Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
372/12.4TACLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: PORNOGRAFIA DE MENORES
DETENÇÃO DE MATERIAIS
Data do Acordão: 11/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA LOCAL DE COIMBRA - J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 176.º, N.º 4, DO CP (REDACÇÃO ANTERIOR À DA LEI N.º 103/2015, DE 24-08)
Sumário: I - Não integra o conceito normativo de detenção, nos termos e para os efeitos do n.º 4 do artigo 176.º do Código Penal (redacção anterior à da Lei n.º 103/2015, de 24-08), o acesso do agente a um site de pornografia infantil, com subsequente ampliação e visualização de uma fotografia de uma criança do sexo feminino exibindo a sua vagina, e de uma fotografia de outra menor em acto de sexo oral.

II - Consequentemente, a conduta descrita não integra o crime de pornografia de menores, previsto na referida disposição legal.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

            Nos autos de inquérito que, sob o número 372/12.4TACLD, correram termos pelos Serviços do MP de Caldas da Rainha, foi o arguido A... acusado pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de dois crimes de pornografia de menores, p. e p. pelo art.º 176.º, n.º 4, do Cód. Penal.
            Remetidos os autos a juízo, com vista ao seu julgamento em processo comum (juiz singular) e distribuídos pela Secção Criminal (J1), da Instância Local de Caldas da Rainha, Comarca de Leiria, viria a ser proferido despacho do seguinte teor:

«O tribunal é competente.

O Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal.

Registe e autue como processo comum com intervenção de tribunal singular.

A fls. 294-296 o Ministério Público deduziu acusação contra A... imputando-lhe a prática, em autoria material e em concurso efectivo, de dois crimes de pornografia de menores, p. e p. pelo art.º 176.º, n.º 4, do Cód. Penal. Segundo dispõe o artigo 176.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal quem (…) b) Utilizar menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte, ou o aliciar para esse fim (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos». De acordo com o n.º 4 do mesmo preceito legal «quem adquirir ou detiver os materiais previstos na alínea b) do n.º 1 é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa». A tipicidade objectiva do crime em questão prende-se, pois, com a simples detenção ou aquisição dos materiais pornográficos previstos na citada alínea b). A respeito dos conceitos de detenção e aquisição, e partindo do princípio que o legislador se exprimiu correctamente, há que atender ao seu significado mais natural ou directo, ou seja, a detenção como sendo o acto de deter ou ter em seu poder, e a aquisição como sendo o acto de adquirir, seja a que título for, materiais de pornografia infantil. No que concerne ao elemento subjectivo o crime em análise comporta qualquer modalidade de dolo (artigo 14.º do Código Penal). Dito isto, vejamos agora se os factos vertidos na acusação são susceptíveis de preencher, ou não, a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de pornografia de menores. Refere-se na acusação que, em duas ocasiões distintas, o arguido acedeu a um determinado site na internet, ora a partir de um computador que tinha na sua residência ora a partir das instalações de uma empresa, clicando e visualizando imagens de pornografia infantil (factos 1. a 3. da acusação). Em lado algum se refere, todavia, que o arguido tenha adquirido ou detido as fotografias em questão, limitando-se a sua conduta, segundo o texto da acusação, à simples visualização do seu conteúdo (sendo, naturalmente, o «clique» e a «ampliação» actos igualmente compreendidos nessa mesma visualização) Tanto assim é que, também não refere a acusação que o arguido tenha actuado com o propósito de deter ou adquirir as fotografias, mas apenas que o arguido agiu «com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais através da visualização das crianças em situações pornográficas (…)» (facto 4.). Salvo melhor entendimento, a mera visualização não se confunde com os actos de detenção ou aquisição, os quais, como já aqui ficou referido, não dispensam que o agente tenha algum tipo de domínio (o qual, admite-se, tanto pode ser de facto como de direito), sobre os materiais pornográficos (nesse mesmo sentido, cf. “Código Penal Parte geral e especial com notas e comentários”, Almedina, 2014, p. 735, inciso 12.) Por outro lado, e como já ficou referido, também não contém a acusação os factos destinados a, adequadamente, preencher o elemento subjectivo do crime em questão. Nos termos do artigo 311.º, n.º 2, alínea b) e n.º 3, alínea d) do Cód. Proc. Penal, recebidos os autos no Tribunal o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada, designadamente «se os factos não constituírem crime». Entende-se ser efectivamente o caso, pois os factos narrados na acusação não integram a prática do crime de pornografia infantil p. e p. pelo art.º 176.º, n.º 4, do Cód. Penal, quer do ponto de vista da tipicidade objectiva, quer da tipicidade subjectiva.

Por todo o exposto e ao abrigo das invocadas disposições legais, decide-se:

- Rejeitar a acusação deduzida contra o arguido A... , que lhe imputa a prática de dois crimes de pornografia de menores, p. e p. pelo artigo 176.º, n.º 4, do Cód. Penal, por manifestamente infundada.

Sem custas.
Notifique

Inconformada, a magistrada do MP interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

1.         O site realityteenvideos (http://realityteenvideos.com), cujos servidores foram encerrados em 2011 pelas autoridades luxemburguesas no âmbito da denominada Operação Carole, dedicava-se à distribuição de pornografia de menores, exibindo conteúdos exclusivamente relacionados com esse tema.

2.         Nos termos da acusação proferida o arguido A... , em dois dias seguidos e a partir de computadores diferentes, acedeu a esse site e clicou nas imagens/thumbnail “002.jpg” e “015.jpg”, ampliando-as e visualizando o seu conteúdo (uma criança do sexo feminino exibindo a sua vagina despida e uma criança do sexo feminino em acto de sexo oral, sendo visível um pénis erecto junto à sua boca).

 3.        O gesto de ampliar as imagens, seguido da sua visualização no formato pretendido, configura uma detenção, ainda que transitória, pois “para consultar ou visionar este tipo de imagens é necessário possuir ou deter aquele item concreto antes de proceder ao visionamento”[1], sendo “o acesso de qualquer informação na internet (como uma página da web, por exemplo) feito através do download prévio do seu conteúdo (texto, imagens, etc) e posterior exibição do conteúdo que se encontra localmente disponível no dispositivo.”[2], ocorrendo esse download assim que é seleccionada a imagem cuja ampliação é pretendida.

4.         Entendimento diverso contraria os objectivos da reforma penal de 2007, afastando-se do direito internacional que a mesma pretendeu transpor para o ordenamento jurídico nacional, para além de consubstanciar um conceito de detenção que ignora as especificidades do mundo cibernético, no seio do qual ocorre a larga maioria das situações de pornografia infantil.

5.         Igualmente incentiva a procura de pornografia infantil na internet por parte de quem se sinta atraído por tais conteúdos, pois acede aos mesmos de forma gratuita e sabendo que desde que não os transfira para o seu computador ou para qualquer outro dispositivo não pode ser objecto de censura penal, por muitas imagens que veja, por muitas ampliações que faça e por muitas horas que passe nessa conduta.

6.         Essa procura é tão geradora de lucros para quem controla esses sites como a aquisição, devido à publicidade resultante do número de visitantes, sendo igualmente danosa para as crianças envolvidas, para cujo interesse é indiferente se a sua imagem está apenas na internet ou também em computadores ou em álbuns fotográficos pertencentes aos clientes dos sites.

7.         Não existe, pois, fundamento para tratar de modo diverso aquele que imprimiu uma fotografia de cariz pornográfico e que por vezes a visualiza em casa daquele que abriu uma imagem do mesmo teor numa página da internet e a ampliou, visualizando-a durante o tempo que lhe apeteceu e no tamanho que considerou melhor para a satisfação dos seus desejos sexuais.

8.         Pelo que não existindo esse fundamento devem ambas as situações imputadas ao arguido integrar a tipicidade do artigo 176º, n.º 4, do Código Penal, na modalidade de detenção, não havendo cabimento legal para as relegar apenas para a esfera da mera censurabilidade moral.

9.         Termos em que apenas entendendo que a conduta do arguido se integra no conceito de detenção, para efeitos do artigo 176º, n.º 4, do Código Penal, e substituindo o despacho recorrido por outro que receba a acusação e designe data para julgamento, será reposta a legalidade e feita Justiça.


Respondeu o arguido, retirando da sua resposta as seguintes conclusões:

1. Nos presentes autos foi deduzida acusação contra o arguido imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso efectivo, de dois crimes de pornografia de menores, p.p. pelo artº 176º, 4, do CP.

2. Por alegadamente o arguido ter acedido, em duas datas diferentes, a sites cujo conteúdo são imagens de crianças do sexo feminino, tendo ampliado e visualizado o seu conteúdo.

3. O arguido foi notificado da acusação contra si deduzida, não tendo requerido a abertura de instrução.

4. Proferido o despacho a que alude o artº 311º do CPP, o M.mo Juiz decidiu rejeitar a acusação por manifestamente infundada, por entender que os factos vertidos na acusação não preenchem a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de pornografia de menores.

5. Inconformada com o teor do douto despacho, a digna magistrada do MP interpôs o presente recurso, pugnando pela revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que receba a acusação e designe data para julgamento.

6. No entender do arguido, ora recorrido, com o devido respeito, não assiste qualquer razão válida e atendível no presente recurso.

7. Vinha o arguido acusado pela prática, em autoria material e em concurso efectivo, de dois crimes de pornografia de menores, p.p. pelo artº 176º, 4, do CP, por alegadamente ter visualizado o conteúdo de sites de pornografia infantil, em duas ocasiões distintas.

8. Tal artigo dispõe que «quem adquirir ou detiver os materiais previstos na alínea b) do n.º 1 é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa», a al. b) do nº 1 do mesmo artigo refere que quem «utilizar menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos (…).

9. De acordo com a douta acusação o arguido acedeu a determinado site na internet, ampliou e visualizou imagens de pornografia infantil.

10. Em momento algum é referido que o arguido tenha adquirido ou detido as imagens em questão, sendo que a simples visualização não poderá ser enquadrada no conceito do artigo supra referido.

11. Por outro lado, como muito bem refere o douto despacho, a acusação também não contém os factos destinados a preencher o elemento subjectivo do crime de pornografia infantil.

12. Pelo que muito bem andou o M.mo Juiz a quo ao decidir rejeitar a acusação deduzida contra o arguido.

13. Pelo que deverá manter-se o despacho recorrido nos seus exactos termos.

            Nesta Relação, O Ex.mo PGA emitiu parecer onde, concordando com a motivação do recurso, conclui pelo seu provimento.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

            DECIDINDO:
            Analisadas as conclusões que formula o MP/recorrente, logo se vislumbra que, através delas, são essencialmente duas as questões que coloca à nossa apreciação, ainda que interligadas: em primeiro lugar, sob uma perspectiva adjectiva, está em causa o preenchimento do conceito normativo-processual de «acusação manifestamente infundada»; sob uma perspectiva substantiva, de mérito, está em causa o preenchimento, no caso, dos elementos típicos do crime de pornografia de menores, na modalidade de detenção de materiais dessa natureza.

            Da conjugação do nº 2, a), com o nº 3, d), ambos do artº 311º, do CPP, resulta inequivocamente que recebidos os autos em juízo, ao juiz presidente é lícito rejeitar a acusação, por manifestamente infundada, se os factos não constituírem crime. Foi essa a argumentação invocada no despacho impugnado para rejeitar a acusação pública.

            Por isso, temos de entrar na análise dos factos descritos na acusação, de forma a averiguar se é possível a sua integração criminal no tipo referido na acusação.

            É do seguinte teor a acusação:

“1.       No dia 7 de Março de 2011, pelas 16 horas, 49 minutos e 42 segundos, horário GMT, o arguido acedeu ao site http://realityteenvideos.com e clicou na imagem/thumbnail “002.jpg”, ampliando-a e visualizando o seu conteúdo, o que fez a partir do computador que possuía na sua residência, sita na Rua (...) , em Caldas da Rainha.

2.         No dia seguinte, pelas 14 horas, 1 minuto e 15 segundos, horário GMT mais 1 hora, o arguido, que se encontrava nas instalações da empresa (...) , sitas na Rua (...) , em Caldas da Rainha, acedeu novamente ao mesmo site e clicou na imagem/thumbnail “015.jpg”, cujo conteúdo visualizou.

3.         Ambas as imagens têm como único conteúdo crianças do sexo feminino completamente despidas, exibindo a primeira a sua vagina e encontrando-se a segunda em acto de sexo oral, sendo visível um pénis erecto junto à sua boca.

4.         O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, com o propósito de satisfazer os seus desejos sexuais através da visualização das crianças em poses e situações pornográficas, indiferente ao que sabia ser o carácter proibido da sua actuação.

5.         Ao assim agir, o arguido cometeu, em autoria material e em concurso efectivo, dois crimes de pornografia de menores, p. e p. pelo artigo 176º, n.º 4, do Código Penal.”

            É a seguinte a previsão do artigo 176º do Código Penal, que tipifica o crime de pornografia de menores:

“1 - Quem:

a) Utilizar menor em espectáculo pornográfico ou o aliciar para esse fim;

b) Utilizar menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte, ou o aliciar para esse fim;

c) Produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título ou por qualquer meio, os materiais previstos na alínea anterior;

d) Adquirir ou detiver materiais previstos na alínea b) com o propósito de os distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos.

2 - Quem praticar os actos descritos no número anterior profissionalmente ou com intenção lucrativa é punido com pena de prisão de um a oito anos.
3 - Quem praticar os actos descritos nas alíneas c) e d) do n.º 1 utilizando material pornográfico com representação realista de menor é punido com pena de prisão até dois anos.

4 - Quem adquirir ou detiver os materiais previstos na alínea b) do n.º 1 é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa.

5 - A tentativa é punível.”

            No nosso caso, a incriminação da conduta descrita na acusação seria pelo nº 4 da norma em estudo, já que a conduta do arguido, na perspectiva da acusação, integra o conceito de detenção dos materiais previstos na al. b) do nº 1, quais sejam «fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte».

            Da descrição factual levada a efeito pela acusação resulta que o arguido terá, no dia 7 de Março de 2011, pelas 16 horas, 49 minutos e 42 segundos, horário GMT, acedido ao site http://realityteenvideos.com e clicado na imagem/thumbnail “002.jpg”, ampliando-a e visualizando o seu conteúdo (1.) e que, no dia seguinte, pelas 14 horas, 1 minuto e 15 segundos, horário GMT mais 1 hora, terá acedido novamente ao mesmo site e clicado na imagem/thumbnail “015.jpg”, cujo conteúdo visualizou (2.).            Ambas as imagens têm como único conteúdo crianças do sexo feminino completamente despidas, exibindo a primeira a sua vagina e encontrando-se a segunda em acto de sexo oral, sendo visível um pénis erecto junto à sua boca (3.).

            Será que as circunstancias descritas, de aceder o arguido a um site de pornografia infantil e, na primeira circunstancia, ter clicado, ampliado e visualizado uma fotografia de uma criança do sexo feminino exibindo a sua vagina e, no segundo, ter clicado e visualizado uma fotografia de uma criança, do mesmo sexo, em acto de sexo oral, integra o conceito de detenção?

            Detenção, em termos semânticos, e para os efeitos que agora importam, consiste na custódia, retenção, apreensão, conservação ou guarda de algo em seu poder. Assim sendo, todos estes conceitos pressupõem uma posse efectiva e material sobre algo, pois que só desse modo essa detenção se consuma. Detenção efectiva que se há-de traduzir em actos materiais, dela consubstanciadora, quais sejam os actos apropriativos, constituintes de uma espécie de assunção de um poder efectivo, de posse sobre algo.

            Será que a descrita conduta do arguido [na acusação] integra tal detenção de «materiais» - na sugestiva linguagem do nº 4 em estudo – depois traduzidos em «fotografia, filme ou gravação pornográficos» através da remissão para a al. b) do nº 1?

            O despacho impugnado foi peremptório na afirmação de que «em lado algum se refere, todavia, que o arguido tenha adquirido ou detido as fotografias em questão, limitando-se a sua conduta, segundo o texto da acusação, à simples visualização do seu conteúdo (sendo, naturalmente, o clique e a ampliação actos igualmente compreendidos nessa mesma visualização».

            Contrapõe-se na motivação do recurso que «o gesto de ampliar as imagens, seguido da sua visualização no formato pretendido, configura detenção».

            Para além desta discussão jurídica, todos estaremos de acordo em considerar que, em termos éticos, tal visualização há-de ser objecto de censura, já que os valores de protecção da infância assim o impõem. Mas será que tal censura ética se converteu, dada a gravidade dos interesses em causa, em censura jurídico-penal? Tudo está na análise que fizermos do conceito de ‘detenção’ a que vimos fazendo referência.

            O legislador, que temos de presumir inteligente e esclarecido, terá consagrado «as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (artº 9º, 3, do CC). A isto acresce que na interpretação da lei incriminatória penal não podemos lançar mão da interpretação extensiva ou por analogia, já que a tal se opõem os princípios da legalidade e o da tipicidade. Apenas caberão na previsão típica as condutas que nela expressamente estão descritas e já não aquelas que, embora ali não constem descritas de forma explícita, sejam aparentadas, similares ou próximas delas. Como expressamente resultava do texto do artº 18º do CP anterior, «não é admissível analogia ou indução por paridade ou maioria de razão para qualificar qualquer facto como crime, sendo sempre necessário que se verifiquem os elementos essencialmente constitutivos do facto criminoso, que a lei expressamente declarar

Idêntica doutrina foi adoptada no vigente CP, ainda que de forma menos completa, em termos dogmáticos, ao afirmar que «não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto como crime» (artº 1º, 3).

Daqui resulta que apenas serão merecedores de uma reacção penal as condutas que, de pleno, se integrem na previsão legal; já não o poderão ser aquelas que, embora delas derivadas, aparentadas, possuam algum elemento de estraneidade em relação à previsão positiva, seja em virtude de um refinamento de condutas por parte dos agentes criminosos, seja em virtude de actualizações técnicas resultantes do desenvolvimento da técnica. O legislador moderno, esclarecido e informado, deve acompanhar a par e passo a evolução dos comportamentos criminosos, de forma a, mediante sucessivas e pertinentes reformas legislativas, ir integrando na previsão legal aqueles comportamentos mais refinados que, dela escapando no momento, mesmo assim serão merecedores de incriminação penal.

Dito isto, temos que a concreta conduta em análise no nosso caso se traduziu no acesso pelo arguido a um sítio na internet, que se dedicava à distribuição de pornografia de menores. Tal acesso terá ocorrido em dois dias consecutivos, num primeiro caso traduzido na ampliação e na visualização de uma fotografia e no segundo na visualização de uma fotografia.

Tal acesso, nas modalidades descritas, a nosso ver, não integra qualquer detenção das duas fotografias em causa, já que o arguido se ‘limitou’ a visualizá-las, ainda que mediante ampliação no primeiro caso. O arguido nada mais fez para além dessa visualização, não se apossando das fotografias mediante a sua transferência para qualquer tipo de suporte que as mantivesse acessíveis, v.g., para qualquer pasta ou ficheiro do seu computador ou de outro tipo. A detenção que ele teve sobre tais «materiais» não foi para além daquela que qualquer um de nós deles pode ter, mediante o acesso voluntário ou inadvertido aos sítios onde eles se encontram. São esses sítios que os detêm e qualquer agente a eles pode aceder mediante simples visualização sem apossamento posterior das fotografias ou com esse apossamento, e posterior detenção, mediante a sua transferência para um qualquer tipo de suporte ao agente pertencente.

O conceito de «detenção provisória»,referido pelo recorrente, não encontra qualquer tipo de apoio positivo no texto legal, pelo que considerar que a visualização em causa nos autos integra a previsão legal de «detenção», ainda que na modalidade de «provisória», vai muito para além da previsão legal, razão pela qual não cabendo na sua teleologia, deve considerar-se proibida a interpretação que a tal conduza.

            Sendo recente a redacção da norma em estudo (resultante da reforma operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro) ainda é praticamente inexistente qualquer tratamento da questão, seja em termos doutrinais, seja em termos jurisprudenciais. Na análise ao correspondente artº 189º, 2, do CP Espanhol, introduzido pela reforma de 1999, o Manual de Derecho Penal, Tomo II. Parte Especial, Segunda Edición (Coordenado por Carlos Suárez-Mira Rodriguez), pag. 160, afirma-se que «esta nova figura sanciona a mera posse dessa classe de material. A doutrina tem sido muito crítica por considerar que é contrária ao princípio da intervenção mínima, sendo excessivo o castigo da simples ‘tenencia’, geralmente com fins de autocomprazimento, do material pornográfico. Ademais, a dificuldade em conhecer a idade (…) – salvo em situações de tenra idade (…) constitui um grande obstáculo para constatar a existência do dolo necessário em ordem à integração da infracção penal».

Por tudo isto, devemos concluir que tal qual vem descrita na acusação, a conduta do arguido A... não integra a previsão do nº 4 do artº 176º do CP.

Assim sendo, inexistindo crime, bem andou o M.mo Juiz autor do despacho recorrido em, ao abrigo do disposto no nº 2, a), e nº 3, d), ambos do artº 311º, do CPP, rejeitar a acusação do MP, por manifestamente infundada.

Termos em que se acorda nesta Relação em negar provimento ao recurso do MP.

Recurso sem tributação.

Coimbra, 11 de Novembro de 2015

(Jorge França - relator)

(Cacilda Sena - adjunto)


[1]Sandra Inês Feitor, no texto intitulado “Caracterização do crime de pornografia de menores”, acessível em www.fd.unl.pt/conteudos.
[2]Definição de download, que consta do site wikipedia, acessível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Download_e_Upload