Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
203/17.9GCACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: DESOBEDIÊNCIA;
FISCALIZAÇÃO DA CONDUÇÃO SOB INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL;
RECUSA A EXAME;
SUBMISSÃO A EXAME EM VÁRIAS LOCALIDADES
Data do Acordão: 06/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE ALCOBAÇA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 152.º E 153º DO CE; ART. 348.º, N.º 1, AL. A), DO CP
Sumário:
I – É razoável exigir-se que, antes de qualquer acção de fiscalização relativa à condução de veículo sob a influência de álcool, o órgão de polícia criminal comprove o bom funcionamento dos analisadores para realização dos testes legalmente previstos e, em caso de avaria detectada, providencie pela substituição dos mesmos ou, não sendo esta possível, se informe do local onde os exames poderão ser eficazmente assegurados.
II – O que o órgão de polícia criminal não pode fazer é sujeitar, para o efeito, os cidadãos a deslocações sucessivas, em plena madrugada, como na situação verificada nos autos, em que, após ida infrutífera a determinada localidade – no respectivo posto policial, o analisador qualitativo, em duas tentativas sucessivas, revelou resultado inválido (“amostra contaminada”) –, o autuante determinou nova deslocação ao posto da GNR de outra povoação a fim de o visado ser submetido a novo teste.
III – Se, em regra, a afectação pessoal do sujeito obrigado ao teste de alcoolemia não atinge o núcleo essencial e indisponível dos seus direitos fundamentais, não sendo desproporcionada a sua lesão em confronto com os bens que se pretende tutelar, no caso concreto, em que o arguido cumpriu os deveres que recaiam sobre si, traduzidos na sujeição aos testes quantitativo e quantitativo (quanto ao último, apenas o recusou na nova localidade), é manifesta a violação dos princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso.
IV – Daí que, no descrito circunstancialismo, a recusa do arguido à realização do teste (quantitativo) na “outra localidade” não configura desobediência normativamente relevante, ou seja, constitutiva do tipo legal de crime previsto nos artigos 152.º, n.º 3, do CE, e 348.º, n.º 1, al. a), do CP.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório:
No Juízo Local Criminal de Alcobaça, comarca de Leiria, correu termos o processo sumário supra numerado, no qual A…, (…), foi condenado, por sentença de 9-11-2017, pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de desobediência, previsto e punível pelos artigos 152º, nº 3, do Código da Estrada, artigo 69º, nº 1, al. c), e 348º, nº 1, al. a), do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis) euros, num total de € 480,00 (quatrocentos e oitenta euros) e na pena acessória de proibição de conduzir quaisquer veículos motorizados pelo período de 4 (quatro) meses.
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Inconformado com esta decisão, recorreu o arguido da sentença proferida, com as seguintes conclusões:
“I. Vem o presente recurso do douto acórdão proferido pelo tribunal singular nos autos em referência, o qual condenou o aqui recorrente na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros) e na pena acessória de proibição de conduzir quaisquer veículos motorizados pelo período de 4 (quatro) meses pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 152º, n.º 3 do código da Estrada, artigo 348º, n.º 1, al. c), e 348º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
II. O aqui recorrente não se conforma com aquela douta decisão, por não haver praticado o crime por que foi condenado nem a prova produzida nos autos fazer concluir pela prática de tal crime, pelo que impugna a decisão proferida.
III. No acto de fiscalização, o arguido efectuou o teste de alcoolemia; informado que teria de acompanhar a patrulha ao posto da GNR da B..., o arguido assentiu naquele posto efectuou um primeiro teste ordenado que fizesse um segundo teste o recorrente fez; o que após não lhe foi ordenado a realização de outro teste; antes sim, foi-lhe ordenado a deslocação para o posto da GNR de C... ao que o ora recorrente não concordo com tal deslocação.
IV. Após não lhe foi ordenado a realização de outro teste; antes sim, foi-lhe ordenado a deslocação para o posto da GNR de C... ao que o ora recorrente não concordo com tal deslocação.
V. Não entende nem nunca entendeu que se recusou a ser submetido ao teste quantitativo, inexiste consciência da ilicitude da sua conduta, manifestando-a também ao recusar-se a assinar o expediente, o mesmo afirmou em audiência de julgamento.
VI. O Tribunal recorrido retirou que o ora recorrente teve a intenção de desobedecer o que não aconteceu pois o arguido efectuou três testes: o primeiro qualitativo e os dois seguintes quantitativos, tendo estes dois como resultado: “Amostra Contaminada”.
VII. O ora recorrente sempre obedeceu às ordens legitimas da GNR, quer na deslocação ao posto da B... após o teste qualitativo e na realização dos testes quantitativos,
VIII. Somente se opôs a uma deslocação ao posto da PSP de C... estando sempre convicto que não o teria de fazer.
IX. Assim não existiu recusa do ora recorrente em furtar-se aos testes quantitativos da taxa de álcool, antes a uma deslocação a uma outra localidade que dista cerca de 17Km, seguro e convicto de que não o teria de fazer, por não estar obrigado e não por capricho.
X. Sobre o ora recorrente, recai deveres, nomeadamente o de efectuar o teste quantitativo.
XI. Não recai, pois, “o dever de andar a calcorrear os postos ou esquadras à procura de aparelhos disponíveis e/ou calibrados.” Conforme mencionado no acórdão do Tribunal da Relação de Évora – Proc.: 98/13.1GBMMN, relator João Gomes de Sousa – 18/02/2014, in www.dgsi.pt
XII. Na sentença pelo tribunal recorrido, refere este que só depois do ora recorrente ser submetido ao teste na GNR da B... é que se apurou que o equipamento não se encontrava nas melhores condições, ora em nenhum dos depoimentos das duas testemunhas (elementos da GNR) foi dito tal factualidade, não se alcança assim, como pode constar na motivação de facto.
XIII. O Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influencia de Álcool ou de Substancias Psicotrópicas, aprovada pela Lei m. 18/2007, de 17/05, no art. 2º, n.º 2, não impõe um dever do cidadão deslocar-se para uma outra localidade além onde um eventual ilícito foi praticado; esse dever impõe-no à Administração Estadual.
XIV. O comportamento do ora recorrente, a sua conduta, teve relevância para justificar materialmente a censura jurídico-penal? Atentos os factos provados, a resposta é negativa, a conduta do recorrente não merece tipicidade penal.
XV. Estamos perante um crime de desobediência? Ou seja, o arguido recusou fazer a deslocação a outa localidade, nunca recusou efectuar o teste, assim e com o devido respeito, tal conduta não evidencia tipicidade penal.
XVI. No douto acórdão, o Venerando Tribunal de Évora pronunciou-se no sentido de conduta semelhante não ter relevância típica do crime de desobediência; nesse acórdão de 18 de Fevereiro de 20142 concluiu-se: “Não é a justificação do arguido – o não querer deslocar-se a outro posto – que sofre de “falta de fundamentação legal, mas sim a sua manutenção para além do razoável, contrariando os seus direitos constitucional e convencionalmente garantidos, designadamente, a sua liberdade”.
XVII. Daí que, junto deste Venerando Tribunal, recorre o aqui arguido A…, por não se conformar com a decisão recorrida, porquanto não praticou o crime por que foi condenado.
XVIII. Caso assim não se entenda e só por mera cautela e dever se invoca:
XIX. Na aplicação da sanção acessória de proibição de veículo as motor o julgador deve fazê-lo de uma forma criteriosa, sendo por isso necessário que se procure obter o máximo de conhecimentos sobre o agente, e atender ao conjunto das circunstâncias e particularidades do crime e do seu autor, orientando-se pelos critérios valorativos objectivos, que a própria lei fixa nos artigos 71º e ss. do Código Penal. Assim,
XX. A aplicação da sanção acessória de proibição de condução de veículos a motor foi aplicada de forma desajustada e excessiva, violando-se assim o preceituado no art.º 71º do Código Penal.
XXI. No presente o resultado do exame de pesquisa de álcool no sangue acusou uma TAS positiva de 0.83 g/l referida pelas testemunhas, inferior à taxa criminal de 1.20g/l,
XXII. Estando o ora recorrente plenamente integrado social e familiarmente, que trabalha numa localidade sem transportes públicos, e o facto de a sua companheira estar grávida de 6 meses, deverá ser aplicada uma sanção acessória de inibição de conduzir por um período não superior ao mínimo legal de 3 meses.
XXIII. O douto acórdão recorrido violou o disposto no artigo 410º, n.º 1, alínea c) do Cód. Proc. Penal.
Pelo que, nos termos expostos e nos melhores de Direito que o douto Venerando Tribunal suprirá no uso do seu conhecimento oficioso, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se o acórdão recorrido, absolver-se o arguido recorrente da prática do crime por que vem condenado, caso assim não se entenda e por mera cautela se aplique uma sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motor por um período não superior a 3 meses, assim se fazendo Justiça.
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O Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta, pugnando para que seja negado provimento ao recurso e mantida nos seus precisos termos a decisão recorrida, com as seguintes conclusões:

“(…)
A interpretação que o arguido faz não tem arrimo nem na letra da lei (que alude ao «local em que o teste possa ser efectuado» e não ao local em que o teste deva ser efectuado), nem na teleologia da norma (que visa a segurança rodoviária mediante a concretização de testes de alcoolemia), nem na unidade do sistema jurídico (que visa a colaboração do condutor com a actividade fiscalizadora rodoviária).
Note-se que o arguido, embora alegue em recurso que estava convicto que não tinha o dever de deslocar-se com a patrulha ao Posto Territorial de C... para realização de novo teste quantitativo, aquando da fiscalização não avançou nenhum argumento em sustentação da sua errada “convicção” (por exemplo, que teria tido conhecimento de um acórdão que lhe permitiria recusar deslocar-se a outro local para realização do teste quantitativo), limitando-se a dizer aos militares que dali não ia a lado nenhum e que eles, se quisessem, que fossem a C... buscar o alcoolímetro.
A posição sustentada pelo recorrente não passa de uma disparatada atitude de prepotência perante a entidade fiscalizadora de trânsito, atentas as explicações prestadas pelos militares inquiridos em julgamento, que referiram terem ficado surpreendidos com o resultado “amostra contaminada” obtido pelo alcoolímetro em uso no Posto Territorial da B... e que explicaram, várias vezes, a situação ao arguido, designadamente que teria de deslocar-se a C... para a sujeição a novo teste quantitativo sem quaisquer encargos para si – pelo que, não se pode falar, in casu, de nenhum tipo de excesso, desproporcionalidade ou deslealdade por parte do Estado administração na concreta actividade de fiscalização rodoviária ao arguido; pelo contrário, é ao arguido (e a todo o condutor) que se impõe, prima facie, uma atitude de colaboração e de respeito pela actividade fiscalizadora, especialmente por parte das forças de segurança, sabendo-se que as mesmas actuam legitimamente, investidas de autoridade e em serviço à comunidade, zelando pela segurança rodoviária do próprio arguido e dos demais utentes das vias públicas.
Tudo isto, para concluir, sem necessidade de acrescido esforço argumentativo, que a factualidade provada na sentença recorrida nenhum reparo merece, integrando a mesma todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime imputado ao arguido.
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Finalmente, o recorrente também conclui, subsidiariamente [cf. conclusões n.º 61], que a sentença violou o artigo 71.º do Código Penal ao graduar em quatro meses a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, o que seria desajustado e excessivo.
No caso concreto do arguido, pese embora o arguido não registe antecedentes criminais e esteja inserido familiar e laboralmente (que é o que se exige a quem vive em comunidade), sendo por isso reduzidas as respectivas necessidades de prevenção especial, há que não confundir os casos (como o presente) em que o condutor desobedece à ordem de submissão ao exame quantitativo de pesquisa de álcool no ar expirado, impedindo assim o conhecimento do real valor de T.A.S., com as situações em que o condutor obedece àquela ordem e colabora no apuramento do real valor de T.A.S., sob pena de injustiça relativa.
Efectivamente, se ambos os casos fossem julgados do mesmo modo, sempre seria mais vantajoso optar por desobedecer àquela ordem, porque a pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor sempre seria graduada no mínimo de três meses; enquanto o condutor que tivesse optado por obedecer àquela ordem arriscar-se-ia a acusar uma T.A.S. superior ao mínimo de 1,20 g/l e, consequentemente, a uma graduação da respectiva pena acessória acima do limite mínimo. Ou seja, na lógica implicitamente defendida pelo arguido, o condutor desobediente seria sempre beneficiado, enquanto o condutor obediente seria provavelmente prejudicado – o que é inaceitável.
Ora, considerando a especial finalidade preventiva da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, as conhecidas necessidades de prevenção geral da criminalidade rodoviária e da criminalidade contra a autoridade estadual, bem como os limites mínimos e máximos da moldura abstractamente aplicável à pena acessória em causa (entre três meses e três anos), não se vislumbra como poderá a respectiva graduação em quatro meses de proibição de conduzir veículos a motor representar objectivamente um qualquer excesso ou desproporcionalidade; tal medida encontra-se prudentemente graduada e é de confirmar-se o respectivo acerto.
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A Exmª Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu o seguinte parecer:
“(…)
Afigura-se-nos assistir razão ao recorrente.
Com efeito, resulta dos autos que:
- o recorrente foi interceptado por uma patrulha da GNR adstrita ao posto da B..., em local e hora que se desconhece (dado não constar do auto de notícia), que no acto fiscalizou a viatura por aquele conduzida;
- de seguida lhe foi solicitado que acompanhasse o subscritor do auto de notícia, a fim de ser submetido ao exame qualitativo de álcool no sangue através do ar expirado, solicitação a que o recorrente acedeu e realizou o teste como pretendido;
- face ao resultado desse teste (comprovado nos autos apenas através do depoimento do autuante) foi dito ao recorrente que teria de acompanhar a patrulha ao posto da B... a fim de aí ser submetido a um teste quantitativo;
- o recorrente não levantou qualquer objecção e acompanhou os militares ao referido posto, onde, por duas vezes, foi submetido ao referido teste num aparelho que lhe foi apresentado para o efeito;
- porque aquele aparelho em vez de indicar o valor da TAS, apresentou no local do resultado a expressão "amostra contaminada", como resulta de fls 4 e 5, o autuante disse ao recorrente que ele teria de o acompanhar ao posto da GNR de C... a fim de ser submetido a novo teste, agora em aparelho daquele posto;
- o recorrente recusou essa deslocação e referiu que aguardaria naquele posto a chegada de outro aparelho a fim de efectuar o teste pretendido;
- o autuante terá acedido e no sentido de obter outro aparelho contactou o referido posto de C..., sendo então informado que não existia ali naquele momento o aparelho pretendido, por se encontrar em manutenção;
- o autuante, disse então ao recorrente que teria de o acompanhar a C..., à esquadra da PSP, para aí efectuar o referido teste, aquele de novo referiu que ali aguardaria a chegada de um aparelho, mas recusou deslocar-se a C..., desta feita à esquadra da PSP.
O art. 152, n° 3, do Código da Estrada, prevê e pune a recusa de submissão às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool e o art. 2º, da Lei n° 18/2007, de 17 de Maio, relativamente ao método de fiscalização, estipula o seguinte:
1 - Quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo, devendo, sempre que possível, o intervalo entre os dois testes não ser superior a trinta minutos.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste possa ser efectuado, assegurando o seu transporte, quando necessário.
3 -...
A decisão recorrida retira desta última norma a obrigação de o arguido aceder às diversas solicitações da autoridade policial para que se desloque a local em que o teste possa ser efectuado, ainda que tal implique sucessivas deslocações até encontrar um aparelho operacional disponível.
Cremos, contudo, tal como é preconizado no acórdão do Tribunal da Relação de Évora citado pelo recorrente, que os deveres do arguido têm um limite.
No caso dos autos, o arguido acatou a solicitação para se deslocar ao sítio em que se encontrava o aparelho em que efectuou o teste qualitativo, depois a solicitação para se deslocar ao posto da B... onde se submeteu por 2 vezes ao teste quantitativo e perante a eventual avaria do aparelho disponibilizou-se a aguardar ali a chegada de um novo aparelho. Recusou, apenas, a deslocação ao posto da GNR de C..., deslocação que teria sido infrutífera face à constatação, posterior, da inexistência de aparelho naquele momento, e recusou, depois e nos mesmos termos, a deslocação à Esquadra da PSP de C....
A questão que se coloca é a de saber se lhe era exigível essa deslocação e se era legítima a ordem que lhe foi dada nesse sentido e que o arguido e ora recorrente recusou cumprir.
E do nosso ponto de vista a resposta tem de ser negativa quanto às duas questões, até porque interligadas entre si.
Como ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira, o princípio do Estado de direito democrático, consagrado no art. 2º, da Constituição da República Portuguesa, tem essencialmente uma função aglutinadora e sintetizadora, mas "não está excluída a possibilidade de colher dele normas que não tenham expressão directa em qualquer outro dispositivo constitucional, desde que elas se apresentem como consequência imediata e irrecusável daquilo que constitui o cerne do Estado de direito democrático, a saber, a protecção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça (especialmente por parte do Estado)."
É o caso dos princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso, que se mostram violados, a nosso ver, no caso em apreço.
E sufragamos inteiramente as considerações expendidas no citado acórdão do Tribunal da Relação de Évora. Cabe ao Estado assegurar os meios de cumprimento da própria lei "com o mínimo de sacrifício do cidadão", não podendo impor-se-lhe o dever de "calcorrear os postos e as esquadras à procura de aparelhos disponíveis".
Não pode retirar-se do art. 2.°, n° 2, da referida Lei n° 18/2007, a obrigação de um cidadão se deslocar para além do posto policial da área em que o eventual ilícito foi praticado, até porque o n° 1, do mesmo artigo, estabelece que o intervalo entre o teste qualitativo e quantitativo não deve ser superior a 30 minutos, sempre que possível. Até porque o decurso do tempo influencia o resultado, para mais ou para menos, quando o que importa apurar é a TAS que o condutor apresentava no momento em que conduzia, não a que apresenta uma hora ou duas horas depois de ter cessado o exercício da condução, porque o que é punido é a condução sob a influência do álcool. E no caso dos autos desconhece-se mesmo a hora (e o local) a que o arguido foi encontrado a conduzir, sabe-se apenas que foi submetido ao 1º teste quantitativo às 4h e 32m e ao 2º às 4h e 37 - fls 4 e 5.
Perante todo o exposto, emite-se parecer no sentido da procedência do recurso.”
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Cumprido o disposto no artº 417º, nº2 do C.P.P., não houve resposta do arguido.
Cumpridos os vistos, procedeu-se a conferência.
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Cumpre conhecer e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. O âmbito do recurso encontra-se delimitado em função das questões sumariadas pelo recorrente nas conclusões extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo, no entanto, das questões que sejam de conhecimento oficioso, como se extrai do disposto no artº 412º nº 1 e no artº 410 nºs 2 e 3 do Código de Processo Penal.
Neste contexto, a questão a apreciar traduz-se em saber se existiu recusa do arguido em submeter-se ao teste quantitativo de alcoolemia na esquadra da PSP de C..., em diferente alcoolímetro, depois de já ter-se submetido a tal teste por duas vezes no Posto Territorial da GNR da B... - zona onde foi interceptado e fiscalizado enquanto condutor -, cujos resultados obtidos foram “amostra contaminada”.
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2. Da decisão recorrida
FACTOS PROVADOS
1 - No dia 28 de Outubro de 2017, foi fiscalizada a viatura matricula 64-42-MQ, da propriedade de António do Couto da Silva.
2 - E solicitada ao arguido a submissão ao exame de pesquisa de álcool no sangue através de ar expirado no alcoolímetro qualitativo de marca Gragger, acusou uma TAS de 0,83 g/l.
3 - Face a este resultado foi o arguido informado que teria de acompanhar a patrulha ao posto da GNR da B... para efectuar um novo teste, desta vez num aparelho quantitativo, o que o mesmo acatou.
4 - No posto foi efectuado um primeiro teste no aparelho quantitativo de marca Dragger pelas 4h32m, tendo o resultado indicado ”amostra contaminada”.
5 - Foi efectuado um segundo teste no mesmo aparelho tendo o resultado sido igualmente “ amostra contaminada”.
6 - Foi informado o arguido que teria de acompanhar a patrulha a outro posto na viatura da GNR, sem qualquer custo para o mesmo, a outro posto policial para realizar novo teste.
7 - Perante tal informação o arguido recusou-se a acompanhar a patrulha tendo afirmado que só realizaria o teste no posto da GNR da B... e que ficaria a aguardar a chegada de um novo aparelho.
8 - a patrulha da GNR da B... efectuou contacto telefónico com o posto territorial da GNR de C..., tendo sido informada que o aparelho que existia em tal posto encontrava-se temporariamente indisponível, uma vez que se encontrava em manutenção ou verificação no IPQ.
9 - Pela patrulha foi sugerida ao arguido a deslocação à esquadra da PSP de C... para assim realizar o teste de pesquisa de álcool, tendo o arguido reafirmado que só aceitaria realizar o teste no posto da GNR da B....
10 - O arguido foi informado que caso continuasse a recusar seria detido por crime de desobediência, tendo sido face à persistência em não acompanhar a patrulha à esquadra da PSP de C..., por mais três vezes advertido que a sua conduta tipificava a prática de um crime de desobediência, tendo proferido sempre a expressão “ eu espero aqui pela nova máquina”
11 - Dada a recusa em acompanhar a patrulha foi dada voz de detenção ao arguido e elaborado o expediente inerente.
12 - O arguido recusou-se a assinar e receber o expediente elaborado alegando não concordar com a tipificação do crime.
13 - Foi de seguida notificado verbalmente que se encontrava impedido de conduzir pelo período de doze horas e também que deveria apresentar-se no tribunal Judicial de alcobaça no dia 30 de Outubro de 2017, pelas 10:00 horas.
14 - O arguido agiu sabendo que a determinação da realização do mencionado teste era legítima e que resulta de disposição legal, sabendo ainda que a recusa na realização do mesmo é punida por crime de desobediência.
15 - Não obstante aquele conhecimento, o arguido quis recusar-se a realizar o teste de alcoolemia após obter dois resultados de amostra contaminada, o que fez.
16 - Agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta é proibida e criminalmente punida.
17 - Mais se demonstrou que do CRC do arguido nada consta.
(…)
Não resultou demonstrado:
- Que o arguido recusasse acompanhar a patrulha ao posto da PSP de C... invocando que a companheira se encontrava grávida de seis meses e não querer sair de junto dela.”
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3. Cumpre decidir.

O crime de desobediência do artº 348º CP tem como elementos objectivos:
- a ordem ou mandado;

- a sua legalidade formal e substancial;
- a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão;
- a regularidade da sua comunicação ao destinatário;
- a cominação não legal mas expressa da autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado, a conferir à conduta transgressora, o carácter de desobediência (alínea b);
- o conhecimento pelo agente dessa ordem.
No que respeita ao elemento subjectivo do tipo, exige-se o dolo, em qualquer das modalidades enunciadas no art.º 14.º, do Código Penal - (directo, necessário ou eventual).
Em suma, comete o crime de desobediência, atento o disposto no artigo 348º n.º 1 alínea a) do C. Penal, «quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente e uma disposição legal qualificar essa conduta como desobediência simples, punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias».
O bem jurídico protegido é a autonomia intencional do Estado na vertente da não colocação de quaisquer obstáculos ao desenvolvimento da actividade administrativa das autoridades. Visa-se garantir que todos os que executam funções públicas e que nessa qualidade detêm um específico poder, sejam inequivocamente respeitados - vide Comentário Conimbricense, III Volume, pág. 337.
Cristina Líbano Monteiro refere, em relação aos crimes previstos no capítulo “Dos Crimes Contra a Autoridade Pública” in Comentário Conimbricense, III Volume, pág. 337, § 4 «Estamos em presença de um bem-jurídico-meio digno de tutela penal na medida em que o fim que se protege antecipadamente – o bom funcionamento da vida social, indispensável à livre expansão da personalidade dos que a comparticipam – requer, como condição necessária uma autoridade obedecida. E no parágrafo seguinte adverte: “Não está em causa uma concepção autoritária do Estado, uma visão de poder político despótico e arbitrário, impositor de uma obediência cega. O Estado de direito democrático é lugar de uma autoridade entendida como serviço público, garantia de bom funcionamento (coerente e ordenado) de todos e de cada um dos serviços públicos.”
Segundo o disposto no nº 1, al. a) do artigo 152.º, do Código da Estrada, os condutores devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas. E acrescenta o nº 3 do mencionado preceito que “As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.”
Assim, comete o crime de desobediência, previsto no artigo 348º, nº 1 alínea a) do CP, o condutor que, tendo-lhe sido transmitida uma ordem de autoridade de fiscalização rodoviária para se submeter às provas de detecção de álcool, se recusar a tal. É o que decorre da lei, sem necessidade de qualquer cominação da autoridade relativa ao não cumprimento da ordem.
No que se refere ao método de fiscalização, dispõe o art. 2º, da Lei n° 18/2007, de 17 de Maio:
“1 - Quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo, devendo, sempre que possível, o intervalo entre os dois testes não ser superior a trinta minutos.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste possa ser efectuado, assegurando o seu transporte, quando necessário.
Revertendo aos autos, resulta que no acto da fiscalização da viatura que o arguido conduzia (condução não expressa no elenco dos factos provados), - em local e hora que se desconhece por não constar do auto de notícia, - a patrulha da GNR adstrita ao posto da B..., solicitou ao recorrente que acompanhasse um dos agentes, a fim de ser submetido ao exame qualitativo de álcool no sangue através do ar expirado, solicitação a que o recorrente acedeu tendo efectuado o respectivo teste. Atento o resultado de tal teste - TAS de 0,83 g/l - foi o arguido informado que teria de acompanhar a patrulha ao posto da GNR da B... para efectuar um novo teste, desta vez num aparelho quantitativo, o que o mesmo acatou - factos provados nºs 2 e 3.
Ou seja, tal como o MP realça no seu parecer, o recorrente não levantou qualquer objecção e acompanhou os militares ao referido posto, onde, por duas vezes, foi submetido ao dito teste num aparelho que lhe foi apresentado para o efeito.
Contudo, no posto da B..., o aparelho apresentou no local do resultado a expressão "amostra contaminada", como resulta de fls 4 e 5, em vez de indicar o valor da TAS.
O recorrente cumpriu o que a lei lhe impunha - acompanhou os agentes policiais ao local em que o teste podia ser efectuado - posto territorial da B..., área da fiscalização. E submeteu-se ao teste, sendo alheio ao facto de o aparelho, quiçá por avaria, indicar como resultado “amostra contaminada. Aliás, o recorrente não efectuou apenas um teste, mas dois, ambos com aquele resultado.
É razoável exigir-se que antes de qualquer acção de fiscalização a patrulha se assegure do bom funcionamento dos necessários aparelhos e em caso de avaria detectada, providencie pela sua substituição, ou não sendo esta possível, se informe do posto onde as provas poderão ser realizadas de forma cabal.
O que não pode é sujeitar os cidadãos a deslocações sucessivas em plena madrugada, como no caso presente, em que após deslocação infrutífera para a B..., o autuante determinou que o recorrente o acompanhasse ao posto da GNR de C... a fim de ser submetido a novo teste, agora em aparelho daquele posto. Deslocação essa que seria também mal sucedida já que após contacto telefónico, - por efeito da recusa de tal deslocação pelo arguido (que declarou que aguardaria naquele posto a chegada de outro aparelho a fim de efectuar o teste pretendido) - o autuante foi informado que naquele momento não existia no posto de C... o aparelho pretendido, por se encontrar em manutenção.
Constata-se assim que o telefonema para o posto de C... significa que o autuante aceitou a pretensão do recorrente de aguardar no posto da B... a chegada de outro aparelho para então efectuar novamente o teste.
E dado que o transporte seria assegurado pela GNR, as deslocações mostravam-se equivalentes - ida e volta - que de acordo com os possíveis itinerários demorariam entre 22 a 27 m.
Obviamente que no caso concreto, a exigência de o recorrente se deslocar a C..., agora para oposto da PSP, se afigura desnecessária, irrazoável e sem cobertura legal.
O recorrente não recusou efectuar o teste, mas apenas essa outra deslocação em plena madrugada, cumprindo salientar que se desconhece o tempo que ali permaneceu desde o acto da fiscalização, atenta a omissão do auto de notícia.
Mais uma vez se assinala que o recorrente referiu que aguardaria naquele posto a chegada de outro aparelho a fim de efectuar o teste pretendido. Não recusou efectuá-lo.
E cumpria aos agentes remover os obstáculos que impediam o competente exercício da sua missão, sem sujeitar o fiscalizado a sucessivas deslocações, fora da área da fiscalização, certo que já se deslocara ao local onde o teste podia e devia ter sido realizado, de preferência nos trinta minutos após o primeiro teste qualitativo.
É certo que está em causa a recolha de um meio de prova perecível no âmbito da prevenção e punição de comportamentos que põem em perigo a segurança rodoviária e os valores pessoais e patrimoniais inerentes.
Porém, no caso concreto, é de legitimidade duvidosa a exigência de deslocações sucessivas por motivos alheios ao cidadão que se dispôs a efectuar os testes nos termos sobreditos, e nos limites das obrigações sedimentadas na consciência ética da generalidade dos membros da comunidade respeitadora da autoridade do Estado.
“O que o princípio do Estado de Direito impõe é que o processo (máxime, o processo criminal) se reja "por regras que, respeitando a pessoa em si mesma (na sua dignidade ontológica), sejam adequadas ao apuramento da verdade" (cf. acórdão nº 128/92, publicado no Diário da República, II série, de 24 de julho de 1992).
E se em regra, nas condições normais, o prejuízo do ponto de vista pessoal para o sujeito obrigado ao teste de alcoolemia não atinge o núcleo essencial indisponível de direitos fundamentais, não sendo desproporcionada a sua lesão em confronto com os bens que se pretende tutelar, no caso concreto, em que o arguido cumpriu os deveres que recaiam sobre si, - sujeitar-se ao exame qualitativo e, se for caso disso, ao exame quantitativo, - é manifesta a violação dos princípios da proporcionalidade e da proibição do excesso, nos termos assinalados no parecer.
Neste sentido o Ac da Rel. de Évora, de 18 de Fevereiro de 2014, relator Des. João Gomes de Sousa, cuja fundamentação é aplicável ao critério normativo aqui em apreciação, transcrevendo-se por isso os excertos mais significativos:
“Mas não é só o arguido a ter deveres.
Os primeiros a terem deveres são as entidades que dirigem e executam os actos processuais, a começar pelas forças de segurança interna que, no nosso ordenamento processual penal, assumem a designação de “órgãos de polícia criminal” – al. c) do artigo 1º do Código de Processo Penal.

Aquilo que resultou provado é que a GNR não dispunha de aparelho para realização de exame quantitativo. E devia dispor.
Se o existente estava para calibração, outro se impunha ali colocar para suprir a falha. Se não, que outro viesse, se necessário, de outro posto.
Sobre o cidadão é que não recai o dever de andar a calcorrear os postos ou esquadras à procura de aparelhos disponíveis e/ou calibrados.
Se o Estado, através dos poderes legislativo e executivo, este na veste de legislador, estabelece normas de limitação de direitos de cidadania por interesse público, o que se pede ao executivo enquanto administração – na qual se incluem os “órgãos de polícia criminal” - é que seja diligente e previdente.
Aqui, ser diligente e previdente é dispor no posto policial da ocorrência do facto de aparelhos de metrologia alcoólica. Ou dispor de reservas.
Assim o que a letra do n. 2 do artigo 2º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência de Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n. 18/2007, de 17-05, impõe não é um dever de um cidadão se deslocar para além da localidade onde um provável ilícito foi praticado.
Antes impõe um dever de a Administração estadual assegurar os meios de cumprimento da sua própria Lei com o mínimo de sacrifício do cidadão.
E, note-se, não estamos a apreciar um acto proveniente da vontade expressa pelo arguido de se submeter, por exemplo, a exame sanguíneo em vez de a um analisador quantitativo, [3] nem ao pedido de contraprova, que sempre poderia impor análise diversa quanto ao dever de deslocação.
Estamos apenas a apreciar a conduta de um cidadão que se sujeitou a analisador qualitativo, se dispôs a ser sujeito a analisador quantitativo, que para o posto se deslocava com esse intuito e que apenas se recusou a ser conduzido para outro lugar por acto imputável à força policial que não dispunha no local do aparelho necessário ao exame.
Um Estado intrometido por hábito e tradição na vida do cidadão deve assumir as consequências das suas intromissões, não sujeitar o cidadão ao ónus das suas incapacidades ou imprevidências. Nem sujeitar o cidadão ao ónus – por isso invertido – de justificar por que razão não quer ser sujeito a um transporte para local diverso.”
Não há, pois, qualquer crime de desobediência por inexistência de elemento subjectivo – não há dolo – ou objectivo – não há recusa normativamente relevante, isto é, recusa que se possa fazer inserir no tipo penal.
A decisão incorreu no vício do erro notório na apreciação da prova.
O que impõe sejam dados como não provados os seguintes factos:
“14 - O arguido agiu sabendo que a determinação da realização do mencionado teste era legítima e que resulta de disposição legal, sabendo ainda que a recusa na realização do mesmo é punida por crime de desobediência.
15 - Não obstante aquele conhecimento, o arguido quis recusar-se a realizar o teste de alcoolemia após obter dois resultados de amostra contaminada, o que fez.
16 - Agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta é proibida e criminalmente punida.”
O que impõe a absolvição do arguido com a consequente revogação da sentença recorrida.
*
III - Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência, decidem absolver o arguido do crime imputado.
Notifique.
Sem tributação.

Coimbra, 13/06/2018
(elaborado e revisto pela relatora antes de assinado).
Isabel Valongo (relatora)
Jorge França (ajunto)