Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1398/12.3TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PEÃO
CULPA
RISCO
Data do Acordão: 03/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.503, 505, 570 CC, 3, 24, 25, 27, 60, 99, 100, 101 CE
Sumário: 1. A Relação poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1, do CPC).

2. Provando-se que o atropelamento de um peão ocorreu numa localidade, à noite (não se provando a suficiente iluminação/visibilidade do local), quando se encontrava etilizado (TAS de 2,47 g/l) e caído/deitado numa Estrada Nacional (minutos antes do acidente, transitava a pé, no mesmo sentido de marcha, pelo passeio direito, sendo altamente provável que a embriaguez tenha originado/determinado a perda de equilíbrio e consequente queda na via, onde ficou prostrado) e que a viatura seguia a uma velocidade de 50 km/h, em médios, e sem que a condutora pudesse prever tal situação (apercebeu-se de um vulto caído na hemi-faixa de rodagem destinada ao seu sentido de marcha, a curta distância, travou mas não conseguiu efectuar qualquer manobra que evitasse o atropelamento), o evento em causa é imputável, em exclusivo, àquele, pois não é exigido aos condutores que contem em cada momento com os obstáculos que surjam inopinadamente, com obstáculos ou circunstâncias totalmente avessos ao curso ordinário das coisas ou com a falta de prudência de terceiros.

3. A responsabilidade objectiva deve ser excluída quando o acidente for imputável unicamente ao próprio lesado, sendo que, se em caso de dúvida deve prevalecer a concorrência entre risco do veículo e facto do lesado, existindo prova certa e segura do facto da vítima como causa única e exclusiva do acidente, já não haverá lugar ao dito concurso (culpa/risco) - cf. os art.ºs 503º, 505º e 570, do CC.

Decisão Texto Integral:    








        

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:       

           

            I. R (…), D (…), I (…) e S (…) , instauraram a presente acção declarativa ordinária contra F (...) S. A.[1], pedindo que seja condenada a pagar-lhes  a quantia de € 149 000, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento.

            Alegaram, em síntese, que no dia 06.7.2009, cerca da 01 hora e 30 minutos, na localidade de x (... ), A (…) foi atropelado por um veículo seguro na Ré, o que se deveu ao facto de a condutora desse veículo seguir desatenta e a velocidade excessiva; em consequência do acidente, A (…) sofreu lesões das quais resultou a morte, sofrendo os AA. os danos patrimoniais e não patrimoniais que pretendem ver ressarcidos.

            A Ré contestou referindo, além do mais, que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do peão, pelo que acção deve ser julgada improcedente.

            Admitida a intervenção a título principal de F (…), M (…)  M (…) (fls. 211), o último apresentou o articulado de fls. 225 e seguintes, pedindo a condenação da Ré no pagamento de € 50 000 pela perda do direito à vida do irmão e € 7 500 pelos danos não patrimoniais por si sofridos.

            Foi proferido despacho saneador que firmou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.

            Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 13.3.2017, julgou improcedentes os pedidos formulados pelos AA., dos mesmos absolvendo a Ré; julgou parcialmente procedente o pedido formulado pelo interveniente M (…) e condenou a Ré a pagar-lhe “a quantia de € 16 666 (dezasseis mil, seiscentos e sessenta e seis euros) a título de indemnização pela perda do direito à vida de A (... ), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4 % desde a presente data até efectivo e integral pagamento” e “a quantia de € 5 000 (cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais por si sofridos acrescida de juros de mora à taxa legal de 4 % desde a presente data até efectivo e integral pagamento”.
Inconformadas, as intervenientes F (…) e M (…)  apelaram formulando as seguintes conclusões:[2]

          (…)

A Ré respondeu à alegação das intervenientes concluindo pela improcedência do recurso.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, sobretudo: a) impugnação da decisão sobre a matéria de facto (erro na apreciação da prova); b) decisão de mérito - maxime, se a condutora do veículo seguro contribuiu para a produção do sinistro (pois só esse eventual contributo poderá determinar a obrigação de indemnizar por parte da Ré/Seguradora); c) a pretensão das intervenientes/apelantes, se não ficar prejudicada pelo decidido em a) e b).       


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            1. A (…) nasceu no dia 25.4.1948.

            2. Era filho de M (…9 e M (…).

            3. Os intervenientes F (…), M (…) e M (…) eram irmãos de A (…).

            4. Além dos intervenientes referidos em 3., A (…) era irmão de S (…), falecido em 10.10.1993.

            5. A autora D (…) é filha de J (…) e da interveniente M (…)

            6. O autor I (…) é filho de J (…) e da interveniente M (…)

            7. O autor R (…) é filho de V (…) e da interveniente F (…).

            8. O autor S (…) é filho de V (…) e da interveniente F (…).

            9. Por testamento outorgado no dia 31.8.2004, A (…) instituiu como herdeiros, em comum, da sua herança os aqui autores.

            10. No dia 06.7.2009, pela 1 hora e 30 minutos, na EN 348-1, na localidade de x (... ), o veículo ligeiro de passageiros de matrícula Y (... ), conduzido por S (…), atropelou A (…).

            11. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 10.[3], o veículo Y (... ) circulava no sentido de marcha Pombal/Vérigo a uma velocidade de 50 km/h, com as luzes médias acesas.

            12. O local onde ocorreu o acidente é uma recta, com um traçado ligeiramente ascendente, atento o sentido de marcha referido em 11., sendo a referida recta precedida de uma ligeira curva à direita.

            13. No local do acidente a faixa de rodagem tinha uma largura de 6,50 m, era asfaltada, em estado regular, com bom aspecto, mas apresentava algum desgaste dos elementos granulosos, comportava dois sentidos de trânsito, sem qualquer marcação rodoviária a separá-los.

            14. A faixa de rodagem era delimitada em ambos os lados por passeios, apresentando o do lado direito, atento o sentido de marcha do veículo, 1,20 m de largura e o do lado esquerdo 1,30 m, tendo os mesmos 10 cm de altura, inexistindo nas imediações passadeiras para peões.

            15. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 10., estava bom tempo e o piso da faixa de rodagem encontrava-se seco.

            16. Do lado esquerdo da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do veículo Y (... ), existiam candeeiros de iluminação pública, colocados a uma distância de cerca de 30 metros uns dos outros.

            17. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 10, o candeeiro que se encontrava mais próximo do local do acidente, funcionava com deficiência porque se apagava de forma cíclica, ficando apagado por tempo prolongado.

            18. Antes do acidente referido em 10.[4], A (…) encontrava-se caído na faixa de rodagem, no sentido de marcha seguido pelo veículo, em posição de decúbito dorsal.

            19. A condutora do veículo Y (... ) apercebeu-se de um vulto caído no chão a curta distância do mesmo, não conseguindo efectuar qualquer manobra de recurso que evitasse o atropelamento do mesmo, pelo que lhe passou por cima com o rodado da frente esquerda.

            20. Após o atropelamento, o veículo Y (... ) imobilizou-se imediatamente na faixa de rodagem no sentido de marcha em que seguia, em posição paralela ao passeio do lado direito, a uma distância de 80 cm do mesmo.

            21. A (…), após o atropelamento ficou debaixo do veículo, imediatamente atrás da roda esquerda da frente, com a cabeça e o tronco virados para a via e as pernas para o passeio do lado direito, atento o sentido de marcha do Y (... ).

            22. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 18., A (…) era portador de uma TAS de 2,47 g/l e apresentava um ferimento na testa.

            23. No local do acidente, após o mesmo não existiam marcas de travagem, nem o corpo apresentava vestígios de ter sido arrastado.

            24. A (…) faleceu no dia do acidente em consequência das “lesões traumáticas toraco-pélvicas” provocadas pelo atropelamento.

            25. Em consequência do acidente, o veículo Y (... ) sofreu pequenos danos na parte inferior do pára-choques dianteiro e protecção inferior de borracha do mesmo.

            26. A (…) era pessoa com alegria de viver e entre ele, os sobrinhos e irmãos existia grande união.

            27. Os autores e intervenientes tiveram desgosto com a morte de A (…) por quem tinham estima e consideração.

            28. A (…) residia a cerca de 1 km da residência do interveniente M (…) na casa que constituiu a morada dos seus pais.

            29. A (…) foi emigrante em França, juntamente com o interveniente M (…) tendo regressado em 2004/2005, onde se instalou na moradia referida em 28..

            30. A responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação em que fosse interveniente o veículo de matrícula Y (... ) encontrava-se transferida para a Ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º AU (... ).

            2. E deu como não provado:

            a) No momento do acidente o candeeiro referido em 17. não emitia qualquer luz artificial porque a lâmpada estava apagada;

            b) Nas circunstâncias referidas em 19., a condutora do Y (... ) travou;

            c) Só quando saiu do veículo é que a condutora do Y (... ) se apercebeu de era um corpo humano que se encontrava caído;

            d) Nas circunstâncias referidas em 18., A (…) estava inanimado, a dormir, com perda de sentidos ou mesmo em situação de sonolência profunda com perda das actividades cerebrais superiores;

            e) Antes do acidente referido em 10., A (…) circulava a pé, pelo passeio direito, no sentido de marcha Pombal/Vérigo;

            f) No local do acidente o passeio em causa encontrava-se parcialmente obstruído por dois contentores do lixo ali existentes;

            g) No momento em que A (…) passava em frente a um desses contentores e para deles se desviar, aproximou-se da zona de separação da estrada e do passeio, desequilibrando-se e caindo no asfalto;

            h) A (…) teve a percepção da sua morte;

            i) Quando caído na estrada viu que o veículo automóvel não iria parar e que o iria colher;

            j) No momento do acidente A (…) sofreu muitas dores quando o seu corpo era despedaçado pelo veículo que se imobilizou em cima do seu corpo, tendo sentido angústia e terror pela morte;

            k) As intervenientes F (…) e M (…) eram quem cuidava, preparava as refeições, lavava e passava a ferro e cuidava da higiene da casa de A (…);

            l) A (…) prestava alimentos aos autores e intervenientes;

            m) Os autores e intervenientes ainda recordam A (... ) frequentemente;

            n) A (... ) aferia uma reforma no valor de € 1 200 mensais;

            o) A (... ) dedicava-se à actividade de compra e venda de imóveis, onde auferia uma média mensal não inferior a € 750;

            p) A (... ) possuía imensa saúde e capacidade de trabalho.

            3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            a) Invocando parte da prova pessoal e documental produzida nos autos e em audiência de julgamento, a Ré insurge-se contra a decisão sobre a matéria de facto, pugnando para que se dê como provada a matéria dita em II. 2. b) a e), supra e o alegado nos art.ºs 54º a 56º da contestação, como refere nas “conclusões 1ª e 2ª” da respectiva alegação de recurso (cf. o ponto I, supra), ciente que da sua eventual modificação poderá resultar diverso enquadramento normativo susceptível de determinar a improcedência da acção.

            Antolha-se assim fundamental saber se outra poderia/deveria ser a decisão do Tribunal a quo quanto à factualidade em causa.

            b) Esta Relação procedeu à audição da prova pessoal produzida em audiência de julgamento, conjugando-a com a prova documental junta aos autos.

            c) Pese embora a maior dificuldade na apreciação da prova (pessoal) em 2ª instância, designadamente, em razão da não efectivação do princípio da imediação[5], afigura-se, no entanto, que, no caso em análise, tal não obstará a que reanalise, designadamente, a credibilidade da testemunha e verifique se o depoimento foi apreciado de forma razoável e adequada.

            E na reapreciação do material probatório disponível por referência à factualidade em causa, releva igualmente o entendimento de que a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano e, uma vez que este jamais pode basear-se numa absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade[6], capaz de afastar a situação de dúvida razoável.

            (…)

            Assim, ante o exposto, o indicado (elevado) grau de verosimilhança, as regras da experiência e as necessidades práticas da vida[7], importa dar ainda como provado:

            31. Nas circunstâncias referidas em 19) a condutora do Y (... ) travou.

            32. Só quando saiu do veículo é que a condutora do Y (... ) se apercebeu de que era um corpo humano que se encontrava caído.

            33. A (... ), na véspera, estivera numa festa popular em w (... ) onde consumiu bebidas alcoólicas.

            34. Após, foi para uma taberna onde continuou a ingerir bebidas alcoólicas, situada junto à E. N., a algumas centenas de metros do local do acidente.

            35. E foi daqui que saiu, a pé, alguns minutos antes do acidente, pelo passeio direito, tendo tomado o sentido Pombal/Vérigo, rumo à sua residência sita na localidade de z (... ).

            Relativamente à restante factualidade incluída na “conclusão 1ª” da alegação de recurso da Ré apenas ficou provado, ou releva, o que já consta do ponto II. 1., supra ou foi agora dado como provado.

            Procede, pois, parcialmente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

            5. Considerada a data dos factos, importa atender ao regime estabelecido pelo Código da Estrada, aprovado pelo DL n.º 114/94, de 03.5, na redacção conferida pelo DL n.º 44/2005, de 23.02[8].

            As pessoas devem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos utentes da via (art.º 3º, n.º 2).

            O condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente (art.º 24º, n.º 1).[9]

            Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade: a) À aproximação de passagens assinaladas na faixa de rodagem para a travessia de peões; c) Nas localidades ou vias marginadas por edificações; d) À aproximação de aglomerações de pessoas ou animais; j) Sempre que exista grande intensidade de trânsito (art.º 25º, n.º 1).[10]

            Sem prejuízo do disposto nos art.ºs 24º e 25º e de limites inferiores que lhes sejam impostos, os condutores automóveis ligeiros de passageiros e mistos, dentro das localidades, não podem exceder a velocidade instantânea de 50 km/h (art.º 27º, com a epígrafe “limites gerais de velocidade”).[11]

            Os dispositivos de iluminação a utilizar pelos condutores são os seguintes: a) Luz de estrada (máximos), destinada a iluminar a via para a frente do veículo numa distância não inferior a 100 m; b) Luz de cruzamento (médios), destinada a iluminar a via para a frente do veículo numa distância até 30 m (art.º 60º, n.º 1).

            Desde o anoitecer ao amanhecer e, ainda, durante o dia sempre que existam condições meteorológicas ou ambientais que tornem a visibilidade insuficiente, nomeadamente em caso de nevoeiro, chuva intensa, queda de neve, nuvens de fumo ou pó, os condutores devem utilizar as seguintes luzes: b) De cruzamento, em locais cuja iluminação permita ao condutor uma visibilidade não inferior a 100 m, no cruzamento com outros veículos, pessoas ou animais, quando o veículo transite a menos de 100 m daquele que o precede, na aproximação de passagem de nível fechada ou durante a paragem ou detenção da marcha do veículo; c) De estrada, nos restantes casos (art.º 61º, n.º 1).

            Os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas (art.º 99º, n.º 1, sob a epígrafe “lugares em que podem transitar”). Os peões podem, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, nos seguintes casos: a) Quando efectuem o seu atravessamento; b) Na falta dos locais referidos no n.º 1 ou na impossibilidade de os utilizar; c) Quando transportem objectos que, pelas suas dimensões ou natureza, possam constituir perigo para o trânsito dos outros peões; d) Nas vias públicas em que esteja proibido o trânsito de veículos; e) Quando sigam em formação organizada sob a orientação de um monitor ou em cortejo (n.º 2).[12]

            Os peões devem transitar pela direita dos locais que lhes são destinados, salvo nos casos previstos na alínea d) do n.º 2 do artigo anterior (art.º 100º, n.º 1, com a epígrafe “posição a ocupar na via”). Nos casos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo anterior, os peões devem transitar pelo lado esquerdo da faixa de rodagem, a não ser que tal comprometa a sua segurança (n.º 2). Nos casos previstos nas alíneas b), c) e e) do n.º 2 do artigo anterior, os peões devem transitar o mais próximo possível do limite da faixa de rodagem (n.º 3).        

            Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente (art.º 101º, com a epígrafe “atravessamento da faixa de rodagem”) O atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível (n.º 2). Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem (n.º 3). Os peões não devem parar na faixa de rodagem ou utilizar os passeios de modo a prejudicar ou perturbar o trânsito (n.º 4).[13]

            6. Ficou provado: o atropelamento em apreço ocorreu, pela 1 hora e 30 minutos, do dia 06.7.2009, na EN 348-1, na localidade de x (... ), sendo o veículo ligeiro de passageiros Y (... ) conduzido por S (…), no sentido de marcha Pombal/Vérigo a uma velocidade de 50 km/h, com as luzes médias acesas; a faixa de rodagem era delimitada em ambos os lados por passeios, apresentando o do lado direito, atento o sentido de marcha do veículo, 1,20 m de largura e o do lado esquerdo 1,30 m, tendo os mesmos 10 cm de altura, inexistindo nas imediações passadeiras para peões; do lado esquerdo da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do veículo Y (... ), existiam candeeiros de iluminação pública, colocados a uma distância de cerca de 30 metros uns dos outros e o candeeiro que se encontrava mais próximo do local do acidente, funcionava com deficiência porque se apagava de forma cíclica, ficando apagado por tempo prolongado; antes do acidente, o A (…) encontrava-se caído na faixa de rodagem, no sentido de marcha seguido pelo veículo, em posição de decúbito dorsal; a condutora do veículo Y (... ) apercebeu-se de um vulto caído no chão a curta distância do mesmo, travou mas não conseguiu efectuar qualquer manobra de recurso que evitasse o atropelamento do mesmo, pelo que lhe passou por cima com o rodado da frente esquerda e só quando saiu do veículo é que se apercebeu de que era um corpo humano que se encontrava caído; após o atropelamento, o veículo Y (... ) imobilizou-se imediatamente na faixa de rodagem no sentido de marcha em que seguia, em posição paralela ao passeio do lado direito, a uma distância de 80 cm do mesmo; A (…), após o atropelamento ficou debaixo do veículo, imediatamente atrás da roda esquerda da frente, com a cabeça e o tronco virados para a via e as pernas para o passeio do lado direito, atento o sentido de marcha do Y (... ); A (…) era portador de uma TAS de 2,47 g/l e apresentava um ferimento na testa; A (…), na véspera, estivera numa festa popular em w (... )onde consumiu bebidas alcoólicas; após, foi para uma taberna onde continuou a ingerir bebidas alcoólicas, situada junto à E. N., a algumas centenas de metros do local do acidente; e foi daqui que saiu, a pé, alguns minutos antes do acidente, pelo passeio direito, tendo tomado o sentido Pombal/Vérigo, rumo à sua residência sita na localidade de z (... ) (cf. II. 1. 10., 11., 14., 16., 17., 18., 19., 20., 21., 22., 31., 32., 33., 34. e 35. e II. 4., supra).

            7. Perante a descrita factualidade e o apontado quadro normativo, é irrecusável que a vítima, então com a idade de 61 anos, desrespeitou o dever objectivo de cuidado imposto pelas normas do direito estradal - o evento danoso era previsível (era de prever que ao circular, a pé, com uma elevada taxa de alcoolemia, num passeio com as ditas características, pudesse invadir e/ou cair na faixa de rodagem, embaraçando a circulação automóvel e criando perigo de embate/atropelamento) e era-lhe exigível outro comportamento.

            Por outro lado, não resulta da factualidade apurada que a condutora do Y (... ) tenha por qualquer forma contribuído para a produção do acidente - circulava a velocidade que não se poderá considerar excessiva, respeitava as demais regras de circulação automóvel e nada nos diz que tivesse uma visibilidade superior a 30 metros e fosse possível fazer parar a viatura antes de alcançar o local onde se encontrava o corpo do A (…) (veja-se, nomeadamente: a condutora travou quando se apercebeu da existência de um “vulto” na faixa de rodagem; à velocidade a que seguia, percorreria aproximadamente 14 m/s; em normais condições de aderência/atrito - e atente-se no que ficou provado em II. 1. 13., supra -, não imobilizaria o veículo antes de percorrer 22 metros a partir da vista do obstáculo e consequente e imediata travagem…[14]).
Se é certo que o evento em análise se consubstanciou no atropelamento de um peão (que se encontrava deitado e ocupava parte significativa da hemi-faixa de rodagem), toda a descrita ocorrência apenas se poderá explicar pela actuação do A (... ).

8. O acidente é explicado pela actuação do peão - que o determinou/causou -, sem que se possa atribuir à condutora do veículo Y (... ) (não se demonstrando que haja desrespeitado/infringido qualquer preceito legal causal do sinistro) ou às condições ou circunstâncias da circulação da viatura qualquer quota-parte para a sua produção.

Nenhuma culpa pode ser assacada à condutora do Y (... ) porque não violou qualquer norma estradal nem deveres gerais de cuidado.

Em caso de contribuição exclusiva de um peão, como no caso, será de atribuir o acidente exclusivamente a actuação culposa do peão/vítima; e não concorre para a respectiva eclosão, em termos de causalidade adequada, o risco inerente à circulação do veículo envolvido no acidente, porque a potencialidade de perigo que encerra a sua circulação foi alheia ao sinistro ou não potenciou o “risco permitido” (inerente à circulação rodoviária).

            O atropelamento do peão (e consequências daí decorrentes) que, numa localidade, à noite - e sem se comprovar a suficiente iluminação/visibilidade do local[15] -, se encontrava etilizado (TAS de 2,47 g/l) e caído/deitado[16] numa Estrada Nacional (e que, minutos antes do acidente, transitava a pé, no mesmo sentido de marcha, pelo passeio direito, sendo altamente provável que o estado de embriaguez tenha originado/determinado a perda de equilíbrio e consequente queda na via, onde ficou prostrado), seguindo a viatura a uma velocidade de 50 km/h, em médios, e sem que a condutora pudesse prever tal situação (a qual se apercebeu de um vulto caído na hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido de marcha do veículo, a curta distância, travou mas não conseguiu efectuar qualquer manobra que evitasse o atropelamento), é de imputar em exclusivo àquele, pois não é exigido aos condutores que contem em cada momento com os obstáculos que surjam inopinadamente, com obstáculos ou circunstâncias totalmente avessos ao curso ordinário das coisas ou com a falta de prudência de terceiros.[17]

               9. Os factos apurados dizem-nos que a causa do atropelamento foi a total falta de prudência do A (…) (porquanto, de forma voluntária e negligente, viria a colocar-se numa situação de embriaguez certamente admitindo que teria de se deslocar a pé, pelo passeio de uma EN, e efectuar o trajecto até à sua residência, e de que para tanto era preciso manter-se sóbrio ou ingerir bebidas alcoólicas com moderação e sem comprometer o seu estado físico e psíquico, sendo que como utente/utilizador, ainda que vulnerável da via pública quando em trânsito na mesma, tem deveres a cumprir e cuidados a respeitar), ficando por demonstrar qualquer circunstancialismo que permita imputar à condutora uma qualquer quota-parte de contribuição para a produção do evento (não seria exigível à condutora que actuasse de modo diferente).

            Nada ficou apurado no sentido de imputar à condutora do veículo Y (... ) qualquer contributo para a potenciação do risco inerente à circulação automóvel ou, dito de outra forma, qualquer facto com efectiva, potencial ou virtual repercussão, em sede de causalidade, no processo dinâmico que levou à eclosão do evento lesivo.

            10. O acidente é imputável exclusivamente ao sinistrado, sendo que não é defensável uma interpretação que considere beneficiarem os sinistrados não motorizados de uma presunção juris et de jure de culpa mitigada e que, por tal motivo, deva sempre considerar-se que o acidente não foi unicamente devido à sua actuação culposa ainda que se prove exactamente o contrário.[18]

            11. E sabemos que a própria doutrina que vem defendendo uma interpretação actualista das normas que, no Código Civil, regulam a matéria da responsabilidade pelo risco no domínio dos acidentes de viação (em particular, os art.ºs 503º, 505º e 570, do CC), continua a admitir que a responsabilidade objectiva deve ser excluída quando o acidente for imputável unicamente ao próprio lesado ou a terceiro ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, e que, se em caso de dúvida deve prevalecer a concorrência entre risco do veículo e facto do lesado, existindo prova certa e segura do facto da vítima ou de terceiro (ou de força maior) como causa única e exclusiva do acidente, já não haverá lugar ao dito concurso (culpa/risco).[19]

12. Assim, a Ré, na qualidade de seguradora responsável pelo ressarcimento dos danos decorrentes da circulação da viatura Y (... ), não é devedora das reclamadas indemnizações.

13. Procedem, desta forma, as demais “conclusões” da alegação de recurso da Ré, pelo que fica prejudicado e improcede o recurso das intervenientes.


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III. Pelo exposto, decide-se alterar a decisão de facto conforme se indica em II. 4., supra, e revogar a sentença, absolvendo-se a Ré Seguradora do pedido.
Custas na 1ª instância pelos AA. e intervenientes, e as das apelações pelos intervenientes (as intervenientes F (…) e M (…) são responsáveis pelas custas da respectiva apelação).

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06.3.2018


           

Fonte Ramos ( Relator)

Maria João Areias

Alberto Ruço

           


[1] Mas que em razão da “fusão” dita a fls. 27 veio a ser incorporada na “ G... , S. A.” (cf. fls. 27 e 28).
[2] Rectificados alguns lapsos manifestos e sendo que o texto da alegação veio quase completamente desconfigurado…
[3] Rectifica-se lapso manifesto.
[4] Idem.

[5] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 284 e 386 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, págs. 266 e seguinte.
[6]Refere-se no acórdão da RP de 20.3.2001-processo 0120037 (publicado no “site” da dgsi): A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjectiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça.   
[7] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 192 e nota (1) e Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, 82.
[8] Diploma a que respeitam os normativos adiante citados sem menção da origem.
[9] É idêntica a redacção actual, introduzida pela Lei n.º 72/2013, de 03.9.
[10] A lei n.º 72/2013, de 03.9, introduziu algumas alterações, sendo de salientar as seguintes alíneas (do n.º 1): a) À aproximação de passagens assinaladas na faixa de rodagem para a travessia de peões e ou velocípedes; d) Nas zonas de coexistência [na definição do art.º 1º, alínea bb), do Código da Estrada, zona de coexistência é a “zona da via pública especialmente concebida para utilização partilhada por peões e veículos, onde vigoram regras especiais de trânsito e sinalizada como tal”]; e) À aproximação de utilizadores vulneráveis; f) À aproximação de aglomerações de pessoas ou animais.
[11] Na previsão da Lei n.º 72/2013, de 03.9, os condutores automóveis ligeiros de passageiros e mistos, dentro das localidades, não podem exceder a velocidade instantânea de 20 km/h [zona de coexistência - cf. a definição referida na “nota 11”, supra] ou de 50 km/h [outras zonas].
[12] A Lei n.º 72/2013, de 03.9 manteve esta redacção.

[13] A Lei n.º 72/2013 deu diferente redacção ao n.º 4: “Os peões não devem parar na faixa de rodagem ou utilizar os passeios e as bermas de modo a prejudicar ou perturbar o trânsito.”
[14] Vide, entre outros, Oliveira Matos, Código da Estrada Anotado, 1988, Almedina, pág. 55 e Dario Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 3ª edição, Almedina, 1987, págs. 548 e seguintes.
[15] Assim resulta da factualidade provada (cf., sobretudo, II. 1. 16. e 17., supra, e veja-se o que a este respeito foi exposto no despacho do M.º Público reproduzido a fls. 145 verso e seguintes/fls. 151).

[16] Atente-se, de resto, ao aventado pela Mm.ª Juíza a quo: “(…) TAS de que era portador (…) com as inerentes inibições psicomotoras que tal acarreta, não é de afastar uma queda (…)” - cf. fls. 316 e II. 3. d), supra.
[17] Cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 17.5.2012-processo 1272/04.7TBGDM.P1.S1 e 11.7.2013-processo 97/05.7TBPVL.G2.S1, publicados no “site” da dgsi.

[18] Cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 20.01.2009-processo 08A3807 e da RC de 07.02.2012-processo 885/04.1TBLRA.C2, publicados no “site” da dgsi e na CJ, XXXVII, 1, 32, respectivamente.  
[19] Vide Calvão da Silva, RLJ, 134º, pág. 115 e 137º, págs. 58 e seguinte e 62.