a requerimento de um credor, por despacho de 10 de Junho de 2006.
[2] Antunes Varela, RLJ, Ano 120, pág. 150.
[3] Acs. do TC nºs 156/95, 745/96, 486/97 e 467/03, www.tc.pt.
[4] No direito substantivo e no direito adjectivo não se está perante modos diversos de perspectivar o mesmo objecto – mas perante regulamentações jurídicas autónomas, justificadas pela diversidade do objecto a que se dirigem: o direito substantivo dirige-se a uma relação da vida no espaço social, o direito adjectivo refere-se a actos no espaço processual (actos processuais).
[5] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 42 a 44.
[6] Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias do Cumprimento, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 97.
[7] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 515.
[8] Cfr., v.g., Ac. da RE de 31.10.96, CJ XXI, IV, pág. 293.
[9] Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado, pág. 618
[10] Esta protecção de confiança dos particulares no tocante à continuidade da ordem jurídica é, de certo modo, o lado subjectivo da garantia mais geral de segurança jurídica inerente ao Estado de Direito. Cfr. Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2004, págs. 262 a 265; Acs. do TC nºs 449/02 e 354/00, Ac. TC, vol. 54º, pág. 665 e vol. 47º, pág. 545.
[11] José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Garantia da Constituição, Almedina, Coimbra, 7ª edição, págs. 1036 e 1037.
[12] Este direito à jurisdição ou de acesso à justiça é igualmente atribuído, por exemplo, pelo artº 10 da DUDH, pelo artº 14 nº 1 do PIDCP e pelo artº 6 nº 1 da CEDH.
[13] J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa Anotada, artºs 1º a 107º, vol. I, Coimbra Editora, 2007, págs. 415 e 416.
[14] Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 4º ed. refundida, Coimbra Editora, 1983, pág. 337.
[15] Cfr. sobre os princípios do registo predial e os seus efeitos substantivos, Parecer do Conselho Consultivo da PGR de 19.05.00, www.dgsi.pt.
[16] Convém, contudo, precisar o âmbito da presunção: esta não abrange os factores descritivos, com as confrontações ou áreas. Trata-se de jurisprudência firme. Cfr.,v.g., Acs. do STJ de 17.06.97, 29.10.92, 27.01. 93, 11.05.93, 11.05.95, da RC 02.022.93 e RP 16.01.95, CJ, 97, II, 126, BMJ nº 420, pág. 590, CJ 93, I, págs 100 e 137, CJ 93, II, pág. 95, CJ 93, I, pág. 28 e BMJ  nº 431, pág. 582, respectivamente.
[17] Miguel Teixeira de Sousa, págs. 46 e 47. Ac do STJ de 14.05.99, www.dgsi.pt.