Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
115/21.1GAACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
ACUSAÇÃO ATÍPICA
ARQUIVAMENTO DOS AUTOS
Data do Acordão: 05/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 283.º DO CPP
Sumário: A falta de tipicidade da acusação não é passível de correcção, seja ordenando a devolução dos autos à fase processual anterior, seja por via da aplicação dos mecanismos de alteração dos factos, já que essa deficiência congénita atinge a própria estrutura central, a essência da referida peça processual.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

Nos autos de inquérito que, sob o nº 115/21...., correram termos pela Secção de ... junto da Procuradoria da República da Comarca ..., a encerrar esta fase processual, o MP proferiu despacho de acusação contra o arguido AA, imputando-lhe a prática, na forma consumada, de um crime de ofensas à integridade física simples, p.p. pelo artº 143º, 1, do CP.

Notificado, o arguido viria a requerer a abertura de instrução, pretendendo que seja proferido despacho de não pronúncia, «perante a manifesta inexistência de matéria criminal imputável ao ora requerente».

            Após debate instrutório viria a ser proferida decisão instrutória de não pronúncia, com o seguinte teor literal:

I.

Iniciaram-se os presentes autos de instrução a requerimento do arguido AA, a fls. 122 a 132, inconformado com o despacho de acusação proferido pelo Ministério Público a fls. 109/110 e que lhe imputou a prática, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, n.º 1, do C. Penal.

Para tanto alegou, em síntese, que a acusação não descreve factos integradores do crime que imputa ao arguido, que não os praticou e que não existem indícios suficientes de que o tenha feito.

Aberta a instrução, realizou-se debate instrutório. No decurso de tal debate, a Defesa arguiu expressamente a nulidade da acusação, por falta de descrição de factos integradores de crime, nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 283º do C. P. Penal.


*

 II.
O Tribunal é o competente.

*

A) DA NULIDADE DA ACUSAÇÃO

Como resulta da exposição feita, o requerimento de abertura da instrução (RAI) funda-se, em parte, na argumentação de que os factos descritos na acusação não constituíam crime ou, dito de outro modo, que a acusação não descreve factos integradores do tipo legal do crime de ofensa à integridade física imputou ao arguido.

Mantendo tais argumentos, concluiu o arguido em sede de debate instrutório que tal equivale a nulidade da acusação, nos termos do disposto no artigo 283º, n.º 3, al. b), do C. P. Penal, que arguiram expressamente.

Tal arguição é tempestiva (artigos 118º, n.º 1, 119º, a contrario sensu, 120º, n.º 1 e n.º 3, al. c) e 283º, n.º 3, todos do C. P. Penal), devendo a nulidade ter tratamento prévio à decisão instrutória propriamente dita, isto é, à apreciação da suficiência ou insuficiência indiciária da acusação em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento (artigos 286º, n.º 1 e 308º, n.º 1 e n.º 3, ambos do C. P. Penal).


*

A acusação deduzida contra o arguido tem o seguinte teor:

1º No dia ..., quando o arguido se encontrava junto da sua residência, sita na Rua ..., ... ..., envolveu-se num desentendimento com o arguido.

2º Nesta sequência, o arguido empurrou o ofendido, empurrou-o para trás, fazendo com que AA caísse ao chão.

3º De seguida, quando o ofendido já se encontrava no chão, desferiu-lhe diversos socos na zona da cabeça.

4º Como consequência directa e necessária das agressões infligidas pelo arguido, o ofendido, que é o beneficiário nº ...17 da Segurança Social, sofreu as seguintes lesões:

Face: escoriação avermelhada linear com 4 cm por 0,2 cm de maiores dimensões, oblíqua infero-medialmente, na metade direta da região frontal, abaixo da linha de inserção capilar. Paralela a esta e distando 1 cm dela, observa-se outra escoriação com 3,5 cm por 0,2 cm de maiores dimensões, com crosta avermelhada. 3 escoriações avermelhadas com crosta na hemiface direita, a maior das quais com 4 cm por 0,2 cm de maiores dimensões. 6 escoriações dispersas pela hemiface esquerda, com crosta hemática, a maior das quais com 8 cm por 0,2 cm de maiores dimensões, acima da linha mandibular. Múltiplas escoriações infracentimétricas com crosta hemática dispersas pelo pavilhão auricular esquerdo.

Membro inferior direito; sem limitação funcional e sem lesões visíveis.

5º lesões que lhe causaram 38 dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.

6º O arguido sabia que com o comportamento supra descrito molestava fisicamente o ofendido e lhe causava, como causou, dores e padecimento, o que quis.
7º O arguido agiu com vontade livre e consciente,

 8º bem sabendo o seu comportamento era e é proibido e punido pela lei penal.

Comete o crime de ofensa à integridade física imputado ao arguido, quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa.

Segundo a acusação, o arguido envolveu-se num desentendimento consigo próprio (artigo 1º), na sequência do qual empurrou o ofendido – que não é identificado em lado algum da acusação – empurrão esse que fez cair… o arguido (artigo 2º). Porém, o inominado ofendido surge no chão e um sujeito não concretizado, que se supõe ser o arguido, desferiu naquele diversos socos na zona da cabeça (artigo 3º).

A acusação deve ser uma peça de rigor, definindo cabalmente o objecto processual do julgamento que supõe e requer. No caso dos autos, existe uma peça ininteligível, onde não se identifica quem é o ofendido e se descrevem factos absurdos e contraditórios, como o desentendimento do arguido consigo mesmo e o empurrão que dá no ofendido e que faz cair o primeiro e não empurrado, para logo dizer que quem está no chão é o ofendido.

Não identificando a acusação quem foi agredido, não está descrita conduta enquadrável no tipo legal do crime de ofensa à integridade física simples (ou de qualquer outro crime). O que implica que a factualidade narrada na acusação, atípica, não pode fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena. O que, por seu turno, implica que a acusação seja nula, nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 283º do C. P. Penal, já que não descreve factos integradores do preenchimento de qualquer tipo legal.

Verificada tal nulidade, impõe-se julgar prejudicadas todas as demais questões suscitadas e ordenar o arquivamento dos autos, não sendo admissível sanar tal vício1.

1 Sem preocupações de exaustão, vejam-se, nesse sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 06/07/2011 (Processo n.º 2184/06.5JFLSB.C1,Relator Desembargador Alberto Mira), de13/01/2006 (Processo n.º540/13.1GBPBL.C1, Relator Desembargador Alberto Mira),de22/05/2013(Processon.º368/07.8TALRA.C1, relatora Desembargadora Maria Pilar Oliveira), de 23/05/2012 (Processo n.º126/09.5IDCBR-B.C1, Relatora Desembargadora Maria José Nogueira) e de 26/06/2013 (Processon.º599/10.3TAMGR.C1, Relatora Desembargadora Maria José Nogueira); do Tribunal da Relação de Évora de 07/04/2015 (Processo n.º 159/12.4IDSTB.E1, Relator Desembargador Martinho Cardoso) e de 08/04/2014 (Processon.º218/12.3TAABF.E1, Relatora Desembargadora Maria Filomena Soares); do Tribunal da Relação de Guimarães de 07/02/2011 (Processo n.º269/10.2GCGMR.G1, Relator Desembargador Fernando Chaves) e do Tribunal da Relação do Porto de27/06/2012 (Processo n.º581/10.0GDSTS.P1, Relator Desembargador Pedro Vaz Pato)e de 30/11/2011 (Processo n.º652/09.6GCSTS-A.P1, Relator Desembargador Melo Lima), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

III.
Termos em que, face a todo o exposto:
a) julgo verificada a nulidade da acusação pública;
b) consequentemente, julgo prejudicadas todas as demais questões e determino o arquivamento dos autos.
Sem custas.

Notifique e proceda ao registo da decisão instrutória no livro próprio.

Inconformado com tal decisão, o Digno Magistrado do MP interpôs o presente recurso, que motivou, assim concluindo:

1. O presente recurso versa sobre o douto despacho, sob a ref. ...46, o qual julgou verificada a nulidade da acusação pública deduzida contra o arguido AA e, consequentemente, julgou prejudicadas todas as demais questões suscitadas no âmbito do requerimento de abertura de instrução.

2. Da leitura da acusação constante dos autos, é evidente que a mesma padece de lapso no seu art. 1.º, quando se refere que o arguido se envolveu em desentendimento com o arguido, bem como no art. 2.º quando se refere que, o arguido empurrou o ofendido, empurrou-o para trás, fazendo com que António Livramento caísse ao chão.

3. Na verdade, pretendia-se articular que o arguido empurrou o ofendido, empurrou-o para trás, fazendo com que BB caísse ao chão.

4. Tal lapso, que é evidente, decorre da utilização de meios informáticos.

5. Na verdade, temos apenas dois intervenientes, denunciante/queixoso, o qual dá início ao inquérito e um denunciado/arguido, contra o qual decorre o mesmo.

6. A referência no art. 1º da acusação “envolveu-se em desentendimento com o arguido” (embora irrelevante) e no art. 2º “AA”, não passou de um simples, embora lamentável, erro material (artigo 249.º do Código Civil), absolutamente revelado no próprio contexto da declaração, apenas dando direito a rectificação e nunca à nulidade da acusação.

7. Trata-se apenas de um único arguido e ofendido, pelo que é evidente tratar-se de manifesto lapso cometido na acusação, o qual era naturalmente susceptível de ser suprido por parte do tribunal face aos restantes elementos que deles já constavam.

8. Deste modo, impunha-se a correcção do erro, e não a declaração de nulidade da acusação, com consequente arquivamento dos autos, pondo fim ao processo.

9. Acresce que, do despacho que ora se recorre, entendeu o Mm. JIC que, não foi identificado na acusação quem foi agredido.

10. Com o devido respeito, contrariamente ao doutamente decidido, a acusação identifica (embora erroneamente) quem foi agredido, só que, essa identificação sofre de manifesto lapso, já que na acusação embora se que “o arguido empurrou o ofendido, empurrou-o para trás”, depois, identifica “fazendo com que AA caísse ao chão”, quando na verdade se queria identificar BB, único ofendido identificado no inquérito.

11. Ainda que se conceda que no art. 1º da acusação também se verifica lapso, no sentido em que o desentendimento terá de ocorrer entre duas pessoas diferentes, a verdade é que tal facto não constituiu elemento típico do crime em causa, tratando-se de mero enquadramento temporal e local, pelo que também não concordamos quando se decidiu que, não foi descrita conduta enquadrável no tipo legal do crime de ofensa à integridade física simples.

12. Os factos narrados e que constam da acusação (empurrou para trás, fazendo cair ao chão, provocando as lesões ali descritas, sabendo que com tal comportamento molestava fisicamente o ofendido e lhe causava, como causou, dores e padecimento, o que quis) são susceptíveis de integrar prática de um crime de ofensas à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143.º nº 1 do Código Penal, tal como vem imputado na acusação.

13. Assim, deverá o despacho proferido ser revogado, substituindo-se o mesmo, por decisão que determine a correcção oficiosa do lapso de identificação do ofendido verificado na acusação, ou a notificação do Ministério Público com vista à correcção de tal erro.

14. Mesmo que assim não se entenda, seguindo-se a jurisprudência constante do ACÓRDÃO Nº 246/2017, do Tribunal Constitucional deveriam os autos serem remetidos ao Ministério Público a fim de se deduzir nova acusação, onde se corrigisse a identificação do ofendido e seguindo-se os termos legais.

15. Ou seja, considerando-se que, a circunstância de não se identificar correctamente o nome do ofendido, constitui descrição insuficiente de um elemento típico, deveriam os autos serem devolvidos ao Ministério Público, a fim de vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.

16. Caso assim se entenda, deverá o despacho recorrido ser revogado, substituindo-se por outro que determine a devolução dos autos ao Ministério Público, com vista a eventual dedução de nova acusação, a fim de vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.

No entanto V. Excªs Farão a habitual Justiça.

A este recurso respondeu o arguido, assim concluindo:

Pelo exposto e com Mui douto suprimento de V.Exas., deverá o presente Recurso ser julgado totalmente improcedente por suscitada e arguida a nulidade que dá fundamento ao douto Despacho de arquivamento, confirmando assim a douta decisão recorrida.

            O M.mo Juiz recorrido viria ainda a proferir despacho de sustentação do seguinte teor literal:

Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra:

I.Fazendo uso da prerrogativa prevista no n.º 4 do artigo 414º do C. P. Penal, venho sustentar a decisão recorrida.

II. Quanto aos fundamentos da decisão, nada tenho a acrescentar ao que dela fiz constar.

No que toca aos fundamentos do recurso, nomeadamente à alegação de lapsos e erros que deveriam ser corrigidos, determinando-se a devolução do processo ao Ministério Público, chamo a atenção para o seguinte.

a) o requerimento de abertura de instrução (RAI) do arguido apontou os supostos lapsos que tornavam a acusação praticamente ininteligível;

b) o Ministério Público, ao invés de ordenar a correcção de tais lapsos, disse ter visto o RAI e determinou a remessa do processo à distribuição como instrução cfr. fls. 134;

c) notificado do despacho de abertura da instrução, não veio arguir qualquer lapso da acusação que devesse ser corrigido;

d) nem o fez em sede de debate instrutório.

Na decisão recorrida descreve-se extensa jurisprudência no sentido de que a nulidade da acusação não pode ser sanada determinando a devolução do processo à fase de inquérito.

O que bem se compreende: a ser diverso o entendimento, uma acusação poderia ser repetida indefinidamente, até acertar, violando desproporcionadamente a segurança jurídica, nomeadamente a posição do arguido.

A acusação deduzida não contém mero lapso de escrita; falha na imputação concreta de factos ao arguido, o que configura mera nulidade.

Entender o contrário permitirá invocar lapso de escrita para toda e qualquer omissão ou erro do Ministério Público de carácter substancial.

Por outro lado, a invocação de tais supostos lapsos não pode ser feita a todo o tempo, nomeadamente quando se considerou que tal configura nulidade da acusação. Finalmente, vigorando no processo penal português o princípio do acusatório, não pode retornar ao inquérito processo já em fase de instrução ou julgamento, de modo a permitir ao Ministério Público sanar vícios da acusação. Além de toda a jurisprudência já citada na decisão recorrida, poderá ver-se neste sentido a seguinte (mais recente), toda acessível em www.dgsi.pt:

a) Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02/03/2022 (Processo n.º 168/18.0GAACB-A.C1, Relatora Desembargadora Isabel Valongo): «() considerado o princípio acusatório, o JIC não pode ordenar a prática do acto omitido em sede de instrução nem devolver o processo ao MP para repristinação do inquérito ( )»;

b) Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07/03/2018 (Processo n.º 189/14.1PFCBR.C1, Relator Desembargador Orlando Gonçalves): «() rejeitada a acusação, o juiz não deve determinar, ao abrigo do art.122.º do C.P.P., a devolução dos autos à fase de inquérito, em ordem à posterior correção da acusação pública, pelo Ministério Público. () Uma decisão nesse sentido não só não respeitaria o disposto no art.311.º, n.º 2, do C.P.P., como constituiria uma ingerência judicial nos poderes atribuídos ao Ministério Público e colocaria em causa as legítimas expectativas do arguido e as garantias de defesa constitucionalmente tuteladas no artigo 32.º, n.º 1, da CRP ( )»;

c) Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/03/2021 (Processo n.º 80/18.2PZLSB.C1, Relator Desembargador Jorge Jacob): «() rejeitada a acusação pública, ao abrigo do disposto no artigo 311.º do CPP, a única via de reacção do Ministério Público contra o correspondente despacho é o recurso, procurando convencer do bem fundado daquela peça processual, não lhe sendo consentido a sanação dos vícios de que o libelo acusatório padeça, praticar novos actos de inquérito ou alterar a acusação ()»;

d) Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/11/2018 (Processo n.º 6/17.0IDCTB.C1, Relatora Desembargadora Maria Pilar de Oliveira): «() se, por um lado, a acusação não pode ser repetida quando padeça de nulidade, por outro, não descrevendo ela os factos necessários ao preenchimento do crime que imputa, não pode o juiz suprir o vício por via do regime da alteração dos factos previsto nos artigos 358.º e 359.º do CPP. ( )»; e) Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 03/12/2018 (Processo n.º 987/16.1T9VNF.G1, Relatora Desembargadora Ausenda Gonçalves): «(perante a insuficiência dos factos para o preenchimento do tipo legal do crime imputado numa acusação, se o processo for remetido para a fase de julgamento, deve o juiz rejeitar a acusação, por manifestamente infundada [cf. art. 311º nºs 2, a) e 3, d)], e, se assim não for e o processo chegar a julgamento, o julgador deverá absolver o arguido da acusação, em conformidade, aliás, com a jurisprudência já fixada pelo AUJ do STJ nº 1/2015, publicado no Diário da República, 1ª Série, n.º 18, de 27 de Janeiro de 2015. (de todo o modo, uma vez que neste recurso apenas se trata da possibilidade de retorno do processo jurisdicional à fase anterior de inquérito, ou seja, de saber se uma tal acusação pode ser devolvida ao Ministério Público para o efeito de poder ser pois, perante a insuficiência da acusação deduzida contra um arguido, quanto aos factos integrantes do tipo subjectivo de um dado ilícito, chegado o momento de sobre ela decidir, não podem os autos ser devolvidos ao Ministério Público. () com efeito, se o actual regime processual, em caso de alteração substancial, não possibilita a comunicação ao Ministério Público para que ele crie novo procedimento pelos novos factos, quando estes não são autonomizáveis em relação ao objecto do processo (art. 359º do CPP), por maior e reforçada razão, está vedada uma tal via para a situação a que os autos se reportam, em que, bem vistas as coisas, até se depararia com bem mais do que uma mera alteração substancial perante a insuficiência dos factos para o preenchimento do tipo legal de crime que era imputado e constituiria um atropelo aos princípios do justo processo, da igualdade de armas, da lealdade processual e da vinculação temática da acusação ()»;

f) Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09/01/2017 (Processo n.º 628/11.3TABCL.G1, Relatora Desembargadora Ausenda Gonçalves): «() o JIC, perante a insuficiência da acusação deduzida contra um arguido, quanto aos factos integrantes de um dado tipo legal, chegado o momento de sobre ela decidir, não pode devolver os autos ao Ministério Público, ou ao acusador particular, para que a mesma seja completada em conformidade, aliás, com a jurisprudência já fixada para o caso de insuficiência de factos no requerimento de abertura de instrução (AUJ do STJ nº 7/2005, de 12/05/2005, in DR I de 4-11-2005), cuja ratio, obviamente, se estende à acusação pública, à luz dos princípios que enformam o nosso processo penal ( )»;

g) Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24/07/2017 (Processo n.º 180/07.4JABRG.G1, Relatora Desembargadora Fátima Furtado): «() o despacho do Ministério Público no qual considera findo o inquérito e deduz acusação representa um ato decisório que não pode ser repetido, por com a sua prolação se ter esgotado o poder do magistrado titular do inquérito sobre o respetivo objeto, independentemente de a acusação conter ou não deficiências que possam comprometer o seu êxito ( )» e

h) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02/02/2021 (Processo n.º 205/19.0T9MTA.L1-5, Relator Desembargador Artur Vargues): «(Dada a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32.º, n.º 5, da CRP), o tribunal leia-se o juiz -, na sua natural postura de isenção, objectividade e imparcialidade, cujos poderes de cognição estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não pode nem deve dirigir recomendações ou convites para aperfeiçoamento, muito menos ordenar, ao MP, para que este reformule, rectifique, complemente, altere ou deduza acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais assistente ou arguido. (ou seja, perante uma acusação deduzida contra certo arguido e por determinados factos, integrantes de um dado tipo legal, o juiz de julgamento tem de limitar-se a conhecer daquela concreta acusação que foi formulada, aceitando-a ou não a aceitando, condenando ou absolvendo, consoante a fase processual. Não tem, como terceira alternativa, a de sugerir ou ordenar a rectificação ou aperfeiçoamento da acusação, voltando os autos ao anterior momento do encerramento do inquérito».

V. Ex.as, porém, decidindo, farão, como sempre, melhor JUSTIÇA.

Notifique o teor deste despacho ao Ministério Público (titular do inquérito) e após, remeta o processo ao Tribunal da Relação de Coimbra para apreciação do recurso interposto.

Nesta Relação, o Dig.mo PGA emitiu douto parecer, no qual, admitindo embora que «a acusação deduzida nos autos contra o arguido AA enferma efectivamente, de nulidade – pois que os lapsos que apresenta a podem tornar “… uma peça ininteligível…”», conclui que, não obstante, «deve o recurso interposto pelo MP proceder e ordenar-se, assim, a substituição do despacho do Sr. Juiz de Instrução Criminal, na parte em que ordenou o arquivamento dos autos, por outro que determine a sua remessa ao MP para dedução de nova acusação».

            A este parecer respondeu o recorrido, oferecendo o merecimento dos autos.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

DECIDINDO:

            Analisadas as conclusões que o Ministério Público retira da motivação do seu recurso, logo se constata que o que pretende, através do mesmo, é ver alterado o despacho recorrido no sentido de ser o processo reenviado para poder formular nova acusação na qual corrija os apontados erros.

            A fundamentação essencial do despacho recorrido, completada no proferido despacho de sustentação, consiste na afirmação de que a acusação é uma peça ininteligível, narrando uma factualidade atípica, insusceptível de fundamentar a aplicação de uma pena ao arguido.

            Parece-nos que com razão o faz. Aliás, também o Ex.mo PGA, no seu douto parecer, retirando embora conclusões diversas, aceita que estamos perante peça que assim caracteriza, nula por ininteligível.

            Poderiamos citar aqui toda a jurisprudência narrada no despacho recorrido e no despacho que o sustenta. No entanto não o faremos, concluindo apenas que é jurisprudência dominante dos nossos tribunais superiores que existe alguma estanquicidade entre as diversas fases processuais e que não é possível ordenar numa delas o regresso à fase anterior de forma a sanar eventuais invalidades de que ela padeça.

            Citaremos apenas o ac. desta Relação proferido no processo nº 189/14.1PFCBR.C1 (citado no despacho de sustentação) o qual concluiu que «rejeitada a acusação, o juiz não deve determinar, ao abrigo do artº 122º do CPP, a devolução dos autos à fase de inquérito, em ordem à posterior correcção da acusação pública, pelo MP. (…) Uma decisão nesse sentido não só não respeitaria o disposto no artº 311º, 2, do CPP, como constituiria uma ingerência judicial nos poderes atribuídos ao MP e colocaria em causa legítimas expectativas do arguido e as garantias de defesa constitucionalmente tuteladas no artº 32º, 1, da CRP».

            Com efeito, está em causa a autonomia estrutural do Ministério Público, não sendo admissíveis interferências judiciais na sua actividade, v.g. mediante a formulação de ordem de devolução dos autos à fase da jurisdição autónoma do MP (inquérito) para que sejam praticados determinados actos concretizados ou a formulação de uma acusação com um determinado conteúdo ou num determinado sentido.

            As imprecisões de que padeça uma acusação não hão-de ser de tal monta que inviabilizem o proferimento de um despacho de pronúncia correctivo por via da prática de actos instrutórios ou da aplicação do disposto no artº 303º do CPP; do mesmo modo, em fase de julgamento, essas imprecisões hão-de ser passíveis de conformação nos termos do disposto nos artºs 358º e 359º do mesmo CPP.

            Este instituto processual penal (da alteração dos factos) constitui uma concessão às necessidades de pragmatismo, de forma a permitir ultrapassar situações em que a acusação ou a pronúncia contêm omissões ou imprecisões, mediante a alteração desses factos ou a sua integração substancial, sem contudo tocar na garantia de defesa/contraditório e no essencial desses libelos, tornando mais claros e mais condicentes com a realidade os factos ou as suas circunstâncias.

            Não é isso que acontece no nosso caso em que estamos perante acusação inepta, por ser ininteligível a «causa de pedir» (v. o evidente paralelismo com a norma do arº 186, 1 e 2, a), do CPC).

            No nosso caso, essa ineptidão traduz-se numa manifesta falta de tipicidade, sem a qual não é possível a aplicação de uma pena ao arguido.

            Com efeito, não lhe é ali imputada, de forma inequívoca, a prática de factos típicos que possam conduzir a essa condenação (v. o artº 283º, 2, b), do CPP).

            E essa falta de tipicidade não é passível de correcção, seja ordenando a devolução dos autos à fase processual anterior (o que vimos já estar vedado), seja por via da aplicação dos mecanismos de alteração dos factos, já que a invalidade apontada atinge a própria estrutura central, a essência da peça em que se traduz a acusação.

           

            Termos em que, nesta Relação, se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra a douta decisão recorrida.

            Recurso sem tributação.

Coimbra, 18 de Maio de 2022

Jorge França (Relator)

Paulo Guerra (Adjunto)

Alberto Mira (Presidente da Secção)