Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
69/09.2GTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: PROCESSO SUMÁRIO
ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 10/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – 4º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 99º, Nº 3, AL. C), 389º, 2 CPP
Sumário: 1. No processo sumário a leitura dos factos constantes do auto de notícia não resolve todos os problemas que esta forma de promoção processual levanta, desde logo porque ressalvados casos excepcionais, o auto de notícia será elaborado segundo modelos pré-impressos ou de acordo com formulários, preenchidos ou redigidos por agentes de autoridade sem consistente formação jurídica, e dele não constará – nem tem que constar – referência ao elemento intelectual do tipo legal de crime.
Nesse contexto, é ao Ministério Público que compete aditar os factos integradores do elemento subjectivo, seja através da respectiva anotação por despacho (que poderá ser feita no próprio auto), seja através da sua menção em audiência, aquando da leitura dos factos constantes do auto de notícia .
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO:

Nestes autos de processo sumário que correram termos pelo 4º Juízo Criminal de Coimbra, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:

(...)

Julga-se procedente a acusação e condena-se R..., pela autoria material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. pelos arts. 292º, 1 e 69º, 1, a), ambos do Cód. Penal, nas penas principal e acessória de:

- cinquenta dias de multa, à razão de oito euros (€ 8) dia, num total de quatrocentos euros (€400); e

- quatro (4) meses de proibição de conduzir veículos motorizados,

respectivamente.

Verificada que seja a hipótese do art. 49º, 1,do Cód. Penal, o arguido cumprirá trinta e três (33) dias de prisão subsidiária.

(...)

Inconformado com esta decisão, dela recorre o arguido, retirando da motivação do recuso as seguintes conclusões:

            1) Vem o presente recurso interposto da sentença que condena o arguido na pena de multa principal e, acessoriamente, na pena de proibição de condução de veículos motorizados, pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

            2) Na ausência de apresentação de mais formal acusação, o M.P. apenas aderiu (a fls. 10) aos elementos constantes do auto de notícia de fls. 3.

            3) Tal peça acusatória não contém quaisquer elementos respeitantes a qualquer tipo subjectivo de ilícito, fundamentais para a condenação em apreço.

            4) Assim, o Mmo Juiz a quo deu por provado, além do mais (pontos 3 e 4) que o arguido havia agido livre, voluntária e conscientemente, quando não o poderia ter feito.

            5) De molde a fazê-lo, tais factos deveriam constar da acusação/auto de notícia, ou ser produzida qualquer prova bastante em audiência que sirva de base a tal juízo, com respeito pelo princípio do contraditório, o que não veio a suceder.

            6) Quer a sentença, quer a acusação que lhe serviu de base são nulas, nos termos do art. 379º, n.º1, al. b) do Código de Processo Penal  e 283º, n.º 3, al. b), respectivamente.

       7) Deve por isso o arguido ser absolvido dos factos de que vem acusado, por estes não constituírem crime.

       Ainda que assim se não entenda,

       8) Foi o arguido, sem respeito pelo artigo 358ºdo Código de Processo Penal , condenado a pena acessória prevista no art. 69º do Código Penal, Quando tal disposição legal não consta do auto de notícia/acusação. Privou-se o arguido do seu direito de defesa.

       9) Foi uniformizada jurisprudência (Ac. 7/2008, do Supremo Tribunal de Justiça) no sentido de que tais omissões implicam nulidade da sentença ora recorrida.

       10) Assim sendo, o arguido não poderia ter sido condenado na pena acessória de 4 meses de proibição de condução de veículos a motor, quando jamais veio acusado de tal.

       11) Foram violados os artigos 283º, n.º3, alíneas b) e c), artigo 311º, n.º2, al. a), ambos do Código de Processo Penal  e o art. 13º do CPenal.

       Nestes termos e sempre com o superior juízo de V/Exas, deverá o presente recurso ser julgado procedente, e por via do mesmo, ser o arguido absolvido dos factos de que vem incurso, por além do mais, estes não constituírem crime.

       Caso assim não se entenda, deverá absolver-se o arguido da pena acessória em que vem condenado, pelos motivos acima expostos.

Na sua resposta, o M.P. pugnou pela procedência parcial do recurso, restrita à questão da nulidade decorrente da não indicação na acusação da aplicação do n.º 1 do art. 69º do Código Penal.

Nesta instância, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se pela procedência do recurso, com declaração de nulidade da sentença e remessa dos autos à primeira instância, para reabertura da audiência e comunicação ao arguido dos novos factos indiciados e da aplicabilidade de pena acessória.

O arguido respondeu, pugnando pela sua absolvição.

Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre apreciar e decidir.

Segundo a jurisprudência corrente dos tribunais superiores, o âmbito do recurso afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido.

No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, importa decidir:

- Se é nula a sentença, por ter condenado com base em factos não constantes do auto de notícia, cuja leitura substituiu a acusação;

- Se a sentença é também nula por ter condenado em pena acessória cuja aplicabilidade jamais foi comunicada ao arguido.

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II - FUNDAMENTAÇÃO:

Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:

1) No dia 18.04.2009, pelas 8:14 horas, na Rua General Humberto Delgado, em Coimbra, o arguido conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de serviço particular e matrícula 00-00-FC.

2) Submetido a exame de pesquisa de álcool, através do aparelho quantitativo “Drager”, modelo Alcotest 7110 MKIIIP, acusou uma TAS de 1,65g/l.

3) Agiu livre, voluntária e conscientemente;

4) Sabia a sua conduta proibida e punida por lei.

5) Vive com os pais, que o sustentam; tem o 9º ano de escolaridade;

6) Não se lhe conhecem antecedentes criminais.

            A convicção do tribunal recorrido relativamente à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:

Foram determinantes para a fundamentar:

Factos 1.º a 4.º: As declarações do arguido – confessando integralmente e sem reservas os factos imputados – corroboradas pelo teor do doc. de fls. 4 (talão do resultado do exame de pesquisa de álcool no ar expirado, que confirma o valor em causa);

5º: As declarações do arguido – informando o tribunal sobre os seus elementos pessoais – que, na ausência de outros elementos mais consistentes, se consideraram atendíveis;

6º: O teor do doc. de fls. 17 (CRC do arguido, de onde resulta nada constar).

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A primeira das questões suscitadas no recurso, tal como foram identificadas supra, consiste em averiguar se a sentença padece de nulidade por ter condenado o arguido com base em factos não constantes do auto de notícia, cuja leitura substituiu a acusação.

Nos termos do disposto no nº 2 do art. 389º do CPP (diploma a que se reportam as demais disposições legais citadas sem menção de origem), pode o Ministério Público substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção. Quando assim suceda, disso se deverá dar conta na acta da audiência, por expressa imposição legal, já que o art. 99º, nº 3, al. c), impõe que da acta conste a descrição especificada das operações praticadas e da intervenção de cada um dos participantes processuais [1]. Não consta da acta de audiência, no entanto, que se tenha procedido a essa leitura, omissão grave, tanto assim que poderia levar a que se suscitasse, mesmo oficiosamente, a nulidade insanável da falta de promoção do processo pelo Ministério Público, prevista no art. 119º, al. b). Não será o caso, posto que o próprio recorrente aceita, referindo-o expressamente na motivação do recurso, que teve lugar a leitura dos factos constantes do auto de notícia. Aceitando-se, pois, apesar de dela se não ter dado nota em acta, que tal leitura teve lugar, valendo como acusação, nem por isso se poderão considerar encerradas as questões suscitadas pelo acto. Na verdade, a leitura dos factos constantes do auto de notícia não resolve – ou normalmente não resolverá – todos os problemas que esta forma de promoção processual levanta, desde logo porque ressalvados casos excepcionais, o auto de notícia será elaborado segundo modelos pré-impressos ou de acordo com formulários, preenchidos ou redigidos por agentes de autoridade sem consistente formação jurídica, e dele não constará – nem tem que constar – referência ao elemento intelectual do tipo legal de crime, como sucede no caso vertente. Nesse contexto, é ao Ministério Público que compete aditar os factos integradores do elemento subjectivo, seja através da respectiva anotação por despacho (que poderá ser feita no próprio auto), seja através da sua menção em audiência, aquando da leitura dos factos constantes do auto de notícia [menção essa que, para que possa ser comprovada e uma vez mais, por força do art. 99º, nº 3, al. c), deverá ser documentada na acta de audiência] [2].

No caso em análise, o recorrente veio suscitar, precisamente, a omissão, na acusação, do elemento subjectivo do crime. Ora, dúvidas não há de que todos os procedimentos tendentes à aplicação de uma sanção penal têm que salvaguardar os direitos de defesa do arguido, aí incluído o direito ao conhecimento integral da acusação contra ele deduzida. É a acusação que determina o âmbito dos poderes de conhecimento do tribunal e das garantias do contraditório no caso concreto. Daí que se ofereça como inegável, mesmo em processo sumário, a necessidade de observância, na acusação, seja qual for a forma que esta venha a adoptar, do disposto no art. 283º, nº 3, al. b), a impor “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a imposição ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”. Nesses factos estão necessariamente incluídos os elementos subjectivos, que traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material. Assim, e tratando-se de crime doloso, da acusação deveria constar, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, e segundo a fórmula que se segue ou outra equivalente mas inequívoca, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).

Tais elementos não constavam da acusação deduzida (não constam do auto de notícia lido em audiência), não lhe foram aditados por despacho do M.P. nem foram comunicados ao arguido em audiência, aquando da leitura do auto de notícia (a acta de audiência não o menciona); e também não se mostra que tenha sido cumprido o disposto no art. 358º, nº 3. Contudo, na sentença que veio a ser proferida, sob os nº III. A. 3. e 4., considerou provado que o arguido “agiu livre, voluntária e conscientemente” e que “sabia a sua conduta proibida e punida por lei”. Tanto basta para que se conclua pela nulidade da sentença, nos termos do art. 379º, nº 1, al. b), por ter condenado por factos diversos dos descritos na acusação fora das condições legalmente previstas.

           

Diga-se, de todo o modo, que a sentença é também nula por ter condenado em pena acessória cuja aplicabilidade jamais foi comunicada ao arguido, já que não constava da acusação deduzida, daí decorrendo violação do disposto no art. 283º, nº 3, al. c), donde decorre uma vez mais a verificação da previsão do art. 379º, nº 1, al. b).  A questão dispensa tratamento mais alargado, visto constituir jurisprudência uniformizada pelo STJ (Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 7/2008) [3].

           

            A declaração da nulidade da sentença com os fundamentos apontados envolve como consequência a devolução dos autos ao tribunal recorrido para que, após vista ao Ministério Público e reaberta a audiência, se sanem as nulidades apontadas, proferindo-se de seguida nova sentença.

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III - DISPOSITIVO:

            Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em dar provimento ao recurso, ainda que com consequências diversas das pretendidas pelo recorrente, anulando a sentença recorrida e determinando que o tribunal recorrido, após vista ao M.P. e reabrindo a audiência, sane as nulidades apontadas, proferindo nova sentença.

            Sem tributação.

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                                                                      Coimbra, ___________________

(Texto processado pelo relator e

                 revisto por todos os signatários)

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       (Jorge Miranda Jacob)

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                                                                                                                                       (Maria Pilar Oliveira)


[1] - Esta norma é complementar do art. 362º.
[2] - Vejam-se ainda os arts. 99º, nº 4 e 169º do CPP.
[3] - Publicado no DR, Série I, nº 146, e 30/07/2008. Fixou jurisprudência nos seguintes termos: “Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos n.os 1 e 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultante, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º deste último diploma legal”.