Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2205/04.6PBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: AUDIÊNCIA
CONTINUIDADE
RENÚNCIA A ARGUIÇÃO DE NULIDADE
Data do Acordão: 11/04/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL - 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 328º, 6 CPP
Sumário: A produção de prova em espaços dilatados no tempo que vão além de trinta dias, na audiência de julgamento - porque colide com princípios fundamentais da aquisição e valoração da prova como elementos fundamentais do processo penal - não fica imunizada pela antecipada renúncia à arguição da nulidade que ela própria implica.
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO.
No processo Comum em Tribunal Colectivo n.º 2205/04.6PBAVR.C1 foi julgado e condenado o arguido E… pela prática em autoria material e concurso real de um crime de dano simples, p. e p. no art. 212º, nº 1 do Cód. Penal na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de €10 e de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. no art. 143.°, n.° 1 do Cód. Penal na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de €10; em cúmulo condenam o arguido na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €10, o que perfaz a quantia de €1.200 e a que corresponde a pena de prisão subsidiária de 90 dias de multa. Foi ainda condenado no pagamento da quantia de 400 euros, pelos danos de natureza não patrimonial causados a F… e no pagamento da quantia que se vier a liquidar em execução de sentença referente ao custo da reparação do puxador da porta traseira, do lado direito da viatura automóvel com matrícula 15-70-CV. Condenou-se ainda o arguido no pagamento das custas do processo, com taxa de justiça de 5 UC e em ½ de procuradoria, bem como no pagamento de quantia equivalente a 1% da taxa de justiça nos termos e para os efeitos do artigo 13º nº 3 do DL 423/91. O tribunal, em consequência dos crimes de que foram absolvidos (o arguido e a assistente) condenou ainda o E... no pagamento de 2 UC´s de taxa de justiça levando-se em conta o já pago. Finalmente foi condenado nas custas dos pedidos cíveis, deduzidos por si e contra si, na proporção do decaimento.

No mesmo processo a arguida F… foi absolvida do crime de injúria, previsto e punido no n° 1 do artigo 181° do Cód. Penal que estava pronunciada.

Não se conformando com a decisão o arguido (e assistente) veio interpôr recurso da mesma para este Tribunal invocando em síntese nas suas conclusões que «(i) seja considerada sem eficácia a prova produzida em sede de audiência de julgamento, nos termos do Acórdão n.º 11/2008, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça com as legais consequências; (ii) seja efectuada uma reapreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, bem como uma reapreciação da interpretação e aplicação do direito, que motivou a condenação do arguido na prática do crime de dano simples, p.p. no artigo 212º n.º 1 e do crime de ofensa á integridade física simples p.p. no artigo 143º n.º 1 do CPP e em consequência ser absolvido desses crimes que lhe eram imputados; (iii) seja efectuada uma reapreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento bem como uma reapreciação da interpretação e aplicação do direito, que motivou a absolvição da arguida e em consequência que seja a arguida condenada pelo crime de injúria p.p. pelo artigo 181º do CP de que vinha pronunciada bem como no correspondente pedido de indemnização contra a mesma formulada».
Em resposta ao recurso quer a assistente, quer o Ministério Público propugnaram pela sua improcedência e manutenção da decisão recorrida.
O Exmo. Senhor Procurador Geral-Adjunto nesta Relação propugna igualmente pela manutenção da decisão, sendo que o arguido, na sua resposta mantém a sua anterior posição sustentada na motivação do recurso.
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II. FUNDAMENTAÇÂO
Face ao teor das conclusões formuladas pelo requerente, expostas no seu recurso, são quatro as questões a decidir: a) eficácia da prova produzida em sede de audiência, tendo em conta o prazo de adiamento entre as várias sessões da audiência de julgamento ter sido superior a 30 dias; b) condenação do arguido em razão da alteração dos factos constantes da pronúncia; c) reapreciação dos factos que levaram à condenação do arguido pelos crimes de dano simples e pelo crime de ofensas á integridade física simples; d) reapreciação da prova produzida e reapreciação da interpretação e aplicação do direito relativa à absolvição da arguida e consequente condenação da mesma pelo crime de injúrias de que estava pronunciada.
Vejamos cada uma das questões. *
Eficácia da prova produzida em sede de audiência, tendo em conta o prazo de adiamento entre as várias sessões da audiência de julgamento ter sido superior a 30 dias.
Sobre esta questão importa antes de mais referir os factos que estão em causa e sobre os quais deve decidir-se.
Assim resulta dos autos que a audiência de julgamento se iniciou em 1/10/2008 (cf. fls 1094), tendo sido ouvidos os arguidos (E… e F…), após o que foi a audiência interrompida para continuar no dia 3 de Dezembro de 2008. Consta na acta de audiência que «todos os presentes foram devidamente notificados, tendo na sequência do despacho que antecede [que designou o dia 3 de Dezembro de 2008 para continuação de audiência] pelo Digno Magistrada do Ministério Público e pelos ilustres mandatários dos arguidos sido dito expressamente renunciarem a arguir qualquer nulidade ou irregularidade do julgamento pelo excesso do decurso do prazo a que se reporta o artigo 328º n.º 6 do CPP, tanto mais que a prova está gravada».
Por despacho de 8.11.2007 (fls. 1120) foi alterada a data designada para a continuação da audiência para os dias 27/1/2009, pelas 14 horas (testemunhas de acusação) e 18/2/2009, pelas 9h30 (testemunhas de defesa).
Em 27/01/2009 a audiência prosseguiu, para audição de testemunhas, tendo sido interrompida na mesma data para continuar a 18/2/2009 (fls 1227).
Nesta data, 18/2/2009, não se realizou qualquer acto da audiência tendo sido adiada para 11/3/2009, por falta do mandatário da assistente.
Em 11/3/2009 continuou a audiência, tendo sido ouvidas testemunhas e produzido prova documental, tendo sido interrompida para continuar no dia 30/03/2009.
Nesta última data foi interrompida para continuar no dia 3/4/2009, para leitura do acórdão.
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Na concretização normativa do princípio da continuidade da audiência, estabelece o artigo 328º n.º 6 do CPP que o «adiamento [da audiência] não pode exceder 30 dias. Se não for possível retomar a audiência neste prazo, perde eficácia a produção de prova já realizada».
O núcleo fundamental do princípio em causa nesta norma decorre da relevância que o legislador nacional dá ao princípio da imediação, da oralidade e da continuidade da audiência como princípios fundamentais na apreciação da prova, no modelo de livre apreciação estabelecido no CPP. Trata-se, importa dizê-lo, de princípios que condicionam a produção e a valoração da prova e é nessa perspectiva que devem ser vistos.
A relevância do que está estabelecido na norma foi expressamente reconhecida pela decisão de fixação de jurisprudência de 29 de Outubro de 2008, do STJ, publicada no DR I Série n.º 239, de 11 de Dezembro de 2008, após algumas divergências jurisprudenciais sobre a questão, que decidiu que «Nos termos do artigo 328º n.º 6 do Código de Processo Penal, o adiamento da audiência de julgamento por prazo superior a 30 dias implica a perda da eficácia da prova produzida com sujeição ao princípio da imediação; Tal perda de eficácia ocorre independentemente da existência de documentação a que alude o artigo 363º do mesmo diploma».
Fundando-se na valência processual dos princípios da oralidade e imediação como estruturas que condicionam o principio da concentração da audiência, ambos pertencendo ao núcleo de princípios fundamentais do processo penal, o referido acórdão, pese embora as posições de vencimento, não deixa nenhuma dúvida sobre a relevância do que está em causa na opção legislativa: assegurar que os riscos que o tempo e a duração do processo podem provocar na memória do julgador, como elemento fundamental do princípio da concentração, sejam minimizados.
A ausência e a distância, que vão além do prazo razoável fixado pelo legislador, provocam necessariamente modificações na memória de que julga e que podem trazer inconvenientes no processo de decisão e de fundamentação da decisão. O que justifica a opção clara do que foi decidido.
Daí que, não só em obediência ao acórdão de fixação referido, como também por se entender ser essa a interpretação que melhor se compraz com o funcionamento do conjunto de princípios que subjazem à produção e valoração da prova no processo penal português, defende-se que a ultrapassagem do prazo normativamente estabelecido para a continuação da audiência não pode ter outra solução que não o que está estabelecido na lei: a perda da eficácia da prova produzida.
Tal patologia – a produção de prova em espaços dilatados no tempo que vão além de trinta dias, na audiência de julgamento - porque colide com princípios fundamentais da aquisição e valoração da prova como elementos fundamentais do processo penal, não fica imunizada pela antecipada renúncia à arguição da nulidade que ela própria implica. Ou seja, não é pelo facto dos intervenientes processuais antecipadamente virem renunciar ao exercício de um direito, que se sana uma patologia inerente ao sistema, quando está em causa algo que inquina toda a estrutura da própria compreensibilidade do modo como se constrói a decisão no processo penal.
O acórdão de fixação de jurisprudência citado, embora não se refira concretamente a esta questão da natureza da patologia decorrente do não cumprimento do prazo da continuação da audiência em trinta dias, não deixa de decidir de uma forma muito clara que a «perda de eficácia ocorre independentemente da existência de documentação a que alude o artigo 363º do mesmo diploma».
Ou seja sublinha a decisão que o que está em causa neste problema é algo mais que a gravação da prova e o modo como é fixada. O que está em causa é exactamente um problema de manutenção da continuidade da audiência e da prova que aí é produzida de forma a ser totalmente verificável por quem julga em obediência aos princípios da imediação e oralidade, porque são estes que valem para o processo penal na fase de audiência de julgamento e que permitem uma «construção da decisão» fundada num debate intersubjectivo, contraditório e sujeito à imediação.
Ora neste sentido o que há a concluir é que, tendo, no caso sub judice, sido ultrapassados os prazos estabelecidos pelo CPP para a continuação da audiência, em dois momentos distintos, toda a prova produzida que vá além do momento em que se cumpriu o disposto no artigo 328º n.º 6 do CPP, perde a sua eficácia. Ou seja, não pode ser utilizada pelo tribunal para fundar a sua decisão a não ser que seja renovada, para então puder ser valorada pelo Tribunal.
A invalidade da prova valorada nesta conjuntura envolve necessariamente a invalidade da sentença, como tem sido referido pela jurisprudência (cf. neste sentido os Acórdãos da RP de 14.6.2006, da RE de 12.09.2006 e da RL de 25.02.2004, da RP de 21.02.2007, todos in www.dgsi.pt)
Assim, no caso dos autos a prova produzida até 11 de Março de 2009, nomeadamente nas sessões de 1/10/2008 e 27/1/2009, perdeu toda a eficácia e nessa medida não pode ser valorada para efeitos da decisão a proferir.
Se a questão está resolvida com as sessões identificadas, importa sublinhar que a garantia do mesmo princípio da continuidade não pode deixar de implicar que a prova testemunhal que tenha ocorrido nas restantes sessões seja, também ela inquinada, pela mesma patologia. Não faria qualquer sentido, no que respeita à prova produzida por declarações, manter a eficácia da prova que foi produzida a partir de 11 de Março de 2009, efectuando apenas uma renovação da prova que foi produzida em momento anterior e que poderá condicionar toda a prova entretanto produzida (recorde-se, por exemplo, que na primeira sessão está em causa a prestação de declarações dos arguidos cujo depoimento pode condicionar toda a restante prova a ouvir posteriormente).
Só um entendimento que possa levar em consideração a globalidade da prova produzida, antes de encerrada a audiência de julgamento, é o mais conforme com o princípio da continuidade da audiência, de modo a puder efectuar-se um juízo unitário sobre a prova produzida. A não ser assim estar-se-ia a fragmentar ilogicamente o modo de produção (que tem, na lei uma orientação precisa), defraudando exactamente os interesses que se querem proteger com o princípio da continuidade da audiência, nomeadamente a oralidade e a imediação e as suas consequências tanto na produção como sobretudo na valoração da prova.
Nesse sentido entende este Tribunal que, porque as sessões cuja prova perdeu eficácia são as primeiras sessões de julgamento, toda a prova produzida nas sessões subsequentes deve igualmente ser repetida, através de novo julgamento, decidindo o Tribunal após a sua valoração global, em conformidade.
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Face à decisão agora tomada ficam prejudicadas as restantes questões suscitadas no recurso pelo recorrente.
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III. Dispositivo.
Nesta conformidade acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em conceder provimento ao recurso e em consequência, de acordo com o disposto no artigo 328º n.º 6 do CPP, decide-se declarar nula e sem nenhum valor probatório a prova produzida na audiência de julgamento, repetindo-se o julgamento.
Sem tributação.
Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP).
Coimbra, 4 de Novembro de 2009

Mouraz Lopes


Félix de Almeida