Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
56/07.5TBFAG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: ENERGIA ELÉCTRICA
CONSUMO PÚBLICO
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 04/08/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FORNOS E ALGODRES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: DEC.LEI N.º 269/88, DE 01/09; ARTIGOS 310.º G); 317.º B); 321.º; 323.º A 325.º DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGO 10.º DA LEI N.º 23/96, DE 26/07; LEI N.º 12/2008, DE 26/02
Sumário: O prazo de seis meses previsto no artigo 10.º, n.º 1 da Lei n.º 23/96, de 26/07 refere-se à prescrição do preço devido pelo fornecimento do serviço, sem que a apresentação da factura tenha efeito interruptivo, sendo inaplicáveis os prazos de prescrição previstos no Código Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A EDP Distribuição, Energia, S.A., intentou contra João Paulo Viçoso a presente acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias ao abrigo do D.L. n.º 269/98, de 1 de Setembro, vinda de injunção, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de 4.440,41 €, acrescida de 62,23 € a título de juros de mora, à taxa de 4%, desde 22 de Agosto de 2006 até 31 de Janeiro de 2007, alegando, em síntese, que o Réu deixou de cumprir a sua obrigação de pagamento de uma factura referente a fornecimento de energia eléctrica em baixa tensão normal prestado pela autora.
O Réu deduziu oposição, invocando que a factura em causa não diz respeito apenas aos últimos seis meses imediatamente anteriores, mas sim a consumos desde o início da actividade, pedindo a absolvição do pedido com base na procedência da excepção peremptória de prescrição extintiva, nos termos do art.º 10.º n.º1 da Lei 23/96 de 26 de Julho.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal, após o que foi proferida a sentença de fl.s 83 a 91, na qual se procedeu ao saneamento dos autos, se fixou a matéria de facto dada como provada e respectiva motivação, se aplicou o direito e se decidiu pela improcedência da acção, com a consequente absolvição do réu do pedido, com o fundamento em se ter considerado procedente a alegada excepção de prescrição, sendo as custas da acção a cargo da Autora.

Inconformada com tal decisão, interpôs recurso a autora, recurso, esse, admitido como de apelação e com efeito devolutivo (cf. despacho de fl.s 100), concluindo a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
1. A recorrente EDP celebrou com o recorrido um contrato de fornecimento de energia eléctrica em “baixa tensão”, datado de 24 de Junho de 2004 (fl.s 44 dos autos).
2. A obrigação assumida pela recorrente no âmbito do contrato em apreço traduz-se numa prestação duradoura de execução continuada.
3. A EDP forneceu energia eléctrica ao recorrido João Paulo Viçoso, serviços estes correctamente discriminados e devidamente quantificados através da factura n.º 10241937339 de 07 de Março de 2006 (fl.s 12 dos autos).
4. Nela se incluem, por exclusiva responsabilidade do recorrido, acertos de facturação relativos a consumos de anos anteriores (2.º semestre de 2004 e 2005), porquanto o contador do recorrido foi deixado inacessível aos serviços de leitura da recorrente mais de ano e meio (cfr. sentença recorrida a fl.s 86).
5. Destarte, salvo o devido respeito, o tribunal a quo, face à prova produzida em julgamento, considerou incorrectamente Não Provado o facto de os técnicos contadores da EDP se deslocarem ao local de consumo do recorrido para procederem à leitura do contador e de o terem encontrado sempre fechado (fl.s 85 da sentença recorrida).
6. Existe uma clara e manifesta contradição entre a prova produzida em sede de julgamento e a matéria de facto dada como provada (cfr. pontos 2 e 3 dos factos não provados constantes da decisão recorrida).
7. Sem prejuízo do exposto, não decorreu o prazo a que alude o n.º 1 do artigo 10.º da Lei 23/96 entre o momento da entrega da energia eléctrica e a interpelação do recorrido para pagar o respectivo preço, porquanto a recorrida, muito embora, por estimativa, mensalmente facturou e enviou ao recorrido as respectivas interpelações para pagamento.
8. A citada Lei refere expressamente no n.º 1 do artigo 10.º que “o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a prestação” e não diz que o preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses.
9. Igualmente não decorreu o prazo a que alude a al. g) do artigo 310.º do Código Civil, entre o momento da prestação do serviço e a citação da recorrida para a acção.
10. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo, violou, por não interpretação devida das normas aplicáveis, a al. g) do artigo 310.º do Código Civil, o artigo 334.º do Código Civil e o artigo 10.º da Lei 23/96.
Termina, pedindo a revogação da decisão recorrida e, consequentemente, a sua substituição por acórdão que condene o recorrido no pedido.

Com tais alegações, juntou a recorrente o Parecer, junto de fl.s 111 a 143, subscrito pelos Ex.mos Sr.s Professores-Doutores da FDUC, Rui de Alarcão e Joaquim de Sousa Ribeiro, no qual se defende, em resumo, que:
- o prazo de prescrição de 6 meses, fixado no n.º 1 do artigo 10.º da Lei 23/96, se refere à faculdade de interpelação do devedor para pagamento, através da apresentação da correspondente factura;
- prazo que começa a contar no dia imediato ao termo do período da prestação a que a factura respeita;
- o prazo para a exigência judicial do pagamento do preço é o previsto no artigo 310.º do Código Civil;
- é sempre havido como período da prestação o período constante da factura, não sendo de entrar em conta, no caso da factura com valores reais, que ela incorpora acertos de prestações anteriores facturadas por estimativa;
- não é de aplicar à factura por estimativa o disposto no n.º 2 do citado artigo 10.º, dado que as eventuais diferenças de preço entre o consumo estimado e o efectivo não se devem a erro do prestador do serviço;
- a factura por estimativa tem validade idêntica à resultante de “leitura real”, para o efeito de impedir a prescrição, tal como a tem para efeitos de liquidação do preço e de interpelação para o seu pagamento;
- atribuindo apenas eficácia impeditiva da prescrição à factura com valores reais de consumo, releva averiguar se a não efectivação da recolha destes valores é imputável à falta de cooperação do utente. Se assim for, pode dar-se a suspensão do prazo prescricional, no caso de haver dolo (art.º 321.º, n.º 2 do Código Civil), ou, pelo menos, tornar-se ilegítima a invocação da prescrição, por abuso do direito ou por violação do princípio da boa fé.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.
Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir são as seguintes:
A. Se existe clara e manifesta contradição entre a prova produzida em julgamento e a matéria de facto dada como não provada (cfr. Pontos 2 e 3 dos factos não provados constantes da decisão recorrida);
B. Qual o prazo de prescrição a considerar no caso em apreço e desde quando se inicia a sua contagem e;
C. Se a conduta do recorrido, ao invocar a prescrição do crédito dos autos, configura abuso do direito.

São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida:
Factos Provados
Considero assente, em virtude da prova documental e testemunhal produzidas, a seguinte factualidade:
1. A autora é uma sociedade anónima que tem por objecto a distribuição e fornecimento de energia eléctrica.
2. O réu requisitou à autora, mediante o contrato n.º 9000992412 datado de 24 de Junho de 2004, o fornecimento de energia eléctrica de baixa tensão para o Largo do Miradouro, cave esquerda em Fornos de Algodres.
3. Satisfazendo tal solicitação a autora, no interior de tal local, instalou um contador n.º 35117015, com a potência de 20,70kVA, com o n.º 8317716 de instalação.
4. O réu fez uso da energia eléctrica fornecida pela autora desde 24 de Junho de 2004.
5. No local do fornecimento de energia referido em 2., está instalado o café/ bar “….”, do qual é sócio o filho do réu, C… e gerente D….
6. Desde o início do contrato, a EDP procedeu à emissão das facturas através de estimativa, tendo o réu procedido ao seu pagamento através de débito em conta durante vinte meses.
7. Com vista a alterar a titularidade do contrato de fornecimento de energia, no dia 6 de Março de 2006, foi comunicada a leitura do contador.
8. Em Março de 2006 o réu recebeu a factura n.º 10241937339 no montante de € 4.435,56.
9. Tal valor encontra-se em dívida.
10. Desde Junho de 2004 até Março de 2006 o horário de funcionamento do café/ bar “….” não foi alterado, abrindo diariamente cerca das 13.30.
11. Desde Junho de 2004 até Março de 2006 o equipamento eléctrico utilizado no café/ bar “…..” não foi alterado.
12. O contador instalado e referido em 3. não se encontra com qualquer anomalia.
13. Em 28 de Junho de 2004 a leitura por estimativa do contador registava 5 KWh.
14. Em 23 de Setembro de 2004 a leitura por estimativa do contador registava 5 KWh.
15. Em 22 de Março de 2005 a leitura por estimativa do contador registava 5 KWh.
16. Em 24 de Setembro de 2005 a leitura por estimativa do contador registava 5 KWh.
17. Em 7 de Março de 2006 a leitura do contador registava 42278 KWh.
18. Desde Abril de 2006 até à presente data que o consumo médio mensal do local referido em 2. se cifra em € 200,00, a que correspondem em média entre cerca de 700 a 1.000 KWh mensais.
19. O requerimento de injunção deu entrada em juízo no dia 31 de Janeiro de 2007.
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Factos Não Provados
1. No período entre 25 de Setembro de 2005 a 7 de Março de 2006 o consumo de energia eléctrica no café/bar “….” instalado no Largo do ….., cave esquerda em ….. foi de 42278KWh.
2. Os técnicos contadores da EDP deslocaram-se ao local referido em 2. para procederem à leitura do contador.
3. Os técnicos encontraram sempre o estabelecimento fechado, tendo deixado aviso de que estiveram no local para ler o contador.


A. Se existe clara e manifesta contradição entre a prova produzida em sede de julgamento e a matéria de facto dada como não provada (cfr. Pontos 2 e 3 dos factos não provados constantes da decisão recorrida).
Com vista a tal desiderato, alega a recorrente que resulta dos depoimentos das testemunhas J…., A…. e R…. que se deve dar como provada a matéria de facto constante dos itens 2 e 3 da matéria que consta como não provada na decisão em recurso.
Consta dos mesmos que “Os técnicos contadores da EDP deslocaram-se ao local referido em 2. para procederem à leitura do contador” (item 2) e “Os técnicos encontraram sempre o estabelecimento fechado, tendo deixado aviso de que estiveram no local para ler o contador” (item 3)”.
Como se constata da fundamentação da matéria de facto aduzida na sentença em recurso, a convicção do julgador fundou-se na análise dos documentos juntos aos autos e aí melhor discriminados, bem como nos depoimentos das testemunhas inquiridas, entre as quais, as ora referidas.
Como se constata da respectiva acta de audiência de julgamento, os depoimentos prestados pelas testemunhas não foram gravados.
Ora, como consabido, a matéria de facto dada por assente na 1.ª instância, só poderá ser modificada nos limites e condições estabelecidos no n.º 1 do artigo 712, do CPC.
Pelos próprios termos da impugnação é de afastar liminarmente, quanto aos pontos de facto ora em referência, o que se dispõe nas al.s b) e c), de tal preceito, visto que a ora recorrente não se baseia em elementos fornecidos pelo processo que imponham decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; bem como, igualmente, não se acha junto documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
A última possibilidade de alteração seria a prevista na al. a) do sobredito artigo 712, mas a mesma é, igualmente, de afastar, uma vez que, para que tal fosse possível, do processo teriam de constar todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tivesse sido impugnada, nos termos do artigo 690-A, a decisão com base neles proferida.
Analisando os autos é forçoso concluir que dos mesmos não constam todos os elementos de prova que serviram de base à decisão da matéria de facto em causa, uma vez que a convicção da 1.ª instância se baseia, fundamentalmente, em depoimentos testemunhais que não se acham gravados nem reduzidos a escrito, pelo que não é possível alterar as respostas dadas a tais quesitos.

Para além do que, importa sublinhar, o Tribunal de 1.ª instância goza de liberdade de julgamento, do que deriva que, em sede da convicção, não cabe a este Tribunal efectuar qualquer controle sobre o Tribunal recorrido, tal como decorre do estabelecido no artigo 655, CPC, dado que estando o juiz de 1.ª instância perante a pessoa que depõe, melhor do que o juiz do recurso se apercebe da forma como são realizados os depoimentos, da respectiva convicção de quem os presta, das imprecisões e reacções que se revelam, do que tudo se constrói a convicção do julgador, sem esquecer que tais depoimentos são produzidos em obediência ao princípio do contraditório das partes envolvidas e de acordo com as regras legais aplicáveis.
Pelo que, salvo casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão ou com as regras de normalidade e de experiência comum, como regra, devem ser respeitados os princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova, quando se analisa a convicção adquirida pelo julgador em primeira instância.
Assim, face aos termos da impugnação utilizada e os critérios legais ora expostos, tem de improceder a pretensão da recorrente no que se refere às respostas dadas aos quesitos em referência, que se mantêm nos precisos termos em que o foram no Tribunal recorrido.
Pelo que, improcede o recurso, quanto a esta questão.

B. Qual o prazo de prescrição a considerar no caso em apreço e desde quando se inicia a sua contagem.
Como resulta da análise da sentença proferida e das alegações de recurso, complementadas com o Parecer a que acima se fez referência, têm vindo a existir alguma disparidade quanto ao modo de interpretar o disposto no artigo 10.º, n.º 1, da Lei 23/96, de 26/7.
Como consabido, esta Lei, transpondo Directivas Comunitárias, visou a defesa dos consumidores, fixando as regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à protecção do utente, entre os quais se inclui o fornecimento de energia eléctrica – cf. artigo 1.º, n.os 1 e 2, al. b), da referida Lei.
Assim é indubitável (e nem as partes o põem em causa), que a referida Lei se aplica à situação sub judice.
Ora, de acordo com o seu artigo 10.º, n.º 1, “O direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação”.
Este preceito tem dado azo a interpretações díspares e contraditórias, no sentido de, entenderem uns, que se refere ao prazo para apresentação da factura e à cobrança do preço relativo ao serviço prestado, para outros.
No caso em apreço, o réu, ora recorrido, veio invocar a prescrição com o fundamento em que a factura que originou a presente acção não respeita apenas aos últimos seis meses imediatamente anteriores, ao passo que a recorrente defende que o prazo previsto naquele artigo 10.º, n.º 1, se refere apenas à obrigatoriedade de a factura ter de ser apresentada nos seis meses imediatamente subsequentes ao fornecimento e, não sendo paga, se aplicam os prazos de prescrição previstos na lei civil, mais concretamente os que se acham estabelecidos nos artigos 310, al. g) e 317, al. b), ambos do Código Civil, que tem em vista as situações de fornecimento de quaisquer prestações periodicamente renováveis ou serviços ou produtos do comércio ou indústria, não destinados ao exercício industrial do devedor, que os fixam, respectivamente, em cinco e dois anos.
Ou seja, enquanto uns defendem que o prazo de prescrição para cobrança do preço devido pelo fornecimento de energia eléctrica é o de seis meses previsto no artigo 10.º da Lei 23/96, outros entendem que o prazo é o previsto nos mencionados artigos do Código Civil, desde que a factura tenha sido apresentada no prazo de seis meses imediatamente subsequentes ao fornecimento em causa.

Mais concretamente, encontram-se, acerca de tal questão, três posições contraditórias (do que se faz uma resenha no Acórdão desta Relação, de 23/01/2007, Processo 2359/04, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrc), que se resumem no seguinte:
- o prazo de prescrição conta-se da efectiva prestação dos serviços, e tratando-se de serviços reiterados ou periódicos, desde a prestação mensal do serviço, sem que a apresentação da factura tenha efeito interruptivo (foi a posição seguida na sentença recorrida e é a defendida por Calvão da Silva, in RLJ, ano 132, pág.s 143 e seg.s, existindo vários Acórdãos quer do STJ quer das Relações que sufragam tal posição (alguns dos quais são referidos no Acórdão desta Relação acima referido);
- o prazo de seis meses refere-se à apresentação da factura, a qual interrompe a prescrição, por acrescer às situações previstas nos artigos 323 a 325 do CC, sendo igualmente o prazo de seis meses entre a apresentação e a instauração da acção e;
- por último, os que defendem que o prazo de seis meses previsto no artigo 10.º da Lei 23/96, se refere à apresentação da factura, aplicando-se a partir daí o prazo de prescrição de 5 anos, previsto no artigo 310.º, al. g), do CC (posição defendida por Menezes Cordeiro, in O Direito, ano 133, n.º 4, pág. 769 e seg.s e seguida em vários Acórdãos do STJ (os indicados no Acórdão desta Relação acima referido e os de 23/01/2007, in CJ, STJ, ano XV, tomo 1, pág.s 41 a 43, no qual foi, igualmente, junto um parecer pelos mesmos Ex.mos Sr.s Professores que subscrevem o junto nos presentes autos e o de 24/05/2007, Processo 07A716, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj).

Basicamente, os argumentos esgrimidos em favor de cada uma de tais teses, são os de que em tais casos se pretendeu fixar, para eficaz defesa dos direitos dos utentes de tais serviços, um prazo de prescrição mais curto do que o previsto na lei civil, visando prevenir a acumulação de dívidas, com os efeitos nefastos que daí poderiam advir, designadamente maior dificuldade em as solver (primeira das teses enunciada) e;
Para os demais, o prazo de prescrição refere-se à faculdade de interpelação do devedor para pagamento, através da apresentação da correspondente factura, começando a contar no dia imediato ao termo do período de prestação a que a factura respeita e não sendo pago o preço, não obstante a apresentação atempada da factura, passam a correr os prazos aplicáveis nos artigos 310.º, al. g) e 317, al. b), ambos do CC, consoante a situação concreta.
Isto por se considerar como exíguo o prazo de seis meses previsto na Lei 23/96, que poderia impossibilitar a empresa fornecedora de fornecer atempadamente a factura e a obrigá-la, desde logo a intentar uma acção para cobrança de dívida, bem como que se o legislador quisesse referir-se à prescrição do preço do serviço prestado referi-lo-ia directa e claramente, sem ter a necessidade de usar a expressão que usou “O direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado …”, tendo, neste último caso, de usar a expressão “o direito ao preço do serviço prestado prescreve …”.
Assim, para os defensores desta tese, o artigo 10.º, n.º 1 da citada Lei 23/96, deve ler-se como se dissesse “o direito ao preço prescreve se a respectiva factura não for apresentada dentro de seis meses após a prestação do serviço”, tal como se defende no Parecer junto (fl.s 7, 117 dos autos) e respectivas conclusões 1.ª a 4.ª, pág.s 141 e 142 dos autos).

Atento a que a citada Lei 23/96 visou, primordialmente, a defesa e protecção dos direitos dos utentes dos serviços públicos essenciais nela incluídos e entre os quais, sem dúvida, se conta o direito a que o utente tenha uma percepção tanto quanto possível exacta e em tempo real, acerca dos consumos que efectuou e, consequentemente, das quantias que se encontram em dívida, somos de opinião que o prazo de seis meses previsto no seu artigo 10.º, n.º 1, se refere à prescrição do preço devido pelo fornecimento do serviço em causa, sem que a apresentação da factura tenha efeito interruptivo.
Com o devido respeito por opinião em contrário, cremos que esta é a posição que melhor se adequa aos fins tidos em vista pelo legislador, não obstante a redacção dúbia de tal preceito, que poderia (e deveria) ser mais clara quanto ao propósito tido em vista.
Não obstante e seguindo a fundamentação defendida por Calvão da Silva na RLJ, a que acima já se aludiu, cremos ser esta a solução mais consentânea com a finalidade tida em vista com a publicação da referida Lei 23/96.
E nem a tal, salvo o devido respeito por opinião em contrário, se poderá objectar com o facto de as leituras poderem ser feitas por estimativa ou na modalidade de conta certa com acerto de contas no final de um determinado período, uma vez que, como até se refere no Parecer junto aos autos (fl.s 24 do Parecer, 134 dos autos), mesmo em tais casos, é obrigatória a realização, no mínimo, de duas leituras anuais (sublinhado nosso).
Ora, a intenção que preside à realização mínima das tais duas leituras não pode ser outra que não inviabilizar que não se façam leituras espaçadas em mais de seis meses (dado que o ano tem 12 meses), a fim de que o consumidor possa ter um controlo efectivo dos consumos gastos e correspondentes custos.
Assim, propendemos a considerar o disposto no artigo 10.º, n.º 1, da citada Lei 23/96, como consagrando um prazo de prescrição extintiva, tendo por referência a prestação dos serviços em causa e desde a prestação mensal do serviço, sem que a apresentação da factura tenha efeito interruptivo do mesmo e sendo inaplicáveis os prazos de prescrição previstos no Código Civil, pelo que, é de manter a sentença recorrida.

Mas um outro argumento nos leva a consolidar tal posição, qual seja o da recente alteração do disposto no referido artigo 10.º da citada Lei 23/96.
Efectivamente, através da Lei 12/2008, de 26/2, in DR I.ª Série, n.º 40, de 26 de Fevereiro de 2008, foi alterada a redacção dada a tal preceito, no qual se passou a dispor o seguinte:
“O direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação”.
Ou seja, o legislador afastou as dúvidas na sua anterior redacção e que originaram a disparidade na sua interpretação e consequentes decisões contraditórias, sendo de realçar que, agora, se consagrou a expressão a que acima se fez referência como constando a fl.s 7 do Parecer junto aos presentes autos, no sentido de que se pretendeu desfazer as dúvidas e manifestar, de modo claro e inequívoco, que a mesma se refere ao crédito do preço, uma vez que dele consta a expressão “O direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação”.
Tal redacção não pode deixar de eliminar as dúvidas e incertezas motivadas pela anterior redacção, no sentido de que, repete-se, se visa o recebimento do preço. O crédito do preço do serviço prestado e não o direito de o exigir, mediante a apresentação da factura, sem que, posteriormente, ainda possa exigir tal pagamento.
Não, sem sombra de dúvidas, se manifesta a intenção, “preto no branco”, de que o que está em causa é o direito ao recebimento do preço do serviço prestado no prazo de seis meses após a sua prestação.

Assim sendo, como o é, estamos em presença de uma lei interpretativa, já que, como o refere Baptista Machado, Introdução ao Direito e Discurso Legitimador, 1983, pág. 246:
“É de considerar como lei interpretativa (por natureza) aquela que, com o fim de pôr cobro à controvérsia (ou pelo menos à incerteza) sobre o sentido de certa regra jurídica, vem consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adoptado: não necessariamente uma das correntes jurisprudenciais anteriores ou uma forte corrente jurisprudencial anterior que, até pode nem existir -, mas um sentido que os operadores jurídicos poderiam ter extraído da norma”.
E ali acrescentando, a fl.s 247:
“Para que uma LN possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou intérprete, em face dos textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que a LN vem consagrar, então esta é decididamente inovadora”.
Daqui resulta, pois, que a função de uma lei interpretativa é a de fixar uma das interpretações possíveis da lei anterior, com o que os interessados podiam e deviam contar, sem violar expectativas jurídicas e legitimamente fundadas.
A diferença entre uma lei interpretativa e uma lei inovadora reside em que a primeira visa pôr termo a reais dificuldades de interpretação, que motivaram controvérsia doutrinal e jurisprudencial, enquanto a segunda, existindo interpretação uniforme pela doutrina e pelos tribunais, da qual discorda o legislador, em função do que, com a lei nova, impõe uma interpretação diferente – cf. Rodrigues Bastos, Das Leis, sua Interpretação e Aplicação, Segundo o Código Civil de 1966, 2.ª edição (do autor), 1978, a pág.s 49 e 50.

Ora, como acima se referiu, no domínio da redacção original da Lei 23/96, existia a forte controvérsia doutrinal e jurisprudencial, a que acima já se aludiu, motivada pela dificuldade de interpretação do preceito em causa.
A nova redacção, pôs fim a tal dificuldade de interpretação, aderindo o legislador a uma das teses que já, no domínio da sua anterior redacção, era defendida.
Consequentemente, face aos critérios ora expostos, tem a Lei 12/2008, de 26/2, de ser considerada como lei interpretativa, a qual se integra na lei interpretada, com ressalva dos efeitos já produzidos, nos termos do artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil, retroagindo os seus efeitos até à data da entrada em vigor da antiga lei, tudo ocorrendo como se tivesse sido publicada na data em que o foi a lei interpretada, com a aludida ressalva – neste sentido, P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 3.ª Edição Revista E Actualizada, Almedina, 1982, a pág. 62.
É certo que a mesma apesar de já publicada do DR, apenas entrará em vigor 90 dias após a sua publicação (cf. seu artigo 4.º), mas de acordo com o seu artigo 3.º “aplica-se às relações que subsistam à data da sua entrada em vigor”.
Assim, não obstante esta vacatio legis, não nos parece que se deva ignorar a opção interpretativa que na mesma se faz por parte do legislador, o qual pretendeu colocar termo à controvérsia e dificuldades de interpretação originadas pela anterior, dúbia, redacção, fixando, com a nova redacção, os termos em que a mesma deve ser interpretada e aplicada.
Assim, também quanto a esta questão tem de improceder o presente recurso.

C. Se a conduta do recorrido ao invocar a prescrição do crédito dos autos, configura abuso de direito.
Alega a recorrente que atento o facto de o contador estar no interior do estabelecimento e de o recorrido saber que estavam a ser feitas leituras por estimativa, tendo pago as facturas que lhe foram apresentadas entre 2004 e 2005 e, por isso, sujeitas a posteriores acertos de contas, a sua invocação da excepção de prescrição configura abuso de direito.
Dispõe o artigo 334.º do CC que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Assim, para que tal figura se possa configurar, tem de existir manifesta violação no exercício do direito, em qualquer de tais modalidades.
Ora, o recorrido, na qualidade de utente do serviço prestado, limitou-se a pagar as facturas que lhe foram sendo enviadas, sendo que, cf. doc. de fl.s 15, a recorrente, contrariamente ao que lhe era exigido (deveria proceder a, no mínimo, duas leituras anuais), desde Junho de 2004 a Março de 2006, não fez nenhuma, apresentando leituras por estimativa.
Por outro lado, conforme itens 2 e 3 dos factos não provados, não se demonstrou que os técnicos da EDP tenham sido impedidos de se deslocarem ao local a fim de procederem à leitura do contador.
Ou seja, a não efectivação da recolha dos valores de energia consumida pelo recorrido não é imputável a qualquer falta de cooperação deste, daí não se poder concluir que a invocação que faz da prescrição seja ilegítima por abuso de direito ou por violação do princípio da boa fé – cf. conclusão 8.ª do Parecer junto pela própria recorrente.
Assim, a invocação da prescrição por parte do recorrente traduz-se no exercício normal de tal direito e, por isso, não configura o abuso de direito da sua parte. Tal conduta não se traduz em qualquer benefício para o recorrido decorrente do seu próprio incumprimento do dever de cooperar e não obstar a que a recorrente pudesse ter acesso ao contador, a fim de proceder às leituras reais.
Só assim sucederia se se tivesse demonstrado o que consta dos itens 2 e 3 dos factos não provados. Mas tal não aconteceu.
Consequentemente, também, com base nesta questão, tem o presente recurso de improceder.

Nestes termos se decide:
Julgar improcedente a apelação deduzida, em função do que se mantém, nos seus precisos termos, a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Coimbra, 08 de Abril de 2008.