Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1879/06.8TBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
CONFISSÃO
Data do Acordão: 03/24/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COVILHÃ - 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 342.º Nº1 E 1311.º DO CÓDIGO CIVIL E ARTIGO 490.º, N.º 3, DO CPC
Sumário: 1) Em acção de reivindicação, sendo invocada a aquisição derivada do bem reivindicado, torna-se necessário, em princípio, alegar que o direito de propriedade já existia no transmitente.

2) A aceitação pelo demandado da propriedade do demandante sobre a coisa torna desnecessária essa alegação.

3) A improcedência do pedido de entrega da coisa não inviabiliza, só por si, a procedência do reconhecimento do direito de propriedade.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:

A... , com sede na ... intentou acção declarativa, com forma de processo sumário, contra B... , residente na ..., alegando, em síntese, que:

            É dona de diversos bens móveis, que identifica, no valor global de € 7.731,01, por os ter adquirido por compra.

            No ano de 2004, tais móveis passaram a ficar à disposição réu, na qualidade que detinha, então, de sócio-gerente da autora.

            Porém, no dia 15 de Outubro daquele ano, o réu renunciou à gerência e, mais tarde, em 04.08.2005, cedeu a sua quota a terceiros, mas não devolveu os bens, que continua a deter e a utilizar, conta a vontade da sua legítima proprietária.

            Concluiu, pedindo que o réu fosse condenado a reconhecer a propriedade da autora sobre os mesmos bens, a abster-se de os utilizar, a devolvê-los em perfeitas condições de funcionamento e, subsidiariamente, para o caso de se acharem deteriorados ou não estarem na sua posse, a pagar o respectivo valor, correspondente ao custo da sua aquisição.

            O réu contestou, afirmando, por um lado, desconhecer se a autora é dona dos bens que nomeia e, por outro, não se ter apropriado de quaisquer bens que àquela pertencessem.

            Pediu a sua absolvição do pedido e a condenação da autora como litigante de má fé, por invocar factos que sabe não serem verdadeiros.

            Em resposta, a autora manteve a posição expressa na petição inicial.

            No despacho saneador foram declaradas a validade e a regularidade da lide.

            A base instrutória foi dispensada, com fundamento na simplicidade da selecção da matéria de facto.

            Realizado o julgamento e fixados os factos considerados relevantes para a decisão da causa, foi proferida sentença, que condenou o réu a reconhecer a propriedade da autora sobre os bens reclamados por esta, mas o absolveu do demais que lhe foi pedido, e absolveu, igualmente, a autora do pedido de condenação como litigante de má fé.

            Insatisfeito, o réu interpôs recurso – recebido como apelação e efeito devolutivo – com vista à revogação da sentença e apresentou as suas alegações, que concluiu deste modo:

            1) Na acção de reivindicação, como é a presente, recai sobre o autor o ónus de alegação e prova da aquisição originária.

            2) A autora alegou, tão-somente, a aquisição derivada, pelo que o pedido de reconhecimento do direito de propriedade teria de improceder.

            3) A acção de reivindicação caracteriza-se pelos pedidos de reconhecimento do direito de propriedade e de entrega da coisa reivindicada, sendo que o primeiro dos pedidos é de natureza meramente formal, na medida em que a declaração do direito violado é relativo à causa de pedir ou a um seu elemento, e constitui pressuposto ou antecedente necessário da condenação, essencialmente pretendida, na entrega da coisa reivindicada.

            4) Do ponto de vista substancial, na acção de reivindicação há um único pedido, que é o de entrega ou restituição do bem vindicado.

            5) Não se tendo provado que os bens reivindicados pela autora estejam na sua posse, deveria ter sido absolvido de todos os pedidos contra si formulados.

            6) Foram violados os artigos 342.º, n.º 1, e 1311.º, n.º 1, ambos do Código Civil.

            A autora não contra-alegou.

            Colhidos, que foram, os vistos legais, cumpre decidir.

            São questões a requerer solução as de saber:

a) Se, na acção de reivindicação, a alegação da aquisição originária é condição de procedência do pedido de reconhecimento do direito de propriedade;

b) Se este pedido só pode proceder quando proceda, igualmente, o de condenação na entrega do bem ao seu proprietário.

            II. Os factos provados:

            A) A D... facturou (factura n.º 2001 FR10202098, datada de 26.02.2001) à autora A... os seguintes produtos:

2 DESKJET 980CX1,

1 CD-WRITER 93501 e

1 DP17HJFNB198S7 SCANJET 3300C MYOBK1201W,

 Pelo valor total de € 227,037 (IVA incluído).

B) A C... facturou (factura n.º 11966, datada de 29.03.2001) à autora A..., dois monitores LG 15” 575MS TFT-LCD Flatron, pelo preço global de € 1.963,36, com IVA já incluído.

C) A D... facturou (factura n.º 2001 FR110003002, datada de 30.10.2001) à autora A... os seguintes produtos:

3 JORNADA POCKECT PC J545 16MB PORT., pelo valor total de € 1.634,63, com IVA incluído.

D) A D... facturou (factura n.º 2002FR10200497, datada de 06.02.2002) à autora A... 3 OFFICEJET PSC750 S/N-MY1 C1 C41 J8/JO/J6, PELO PREÇO TOTAL DE € 828,61, COM IVA incluído.

E) A C... facturou (factura n.º 21807, datada de 27.09.2002) à autora A..., os seguintes produtos:

1 CMCIA REDE CONCEPTRONICS 107100Mbps RETAIL e

25 GSMART MINI 2 DIGITAL CAMERA,

Pelo valor total de € 1750,37.

F) A D... facturou (factura n.º 2002FR112101727, datada de 12.12.2002) à autora A... 2 Cal, pelo valor total de € 479,28, com IVA incluído.

G) A C... facturou (factura n.º 21807, datada de 27.09.02) à autora A... 1 PORTÁTIL CLASUS CHALLENGER 3060 1 P4 FSB 533 115” TFT, pelo preço de € 2.380,00, com IVA incluído.

H) E... facturou (factura n.º 20010213, datada de 23.10.2001) à autora A... os seguintes produtos:

1 TELEVISÃO PANASONIC TX 28 LK Lof e

1 DVD digital,

Pelo valor total de € 276,10, com IVA incluído.

I) A F... facturou (factura n.º 20010142, datada de 31.07.2001) à autora A... diversos produtos, entre os quais:

2 Aparelhos de ar condicionado Panasonic, pelo valor de € 380,00 cada,

2 Ar condicionado lv 1.split mural Panasonic, por € 280,00 cada unidade e

1 Aparelho de ar condicionado, por € 170,00.

J) Por escritura de cessão de quotas e nomeação de gerente, levada a efeito no dia 4 de Agosto de 2005, no Cartório Notarial do Fundão, o réu e sua mulher cederam a sua quota na sociedade autora a G... .

III. O direito:

a) Na sentença condenou-se o réu a reconhecer a propriedade da autora sobre os bens móveis que identificou, mas absolveu-se o mesmo do pedido da sua restituição, na consideração, por um lado, de se estar perante uma acção de reivindicação, de esta ser caracterizada pelos pedidos de reconhecimento do direito de propriedade e de restituição da coisa e de caber ao autor a prova do direito de propriedade sobre a coisa e da detenção desta por outrem, e, por outro lado, de a autora ter logrado fazer a prova da aquisição dos bens reivindicados, por os ter comprado, mas não a de que os mesmos se encontrarem na posse do réu.

O apelante concorda com a definição e a caracterização da acção, mas discorda da prova da propriedade e, consequentemente, da procedência do pedido de reconhecimento desse direito; na sua óptica, a acção de reivindicação exige a alegação e prova da aquisição originária da propriedade, não bastando a da aquisição derivada, como sucedeu, razão por que o pedido formulado neste âmbito estava, inevitavelmente, votado ao insucesso.

Quid juris?

No que respeita à classificação e caracterização da acção, são absolutamente correctas as posições, tanto a da decisão, como a do apelante.

A acção em presença é, na realidade, uma acção de reivindicação, cujos traços típicos, são, como decorre do preceituado no artigo 1311.º do Código Civil, a afirmação da qualidade de proprietário e a detenção ilícita por banda do demandado (cfr., a título de exemplo, os acórdãos do STJ, de 26.04.1994 e de 09.10.2007, CJ do Supremo, Ano II, Tomo II, página 62, e Ano XV, Tomo III, página 90, respectivamente).

A alegação e prova do direito de propriedade do demandante e da detenção por parte do demandado, ou seja, da causa de pedir, cabem àquele, por via do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do CC; provada a propriedade e detenção nos moldes indicados, caberá ao demandado provar que detém a coisa a título legítimo, se quiser eximir-se à condenação.

As circunstâncias são, porém, diferentes, consoante a forma de aquisição do direito de propriedade; sendo originária (usucapião, ocupação ou acessão, por exemplo), nenhum problema se coloca, desde que sejam alegados os factos integrantes dessa forma de adquirir; mas, sendo derivada (compra e venda, doação, mortis causa, etc.), não basta a prova do negócio, porque o mesmo não é constitutivo, mas meramente translativo, do direito de propriedade. E, como ninguém pode transferir mais direitos do que os que tem, é preciso, então, provar que o direito já existia no transmitente (dominium auctoris).

“Probatio diabolica, como lhe chamam alguns autores, difícil de conseguir, em muitos casos (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume III, 2.ª edição, página 115).

E, porque a prova da aquisição originária é diabólica, parece que “não se deve ser muito exigente neste aspecto, tendo em conta as necessidades práticas, sendo suficiente que o reivindicante demonstre uma simples probabilidade que o torne preferível ao seu adversário” (R. Bastos, Direito das Coisas, I, páginas 135 e seguintes, citado no acórdão do STJ de 04.02.1993, in CJ do Supremo, Ano I, Tomo I, página 137).

Neste particular, assumem especial importância as presunções legais resultantes da posse ou do registo, nos termos dos artigos 1268.º do CC e 7.º do Código do Registo Predial (acórdão desta Relação, de 01.06.04, CJ, Ano XXIX, Tomo III, página 13).

Enquadrada a situação em abstracto, debrucemo-nos sobre o caso dos autos. A autora peticionou o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre determinados bens móveis e a condenação do réu a restituir-lhos, sob a alegação de os ter adquirido, por compra, a diversas empresas e de o réu os deter ilegitimamente; invocou uma forma derivada de aquisição, sem se preocupar em justificar a existência do direito de propriedade nos vendedores.

Nessa medida, está errada a sentença, ao dar por provada a propriedade da autora, com base, apenas, no contrato de compra e venda, e certo o recorrente, ao considerar que a aquisição derivada, só por si, não confere ao adquirente a propriedade da coisa.

Vistas as coisas por este prisma, pareceria inelutável o naufrágio absoluto da acção, tal como defende o recorrente; não provado, por falta de alegação, o direito de propriedade do vendedor, não poderia o mesmo transferir-se para o comprador.

Só que há, aqui, um aspecto, que nem a sentença nem o apelante levaram em consideração: a falta de impugnação do direito de propriedade.

A autora invocou a qualidade de proprietária dos bens, sob a alegação de os ter adquirido por contrato de compra e venda celebrado com terceiros.

O réu, em bom rigor, não impugnou a afirmada qualidade; limitou-se a declarar que a desconhecia.

Certo que a alegação do desconhecimento pode valer como impugnação; mas só quando se tratar de facto que não seja pessoal ou de que o réu não deva ter conhecimento. No caso contrário, isto é, se o facto for pessoal ou o réu dele dever ter conhecimento, a declaração de ignorância acerca da realidade do facto equivale a confissão (artigo 490.º, n.º 3, do CPC).

Ora, a verdade é que o apelante não podia desconhecer o alegado pela apelada, pela simples razão de que era sócio e gerente desta ao tempo da matéria contida na petição inicial. Nessa medida, tem de entender-se que reconheceu, por confissão, a propriedade da apelada sobre os bens reivindicados.

Como se escreveu no acórdão do STJ de 25.06.1998 (CJ do Supremo, Ano VI, Tomo II, página 129), que contempla um caso muito idêntico a este,[1] a função dos tribunais é a de dirimir os conflitos existentes, nos termos que lhes são colocados pelas partes; e estando estas de acordo quanto à existência do direito de propriedade, não pode o juiz declarar o contrário, sob pena de violar o princípio dispositivo; em situações destas, a confissão releva, desde que se não verifique qualquer das hipóteses a que se refere o artigo 354.º do CC, pelo que a propriedade terá de ser havida como facto.

No mesmo sentido, se pronunciaram, também, os acórdãos do mesmo Tribunal, de 29.04.1992 e de 20.09.94 (BMJ 416 e 439, páginas 595 e 538, respectivamente), a propósito da propriedade de imóvel e de veículo automóvel. 

Haverá de concluir-se, assim, que nem sempre a procedência da acção de reivindicação depende da alegação e prova da aquisição originária ou do “dominium auctoris”, quando se invoque a aquisição derivada; é o que sucede nos casos de falta de impugnação do direito de propriedade.

  Uma vez que o comportamento processual do apelante conduziu á confissão do direito de propriedade da apelada sobre os bens reivindicados, improcede a primeira questão colocada.

b) Sustenta, em segundo lugar, a apelante que, sob o ponto de vista substancial, só existe um pedido na acção de reivindicação, que é o de entrega ou restituição do reivindicado, pelo que improcedendo este, deve a acção improceder “in totum”, já que o pedido de reconhecimento do direito de propriedade é de natureza formal, constituindo, tão-somente, um pressuposto ou antecedente necessário daquele.  

Mas não parece que tenha razão. É facto que o reconhecimento da existência do direito de propriedade é um pressuposto da procedência da entrega dos bens. Como diz Anselmo de Castro, o tribunal não pode condenar o eventual infractor sem que antes se certifique da existência e violação do direito do demandante (Direito Processual Civil Declaratório, volume I, página 102).

 Nessa medida, se tem vindo a aceitar, seja na doutrina, seja na jurisprudência, que o pedido de reconhecimento do direito de propriedade possa ficar implícito (Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, página 113, e acórdãos do STJ, de 26.04.1994, acima citado, e de 24.01.1995, in CJ do Supremo, Ano III, Tomo I, página 38).

Mas uma coisa é a aceitação de que a falta de formulação do pedido de reconhecimento do direito de propriedade não compromete o êxito da acção (o que, de qualquer modo, exige, sempre, a prova daquele direito) e outra, bem diferente, a estrutura da acção de reivindicação, que comporta, na realidade, dois pedidos: o de reconhecimento do direito de propriedade e o de restituição, como emerge do referido artigo 1311.º.

E o primeiro pedido não pode deixar de ser apreciado, até porque a omissão de pronúncia acarretaria a nulidade da sentença (artigo 668.º, n.º 1, alínea d) do CPC).

O que, talvez, se pudesse dizer era que a inviabilização do pedido de entrega da coisa, por falta de prova da sua detenção por parte do demandado, tornava inútil o pedido de reconhecimento do direito de propriedade, na medida em que o demandante não lograva atingir o seu objectivo essencial.

Crê-se que um tal entendimento seria excessivamente redutor. Mesmo que o pedido de entrega não proceda, sempre haverá alguma utilidade no reconhecimento do direito de propriedade, quanto mais não seja porque, a partir de então (do trânsito em julgado, é claro), a questão da propriedade fica definitivamente assente entre as partes.

Resolve-se, em parte, o litígio e aproveita-se a actividade processual desenvolvida. Futuramente, já não poderá haver disputa entre as mesmas partes quanto à propriedade, o que não sucederia se o tribunal se abstivesse de conhecer do pedido, nos termos em que o apelante o pretende.

Nesta parte, continua a sentença a não merecer censura.

IV. Resumo:

            1) Em acção de reivindicação, sendo invocada a aquisição derivada do bem reivindicado, torna-se necessário, em princípio, alegar que o direito de propriedade já existia no transmitente.

            2) A aceitação pelo demandado da propriedade do demandante sobre a coisa torna desnecessária essa alegação.

            3) A improcedência do pedido de entrega da coisa não inviabiliza, só por si, a procedência do reconhecimento do direito de propriedade.

            V. Decisão:

            Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, nessa medida, confirmar a sentença apelada.

            Custas pelo apelante.


[1] Trata-se de uma acção de reivindicação de imóvel, em que os autores invocaram, unicamente, a aquisição derivada, por sucessão hereditária.