Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6/13.0 ZRCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: LENOCÍNIO
INCONSTITUCIONALIDADE
CONCURSO EFECTIVO DE CRIMES
Data do Acordão: 02/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA CENTRAL DE VISEU - J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 30.º E 169.º, N.ºS 1 E 2, DO CP
Sumário: I – Não padece de inconstitucionalidade material a norma constante do artigo 169.º, n.º 1, do CP, na redacção conferida pela Lei n.º 59/2007, de 04-09.

II - A diferença específica entre o lenocínio simples (artigo 169.º, n.º 1, do CP) e o lenocínio agravado (artigo 169.º, n.º 2, do CP) radica na natureza do relacionamento entre quem explora e quem se prostituiu, isto é, na existência ou não da corrupção da livre determinação sexual: havendo livre determinação sexual de quem se prostitui, o lenocínio é simples; não havendo essa liberdade, o lenocínio é agravado.

III – Hodiernamente, o tipo de lenocínio simples tutela uma determinada concepção de vida inconciliável com a aceitação do exercício profissional ou com intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição.

IV – Evidenciando a matéria de facto provada várias resoluções criminosas da arguida, dirigidas ao propósito de lucro com a prostituição, ocorrem tantos crimes de lenocínio quanto as ofendidas envolvidas.

V – Em relação a cada uma das ofendidas que, durante todo o tempo da cedência onerosa, pela arguida, do espaço onde a prostituição era exercida, renovaram a prática dessa actividade, à luz de um juízo baseado nas normas de experiência de vida, a continuidade verificada corresponde a uma unidade de resolução volitiva, verificando-se, deste modo, tão só, um crime de lenocínio.

Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Coimbra



I - Relatório
1. A... , B... e C... , vieram interpor recurso do acórdão proferido no processo comum colectivo nº 6/13.0 ZRCBR da Comarca de Viseu, Instância Central, Secção Criminal-J2, que julgando a pronúncia parcialmente procedente, decidiu por maioria: (transcrição parcial)
“1. Absolve-se a arguida B... da prática de um crime de lenocínio, na forma continuada, e dos dois crimes de auxílio à imigração (permanência) ilegal, previstos e punidos pelos arts. 169º, nº 1, do Código Penal, e 183º, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 04-07, de que vinha pronunciada;
2. Absolve-se a arguida C... da prática do crime de auxílio à imigração (permanência) ilegal, previsto e punido pelo art. 183º, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 04-07, de que vinha pronunciada;
3. Alterando a qualificação jurídica da sua conduta, condena-se a arguida A... , como autora material de 3 (três) crimes de lenocínio, previstos e punidos pelo art. 169º, nº 1, do Código Penal, em 3 (três) penas de 1 (um) anos e 9 (nove) meses de prisão, e, operado o cúmulo jurídico dessas penas parcelares, na pena única de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão.
Ao abrigo do disposto no art. 50º, n.º 1 e 5, do Código Penal, decide-se suspender a execução da pena de prisão aplicada à arguida A... pelo período de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses.
4. Alterando a qualificação jurídica da sua conduta, condena-se a arguida B... :
- Como autora material de 1 (um) crime de lenocínio, previsto e punido pelo art. 169º, nº 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão (ofendida G... );
- Como autora material de 1 (um) crime de lenocínio, previsto e punido pelo art. 169º, nº 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão (ofendida O... );
- Como autora material de 1 (um) crime de lenocínio, previsto e punido pelo art. 169º, nº 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão (ofendida I... );
- Como autora material de 1 (um) crime de lenocínio, previsto e punido pelo art. 169º, nº 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão (ofendida J... );
- Como autora material de 1 (um) crime de lenocínio, previsto e punido pelo art. 169º, nº 1, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão (ofendida H... ).
Operando o cúmulo jurídico dessas penas parcelares, condena-se a arguida B... na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Ao abrigo do disposto nos arts. 50º, n.º 1, 2, 4 e 5, 53º e 54º do Código Penal, decide-se suspender a execução da pena de prisão aplicada à arguida B... pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, acompanhada de submissão a regime de prova, mediante plano individual de readaptação social a elaborar pela D.G.R.S.P no prazo de 30 dias, após prévia audiência da condenada, e que deverá ser submetido a posterior homologação judicial.

5. Alterando a qualificação jurídica da sua conduta, condena-se a arguida C... , como autora material de 1 (um) crime de lenocínio, previsto e punido pelo art. 169º, nº 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão.
Ao abrigo do disposto no art. 50º, n.º 1 e 5, do Código Penal, decide-se suspender a execução da pena de prisão aplicada à arguida C... pelo período de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses.
*
Condena-se ainda as arguidas no pagamento das custas criminais do processo a que a sua atividade deu lugar, fixando-se a taxa de justiça devida por cada uma delas em 5 (cinco) UC – arts. 513º e 514º, nº 1, do C.P.P., e 8º, nº 9, do R.C.P.”
(…)”

*

2. As recorrentes extraíram da respectiva motivação do recurso, as seguintes conclusões:

2.1.      A...

I.          Estamos convictos da inconstitucionalidade da norma do n.º1 do artigo 169.º do Cód. Penal, por violação do disposto nos artigos 9º, alínea b), 13º, nºs 1 e 2, 16º, nº2, 18º, nºs 2 e 3, e 26º, nº1, da Constituição da República Portuguesa.

II.         A declaração da inconstitucionalidade material da norma de incriminação e punição constante do artigo 169º, nº1, do Código Penal, por violação do disposto no artigo 18º, nº2, da Constituição da República Portuguesa, determinará revogação da sentença proferida e a absolvição da recorrente da prática do crime de lenocínio pelo qual foi condenada, em face da recusa de aplicação da norma incriminadora julgada inconstitucional

O que se requer!

III.       Sendo o crime de lenocínio do artº 169º 1 CP, um crime de perigo abstracto, onde não se exige que o bem jurídico tenha sido efectivamente posto em perigo, a sua punição revela-se inconstitucional por violar o art. 18º da Constituição da Republica Portuguesa, nos termos supra expostos. Devendo a ora Recorrente ser absolvida

Caso V. Exas. assim o não entendam:

IV.       No crime de lenocínio, mesmo tratando-se da existência de várias prostitutas, trata-se de um só crime, pois que o bem jurídico protegido é complexo, abrangendo não só o interesse da sociedade em que haja pudor e moralidade sexual e ganho honesto, mas também a personalidade que seja objecto da conduta do agente, pelo que, estará em causa apenas um crime de lenocínio e a Recorrente, a ser condenada, deverá sê-lo pela prática apenas de um crime de lenocínio e não três, nos termos supra expostos.

Caso V. Exas. assim o não entendam:

V.        A pena concretamente aplicada ultrapassa a medida da culpa, sendo aquela manifestamente desproporcional porquanto a culpa demonstrada não suporta a pena aplicada nos termos supra expostos, devendo esta ser reduzida para aquela que V. Exas. entendam devidamente alicerçada e fundamentada na conduta da Recorrente.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em conformidade com o supra alegado e peticionado, ser revogado o douto Acórdão recorrido, proferindo-se acórdão que:

i.          Seja declarada a inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 169.º do Cód. Penal, com os fundamentos expostos em 2. das alegações, recusando-se a sua aplicação no caso concreto;

Revogando-se nessa medida o acórdão recorrido e absolvendo-se a arguida do crime que lhe foi imputado.

Tudo com as legais consequências.

Ou

ii.         Condene a Recorrente pela prática de um crime de lenocínio;

iii.        Condene a Recorrente em pena limitada pela culpa efetivamente demonstrada.

 fazendo V.as Ex.as a costumada JUSTIÇA!”

2.2 B...

“I - Relativamente ao Ponto 2 da matéria de facto provada, nas declarações prestadas para me memória futura da Testemunha/Ofendida G... não se consegue, salvo o devido respeito, provar que neste período a ofendida estaria sem rendimentos e que desenvolveu tal atividade de prostituição porque não tinha trabalho ou condições para se sustentar, até porque a mesma afirmou que tinha rendimentos já que era pensionista e não em momento algum nem de dificuldades financeiras nem falou sobre as motivações que a levaram a prostituir-se.

A testemunha apenas prestou declarações para memória futura, não estando presente para prestar declarações em Audiência de Discussão e Julgamento, logo não se fez prova direta desse facto e os factos provados não permitem demonstrar a carência económica da ofendida.

II - Nunca a ora recorrente incentivou para a prática da prostituição a Testemunha O... , foi a própria ofendida que entrou em contacto com aquela – que investigou e levou a efeito diligencias para obter o seu contacto, e que pretendeu dicar-se a tal actividade de livre e espontânea vontade e conscientemente, apenas recorreu a arguida, aqui recorrente uma vez que não pretendia exercer tal atividade no seu domicílio familiar, considerando que veio mesmo a testemunha a declarar que depois saiu da prostituição (nem um mês completo a exerceu) porque não gostou, logo a testemunha queria mesmo experimentar a atividade, por outro lado a arguida nunca pretendeu tirar vantagem económica da ofendida. Além de que as declarações da testemunha pautaram-se por algumas por algumas contradições:

III- Primeiro, quanto ao pedido do afastamento das arguidas da sala de audiência e em simultâneo afirmar que se tal não fosse concedido, que a presença das arguidas não a inibiria de falar com verdade afirmando até que não tinha qualquer conflito com arguida, ora recorrente, antes pelo contrário tinha muito a agradecer-lhe por o que aquela tinha feito por ela. (refira-se que atestas tais declarações a defensora da arguida B... opôs-se a que as arguidas fossem afastadas, conforme consta na ata, tendo mesmo assim, mesmo violando a lei e oposição da defensora o tribunal ordenado o afastamento das arguidas)

IV - Segundo, quando questionada pela Defensora da arguida recorrente se tinha dado conhecimento à mesma da sua situação económica e dos seus rendimentos, bem como da sua vida privada a referida testemunha afirmou negativamente, entrando em contradição nítida aquando questionada pelo Mmº Juiz sobre o mesmo facto, devendo as declarações prestadas serem desconsideradas relativamente a esta matéria.

V - Segundo as declarações prestadas pela Testemunha I... , também não pode a arguida, ora recorrente aceitar os factos provados pelo Tribunal a quo, pois o montante de 325,00€ era exatamente o valor da Renda mensal que a recorrente pagava por ser “arrendatária” do respetivo apartamento. Como se pode atestar pelas declarações da Ofendida I... supra transcritas e citas apenas declarações para memória futura, prestadas em 22-05-2014.

VI - A testemunha nas suas declarações refere que pretendia o referido apartamento para lá viver/morar e explica que o contrato de arrendamento continuou no nome da arguida recorrente em virtude de a ofendida não ter encontrado fiador para poder alterar o contrato de arrendamento, condição que o senhorio exigia, pelo que a B... fez-lhe o favor de mantar o contrato em seu nome.

VII – A Testemunha J... através das suas declarações prestadas para Memória Futura, em 18-02-2014, esta declarou que veio para Portugal em 1998/1999 para x (...) , mais propriamente para uma Casa v... , sendo a respetiva uma casa de Alterne. Quando vinha a y (...) pernoitava num apartamento diverso da arguida recorrente, pagando uma quantia diária de 15€ e que todos os seus pertences se encontravam no referido apartamento. Apenas pagou a quantia de 300€ à arguida, porque pretendia ficar com apartamento, não era tal montante imposto por ninguém, como a própria testemunha afirmou.

VIII- Relativamente ao período de tempo que supostamente a testemunha permaneceu em Portugal atestam-se contradições nítidas em relação ao período de tempo que esta permaneceu em y (...) , bem como em relação à sua chegada e a sua partida.

IX - Pelas declarações da testemunha, em nosso modesto parecer, não se consegue provar que a mesma se deslocou do Brasil para Portugal por vivência de dificuldades económicas, uma vez a mesma nada refere específica e detalhadamente essa vivência. Também não se pode aferir que a mesma se deslocou diretamente para y (...) para exercer a prostituição, uma vez que a mesma refere ter vindo para Portugal a Primeira vez em 1998/1999 e para x (...) , pois veio para y (...) apenas em Outubro de 2013 e não antes, conforme se atesta pelas declarações da ofendida.

X - Relativamente às testemunhas I... e J... prestaram declarações para memória futura apenas, não estando presentes para prestar declarações em Audiência de Discussão e Julgamento, entendemos nós, salvo o devido respeito, que não ficou provado que as ofendidas se dedicavam à prostituição por vivenciarem dificuldades e carência económicas, não havendo prova direta desse facto e para além do mais que fosse do conhecimento da arguida, ora recorrente, uma vez que a mesma não prestou declarações, baseando-se apenas no facto de apenas lhe trem dado conhecimento.

XI - Não se pode concluir à luz das regras de experiência comum que uma mulher cidadã brasileira prostitua em Portugal exerça actividade de prostituição porque a mesma é economicamente carenciada, esse motivo/fundamento, não é “condicio sine qua non” da prática da prostituição, enquanto atividade profissional.

XII - A fundamentação do ponto 4, relativamente à convicção do tribunal também não é aceite pela ora recorrente por ser contraditório. Neste ponto atesta-se que não foi produzida prova direta que permitisse aferir que as Testemunhas I... e J... se dedicasse à prostituição por vivenciarem dificuldades económicas, no entanto considerou o Tribunal a quo que tal factualidade foi apurada.

XIII - Em nosso modesto parecer, não se encontram verificados indícios de que tal facto seja verdadeiro e real, uma vez que e como referido supra não se pode generalizar tal situação. Não é por ser mulher de nacionalidade brasileira, prostituta que se encare e se faça a extensão de tal conjuntura, a que todas as mulheres que exerçam tal atividade e brasileiras se encontrem em condições económico-financeiras desfavorecidas e que exerçam tal pratica para sobreviverem…

XIV - Ora, nestes termos a arguida recorrente não pode ser julgada por estes dois crimes de Lenocínio, merecendo em nosso modesto parecer a absolvição relativamente aos mesmos, não podendo dar como provado o ponto 2 e ponto 11 da matéria de factos provados.

XV - Relativamente a Ofendida H... vivia no apartamento da arguida, retribuindo com o valor de 150€ mensais. A mesma vivia lá, ora tal quantia não era paga com intenção de receber lá clientes mas sim para ajudar nas despesas, uma vez que a testemunha/ Ofendida morava lá, tendo mantido tal facto na produção de prova em Audiência e Julgamento, assim como declarou que a arguida recorrente não sabia da prática de prostituição.

XVI - Em relação ao ponto 9, a arguida recorrente discorda do mesmo, uma vez que a arguida não prestou declarações sobres os factos que lhe vinham imputados, tendo sido provados tais factos apenas pelas declarações e depoimentos das testemunhas/ofendidas em que na maioria dos casos afirmam que arguida não sabia de tal atividade.

XVII - Similarmente o ponto 10 não se pode considerar provado, uma vez que não se consegue fazer prova através de alguns depoimentos que mesma pretendia tirar proveito económico da situação em causa. Algumas das ofendidas referiram e podemos vislumbrar pelas transcrições supra citadas que as ofendidas davam tal montante umas para viver no apartamento, contribuindo para as despesas do lar; outra que pretendia ficar com o locado mas não tinha fiador para alterar o contrato de arredamento para o seu nome, tendo arguida recorrente ajudado e consentido que o mesmo ficado em nome dela, fazendo um voto de confiança à ofendida supra referida.

XVIII - Em relação à convicção do tribunal, mais concretamente ao vertido no ponto 5, não pode aferir e dar como provado que a arguida sabia de tal prática apenas porque as ofendidas afirmaram nas suas declarações que as mesmas lhe haviam dito, lhe haviam dado conhecimento. Não se fez prova direta desse facto na Audiência de Julgamento, baseando-se o Tribunal a quo apenas nas declarações das testemunhas, algumas delas para memória futura, uma vez que a arguida não prestou declarações sobre os mesmos.

XIX - Atento ao vertido, não pode a arguida ser condenada pelo menos quanto aos crimes atinentes às ofendidas I... e J... , uma vez que não se verifica o facto de aproveitamento da carência económica de outrem, quanto às mesmas.

XX - Nos dias de hoje a prática da prostituição é exercida por pessoas livres e de maior de idade, caindo por terra, atualmente a censura associada à prostituição, pois a exploração que está subjacente à exploração da pessoa prostituída partia do dogma de que as pessoas exerciam a prostituição por estarem em “estado de carência social”, o que atualmente não pode servir de fundamento.

XXI - Versa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-09-2007, que só se pode considerar como crime o comportamento que viola ou ameaça violar o quadro de valores constitucionalmente consagrado, logo o crime “ deve reportar àquele quadro de valores constitucionais, sob pena de inconstitucionalidade material”. Ora o que está em causa no n.º 1 do artigo 169.º CP é a exploração indigna da pessoa humana, fomentando ou favorecendo tal actividade com intenção lucrativa, ou seja, há necessidade de usura ou esquecimento ilegítimo “fundado no comércio do corpo de outrem por parte do agente”, o que nos presentes autos não se verifica.

XXII - O artigo 169/1 CP, também visa proteger o bem jurídico de natureza constitucional, a dignidade da pessoa humana, no entanto embora seja um bem jurídico protegido constitucionalmente esta apresenta um “conteúdo aberto e de aplicação relativizante, jamais podendo ser utilizado para impor as nossas convicções”, abalando conceções contrárias às nossas. O artigo 169/1 em nosso modesto parecer aplica-se às situações em que há violação da dignidade da pessoa humana quando se viola à liberdade de autodeterminação sexual da pessoa, pelos variados motivos, o que não aconteceu nos presentes autos. 

XXIII - Não há, salvo o devido respeito, violação da dignidade sexual ou da pessoa humana, quando, onde ocorra a mais ampla expressão de liberdade individual e sexual da prostituta, quando a mesma pode livremente dispor do seu corpo, fazendo dele comercio. A motivação lucrativa associada à prostituição é aqui irrelevante justamente porque a pessoa é livre de dispor da sua liberdade de determinação sexual como entender.

XXIV - O bem, jurídico aqui em causa é visado pela norma de autonomia e liberdade sexual, logo as condutas previstas no tipo legal de crime em análise não traduzem em si “perigosidade típica de lesão de tal bem jurídico”,

 Assim a incriminação e punição prevista no artigo 169/1 do CP é inconstitucional por violação do artigo 18/2 da CRP, devendo a arguida ser absolvida da prática de tais crimes !

XXV - Não podendo a arguida recorrente ter sido condenada pelo tipo legal de crime de que vem acusada.

Ainda que supletivamente, apenas realçar e em concordância com os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra um de 10/07/2013 e outro 11/11/2015, o agente só comete apenas um crime de lenocínio mesmo que na sua execução favoreça a prostituição de várias mulheres, isto se o Tribunal ad quem, considerar que tal pratica efetivamente sucedeu, repetia-se aplicar-se-á apenas SUPLETIVAMENTE.

Nestes termos arguida apenas poderia ser punida pela prática de um crime de lenocínio nos termos do artigo 169.º/1 do CP.

Termos em que, deve o presente recurso merecer provimento em toda a sua extensão, consequentemente, dever-se proferido acórdão e alterado o Acórdão recorrido em conformidade, absolvendo-se a arguida dos crimes que lhe foram imputados com as legais consequências.

Assim decidindo, farão V/ Exas

A Costumada Justiça!”

 

2.3 C...

1.ª-Nos presentes autos, a arguida C... foi condenada pela prática, em autoria material, de um crime de lenocínio p. e p. pelo artigo 169.º, n.º1 do Cód. Penal, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano e 4 meses;

2.ª – Do ponto de vista factual, a decisão condenatória está assente nos factos considerados como “provados” vertidos nos pontos 3, 4 e 9 a 12 na parte em que os mesmos dizem respeito à arguida C... ;

3.ª – Porém, na perspectiva de defesa, nem o raciocínio lógico exposto pelo Tribunal recorrido na motivação do acórdão, nem as provas por ele valoradas ( que no essencial se reconduz à declarações da própria arguida) consentem que se dêem como provados os  factos vertidos nos pontos  4 e 9 a 12 na parte em que os mesmos dizem respeito à arguida C... ;

4.ª – Com efeito, pelas razões expostas supra em 1.2., e que aqui se dão por reproduzidas, a simples análise do texto da decisão recorrida, na parte em que o Tribunal expõe o raciocínio lógico que esteve subjacente à valoração da única prova por ele valorada (o depoimento da própria arguida) revela um erro de julgamento de que o Tribunal pode e deve conhecer nos termos e com fundamento no disposto no artigo 410.º, n.º2, al. c) do C.P.P.;

5.ª- Por outro lado, o erro de julgamento do Tribunal recorrido também é perceptível  em face das concretas provas produzidas em julgamento ( artigo 412.º, n.º3, als. a) e b) e n.º4 do C.P.P.), designadamente do depoimento prestado pela própria arguida na sessão de julgamento do dia 03.05.2017, no período compreendida entre as 10 horas e 15 minutos e as 11 horas e 09 minutos, e registado na aplicação CITIUS, mas também do depoimento da testemunha G... , cuja transcrição está junta aos autos;

6.ª- O acórdão que condenou a arguida C... tem anexo um voto de vencido de um dos membros do colectivo, que se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade da referida norma incriminadora do n.º1 do artigo 169.º do Cód. Penal.

7.ª- O referido voto de vencido, seguindo de perto a exposição do recente acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08.02.2017, proferido no Proc. n.º 404/13.9 TAFLG.P1, conclui que a referida norma viola o principio constitucional do direito penal do “bem jurídico” e  da necessidade da pena.

8.ª- Segundo aquele acórdão, e o voto de vencido que o segue de perto,  sendo certo que com a referida norma incriminadora  o legislador pretendeu evitar o risco elevado e inaceitável de exploração por outrem dos actos de prostituição da prostituta, protegendo assim bens jurídicos pessoais relacionados com a autonomia e a liberdade, tal preocupação falhará na incriminação do lenocínio simples, por mitigação, hoje em dia, da censura social associada à prostituição voluntariamente praticada por alguém livre e maior de idade;

9.ª- Ainda segundo o voto de vencido, não será a circunstancia de as prostitutas, no caso em apreço, serem brasileiras, se dedicarem á prostituição ao preço de 20 euros cada acto, que permitirá excluir sem preconceito nem moralismo,  outras possíveis motivações sobre a situação económica e as razões da prostituição daquelas, menos ainda que não tivessem outro trabalho nem outro rendimento para se sustentar; e por consequência, nada nos autos autoriza a concluir que, pelo facto de se prostituírem com o hipotético  auxilio de qualquer uma das arguidas, existem uma exploração por elas da situação de carência económica das prostitutas.

10.ª- Raciocínio este que temos vindo a acompanhar  por concordarmos com ele em absoluto. 

11.ª- Ao longo da evolução histórica do preceito incriminador exposta nas alegações verifica-se que  o legislador, na parte em que a sua vontade é cognoscível, entendeu suprimir tal expressão com o objetivo de alargar a incriminação no crime em questão, deixando de exigir aquele elemento do tipo: “explorando situações de abandono ou de necessidade económica”– cfr. Proposta de Lei nº160/VII (publicada no Diário da Assembleia da República, II Série - A, nº 37, 3ª sessão legislativa , 1997-1998) que, após apreciação parlamentar, resultou na Lei nº65/98, de 02 de Setembro.

12.ª- Porém, na exposição de motivos de tal proposta, declarou o então Ministro da Justiça (José Vera Jardim) que especial atenção deveriam merecer por parte do Estado a proteção de certo tipo de vítimas, particularmente indefesas face às agressões, as mais diversas de que podem ser objeto e, assim, no que respeitava à parte especial, as alterações propostas visavam basicamente: o reforço da proteção das vítimas contra crimes violentos dirigidos contra a vida e a integridade física das pessoas; o reforço da proteção das vítimas particularmente indefesas em razão da idade, da doença ou da gravidez; o reforço da proteção das vítimas de crimes de maus tratos no seio da família; a intensificação do combate aos crimes de exploração sexual de pessoas objeto de prostituição e de tráfico. Nos crimes de tráfico de pessoas e de lenocínio alarga-se a incriminação, retirando-se das descrições típicas a exigência de exploração de situações de abandono ou de necessidade. Na verdade, bastará, nestes casos, o constrangimento à prostituição ou à atividade sexual de relevo em país estrangeiro (através de violência, ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta) ou a exploração sexual de outra pessoa (desenvolvida profissionalmente ou com intenção lucrativa) para que as condutas já possuam a indispensável relevância ético-penal e para que, como tal, devam ser punidas – cfr. Diário da Assembleia da República, I- Série, nº48 de 13 de Março de 1998 (3ª sessão legislativa – 1997-1998), pag.17).

13.ª- No processo de definição das condutas penalmente puníveis existe uma vinculação do legislador ordinário ao princípio constitucional do direito penal do bem jurídico.

14.ª- Não se discute, como o não faz o legislador ordinário, a legitimidade de uma “(…) comunidade politicamente organizada elevar determinados valores à categoria de bens jurídico-penais (…). Mas “(…) nem todos os interesses coletivos são penalmente tutelados, nem todas as condutas socialmente danosas são criminalmente sancionadas. É por isso que fundadamente se fala do carácter necessariamente fragmentário do direito penal (…) “ – Código Penal, Introdução, ponto 18.

15.ª- Quer o exposto significar que é de todo impensável poder conceber a legitimação material do direito penal na vontade exclusiva do legislador (perspetiva positivista- legalista). A vinculação jurídica da legislação, para além da sua positivação perante a material e a processual normatividade constitucional, obedece, transpositivamente, como interpretação e concretização do princípio axiológico-normativo do direito enquanto direito (cfr. A. Castanheira Neves, Metodologia Jurídica, BFD, Coimbra Editora, pág.17 a 18).

16.ª- Qualquer limitação feita por lei no âmbito específico das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias deve ser “(…) adequada (apropriada), necessária (exigível) e proporcional (com justa medida) (…)” – cit. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, pág.457).

17.ª- A problemática ora apontada diz respeito ao designado direito penal do bem jurídico como princípio constitucional. O bem jurídico (“expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso” : cit. Figueiredo Dias, DP, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, pág.114) será político-criminalmente tutelável quando e onde encontre reflexo “(…) num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social e que, deste modo, se pode afirmar que “preexiste” ao ordenamento jurídico-penal(…)” – autor e obra cit., pág. 120).

18.ª- Será, em primeiro lugar, na consciência ético-social de uma comunidade temporal e espacialmente localizada que se irá procurar os valores por ela considerados como essenciais ou indispensáveis para a realização pessoal de cada um dos seus membros (a designada dimensão axiológica fundamental do bem jurídico-penal também entendida por dignidade penal do bem jurídico).

19.ª- Após, será necessário que o recurso às penas criminais seja considerado indispensável e adequado à proteção daqueles bens jurídicos fundamentais (a designada dimensão pragmática e entendida como necessidade penal) numa dupla vertente:

1ª- qualquer outro tipo de sanção jurídica (do direito penal secundário, administrativo ou mesmo civil) seria ineficaz ou insuficiente para uma proteção (maior ou menor) do bem jurídico;

2ª- mesmo na hipótese de ineficácia de outro tipo de sanção jurídica não penal, a sanção criminal revela-se absolutamente ineficaz para tutelar o bem jurídico.

20.ª- Tal dimensão encontra o seu fundamento no princípio da subsidiariedade do direito penal, princípio da intervenção mínima do direito penal, princípio político-criminal da pena como ultima ratio da política social e da política jurídica.

21.ª- A materialização do referido critério ético-social terá de ser encontrada na Constituição da República Portuguesa, expressão jurídica fundamental da conceção ético-social da comunidade em relação aos princípios estruturantes do sistema social. A mesma expressa o conceito material de crime (a definição do bem jurídico-penal) e o critério material de criminalização das condutas suscetíveis de serem objeto de decisão legislativa ordinária nesse sentido.

22.ª- O artigo 1º da Constituição da República Portuguesa desenha o quadro referencial (critério jurídico-constitucional que vincula o legislador) para a definição dos bens jurídico-penais: os direitos inerentes à dignidade da pessoa humana e os deveres essenciais à funcionalidade e justiça do sistema social.

23.ª- Por outro lado, os artigos 17º e 18º, nº2, da Constituição da República Portuguesa, consagram os pressupostos legais de qualificação dos bens como jurídico-penais.

24.ª- Por força do artigo 17º (“O regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga”) o regime do artigo 18º, nº2 (“A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos) aplica-se aos direitos-deveres pessoais (protegidos pelo direito penal primário, abarcado globalmente no Código Penal) e aos direito-deveres sociais, previstos no titulo III da 1ª parte e na 2º parte da CRP (protegidos pelo direito penal secundário).

25.ª- É exatamente este artigo 18º, nº2, da Constituição da República Portuguesa que constitui o critério jurídico-constitucional da definição material do bem jurídico-penal que vincula o legislador ordinário consagrando os pressupostos:

1.º da dignidade penal do bem jurídico (condicionando a restrição de direitos à salvaguarda de outros)

2.º da necessidade penal (condicionando tal restrição à sua necessidade para a referida salvaguarda) em três dimensões:

a) a inexistência ou insuficiência de outras reações sociais para uma proteção eficaz do bem jurídicos com dignidade penal;

b) a adequação da sanção criminal a uma tutela relativamente eficaz do bem;

c) a proporcionalidade entre a gravidade da sanção criminal e a relevância pessoal e/ou social dos bens jurídicos protegidos ( e lesados ou postos em perigo).

26.ª- Será, por isso, inconstitucional a incriminação, de acordo com a perspetiva que expomos, por decisão do legislador ordinário, de um comportamento do qual se não possa com razoável segurança afirmar-se que se destina a proteger um bem jurídico-penal (neste sentido Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, pág.126).

27.ª- A lei penal, naturalmente restritiva de direitos “(…) poderá intervir apenas para tutelar (e limitando-se ao necessário para tal tutela) outros valores com relevo constitucional (…)” – cit. M. Conceição Cunha, Constituição e Crime, UCP, 1995, pág.200).

28.ª- De acordo com o ultimo acórdão conhecido do Tribunal Constitucional nesta matéria (nº641/2016), não havendo dever constitucional de incriminar a conduta prevista no artigo 169º, nº1, do Código Penal, tal incriminação foi uma opção de política criminal justificada pela normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência.

29.ª- Não obstante a norma incriminatória não exigir como elemento do tipo uma concreta relação de exploração, a prevenção desta constitui a motivação fundamental da incriminação: o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprime, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desproteção social.

30.ª- Concluindo, entende aquele tribunal que no âmbito de uma opção justificada de política criminal permanece válido o entendimento de que “a ofensividade que legitima a intervenção penal assenta numa perspetiva fundada de que as situações de prostituição, relativamente às quais existe promoção e aproveitamento económico por terceiros, comportam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social, interferindo – colocando em perigo – a autonomia e liberdade de agente que se prostitui”.

31.ª- O Tribunal Constitucional, de acordo com esta interpretação, tentou tornar compreensível a eliminação do inciso que claramente enquadrava o lenocínio como ofensa à liberdade sexual da vítima/prostituta(o) e consequente criminalização da conduta de aproveitamento económico da prostituição enquanto comportamento que põe em perigo a autonomia e liberdade do agente que se prostitui, partindo de duas premissas justificadoras de um tipo legal de crime de perigo abstrato:

- a primeira, de que as situações de prostituição estão associadas a carências socias elevadas:

 - a segunda, que qualquer comportamento de fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição comporta uma exploração da necessidade económica ou social do agente que se prostitui.

32.ª- Não podemos deixar de equacionar que o objetivo querido pelo legislador ordinário através da eliminação do referido inciso (“exploração da situação de abandono ou de necessidade económica”) foi o alargamento do tipo legal de crime a todas as situações de aproveitamento económico por terceiro da prostituição. E também sabemos o que o motivou no plano estrito da política criminal. Com efeito, a partir do início da década de 90 do século passado, assistiu-se a um exponencial crescimento de imigração sexual oriunda do Brasil e, em fatia menor, da Europa de Leste, que revolucionou a atividade da prostituição neste país e provocou um sensível abalo do sistema de organização social e familiar (cfr., quanto a este aspeto, que acompanharemos parcialmente infra, João Peixoto, Tráfico, contrabando e imigração irregular - Os novos contornos da imigração brasileira em Portugal, Sociologia, Problemas e Práticas, n.º 53, 2007, pp. 71-90).

33.ª- Foi no clima de histeria em relação a tal fluxo migratório (entre o mesmo se incluindo as verdadeiras situações de tráfico de mulheres para exploração sexual) que surgiu a alteração legislativa que visou, essencialmente, perseguir o negócio do sexo, isto é, os bordéis, casas de massagens (neste sentido, Mouraz Lopes, Os Crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual no Código Penal, 4ª edição, Coimbra Editora, pág.86) como finalidade única de política criminal.

34.ª- Porém, se dúvidas persistissem na localização da preocupação do legislador ordinário, as mesmas seriam dissipadas pela natureza acrítica do poder legislativo, executivo e, sobretudo, judicial, em relação à mais visível forma continuada e maciça de lenocínio simples praticado neste país há cerca de 20 anos: o fomento ou facilitação do exercício da prostituição através de anúncios (oferecendo serviços sexuais, genéricos ou até específicos, remunerados) publicados na imprensa escrita que os grupos empresariais detentores de jornais e revistas profissionalmente exploram. Não há notícia da existência, sequer, de qualquer perseguição penal aos agentes de tal comportamento, provavelmente por se entender que a(o) prostituta(o) que recorre ao pagamento de um meio de tornar pública a oferta dos seus serviços está a exercer um direito no âmbito da sua liberdade sexual, não merecendo censura o comportamento daquele que exerce profissionalmente a atividade de publicitar o exercício por outra pessoa da prostituição, assim a fomentando e facilitando.

35.º- O legislador ordinário criou (por transformação), nos termos que o Tribunal Constitucional sustentou (apesar da sua mais recente divisão) um tipo legal de crime de perigo abstracto. Nos termos atuais não se exige uma lesão efetiva do bem jurídico (aparentemente a liberdade/autonomia sexual da(o) prostituta(o)) mas tão só a colocação em perigo desse bem jurídico, nem sequer sendo necessário que esse bem tenha sido efetivamente posto em perigo uma vez que este não faz parte do tipo mas, tão só, da motivação da proibição.

36.ª- Por força desta conceção, a criminalização de condutas relativas a crimes em que o perigo constitui a motivação da proibição deve visar a proteção de bens jurídicos identificáveis e de grande importância. Para além disso, necessita de uma especial fundamentação, desde logo do ponto de vista criminológico, para que se possa ter por materialmente justificada, à luz da constituição, e sem violação do art.º 18º, nº 2, a antecipação da tutela penal do bem jurídico fundamental em causa.

37.ª- E isso não se nos afigura sustentável. Considerando que o bem jurídico visado é a autonomia e liberdade da pessoa que se prostitui (ou especificamente a liberdade sexual), não vemos como as condutas descritas no tipo-de-ilícito em causa traduzam em si uma perigosidade típica de lesão de tal bem jurídico. Dito de outra forma, não se pode presumir, de forma categórica e inilidível, que quem fomente, favoreça ou facilite a prostituição, ao fazê-lo, pura e simplesmente, põe em risco a liberdade sexual de quem se prostitui (as presunções operadas pelo legislador ordinário, nos termos explicados pelo Tribunal Constitucional, assentam em estudos de natureza acientífica, ligados à área dos conhecimentos sociais e empíricos, carecendo de demonstração metódica, organizada e racionalmente interpretada a associação da prostituição a situações de carências socias elevadas e que qualquer comportamento de fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição comporta uma exploração da necessidade económica ou social do agente que se prostitui.

38.ª- E sejamos claros: várias investigações demonstram que à exceção de redes de tráfico – uma outra realidade, de resto obscena – o perfil atual da prostituição é caracterizado pela escolha.

39.ª- Mesmo havendo fatores estruturais mais fortes nuns casos do que noutros, há uma grande margem de escolha, cujas razões são múltiplas, podendo uma delas ser, pura e simplesmente, ganhar dinheiro mais rapidamente.

40.ª- É também um mito – sobretudo dirigido às mulheres – a ideia de que as prostitutas e os prostitutos são seres humanos encerrados num estigma, amorais, sem vida privada.

41.ª- Não é verdade. Têm relações como quaisquer outras pessoas, têm tanta propensão para a monogamia como quaisquer outras pessoas, não valendo aqui a piada de isso não ser por natureza possível, precisamente porque o sexo com os seus companheiros faz parte da vida amorosa e o resto, goste-se ou não se goste, é, de facto, trabalho.

42.ª- De resto, parece-nos não fazer sentido retirar do Código Penal comportamentos, como a prostituição (ou o consumo de drogas) e ficar com uma ordem jurídica esquizofrénica em que vender é crime, mas snifar não e em que ser proxeneta é crime e ser prostituta não é nada, nem lícito, nem ilícito.

43.ª- Salvo melhor opinião, a generalizada maioria  das pessoas esclarecidas não pode deixar de pensar que  seria mais coerente os trabalhadores do sexo terem um contrato de trabalho comum, com descontos, com impostos, com acesso a coisas da vida como um crédito para a habitação. Sendo esta melhor forma de  minorar as agressões por que esta gente passa numa zona a que o Direito vira as costas e deixa andar.

44.ª- De resto, não deixa de ser revelador do acerto do que se acaba de dizer o facto de no dia  23.03.2017, ter decorrido  na cidade do Porto uma reunião da Comissão Nacional do Partido Socialista (órgão máximo do partido entre congressos), onde foi aprovada uma moção sectorial defendendo a regulamentação das condições que devem ser proporcionadas para o exercício legal a prostituição, que deverá ser levada em breve á discussão parlamentar.

45.ª- Mas mesmo que se entenda que a motivação que determinou a proibição contida no n.º1 do artigo 169.º do Cód. Penal é legítima, importaria demonstrar o requisito da necessidade penal (nunca abordado em sede de apreciação constitucional) da incriminação na primeira das vertentes supra adotadas: a inexistência ou insuficiência de outras reações sociais para uma proteção eficaz do bem jurídico com dignidade penal.

46.º- Cremos, seguramente, nesta matéria, que o bem jurídico em causa seria eficazmente acautelado com uma tutela contraordenacional mínima em sede de regulação administrativa da atividade.

47.º- Por tudo quanto deixamos dito, estamos convictos da inconstitucionalidade da norma do n.º1 do artigo 169.º do Cód. Penal, por violação do disposto nos artigos 9º, alínea b), 13º, nºs 1 e 2, 16º, nº2, 18º, nºs 2 e 3, e 26º, nº1, da Constituição da República Portuguesa.

 48.ª- A declaração da inconstitucionalidade material da norma de incriminação e punição constante do artigo 169º, nº1, do Código Penal, por violação do disposto no artigo 18º, nº2, da Constituição da República Portuguesa, determinará revogação da sentença proferida e a absolvição da recorrente da prática do crime de lenocínio pelo qual foi condenada, em face da recusa de aplicação da norma incriminadora julgada inconstitucional

             O que se requer!

            Assim, tudo visto e ponderado, de facto e de direito, como sempre douto suprimento de V.ªs Ex.ªs requer-se que o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência:

a)         Seja alterada a decisão da matéria de facto, nos termos pugnados em  1.2 e 1.3. das alegações; e/ou;

b)         Seja declarada a inconstitucionalidade da norma do n.º1 do artigo 169.º do Cód. Penal, com os fundamentos expostos em 2. das alegações, recusando-se a sua aplicação no caso concreto;

Revogando-se nessa medida o acórdão recorrido e absolvendo-se a arguida do crime que lhe foi imputado.

Tudo com as legais consequências.”

*

4. O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta aos referidos recursos, concluindo:

4.1 - Resposta ao recurso interposto por A...

1. “(…) sem prejuízo da descriminalização deste tipo de condutas poder ser equacionada futuramente em termos de opções de política criminal, facto é que no presente, a redacção do art. 169º, nº1 do Código Penal surte constitucionalmente conformada nos termos supra expostos pela jurisprudência constante do Tribunal Constitucional.

2. “(…)No nosso ordenamento jurídico é controversa, na doutrina e na jurisprudência, a questão de saber se o agente comete só um crime de lenocínio quando são várias a vítimas de tal actividade ou se, pelo contrário, comete tantos crimes quantas as pessoas cuja prostituição fomentar, favorecer ou facilitar.

Na nossa perspectiva não merece censura a decisão tomada no acórdão recorrido no sentido de considerar que existem tantos crimes quantas as mulheres cuja prostituição o agente explora.

Na verdade, na esteira do supra referido no ponto 1 da presente resposta, verifica-se que o bem jurídico protegido pela incriminação do art. 169º, nº1 do Código Penal é a autonomia e liberdade do agente que se prostitui, bem jurídico este eminentemente pessoal pelo que, assim sendo, haverá tantos crimes de lenocínio quantas as pessoas cuja prostituição, o agente fomentar, favorecer ou facilitar.

(…)”

3 - a medida das penas, parcelares e única, de prisão aplicadas à arguida recorrente pela prática dos sobreditos crimes, não merecem, a nosso ver e salvo o devido respeito por opinião contrária, qualquer censura, mostrando-se adequadas à gravidade dos factos e à culpa da arguida, sendo que, para além do mais, qualquer pena fixada abaixo de tal limite poria em causa de forma irremediável a crença da comunidade na validade das normas jurídicas violadas e por essa via dos sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico penais.

Pelo exposto, deverá o recurso da arguida improceder também nesta parte.

Nestes termos, e por tudo o exposto, o recurso interposto pela arguida A... não merece provimento devendo improceder.

V. Exªs, porém, e como sempre, farão justiça.”

4.2 - Da resposta ao recurso interposto por B...

1… “(…) O recurso da arguida em matéria de facto no que concerne à factualidade dada como provada relativamente a si e à testemunha O... , omite, por completo, quer na motivação, quer nas conclusões, quais as concretas passagens, ou seja, quais os excertos das declarações e depoimentos em que se funda a impugnação, assim violando o consignado no art 412º, nºs 3, al. b) e 4 do Código de Processo Penal. … Destarte, a consequência para tal incumprimento, verificando-se o mesmo, quer nas conclusões, quer na motivação do recurso apresentado, será, tal como decorre da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre esta matéria, o não conhecimento do recurso sobre tal matéria de facto. Deste modo, não deverá conhecer-se o recurso da arguida sobre a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido relativamente à ofendida O... , devendo tal matéria constante do acórdão recorrido dar-se por assente.

Relativamente ao recurso da arguida em matéria de facto respeitante à testemunha G... … os extractos do depoimento da testemunha indicados a fls. 1792 dos autos,… ao contrário do que a arguida refere, estes extractos dos depoimentos desta testemunha em nada infirmam a factualidade dada como provada no acórdão recorrido.

Relativamente ao recurso da arguida em matéria de facto respeitante à testemunha I... … As declarações desta testemunha quando disse que pagava a renda daquele apartamento não à arguida, mas à senhoria desta, e que a arguida B... não sabia que aquela se dedicava ali à prostituição, não têm qualquer credibilidade e são desmentidas pela própria testemunha neste mesmo depoimento, quando confrontada com declarações por si anteriormente prestadas no processo, tendo então a mesma confessado que contou à arguida B... que se prostituía naquele apartamento, apenas uma semana após começar a habitar o dito apartamento.

Relativamente ao recurso da arguida em matéria de facto respeitante à testemunha J... … Os excertos das declarações desta testemunha, indicados na motivação do recurso da arguida (e outra prova não indica aquela para sustentar o seu recurso em matéria de facto nesta parte), não infirmam os factos dados como provados relativamente a esta matéria no acórdão recorrido… não podemos deixar de acompanhar, por inteiro, a supra mencionada fundamentação de facto exposta pelo Tribunal a quo.

2… sem prejuízo da descriminalização deste tipo de condutas poder ser equacionada futuramente em termos de opções de política criminal, facto é que no presente, a redacção do art. 169º, nº1 do Código Penal surte constitucionalmente conformada nos termos supra expostos pela jurisprudência constante do Tribunal Constitucional.

            Pelo exposto, deverá o recurso da arguida improceder também nesta parte.

3… na esteira do supra referido no ponto 2 da presente resposta, verifica-se que o bem jurídico protegido pela incriminação do art. 169º, nº1 do Código Penal é a autonomia e liberdade do agente que se prostitui, bem jurídico este eminentemente pessoal pelo que, assim sendo, haverá tantos crimes de lenocínio quantas as pessoas cuja prostituição, o agente fomentar, favorecer ou facilitar… Assim sendo, não merece censura igualmente nesta parte, o acórdão recorrido.

Nestes termos, e por tudo o exposto, o recurso interposto pela arguida B... não merece provimento devendo improceder.

V. Exªs, porém, e como sempre, farão Justiça.”

4.3 - Da resposta ao recurso interposto por C...

1… deverão julgar-se como não verificados no douto acórdão recorrido os vícios elencados no art. 410º, nº2 do Código de Processo Penal.         

2…  a arguida limita-se a indicar as suas próprias declarações e o depoimento da testemunha G... , como aquelas provas que impunham decisão diversa da recorrida em matéria de facto… a arguida, não cumpre, nem nas conclusões, nem na motivação do recurso, com este dever de indicar os excertos das declarações (ou seja as “passagens” a que alude a lei) da arguida e do depoimento da testemunha G... que, na sua perspectiva, impõem decisão diversa da recorrida em matéria de facto. Na verdade, a arguida limita-se a remeter in totum para aquelas declarações e depoimento…a remissão genérica para as ditas declarações e depoimento, sem especificar qual o conteúdo específico do mesmo por referência ao consignado na ata, não cumpre com o dever de especificação a que se alude na sobredita al. b) do nº 3 do art. 412º do Código de Processo Penal.

Para mais, não basta esta indicação precisa do conteúdo do depoimento, é ainda necessário que o recorrente exponha o motivo pelo qual entende que aquele(s) segmento(s) desse(s) depoimento(s) impõe(m) decisão diversa daquela proferida, o que neste caso também não foi cumprido pelo arguida (nem nas conclusões – como se impunha - nem sequer na motivação do recurso por si apresentado).

Destarte, a consequência para tal incumprimento, verificando-se o mesmo, quer nas conclusões, quer na motivação do recurso apresentado, será, tal como decorre da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre esta matéria, o não conhecimento do recurso sobre tal matéria de facto.

Deste modo, não deverá conhecer-se o recurso da arguida C... sobre a matéria de facto, devendo tal matéria constante do acórdão recorrido dar-se por assente.

Sem prescindir, dir-se-á:

A transcrição do depoimento da testemunha G... na motivação do recurso apresentado pela arguida, em nada infirma os factos dados como provados, antes pelo contrário, apenas confirma a corrobora os mesmos, pois que aí esta testemunha acabou por dizer que efectivamente disse à arguida C... que se prostituía naquele apartamento, assim deitando por terra a versão da arguida de que nunca soube deste facto…

Por tudo o exposto, deverá o recurso da arguida improceder nesta parte.

3… sem prejuízo da descriminalização deste tipo de condutas poder ser equacionada futuramente em termos de opções de política criminal, facto é que no presente, a redacção do art. 169º, nº1 do Código Penal surte constitucionalmente conformada nos termos supra expostos pela jurisprudência constante do Tribunal Constitucional.

Pelo exposto, deverá o recurso da arguida improceder nesta parte.

Nestes termos, e por tudo o exposto, o recurso interposto pela arguida C... não merece provimento devendo improceder.”


*

5 . Na Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, pugnando também pelo não provimento dos recursos.


6. A arguida C... respondeu ao parecer, mantendo os fundamentos elencados nos respectivos fundamentos do recurso - cfr fls 2038.


7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto dos recursos

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. Consequentemente as conclusões constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelas recorrentes, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

1.1 Do recurso interposto pela arguida A... :

- Da inconstitucionalidade da norma do artigo 169.º, n.º 1 do Cód. Penal;

- A conduta integra apenas a prática de um crime de lenocínio;

- Medida concreta da pena - excessiva.

1.2 Do recurso interposto pela arguida B...

- Erro de julgamento - impugnação da matéria de facto constante dos pontos pontos 2, 9, 10, 11;

- Da inconstitucionalidade da norma do artigo 169.º, n.º 1 do Cód. Penal;

- Da prática de um único crime de lenocínio.

1.3 Do recurso interposto pela arguida C...

- Erro de julgamento - impugnação da matéria de facto provada constante dos pontos 4 e 9 a 12;

- Do vício de Erro notório na apreciação da prova;

- Da inconstitucionalidade da norma do artigo 169.º, n.º 1 do Cód. Penal;

2. O acórdão recorrido

2.1. Factos Provados
“A - Discutida a causa, provaram-se os seguintes factos:
Arguida B...
 1. No dia 27 de dezembro de 2004, a arguida B... , por contrato escrito, tomou de arrendamento a fração autónoma “Código”, correspondente ao .... do lote (...) da (...) , nesta cidade de y (...) , propriedade da testemunha N... , pagando pelo mesmo a renda mensal de € 325, pelo período de 5 anos;
2. Em data que não foi possível apurar em concreto, mas posterior ao início desse arrendamento, a arguida B... , com o intuito de obter dinheiro com a cedência dos quartos desse apartamento por si arrendado e onde vivia, acordou com cada uma das ofendidas adiante referidas que as autorizava a receber e manter nesses quartos relações sexuais, nomeadamente de cópula, a troco de dinheiro, com os respetivos clientes, pagando-lhe elas determinada contrapartida em dinheiro, a saber:
- G... , cidadã brasileira, que lhe pagaria a quantia de € 120 por semana, o que aconteceu no primeiro mês, tendo posteriormente acordado o pagamento da quantia de € 10 por cada cliente que ali recebesse para manter relações sexuais, o que aquela fazia em média com 6 a 8 clientes diários, desde outubro de 2011 até maio de 2012. Durante o referido período de tempo, a ofendida dedicou-se à prostituição por se encontrar sem outro trabalho nem rendimentos para se sustentar, circunstância e motivação que eram do conhecimento da referida arguida;
- O... , cidadã portuguesa, que lhe pagaria à arguida, a qual conhecia por “ OO... ”, a quantia de € 10 por cada cliente que ali recebesse para manter relações sexuais, o que fez em média com 5 a 6 clientes por dia, dois a três dias por semana, durante o total de um mês e meio, em período que não foi possível precisar do ano de 2012. Durante o referido período de tempo, a ofendida dedicou-se à prostituição por se encontrar, após separação conjugal, em situação de desespero sem outro trabalho nem rendimentos para se sustentar e pagar a renda da casa que habitava, circunstância e motivação que eram do conhecimento da referida arguida. Para divulgar o serviço sexual da ofendida O... , nesse período a arguida B... contratava e pagava anúncios no jornal que os publicitavam;
- I... , cidadã brasileira, que lhe pagaria a quantia de € 325 por mês por ocupar o referido apartamento para ali viver e receber os clientes com quem mantinha relações sexuais, o que fez desde o início de fevereiro de 2014 até 22 de maio de 2014. Nesse período, a I... , que se deslocou do Brasil para Portugal por vivenciar dificuldades e carências económico-financeiras, por não ter outro trabalho nem outros rendimentos para se sustentar, dedicou-se à prostituição, cobrando a quantia de € 20 a cada cliente com que mantinha relações de sexo oral e vaginal no referido apartamento, o que era do conhecimento da arguida B... (por aquela lhe ter contado);
- J... , cidadã brasileira, que pagaria à arguida, a qual conhecia por “ OO... ”, a quantia de € 300 por mês por ali receber os clientes com quem mantinha relações sexuais, o que fez durante pelo menos um mês até 16 de outubro de 2013. Nesse período, a J... , que se deslocou do Brasil para Portugal por vivenciar dificuldades e carências económico-financeiras, por não ter outro trabalho nem outros rendimentos para se sustentar, dedicou-se à prostituição, cobrando a quantia de pelo menos € 20 a cada cliente com que mantinha relações de sexo oral, vaginal e anal no referido apartamento (entre 2 a 6 por dia), o que era do conhecimento da arguida B... (por aquela lhe ter contado);
- H... , cidadã brasileira, que lhe pagaria a quantia de € 150 por mês por ali receber os clientes com quem mantinha relações sexuais, o que fez quase diariamente desde data que não foi possível precisar do ano de 2009 até data que não foi possível apurar do mês de agosto de 2012. Durante o referido período de tempo, a ofendida dedicou-se à prostituição por não ter outro trabalho nem outros rendimentos para se sustentar a si e ao seu filho menor de idade, bem assim para pagar o crédito à habitação de uma casa em Lisboa, circunstância e motivação que eram do conhecimento da referida arguida;

Arguida C...
3. No dia 2 de fevereiro de 2009, a arguida C... , por contrato escrito, tomou de arrendamento, pelo prazo de 5 anos, a fração autónoma “B”, correspondente ao .... do lote (...) da (...) , nesta cidade, propriedade da testemunha M..., pela renda mensal de € 325;
4. Em data que em concreto não foi possível apurar, mas posterior ao início desse arrendamento, a arguida C... , com o intuito de obter dinheiro com a cedência dos quartos desse apartamento por si arrendado, acordou com a ofendida adiante referida que a autorizava a receber e manter nesses quartos relações sexuais, nomeadamente de cópula, a troco de dinheiro, com os respetivos clientes, pagando-lhe ela determinada contrapartida em dinheiro, a saber:
- G... , cidadã brasileira, que lhe pagaria a quantia de € 150 por mês para aquele fim, o que aconteceu desde julho de 2013 até 16 de outubro de 2013. Durante o referido período de tempo, a ofendida dedicou-se à prostituição por se encontrar desde há algum tempo sem outro trabalho nem rendimentos próprios para se sustentar, vivendo a expensas do namorado, circunstância e motivação que eram do conhecimento da referida arguida;
5. Ao tempo, a G... encontrava-se em situação ilegal em território português, uma vez que há já muito havia caducado a sua autorização de permanência no nosso país;
6. Aquando da busca realizada (no dia 16 de outubro de 2013) no dito apartamento da arguida C... , a G... , ali encontrada, foi notificada para abandonar o território nacional no prazo de 20 dias;

Arguida A...
7. Por contrato escrito celebrado em 25 de julho de 2011, a arguida A... tomou de arrendamento a fração autónoma designada pela letra “U”, que corresponde ao ...° andar esquerdo do Lote ..., u... , nesta cidade, propriedade da testemunha P... , arrendamento esse pelo prazo de 5 anos, onde aquela passou a viver;
8. Em data que em concreto não foi possível apurar, mas posterior ao início desse arrendamento, a arguida A... , com o intuito de obter dinheiro com a cedência dos quartos desse apartamento por si arrendado e onde vivia, acordou com cada uma das ofendidas adiante referidas que as autorizava a receber e manter nesses quartos relações sexuais, nomeadamente de cópula, a troco de dinheiro, com os respectivos clientes, pagando-lhe elas determinada contrapartida em dinheiro, a saber:
- D... , cidadã brasileira, que lhe pagaria a quantia de € 10 por cada dia que efetivamente ali tivesse estado com os seus clientes, o que aquela fez habitualmente três a quatro dias por semana até data que não foi possível precisar do mês de novembro de 2013, e durante o total de seis meses, designadamente com a testemunha Q... no dia 11 de outubro de 2013 e em data que não foi possível precisar, mas situada cerca de um mês antes desse dia. Durante o referido período de tempo, a ofendida dedicou-se à prostituição por não ter outro trabalho, apesar de inscrita no centro de emprego, não tendo outros rendimentos próprios para se sustentar a si e aos seus dois filhos menores de idade, circunstância e motivação que eram do conhecimento da referida arguida;
- E... , cidadã brasileira, que lhe pagaria a quantia de € 10 por cada dia que efetivamente ali tivesse estado com os seus clientes, o que aquela fez desde junho de 2013 até janeiro de 2014, habitualmente três a quatro dias por semana. Durante o referido período de tempo, a ofendida dedicou-se à prostituição por não ter outro trabalho nem outros rendimentos suficientes para se sustentar a si e aos seus três filhos menores de idade, bem assim pagar a renda da casa que habitavam, circunstância e motivação que eram do conhecimento da referida arguida;
- F... , cidadã brasileira, que lhe pagaria a quantia de € 10 por cada dia que efetivamente ali tivesse estado com os seus clientes, o que aquela fez durante oito meses, em período que não foi possível determinar do ano de 2012, habitualmente três a quatro dias por semana. Durante o referido período de tempo, a ofendida dedicou-se à prostituição por não ter outro trabalho nem outros rendimentos suficientes para se sustentar a si e ao seu filho menor de idade, circunstância e motivação que eram do conhecimento da referida arguida;
9. Os atos de sexo contra remuneração eram levados a cabo nos locais arrendados pelas referidas ofendidas com quem as arguidas contrataram nos termos sobreditos a cedência dos quartos ai existentes, com integral conhecimento e consentimento destas arguidas, que assim lhes facilitavam tais práticas, disponibilizando-lhes, mediante a acordada contrapartida monetária, aquele espaço para o efeito;
10. Ao atuarem na forma acima descrita, sabia e quis cada uma das arguidas obter para si os referidos proveitos económicos da atividade de prostituição que aquelas ofendidas praticavam, a qual era do conhecimento das arguidas, que as queriam auxiliar no modo aludido;
11. Mais sabiam e queriam as arguidas tirar vantagem lucrativa da situação de especial carência económica em que se encontravam todas as identificadas ofendidas;
12. Agiram todas as arguidas de forma livre, voluntária e consciente, cientes que as suas relatadas condutas eram proibidas e penalmente punidas;
13. A arguida C... nasceu no Brasil, sendo a mais nova dos quatro filhos fruto do casamento entre os seus pais. Refere uma infância decorrida num clima familiar positivo e com condições económicas satisfatórias. Os pais trabalhavam regularmente, a mãe como professora e o pai como canalizador. Quando tinha cerca de 14 anos de idade, a mãe faleceu, evento de vida que introduziu profundas alterações na dinâmica familiar. A situação económica deteriorou-se significativamente e o agregado acabou por se mudar para a zona norte do país, de onde o seu pai era originário. A arguida tem mais um irmão consanguíneo.
Iniciou a escolaridade em idade própria, tendo concluído o equivalente ao 12º ano de escolaridade do sistema de ensino português. Refere ainda ter feito um curso técnico do magistério, que habilitava ao exercício da docência e, mais tarde, o curso superior de pedagogia, que viria a abandonar, por questões familiares, ao fim do 2º ano.
Casou-se com 20 anos de idade, tendo do casamento nascido as suas duas filhas, atualmente com 26 e 25 anos de idade.
Ao longo da sua vida adulta, e enquanto permaneceu no Brasil, trabalhou, embora não de forma regular, como professora primária. O marido trabalhava na área da construção civil, por conta própria. A situação económica seria estável, até a altura em que o seu marido teve problemas de saúde que prejudicaram a sua atividade profissional.
Por volta dos 38 anos de idade, num período em que a relação conjugal se encontrava deteriorada, e com o objetivo de poder amealhar algum dinheiro extra, a arguida toma a decisão de tentar entrar em território norte-americano, de forma ilegal. Nos Estados Unidos da América tinha pessoas próximas que lhe garantiam habitação e trabalho. Esse projeto não se concretizou, optando então a arguida por vir para Portugal, país onde a entrada de estrangeiros era mais facilitada. Veio em janeiro de 2005, diretamente para y (...) , cidade onde tinha uma amiga que a terá apoiado na sua vinda, prevendo inicialmente aqui permanecer por cinco anos e voltar ao Brasil. Acabou por alterar a sua decisão, até porque entretanto se separou efetivamente do marido, encontrando-se ainda à espera que seja decretado o divórcio.
Em y (...) , dedicou-se sempre à prática da prostituição, até há cerca de dois anos. Segundo a própria, a vinda para Portugal para se prostituir foi uma decisão esclarecida, sendo seu objetivo poder obter alguns proveitos económicos que lhe permitissem saldar dívidas que tinha no Brasil e amealhar dinheiro para assegurar a formação universitária das suas filhas.
Inicialmente ocupou um quarto num apartamento na Quinta ... , onde residia também a sua amiga, onde permaneceu cerca de seis meses. Posteriormente arrendou um apartamento na (...) , referindo ser a única inquilina do mesmo.
Paralelamente à atividade da prostituição, a arguida refere que trabalhou como empregada doméstica, com regularidade, com contratos de trabalho.
Há cerca de quatro anos, conheceu um indivíduo com quem veio a constituir união de facto. O casal tem residência na zona de w... , mas a arguida mantém um apartamento de renda na cidade de y (...) , numa zona residencial sem problemáticas sociais associadas, pelo qual paga € 375 mensais. Mantém ainda este arrendamento por causa de uma das suas filhas, que se encontra em Portugal a frequentar uma pós-graduação. Atualmente não se encontra a trabalhar, justificando-o por motivos de saúde, sendo apoiada pelo seu companheiro, que trabalha há mais de 30 anos para a empresa z... .
A arguida tem a sua permanência em território nacional regularizada, e o regresso ao Brasil já não fará parte do seu projeto de vida. Relativamente ao seu passado de prostituição, a arguida verbaliza sentimentos de vergonha e de arrependimento. O presente processo judicial e a morte do seu pai, há cerca de dois anos, parecem ter tido um impacto significativo na perceção do seu histórico de vida e impulsionado uma mudança comportamental. Apenas o seu companheiro sabe que se dedicou à prática da prostituição, facto que a arguida sempre ocultou da sua família, nomeadamente das duas filhas.
Em entrevista, revelou um adequado contacto interpessoal, com competências pessoais e sociais consolidadas, mostrando ainda um humor depressivo.
Identifica este processo como o seu primeiro contacto com o sistema de justiça, mostrando-se apreensiva face às eventuais consequências judiciais do mesmo.
14. A arguida A... , de nacionalidade brasileira, nasceu em Fazenda Nova, cidade onde decorreu todo o seu processo de desenvolvimento e início da idade adulta. Não obstante ser originária de uma família numerosa, integrando uma fratria de sete elementos, não identifica especiais dificuldades sociais ou económicas nas vivências familiares, referindo que as necessidades básicas do agregado eram asseguradas de forma satisfatória.
Iniciou a escolaridade em idade própria, tendo concluído o secundário com planos de ingressar na faculdade, o que não viria a acontecer devido a gravidez não planeada. A arguida, aos 22 anos de idade, foi mãe solteira de um rapaz, tendo mais uma filha fruto de uma relação marital que durou cerca de cinco anos. Posteriormente, casou com um cidadão também brasileiro, tendo vivido juntos cerca de 7 anos. O casal adotou um rapaz, pois a arguida, devido a intervenção cirúrgica de esterilização, ficou impedida de ter mais filhos. A relação terminou com o divórcio por mútuo acordo.
A arguida mantém contactos regulares quer com os filhos quer com os pais que residem no Brasil.
Em termos profissionais, e ainda no Brasil, a arguida trabalhou em várias áreas, tendo destacado a atividade laboral como secretária, empregada de recursos humanos e na inspeção de sanidade animal.
Em 2003, vem para Portugal para trabalhar com uma amiga e fixou-se em Bragança. Segundo a própria, não se adaptou e mudou-se para y (...) . Aqui, começou a trabalhar como empregada doméstica em casa particular. Entre 2003 e 2008 manteve uma relação de namoro, deixou de trabalhar e as suas despesas eram custeadas por esse namorado. Em 2010, casou com um indivíduo português, tendo o casamento durado cerca de 2 anos.
Segundo a arguida, após a separação, atravessou dificuldades económicas, não tendo conseguido arranjar trabalho. Terá sido nessa altura que se iniciou na prática da prostituição, atividade que ainda mantém, através de anúncios publicitários. Referiu também que mantém relação com um senhor que se encontra emigrado na América, e que a ajuda em termos monetários, quando necessita.
Verbalizou dedicar-se à prostituição por necessidade, apresentando alguma ressonância relativamente à forma negativa como a atividade é encarada socialmente, escondendo tal prática de toda a família que vive no Brasil, que a mesma identifica como sendo fortemente censurada por aqueles.
A arguida preocupa-se em passar uma imagem socialmente aceite, resguardando-se da sua atividade da prostituição, não conseguindo, contudo, evitar sinais de rejeição, nomeadamente por parte de alguns vizinhos do prédio onde habita e exerce aquela atividade.
Relativamente à sua situação económica, descreve-a como difícil, uma vez que não consegue enquadramento profissional estável. Como já foi referido, para fazer face às suas necessidades, recorre à prática da prostituição, recebendo algum apoio económico do companheiro que está emigrado na América. Atualmente divide as despesas da renda, água e luz com uma amiga.
Mensalmente envia dinheiro ao seu filho adotivo para pagamento dos estudos.
Identifica este processo como o seu primeiro contacto com o sistema de justiça, não se mostrando muito apreensiva face às eventuais consequências judiciais.
15. A arguida B... nasceu em Belo Horizonte, Brasil, país onde viveu até aos 28 anos de idade. É a segunda mais nova dos quatro filhos fruto do casamento entre os seus pais. Refere uma infância sem dificuldades, guardando memórias positivas desse tempo, até por volta dos treze anos de idade, altura em que a sua mãe faleceu, por doença oncológica, e a situação familiar sofreu algumas alterações.
Refere ter iniciado a escolaridade em idade própria, que frequentou até ao equivalente ao 5º ano de escolaridade do sistema de ensino português.
Ainda no Brasil, por volta dos 19 anos de idade, foi mãe do seu primeiro filho, atualmente com 25 anos de idade.
Nos finais de 1999, deslocou-se para Espanha, mais concretamente para t... cidade onde viveu até 2003, altura em que se fixou em y (...) . Refere que o seu projeto de emigração se concretizou com o objetivo de melhorar as suas condições de vida, tendo ido para t... por intermédio de uma pessoa conhecida. Inicialmente terá trabalhado nas limpezas, por cerca de 4 meses, e posteriormente terá começado a trabalhar num estabelecimento de diversão noturna, onde para além de se dedicar ao alterne, também se prostituía. Segundo a própria, esta terá sido uma decisão esclarecida, sabendo a arguida o tipo de atividades que lhe estavam destinadas.
Ainda em Espanha, conheceu um indivíduo de nacionalidade brasileira, proprietário de um estabelecimento de diversão noturna de igual índole, na cidade de y (...) , o que motivou a sua vinda para esta cidade. Durante cerca de 6/7 meses trabalhou nesse estabelecimento ( k... ), residindo em casa do proprietário. Entretanto, alugou um quarto num apartamento, onde manteve a prática da prostituição, através de anúncios nos jornais.
Em 2005, casou-se com um português, tendo o casal se separado pouco tempo depois, quando a arguida se encontrava grávida da sua segunda filha, que nasceu em 2007. Por via do casamento, conseguiu regularizar a sua permanência em território nacional.
Paralelamente à atividade da prostituição, a arguida refere ter trabalhado sempre como empregada de limpezas, em regime de part-time.
A arguida vive com a sua filha menor, de 9 anos de idade, a qual frequenta o 4º ano do 1º ciclo do ensino básico. O agregado reside no apartamento da (...) acima referenciado, cujo contrato de arrendamento a arguida sempre manteve, mesmo no período em que estava casada e residia numa outra zona da cidade. Trata-se de uma habitação com adequadas condições de habitabilidade, segundo a própria, inserida numa zona residencial da cidade conhecida por ter muita oferta de arrendamento temporário. A situação económica é descrita como adequada, permitindo prover de forma satisfatória as necessidades do agregado familiar.
Trabalha para duas empresas de limpezas, auferindo na totalidade cerca de € 520 mensais.
O pai da sua filha contribui com a prestação de alimentos devidos a menores no valor de € 80. A acrescer a estes valores refere mais cerca de € 300 mensais resultantes da atividade de prostituição. Como despesa fixa mais significativa refere a renda de casa de € 325;
A arguida refere nunca ter deixado a atividade da prostituição, muito embora atualmente já não recorra a anúncios publicitários para o efeito, cingindo aquela atividade, segundo a própria, a 3 ou 4 indivíduos específicos. Refere ainda que, dada a permanência da sua filha no agregado, já não utiliza o seu apartamento para esse fim.
Em entrevista, a arguida revelou um adequado contacto interpessoal, embora se tenha mostrado evasiva na abordagem de alguns aspetos da história e das circunstâncias da sua vida. Ainda assim, e no que aos seus relacionamentos sexuais diz respeito, mostrou uma postura menos defensiva, enquadrando-os num estilo comportamental normativo.
Identifica este processo como o seu primeiro contacto com o sistema de justiça, não se mostrando muito apreensiva face às eventuais consequências judiciais.
16. As arguidas não apresentam qualquer condenação criminal prévia.”

2.2 Factos não provados
“1. A arguida A... em tempos (pelo menos no período de 1998 a julho de 2005) já havia estado ligada a um esquema de prática da prostituição idêntico ao agora por si delineado com as demais arguidas, sendo que entre as três arguidas existe uma relação de grande proximidade, permitindo as três que as mulheres em causa se prostituíssem rodando pelas casas das três, sendo que as próprias arguidas usavam as casas umas das outras para levar a cabo a atividade de prostituição a que elas próprias se dedicavam, tendo pois desenvolvido entre todas um esquema de modo a que as mulheres rodassem entre as casas de todas e assim todas beneficiarem dessa atividade;
2. Mais permitiam as três arguidas que as mulheres por si angariadas se expusessem nas varandas dos imóveis arrendados, de modo a chamarem a atenção dos homens que pretendiam delas serviços sexuais;
3. Ressalvada a testemunha O... , os potenciais clientes dos serviços de foro sexual das ofendidas contactavam as arguidas previamente, através dos números de telemóvel anunciados nos jornais nacionais e regionais de maior tiragem (nomeadamente no “ KK... ” e “Diário de y (...) ”), onde aquelas publicitavam a prática dos atos sexuais que eram levados a cabo nos referidos imóveis pelas ofendidas;
4. Tivesse sido desde o início de cada um dos respetivos contratos de arrendamento que cada uma das arguidas acordou com as ofendidas o subarrendamento dos quartos existentes nos apartamentos por si arrendados, a fim de aquelas ali poderem livremente se prostituir mediante o pagamento às arguidas de quantias monetárias previamente estipuladas;
5. As arguidas subarrendassem esses quartos às ofendidas com a intenção de conseguirem maiores lucros que aqueles que aufeririam com a normal exploração dos arrendados e para o efeito contactassem diversas mulheres, na sua maioria de nacionalidade brasileira, todas elas das suas relações pessoais, para ali se prostituírem;
6. Qualquer das ofendidas tivesse utilizado o apartamento de qualquer das arguidas, para ali se prostituir, pagando por isso, em período de tempo diferente e/ou maior daquele dado como provado;
7. A testemunha L... conhecia a arguida B... do tempo em que aquela vivia ainda no Brasil, tendo a testemunha tentado entrar em Portugal pela primeira vez em 2003, tendo-lhe sido recusada a entrada em território nacional. Entretanto, sabendo que a mãe daquela testemunha falecera no Brasil, a arguida B... contactou com a mesma e propôs-lhe que viesse para Portugal prometendo que lhe arranjaria emprego no nosso país, sem especificar o que concretamente;
8. Porque atravessava dificuldades económicas, a testemunha L... acabou por aceitar a proposta da arguida B... , tendo sido esta arguida quem custeou o bilhete para a sua viagem, bem como da viagem de uma irmã da mesma testemunha, indo a mesma arguida B... buscar a testemunha ao aeroporto quando esta chegou no avião que a trouxe do Brasil, trazendo a mesma testemunha de táxi diretamente para y (...) , instalando-a no seu apartamento onde aquela testemunha passou a prostituir-se, atividade que ali levou a cabo durante cerca de 2 meses, até entrar em divergência com a arguida e acabar por sair da casa;
9. A arguida C... sabia que a testemunha G... se encontrava em situação ilegal em território nacional e acolheu a mesma para viver no referido apartamento por si arrendado na (...) ;
10. A testemunha J... há muito se encontrava em território nacional sem autorização legal válida para tanto, residindo pelo menos nos últimos tempos na casa arrendada pela arguida B... , que bem sabia dessa sua situação de permanência ilegal e, não obstante, lhe permitia que aquela ali se acolhesse;
11. A arguida B... tinha perfeito conhecimento da situação de permanência ilegal em que se encontravam as testemunhas J... e L... , situações a que foi indiferente;
12. Qualquer das arguidas tivesse determinado as mencionadas ofendidas à prática da prostituição.”

2.3 Convicção do tribunal

“Funda-se esta no conjunto da prova produzida em audiência, salientando-se os seguintes aspetos:

1. O Tribunal formou convicção a respeito das condições de vida das arguidas (social, profissional e familiar), passada e presente, a partir das suas declarações a esse respeito, conjugadas com o seu relatório social e certificado de registo criminal.

Já sobre os factos típicos, a arguida B... , que prestou declarações apenas no final do julgamento, confirmou o arrendamento da fração identificada, mas negou os restantes factos imputados.

Já a arguida A... , também no final do julgamento, acabou por confessar ser verdadeiro o depoimento das testemunhas D... , E... e F... quanto à cedência dos quartos da mencionada fração, por si arrendada, para estas ali se prostituírem com os clientes, recebendo as contrapartidas em dinheiro que elas lhe pagavam para o efeito. Contudo, justificou essa conduta com o propósito de ajudar as testemunhas D... , E... e F... perante as alegadas dificuldades económicas que ao tempo lhes conhecia, e não com intenção lucrativa.

Já a arguida C... , que prestou declarações logo no início do julgamento, confirmou ter cedido o seu apartamento, cujo arrendamento confessou, à testemunha G... até à busca no dia 16-10-2013, durante 3 a 4 meses, recebendo desta a comprovada contrapartida monetária para custear as despesas correntes do arrendado. Fê-lo, confessou, sabendo ao tempo que a mesma tinha dificuldades económicas para se sustentar, pois estava desempregada, desde há algum tempo à procura de trabalho que não arranjava, sendo o namorado quem a ajudava economicamente, entregando-lhe nomeadamente aquela quantia para a arguida.

Mas se assim é, por certo que melhor fortuna não viveria a testemunha G... quando entre outubro de 2011 e maio de 2012 se prostituiu no apartamento da A... , circunstância que esta não ignorava até porque confessou que cedia os quartos às mulheres para as ajudar perante as dificuldades económicas que estas lhe transmitiam.

A arguida C... referiu, todavia, não saber que a testemunha se prostituía no seu apartamento, circunstância que teve conhecimento apenas aquando da busca, posto que lhe emprestou aquele, entregando a chave, apenas para ali se encontrar com o seu namorado.

Contudo, confirmando a arguida C... que ela própria utilizava o mesmo apartamento para ali se prostituir, onde a testemunha G... se deslocava duas a três vezes por semana, senão mesmo diariamente, como a arguida confessou, não podia esta ignorar que aquela ali se prostituía, até porque ela própria o fazia, disse, quando a G... ali se encontrava, circunstância aliás ocorrida no momento da busca, tendo esta anúncios no jornal relativos à sua atividade sexual.

Ainda que as arguidas o negassem, recebendo elas contrapartidas monetárias pela cedência dos quartos às prostitutas para ali exercerem a atividade sexual com os clientes, à luz das regras gerais da experiência comum (aqui convocáveis ao abrigo do preceituado no art. 127º do Código de Processo Penal), é inequívoca a intenção lucrativa das arguidas.

2. A testemunha Q... confirmou o relacionamento sexual havido no apartamento da arguida A... , quer com esta, quer com a testemunha D... , cidadã brasileira, que reconheceu, esta no dia 11-10-2013 (busca) e em data não determinada mas situada cerca de um mês antes desse dia.

3. Já as testemunhas H... , D... , F... , E... , G... (memória futura de 15-11-2013), O... , I... (memória futura de 22-05-2014), e J... (memória futura de 18-02-2014) confirmaram as circunstâncias e tempo em que utilizaram, mediante contrapartidas monetárias que descreveram, os apartamentos das arguidas, arrendatárias das frações que usaram para se prostituir, tudo nos termos e condições dadas como provadas.

Com exceção das testemunhas I... (memória futura de 22-05-2014) e J... (memória futura de 18-02-2014), todas as demais ofendidas afirmaram que as arguidas sabiam da relatada situação pessoal, mormente das dificuldades económicas e familiares que lhes justificavam, ainda que jamais compelidas ou determinadas a prostituírem-se pelas arguidas, que nesse contexto e motivação apenas lhes facilitavam interessadamente o exercício dessa atividade sexual.

4. Como se acabou de referir, não foi produzida prova direta que permitisse concluir que as testemunhas I... e J... se dedicassem à prostituição por vivenciarem dificuldades económicas e familiares.

Todavia, isso não significa que tal factualidade não se deva ter como apurada. É que temos vindo a seguir o entendimento jurisprudencialmente dominante de que o julgamento sobre os factos, devendo ser um julgamento para além de toda a dúvida razoável, não pode, no limite, aspirar à dimensão absoluta de certeza da demonstração acabada das coisas próprias das leis da natureza ou da certificação cientificamente cunhada – neste sentido, cfr. o Ac. do S.T.J. de 06-10-2010 .

Como elucidativamente se afirma neste aresto, a verdade processual, na reconstituição histórica possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica. Estando em causa comportamentos humanos da mais diversa natureza, que podem ser motivados por múltiplas razões e intenções, é normalmente inviável a sua medição ou certificação segundo regras e princípios científicos.

Por isso, na análise e interpretação dos comportamentos humanos existem feixes de apreciação que se formaram e sedimentaram ao longo dos tempos - são as chamadas regras da experiência da vida e das coisas, que permitem e dão sentido constitutivo à regra que é verdadeiramente normativa e tipológica como meio de prova - as presunções naturais.

Como defendia Cavaleiro de Ferreira ,“a prova indiciária tem uma suma importância no processo penal; são mais frequentes os casos em que a prova é essencialmente indireta do que aqueles em que se mostra possível uma prova direta”

Assim, além dos meios de prova diretos, avultam no processo penal os procedimentos lógicos para prova indireta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido – as já mencionadas presunções.

As presunções são legalmente definidas (noção geral, válida também no processo penal) como “as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido” - art. 349º do Código Civil.

Como se referiu, no processo penal assumem relevo especial as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao julgador retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.

As presunções naturais mais não são, no fundo, do que o produto das regras de experiência - o julgador, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. Nas palavras de Vaz Serra , “ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (...) ou de uma prova de primeira aparência”.

A presunção permite, portanto, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência e da lógica, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros.

Desta forma, sendo certo que “a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade”, nas palavras de Cristina Líbano Monteiro , é perfeitamente admissível em processo penal a chamada prova indireta, ao abrigo do preceituado nos arts. 125º (“são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”) e 127º (“salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”) do C.P.P. – neste sentido, e entre outros, veja-se o Ac. da Relação de Coimbra de 23-03-2011 .

E este entendimento não colide com o chamado princípio “in dubio pro reo”, como se afirma no Ac. do S.T.J. de 10-01-2008 , pois tal princípio “parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador”, nas palavras de Cristina Líbano Monteiro , quando é certo que a prova indireta permite a demonstração de factos desconhecidos para além de dúvida razoável, ou seja, ultrapassa o referido estado de dúvida (pressuposto da aplicação do princípio “in dubio pro reo”).

Porém, sendo pacífico que o princípio da livre convicção do julgador na apreciação da prova não representa a substituição genérica do sistema de provas legais pelo arbítrio, devem ser respeitadas especiais cautelas em sede de valoração deste tipo de prova (indireta), como se afirma no Ac. do S.T.J. de 23-09-2010 .

Desde logo, o facto tirado como consequência deve ser credível -  se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o facto base e o facto adquirido é demasiado longínqua, existirá um vício de raciocínio que inutiliza a presunção, como salienta Vaz Serra . Por conseguinte, no trajeto do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem diretamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.

A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros.

Deve, pois, ser trilhado um percurso intelectual, lógico, sem interrupções, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência segundo as regras de experiência determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.

Por outro lado, o modelo referencial deste método é constituído pela observação e verificação do homem médio, como se defende no já citado Ac. do S.T.J. de 06-10-2010.

Concluindo, nesta perspetiva metodológica, as regras da experiência são a base e o limite do resultado, positivo ou negativo, de uma presunção natural, como critério, ou no rigor, regra normativa de prova. Dessa forma, empregando-se este método de valoração da prova e de decisão, pode obter-se um de dois desfechos possíveis:

- Pode verificar-se um afastamento entre a base da presunção (o facto conhecido, preciso e determinado) e o facto desconhecido (objeto de prova), de tal modo que a relação se situa apenas no simples domínio das possibilidades físicas e materiais, sem proximidade que caiba nos limites razoáveis do id quod - neste caso, o facto desconhecido não poderá considerar-se como assente;

- Poderá ainda suceder que as regras da experiência determinem que, segundo a normalidade das coisas, dos comportamentos, e da apreciação externa comum e referencial sobre a causalidade e a sequência, um facto ou uma série de factos conhecidos não se compreende, nem por si tem relevante significado autónomo e não apresenta qualquer sentido, razão ou explicação, se não for pelas consequências normais e típicas que a experiência das coisas e da vida lhe associam – nesta hipótese, a presunção deve ser estabelecida, considerando-se o facto (desconhecido e objeto de prova) provado, uma vez que os factos (base e desconhecido) serão precisos e concordantes.

Para finalizar estas considerações gerais, importa ainda sublinhar que todo o percurso intelectual e lógico acima referenciado deve ser plasmado na fundamentação da sentença, como decorre do disposto no art. 374º, nº 2, do C.P.P.

Ora, descendo ao caso concreto aqui em apreço, deve referir-se que os factos conhecidos são claros e precisos:

- A nacionalidade brasileira das ofendidas I... e J... , comum aliás a nacionalidade das demais ofendidas (as quais confirmaram, de forma unânime, vivenciar essa situação de carência económico-financeira);

- O facto de estarem emigradas em Portugal;

- O facto de se dedicarem à atividade de prostituição quotidianamente, cobrando dos respetivos clientes quantias reduzidas (€ 20 por cada ato sexual).

Logo, em tais circunstâncias, as regras gerais da experiência comum apontam para que, salvo anormalidade de comportamento, essas ofendidas - I... e J... – dedicavam-se à prostituição por enfrentarem nas respetivas vidas situações de dificuldades económicas e familiares – Dificuldades essas comuns, aliás, à situação vivenciada pelas demais ofendidas neste processo, e pelas próprias arguidas, sem exceção. Daí que tal factualidade tenha sido considerada provada.

E também se deve concluir que a arguida B... , partilhando dessas dificuldades, tinha conhecimento da situação vivenciada pelas ofendidas I... e J... , pois disso certamente conversaram, atento o relacionamento que estabeleceram.

5. Ao invés das testemunhas D... , F... , E... , G... (memória futura de 15-11-2013), O... , I... (memória futura de 22-05-2014) e J... (memória futura de 18-02-2014) que confirmaram o conhecimento das arguidas sobre o exercício da prostituição nos respetivos apartamentos, já a testemunha H... afirmou nunca ter dito à arguida B... que ali se prostituía.

A testemunha J... (memória futura de 18-02-2014) acrescentou mesmo que ao tempo a arguida B... , que conhecia pelo nome de “ OO... ”, lhe chegou a enviar alguns clientes quando ela não os queria ou podia atender.

Todavia, pagando-lhe a H... a quantia de € 150 por mês por ali se prostituir, o que fazia em média com três a quatro clientes quase diariamente desde data indeterminada de 2009 até data não apurada de agosto de 2012, a arguida B... não podia ignorar a utilização remunerada que a testemunha dava ao seu apartamento, tanto mais que a própria arguida ali se prostituía.

6. Todos os citados depoimentos e declarações, na estrita medida em que as arguidas e as apontadas testemunhas revelaram ter conhecimento seguro dos factos sobre que depuseram, e conjugados com as regras gerais da experiência comum, permitiram formar uma convicção conscienciosa dos eventos, disso persuadindo, no sentido dado como provado.

No tocante ao elemento subjetivo do crime, foram consideradas as regras gerais da experiência comum, em face do contexto objetivo em que os factos foram praticados.

7. A decisão do Tribunal baseou-se ainda do exame em audiência dos contratos de arrendamento de fls. 39-42, 48-51, 54-56, do auto de busca e apreensão de fls. 147-150 (arguida A... ), fls. 165-168 e fls.195-198 (arguida C... ), e fls. 183-186 (arguida B... ), cópia de passaporte da testemunha G... de fls. 179 e 243-244, da testemunha J... de fls. 191-193, da testemunha I... de fls. 386, certificados de registo criminal de fls.956-968, e relatórios sociais de fls. 985-988 (arguida A... ), 991-994 (arguida B... ) e fls. 1002-1005 (arguida C... ).

8. Quanto à factualidade não provada, a convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica de toda a prova produzida em julgamento e falta de consistência de outra sobre os mesmos produzida, em resultado, nomeadamente, de não terem sido carreados outros elementos probatórios credíveis e com força bastante para os sustentar.

Na verdade, não se produziu em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para além daqueles que nessa qualidade se descreveram, designadamente por não ter sido produzida mais qualquer prova testemunhal ou por declarações bastante que conduzisse a distinto resultado probatório.

Refira-se que não foi produzida qualquer prova relativamente à pretensa ofendida L... , desde logo não tendo sido possível proceder à sua inquirição, o que determinou a não prova dos factos alegados a seu respeito.”


*

1.3 Cumpre decidir

Questão suscitada nos três recursos:

1.3.1- Da inconstitucionalidade da norma do artigo 169.º, n.º 1 do Cód. Penal

Defendem as recorrentes que a norma do artigo 169° n° 1 do C.P.,  é inconstitucional, por violação dos artigo 9º, al. b), 13º, nºs 1 e 2, 16º, 18° n°s 2 e 3, e 26, nº 1, todos da CRP.

Vejamos.

A questão tem vindo a ser debatida no Tribunal Constitucional e ultimamente na doutrina - e na sociedade em geral - com mais acuidade.

Não obstante, é ainda maioritária a tese de que se consegue divisar um específico bem jurídico-penal atinente à liberdade sexual dos profissionais do sexo.

Uma das vozes discordantes, o Prof André Lamas Leite, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, em artigo de opinião de 19 de setembro de 2017, sob o título “Prostituição e lenocínio: “política da avestruz” à portuguesa”, alerta para “um certo enviesamento do princípio da acessoriedade da participação.”

Porém, não obstante o brilho das teses contrárias, é sabido que o Tribunal Constitucional tem rejeitado a tese invocada pelos arguidos e recorrentes.

Basta conferir os acórdãos nºs 144/2004, 196/2004, 303/2004, 170/2006 e 396/2007, 522/2007, 141/2010, 559/2011, 605/2011, 654/2011, 203/2012, 149/2014 e 641/2016 (todos acessíveis in wwwtribunalconstitucional.pt)

A fundamentação da tese defendida (não obstante os votos de vencido) está claramente explicitada do acórdão n.º 1444/2004, relatado pela Cons. Maria Fernanda Palma:

«…subjacente à norma do artigo 170º, nº 1, está inevitavelmente uma perspectiva fundamentada na História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segundo a qual as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída (cf. sobre a prostituição, nas suas várias dimensões, mas caracterizando-o como “fenómeno social total” e, depreende-se, um fenómeno de exclusão, JOSÉ MARTINS BRAVO DA COSTA, “O crime de lenocínio. Harmonizar o Direito, compatibilizar a Constituição”, em Revista de Ciência Criminal, ano 12, nº 3, 2002, p. 211 e ss.; do mesmo autor e LURDES BARATA ALVES, Prostituição 2001 – O Masculino e o Feminino de Rua, 2001). Tal perspectiva não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de acção, situações e actividades cujo “princípio” seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Lei nº 23/80, em D.R., I Série, de 26 de Julho de 1980), bem como, em 1991 a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem (D.R., I Série, de 10 de Outubro de 1991).

É claro que a esta perspectiva preside uma certa ideia cultural e histórica da pessoa e uma certa ideia do valor da sexualidade, bem como o reconhecimento do valor científico das análises empíricas que retratam o “mundo da prostituição” (e note-se que neste terreno tem sido longo o percurso que conduziu o pensamento sociológico desde a caracterização da prostituição como anormalidade ou doença – assim, C. LOMBROSO e G. FERRO, La femme criminelle et la prostituée, 1896, e, no caso português, os estudos de TOVAR DE LEMOS, A prostituição. Estudo anthropologico da prostituta portuguesa, 1908, e, sobre as concepções da ciência acerca da prostituição no início do século, cf. MARIA RITA LINO GARNEL, “A loucura da prostituição”, em Themis, ano III, nº 5, 2002, p. 295 e ss. – até ao reconhecimento de que as prostitutas são vítimas de exploração e produto de uma certa exclusão social). Mas tal horizonte de compreensão dos bens relevantes é sempre associado a ideias de autonomia e liberdade, valores da pessoa que estão directamente em causa nas condutas que favorecem, organizam ou meramente se aproveitam da prostituição.

Não se concebe, assim, uma mera protecção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional particular ou mesmo dominante, que não esteja relacionada, intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto aspectos de uma convivência social orientada por deveres de protecção para com pessoas em estado de carência social. A intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspectiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da protecção da liberdade e de uma “autonomia para a dignidade” das pessoas que se prostituem. Não está, consequentemente, em causa qualquer aspecto de liberdade de consciência que seja tutelado pelo artigo 41º, nº 1, da Constituição, pois a liberdade de consciência não integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar das carências alheias ou de lucrar com a utilização da sexualidade alheia. Por outro lado, nesta perspectiva, é irrelevante que a prostituição não seja proibida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando-o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de terceiros. Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica portuguesa, em que o autor de uma conduta não é incriminado e são incriminados os terceiros comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao suicídio (artigo 135º do Código Penal) ou com a incriminação da divulgação de pornografia infantil [artigo 172º, nº 3, alínea e), do Código Penal], sempre com fundamento na perspectiva de que a autonomia de uma pessoa ou o seu consentimento em determinados actos não justifica, sem mais, o comportamento do que auxilie, instigue ou facilite esse comportamento. É que relativamente ao relacionamento com os outros há deveres de respeito que ultrapassam o mero não interferir com a sua autonomia, há deveres de respeito e de solidariedade que derivam do princípio da dignidade da pessoa humana.»

Sobre a realidade sociológica da prostituição, intrinsecamente ligada a várias formas de vulnerabilidade incompatíveis com o exercício genuíno da autonomia, pode ver-se, entre outros, Roger Matthews, Prostitution, Politics and Policy, Routledge-Cavendish, Oxford, 2007, pgs 1 a 94. Aí se afirma[2]: «Em suma, o modelo liberal que vê o envolvimento na prostituição como produto de uma escolha individual tende a perder de vista os factores sociais e estruturais que alimentam, encorajam e modelam este mercado de serviços sexuais. Essas estruturas e as dinâmicas que as sustêm não são redutíveis à escolha individual. Para começar a entender como a escolha está estruturada pelo género, pela classe ou pela idade, bastará que nos lembremos de que os homens adultos não tendem a comprar serviços sexuais tanto a outros adultos, como a rapazes adolescentes, que as mulheres não são normalmente consumidoras destes serviços, que as pessoas pobres não compram estes serviços a pessoas ricas e que as pessoas jovens não compram estes serviços a pessoas mais velhas» (pg. 33).

A tese discordante mostra-se bem defendida pelo voto de vencido do Prof Manuel Costa Andrade no Ac TC nº 641/2106, que para melhor percepção se transcreve:

“Votei vencido por estar convencido de que a norma de incriminação e punição do Lenocínio constante do n.º 1 do artigo 169.º do Código Penal é contrária à Constituição, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República. E é assim porquanto a incriminação da conduta típica não está preordenada à salvaguarda – menos ainda é para tanto necessária – de quaisquer “direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. Ou dito em linguagem da doutrina penal, não é necessária à proteção de qualquer bem jurídico. Bem jurídico que não se descortina na pertinente área de tutela típica. Noutra perspetiva, estamos perante uma manifestação concreta dos chamados “crimes sem vítima”, no sentido criminológico do termo, na linha da E. SHUR (victimless crimes ou crimes without victims Cf. EDWIN SCHUR, Crimes Without Victims: Deviant Behavior and Public Policy, Prentice Hall inc.1965).

É seguramente assim a partir da reforma de 1998. Que inter alia eliminou o inciso –“exploração de situação de abandono ou de necessidade económica” – constante da versão originária (de 1982/1995). E deste modo abriu deliberadamente mão do momento da factualidade típica que associava a infração à ofensa à liberdade sexual e deixou atrás de si uma incriminação exclusivamente votada à punição de “quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar” uma prática em si mesma irrelevante e indiferente para o direito penal – a prostituição. Assim, o afastamento da liberdade sexual da área de proteção da norma deixa apenas em campo a prevenção ou repressão do pecado, um exercício de moralismo atávico, com que o direito penal do Estado de Direito da sociedade secularizada e democrática dos nossos dias nada pode ter a ver.

Uma consideração das coisas contra a qual não pode pertinentemente invocar-se a ideia de obviar a perigos contra a dignidade ou a autonomia das pessoas – homens ou mulheres – envolvidas na prostituição. Na certeza de que a incriminação é que pode, ela própria, configurar um atentado perverso à dignidade ou autonomia das pessoas. Que sendo adultas, esclarecidas e livres – no fundo a situação típica pressuposta pela incriminação – devem poder legitimamente escolher conduzir a sua vida tanto à sombra da “virtude” como do “pecado”. Uma escolha insindicável, que devem poder levar à prática, inteiramente resguardados contra a intromissão do direito penal. De outro modo e acolhendo-nos à síntese de FIGUEIREDO DIAS, “teríamos uma situação absolutamente anormal e incompreensível: a de o direito penal, pretendendo tutelar o bem jurídico da eminente dignidade (sexual) da pessoa, sacrificá-lo ou violá-lo justamente em nome daquela dignidade. Pois é claro que pertence à liberdade da vontade da pessoa dedicar-se ou não ao exercício da prostituição. O que colocaria o Estado (detentor do jus puniendi) na mais contraditória e perversa das situações: a de sacrificar a integridade pessoal invocando como legitimação o propósito de a tutelar!” (FIGUEIREDO DIAS, “O ‘direito penal do bem jurídico’ como princípio jurídico-constitucional implícito”, RLJ, ano 145.º, maio-junho de 2016, p. 261). Nesta linha não podemos acompanhar o entendimento que a este propósito vem sendo sistematicamente sufragado pelo TC. Que tem procurado apoiar a legitimação material da incriminação na sua relação “com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem”, como se sustenta, entre outros, no Acórdão n.º 144/2004 (no mesmo sentido, Acórdãos n.ºs 170/2006, 396/2007, 141/2010, 559/2011, 203/2012, 149/2014). Explicitando que a “intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspetiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da proteção da liberdade e de uma ‘autonomia para a dignidade’ das pessoas que se prostituem”. Uma consideração das coisas que é posta em crise quando confrontada com o recorte típico da incriminação. Que pune os factos mesmo nas constelações fácticas em que as pessoas que se prostituem, sendo maiores, o fazem com toda a liberdade e autonomia. O que obriga o TC a acolher-se a uma insustentável razão de paternalismo. Argumentando que “ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão de livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando-o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para fins dele próprio, mas para fins de terceiro” (id. ibid). Para além desta (suposta) tutela da autonomia e da liberdade – contra o (efetivo) sacrifício da autonomia e da liberdade –, sobra ainda a ideia de prevenção do risco de exploração. Assim e ainda nos termos do mesmo acórdão: “o facto de a exploração legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir do qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desproteção social” (ibid). Em vez de uma incriminação preordenada à tutela da autonomia e da liberdade sexual, teríamos então uma infração, concebida como crime de perigo abstrato e apostada em obviar ao perigo de um “modo social de exploração de uma situação de carência e desproteção social”. Bem podendo, por isso, acontecer que a prevenção do perigo abstrato de uma forma desviante de comportamento ou de condução da vida se faça à custa do sacrifício da liberdade e da autonomia sexual. Afinal de contas, à custa do sacrifício do único bem jurídico em nome do qual o legislador pode incriminar comportamentos humanos relacionados com a vida sexual das pessoas.

É por isso que não posso acompanhar o entendimento de que a norma constante do artigo 169.º do Código Penal na versão vigente satisfaz as exigências de que a Constituição da República faz depender a legitimação material da criminalização.”

Reconhecendo o valor da argumentação desenvolvida, este tribunal de recurso mantem o entendimento que vem expressando, - tal como Des António Gama, no Ac Rel Porto Processo nº404/13.9TAFLG.P1 - de que o étimo legitimador da criminalização radica na violação do princípio da dignidade da pessoa humana, art.º 1º da Constituição.

Sendo assim, no seguimento do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 144/04, de 10 de Março de 2004, a intervenção do Direito Penal neste domínio tem um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspectiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito.

Termos em que, sufragando-se o vertido no citado Acórdão do TC n.º 144/2004, relatado pela Cons. Maria Fernanda Palma e dando aqui por reproduzidos os seus argumentos e fundamentos, brevitatis causae, a que se adere, entende-se não existir qualquer inconstitucionalidade da referida norma.

Assim, deverá ser negado provimento aos recursos quanto a este segmento.


*

1.3.2 - Enquadramento dos factos num único crime de lenocínio - recursos das arguidas A... e B... .

A decisão recorrida condenou as arguidas A... e B... , pela prática de tantos crimes de lenocínio quantas as vítimas, ou seja, respectivamente de 3 e de 5 crimes de lenocínio simples previstos e punidos pelo artigo 169.º, n.º 1 do Código Penal.

Como decorre do acórdão recorrido ao tratar do enquadramento jurídica da factualidade dada como provada, o tribunal a quo entendeu que o ilícito em causa configura bem eminentemente pessoal, pelo que o número de crimes se determina pelo número de ofendidas:

“ Além disso, e como veremos a seguir, entendemos que as arguidas atuaram, no fundo, e relativamente a cada uma das mulheres vítimas de lenocínio, em execução da mesma resolução criminosa, pretendendo lucrar com os proventos que advinham da prática da prostituição por cada uma delas – prática esta que, como é evidente, se prolongaria naturalmente ao longo do tempo, e que se repetia, não apenas no mesmo dia, mas em dias distintos, sem necessidade que a resolução criminosa das arguidas se renovasse.”

Deve, por isso, ser afastada a figura do crime continuado.

Desta forma, perspetivando que as vítimas dos crimes de lenocínio são pessoas distintas, e que nesse tipo-de-ilícito são tutelados bens jurídicos pessoais (como acima se afirmou), conclui-se que se verifica uma relação de concurso efetivo de infrações entre tais ilícitos (de lenocínio, tantos quantos o número de vítimas).”

Ao contrário as arguidas A... e B... defendem a condenação por um só crime de lenocínio simples por entenderem que o legislador, ao punir todo e qualquer aproveitamento do lucro obtido à custa da prostituição de outros, pune essencialmente uma actividade, uma profissão e não uma corrupção da vontade livre. E por outro lado, porque o crime de lenocínio previsto no art. 169º nº 1 do CP é um crime de actividade que se concretiza apenas mediante uma única resolução, há um só crime independentemente do número de prostitutas cuja actividade era fomentada.

De acordo com o disposto no artigo 30.º do Código Penal, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

Embora a lei não o refira expressamente, para se concluir pela existência de concurso efectivo, torna-se necessário, além de aferir da pluralidade de tipos violados ou da violação plúrima do mesmo tipo, recorrer ao critério da pluralidade de juízos de censura, traduzido por uma pluralidade de resoluções autónomas.

A realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir:

- Um só crime, se tiver persistido o mesmo desígnio, a mesma resolução criminosa isto é, se o dolo inicial se mantiver ao longo de todas as condutas;

- Um crime continuado se, existindo uma pluralidade de resoluções criminosas, elas se mantiverem dentro de uma «linha psicológica continuada» (cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal, Sumários e Notas das Lições, 1975/76, 127) ou seja, aglutinadas por factores externos que conduzem o agente à repetição da conduta;

- Um concurso de crimes, quando não ocorra nenhuma das anteriores situações.

A multiplicidade de vezes de preenchimento do tipo objectivo do crime conduz, em regra, à multiplicidade de crimes da respectiva natureza (artigo 30.º, n.º 1do Código Penal), mas tal multiplicidade deixa de ter tal efeito, não só nos casos em que se deva configurar um crime continuado (artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal), como naqueles em que a unidade de resolução – tipo subjectivo do crime – e a inexistência de violação de bens jurídicos eminentemente pessoais, aliados à continuidade temporal das condutas, fazem com que a multiplicidade formal de violações do tipo criminal deva ser tratada como correspondente à comissão de um só crime.

Se se tratar de uma decisão assumida, deliberada, pensada uma única vez, e a partir de tal decisão não houver qualquer necessidade de renovar o processo de motivação, realiza-se um único tipo legal de crime - unidade jurídica de acção conforme designação Jescheck.

Uma unidade jurídica de acção que pressupõe que as condutas parcelares respondam a um só desígnio criminoso (unidade subjectiva) e realizem um único tipo legal de crime (unidade objectiva).

Volvendo ao crime de lenocínio.

Como é sabido, os elementos constitutivos do tipo objectivo do crime de lenocínio previsto no artº 169ºCP são:

- o fomento, o favorecimento ou a facilitação do exercício por outra pessoa de prostituição;

- a prática pelo agente de tais condutas profissionalmente ou com intenção lucrativa.

Sendo o elemento do tipo subjectivo:

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, abrangendo todos os elementos do tipo objectivo.

2.- Crime que será agravado, quando:

- O agente use para o seu cometimento violência ou ameaça grave [n.º 2, al. a)];

- O agente o cometa aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima [n.º 2, al. d)].

No caso presente, tendo as arguidas facilitado - disponibilizando-lhes o espaço para o efeito - e com intenção lucrativa (mediante a acordada contrapartida monetária), o exercício da prostituição pelas cidadãs que se mostram referidas nos factos provados, preenchido está o tipo objectivo do crime de lenocínio.

E preenchido está igualmente o tipo subjectivo quando se prova que as arguidas agiram de forma livre, voluntária e consciente, cientes de as queriam auxiliar no modo aludido e com o propósito de obter para si os referidos proveitos económicos da actividade de prostituição que aquelas ofendidas praticavam, a qual era do conhecimento das arguidas.

Importa então decidir se a conduta criminosa das arguidas A... e B... constitui uma pluralidade de crimes de lenocínio ou se constitui um único crime.

Com efeito, “A unidade de tipo legal preenchido não importa definitivamente a unidade da conduta que o preenche; pois sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se toma aplicável e deverá, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes - Eduardo Correia.

Se entendermos que o bem jurídico protegido é de natureza eminentemente pessoal, o número de crimes coincide com o número de vítimas ( art. 30.º, n.º 3, do CP).

Recorda o Prof. Figueiredo Dias que bens eminentemente pessoais são os do título 1 da Parte especial do CP - ( FD 2007;1029) - entre eles, a vida humana, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual, a honra, a reserva da vida privada…”

P.P. Albuquerque (Com CP, pág 464) entende que o bem jurídico protegido pela incriminação é a liberdade sexual da pessoa que se dedica à prostituição.

Também no acórdão da Relação de Coimbra de 12-04-2011 - que contém um resumo da evolução histórica do tipo legal - salienta-se que “ de um ponto de vista literal e sistemático, o crime do art. 169.º do CP não pode deixar de ser considerado um crime contra a liberdade.

O bem jurídico protegido com a incriminação do Lenocínio é a liberdade sexual individual da prostituta e a sua dignidade pessoal; tais bens, como bens eminentemente pessoais que são, levam a que se verifique um concurso efetivo de crimes sempre que existir uma pluralidade de vítimas” - Ac. TRP de 28-03-2012.

O ac. da Rel. de Coimbra de 10-07-2013 ( relator Des. Fernando Chaves) procedendo a uma diferente sistematização na interpretação do preceito, esclarece:

“O bem jurídico protegido no tipo legal de crime de lenocínio simples não é a liberdade de expressão sexual da pessoa mas uma certa ideia de «defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade» que não é encarada hoje como função do direito penal e, de qualquer modo, não presidiu ao novo enquadramento dos «crimes contra a liberdade sexual» no título mais vasto dos crimes contra as pessoas e como uma forma que assumem os atentados contra a liberdade([12]).

No n.º 1 do artigo 169.º não se tutela, após as reformas de 1998 e 2007, a liberdade sexual de alguém – único fundamento para a punição dos crimes contra a liberdade sexual, onde apenas deve estar em causa a liberdade e a autodeterminação de uma pessoa concreta e não qualquer opção moral sobre a vida sexual que cada um quer ter – nomeadamente de quem pratica a prostituição.

O que é tutelado no n.º 1 do citado preceito, como bem jurídico, é uma determinada concepção de vida que não se compadece com a aceitação do exercício profissional ou com intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição.

A reforma de 2007 retirou do n.º 1 do tipo a referência à prática de actos sexuais de relevo, sendo, por isso, mais claro que é apenas a facilitação à prostituição como actividade que é objecto de censura penal.

A alteração introduzida em 2007 parece reforçar a opinião de que é a prostituição o alvo único do tipo de crime, não sendo, por isso, muito nítida a natureza do bem jurídico que se pretende proteger, nomeadamente no seu n.º 1([13]).

De acordo com a actual redacção do preceito tal crime existe ainda que aquele que pratica a prostituição o faça livremente, sem quaisquer constrangimentos.

Se a prostituta ou o prostituto, de maior idade e no perfeito estado das suas faculdades, pretende exercer a prostituição, o favorecimento que outro fizer dessa actividade, com intuito lucrativo, não tem a ver com a sua liberdade de determinação sexual.

Daí que a actual redacção do artigo 169.º, n.º 1 do Código Penal, ao delimitar o tipo, recortando-o apenas em função da acção de fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição, com intenção lucrativa, eliminando a exigência da exploração de uma situação de abandono ou de necessidade económica, assim como a referência à prática de actos sexuais de relevo, não esteja a querer punir a ingerência na formação da vontade de quem se prostitui mas apenas o aproveitamento que alguém faz de uma prática que, apesar de não ser punida criminalmente, não é reconhecida como plenamente lícita.

Ao punir todo e qualquer aproveitamento do lucro obtido à custa da prostituição de outros, o legislador pune essencialmente uma actividade, uma profissão e não uma corrupção da vontade livre([14]).

A diferença específica entre o lenocínio simples (artigo 169.º, n.º 1) e o lenocínio agravado (artigo 169.º, n.º 2) radica na natureza do relacionamento entre quem explora e quem se prostituiu, isto é, na existência ou não da corrupção da livre determinação sexual: havendo livre determinação sexual de quem se prostitui, o lenocínio é simples; não havendo essa liberdade, o lenocínio é agravado.”

Considerando que “ a ratio do direito penal, como último instrumento para proteger bens jurídicos e sobretudo as situações justificadas à luz da Constituição da República Portuguesa como passíveis de serem criminalizadas só o podem ser se compatíveis com o princípio da ultima ratio e sobretudo da proporcionalidade e necessidade estabelecido no artigo 18º, nº 2 da Constituição. Ainda mais se se entender que a ordem jurídica comunitária, através de decisões do próprio Tribunal de Justiça das Comunidades, estabelece que a prostituição é «uma actividade de prestação de serviços remunerada e abrangida pelo conceito de actividade económica não assalariada e actividade não assalariada» - cf. Proc. C-268/99 de 20-11-2001.” - Ac. Rel. Coimbra de 30 de Junho de 2010 (relator Des. Mouraz Lopes), impõe-se aceitar que após as reformas de 1998 e 2007, no n.º 1 do artigo 169º, é tutelado como bem jurídico, uma determinada concepção de vida inconciliável com a aceitação do exercício profissional ou com intenção lucrativa do fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição.

A circunstância de o crime tutelar bem jurídico de natureza não pessoal, facilita a compreensão da conduta criminosa como um único crime.

Porém, o que resulta da factualidade provada são várias resoluções criminosas das arguidas - porque relativas a cada uma das ofendidas - quanto ao seu propósito de lucrarem com a prostituição, até porque lhes cederam o espaço em períodos temporais distintos, com hiato temporal, e por isso sem continuidade de acção.

Ou seja, a factualidade provada não reflecte um dolo inicial persistente mas único do desenvolvimento de uma actividade criminosa, cobrindo todo o período em que foram sucedendo as cedências dos espaços a cada uma das ofendidas. Não resultou provado que as arguidas tivessem actuado em execução de um único plano previamente delineado, ainda que posteriormente com uma execução plúrima de actos no desenvolvimento do desígnio formulado.

O que já se verifica relativamente a cada uma das ofendidas que diariamente ou pelo menos três ou quatro vezes por semana ali renovavam a prática da prostituição, durante todo o período da cedência onerosa do espaço. A esta continuidade corresponde, à face de um juízo baseado nas normas de experiência de vida, uma unidade de resolução volitiva, ou seja, numa compreensão global do ilícito praticado, um único crime relativamente a cada uma das ofendidas.

Concluímos portanto que as arguidas se constituíram autoras materiais de um único crime de lenocínio simples pp pelo art 169º, nº 1, do CP, relativamente a cada uma das ofendidas.

E constituíram-se como autoras materiais de uma pluralidade de crimes de lenocínio tantos quanto as ofendidas.

Consequentemente improcede este segmento dos recursos das arguidas A... e B... .

1.3.2 - Do recurso interposto pela arguida A...

 - Da medida da pena

A propósito escreveu-se no acórdão recorrido:

“E – Escolha e determinação da medida da pena:

1. Na determinação, dentro da moldura penal abstrata, da medida concreta da pena, seguir-se-á o critério geral dos arts. 71º, n.º 1 e 40º, nos 1 e 2 do Código Penal revisto: em função da culpa do agente, e atendendo ainda às exigências de prevenção de futuros crimes - doutrina essa que se passará seguidamente a descrever, embora de forma naturalmente sintética.

            Os princípios regulativos da atividade de determinação da medida concreta da pena são a culpa e a prevenção, encontrando-se assim tal atividade intimamente ligada à teoria dos fins das penas.

            A culpa estabelece o máximo de pena concreta que não pode, em caso algum, ser ultrapassado. Constitui-se, assim, como um limite inultrapassável pelas considerações de prevenção, o que permite o respeito pelos mandamentos do princípio da culpa.

            Ora, até ao máximo consentido pela culpa, é a medida exigida pela tutela dos bens jurídicos (estabilização das expectativas comunitárias na manutenção ou reforço da vigência da norma violada), ou seja, a prevenção geral positiva ou de integração, que vai determinar a medida da pena. Já a prevenção geral negativa de intimidação constitui-se apenas como um efeito lateral dessa necessidade de tutela dos bens jurídicos, não sendo, pois, por si só, finalidade da pena.

            A medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos oferece-se como uma “moldura de prevenção”, cujo máximo é o ponto mais alto consentido pela culpa e o mínimo resulta do quantum de pena imprescindível à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias (defesa da ordem jurídica). Dentro desta “moldura de prevenção” atuarão irrestritamente as finalidades de prevenção especial, cujo critério decisivo é a medida das necessidades de socialização do agente, as quais irão, em última análise, determinar a medida da pena. Podem ainda funcionar as funções subordinadas de prevenção especial: as de advertência individual ou de segurança ou inocuização.

            Cada um desses princípios regulativos tem subjacente um substrato, ou seja, um conjunto de circunstâncias relativas ao facto e ao agente (não taxativamente previstas no art. 71º, n.º 2 do Código Penal revisto), que auxiliam o julgador nesta tarefa árdua de determinação do quantum concreto de pena. Tais circunstâncias, sendo umas relevantes por via da culpa, outras por via da prevenção, e grande parte delas ambivalentes, devem ser investigadas e sopesadas pelo julgador, à luz dos referidos princípios regulativos, e ainda do princípio da proibição da dupla valoração, de forma a concluir pela aplicação de uma pena concreta ao agente.

            Desta forma, ponderar-se-á em favor das arguidas a ausência de antecedentes criminais, a sua reduzida instrução e modesta condição socioeconómica. Contra as arguidas ter-se-á em consideração a ilicitude da sua conduta, que, porém, não se revela muito elevada (atendendo ao período abrangido e danos produzidos), e que se deve distinguir de acordo com o período em que cada ofendida esteve alojada no apartamento de cada arguida, o modo de execução, e a carga dolosa que lhe subjaz (dolo direto).

Após ponderação global das referidas circunstâncias, à luz dos critérios expostos, entende o tribunal que será adequado aplicar:

- À arguida A... das penas de 1 ano e 9 meses de prisão por cada um dos (três) crimes de lenocínio;

- À arguida B... das penas de 1 ano e 9 meses de prisão (ofendida G... ), 1 ano de prisão (ofendida O... ), 1 ano e 4 meses de prisão (ofendida I... ), 1 ano de prisão (ofendida J... ), e 2 anos e 3 meses de prisão (ofendida H... );

- À arguida C... da pena de 1 ano e 4 meses de prisão pelo único crime de lenocínio que cometeu.

2. Deste modo, sendo necessário efetuar um cúmulo jurídico que englobe as penas parcelares a aplicar às arguidas A... e B... , nos termos do disposto no art. 77º, n.º 1, do Código Penal, a sua moldura (de concurso) terá como limite máximo a soma das penas concretas, e como limite mínimo a pena concreta mais elevada (cfr. art. 77º, n.º 2, do Código Penal). Dentro de tal moldura funcionarão as já referidas exigências gerais de culpa e de prevenção, e ainda o critério especial previsto no art. 77º, n.º 1, in fine - os factos e a personalidade do agente, avaliados em conjunto.

Assim sendo, e considerando fundamentalmente o número e a gravidade dos ilícitos praticados, e o desvalor de personalidade que manifestaram nos factos, com os necessários reflexos ao nível da culpa e da prevenção, não sendo viável afirmar-se que se trata de delinquentes habituais e reiteradas, entende o Tribunal Coletivo serem as penas única de concurso adequadas:

- à arguida A... a pena de 2 anos e 9 meses de prisão;

- à arguida B... a pena de 3 anos e 6 meses de prisão.”

Foram pois aplicados de forma correcta os critérios legais da escolha e medida da pena.

Resta assim, tendo em conta que é a primeira condenação da arguida A... manter a medida concreta das penas parcelares atenta a moldura penal abstracta do crime de lenocínio que lhe vem imputado, em 1 ano e 9 meses de prisão, por justa e adequada às exigências punitivas.

Os crimes ora em apreço estão entre si numa relação de concurso, razão pela qual se procederá à aplicação de uma pena única – art. 77.º, do cód. penal – tendo em conta os critérios legais, traduzidos na apreciação global dos factos e da personalidade da arguida neles reveladas.

Assim, reflectindo novamente, sobre a gravidade dos factos - que ocorreram num período de 15 meses - e o quanto revelam sobre a personalidade da arguida, afigura-se-nos equilibrada e equitativa a pena única de 2 anos e 9 meses que lhe foi aplicada.

Sanções que não põem em causa a finalidade jurídico-criminal de restauração da validade das normas jurídicas violadas, e preservam o valor da reinserção da arguida na comunidade.

Improcede também este segmento do recurso da arguida A... .

1.2 Do recurso interposto pela arguida B...

- Erro de julgamento - impugnação da matéria de facto provada constante dos pontos pontos 2, 9, 10, 11.

Os argumentos invocados pela recorrente, considerando o conjunto da prova produzida e as inferências dedutivas operadas pelo tribunal recorrido, são ineficazes para lograrem o objectivo pretendido no recurso, ou seja o de impor decisão diferente da tomada pelo tribunal.

Por falta de cumprimento do ónus de impugnação especificada, -  a arguida não cumpre, nem nas conclusões, nem na motivação do recurso, o dever de indicar, as passagens do depoimento da testemunha O... - a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido relativamente à ofendida O... , deve dar-se por assente.

No que respeita às razões por que a testemunha G... se dedicava à prostituição - resultou provado que a testemunha G... se dedicasse à prostituição por força das dificuldades económicas que na altura vivenciava - os únicos meios de prova indicados pela recorrente B... para infirmar essa conclusão, são os extractos do depoimento desta testemunha indicados a fls. 1792 dos autos.

Porém, ao contrário do que a recorrente refere, a testemunha G... referiu que fazia “limpezas” na altura em que foi inquirida, ou seja, em 15 de Novembro de 2013 e não na altura dos factos, entre Outubro de 2011 e Maio de 2012. Aliás, disse que fez limpeza doméstica apenas durante dois dias numa empresa cujo nome não foi capaz de indicar.

Por outro lado, disse também que o seu marido faleceu após Maio de 2012 - altura em que regressou ao Brasil -, pelo que a pensão de viuvez referida também não era auferida pela testemunha à data em que se prostituiu no apartamento arrendado pela arguida/recorrente B... .

Relativamente ao recurso da arguida em matéria de facto respeitante à testemunha I... , e como destacou o MP na resposta ao recurso, as declarações desta testemunha não têm qualquer credibilidade e são desmentidas pela própria testemunha neste mesmo depoimento, quando confrontada com declarações por si anteriormente prestadas no processo, tendo então a mesma confessado que contou à arguida B... que se prostituía naquele apartamento, apenas uma semana após começar a habitar o dito apartamento.

Com respeito à matéria de facto relativa à testemunha J... - única prova que indica aquela para sustentar o seu recurso em matéria de facto nesta parte - os excertos das declarações desta testemunha, (memória futura de 18-02-2014) indicados na motivação do recurso, não infirmam os factos dados como provados relativamente a esta matéria no acórdão recorrido.

Conforme se escreve na motivação do tribunal recorrido, “não foi produzida prova direta que permitisse concluir que as testemunhas I... e J... se dedicassem à prostituição por vivenciarem dificuldades económicas e familiares.”

De todo o modo, pela conjugação de toda a prova produzida, resulta um modus operandi, simples mas elucidativo, que ilustra o tipo de prostituição em causa. Veja-se que a I... e a J... cobravam a módica quantia de € 20 a cada cliente. Tanto basta para se perceber, de acordo com as regras da experiência, que visavam suprir dificuldades económicas. Caso contrário - na hipótese de terem emigrado apenas para alcançarem riqueza de forma fácil e rápida - não se sujeitariam à referida tabela de preços.

Tanto basta para se concordar com as ilações retiradas pelo tribunal recorrido.

A prova é analisada pelo tribunal em conformidade com o princípio da livre apreciação da prova, ínsito no art. 127º, do C. Processo Penal. A livre apreciação não significa uma avaliação arbitrária, uma apreciação imotivável e incontrolável, mas antes uma apreciação objectiva, visando alcançar a verdade material. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, “a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais –, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. Uma tal convicção existirá quando e só quando – parece-nos este um critério prático adequado, de que se tem servido a com êxito a jurisprudência anglo-americana – o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará pois, na «convicção», de uma mera opção «voluntarista» pela certeza de um facto e contra a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse.” (Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão, pág. 204 e ss.).

E é a imediação da prova pelo julgador que lhe vai permitir, pela ponderação e comparação de cada um e todos os meios de prova produzidos, alcançar aquela convicção, que o tribunal de recurso apenas poderá censurar quando feita a demonstração de que a concreta opção tomada carece de razoabilidade ou viola as regras da experiência comum.

A versão considerada provada tem efectivo pleno suporte nos meios de prova produzidos, e a sua valoração, nos termos em que foi feita, não revela a violação de qualquer regra da experiência comum. É certo, que tal valoração implicou a desconsideração de alguns meios de prova designadamente, mas o tribunal a quo expôs e explicou, clara e logicamente, a razoabilidade da opção tomada, bem demonstrado tendo ficado, face à prova produzida, o acerto da decisão proferida pelo tribunal recorrido, bem como o pleno respeito pelo art. 127º do C. Processo Penal.

Concluindo, os meios de prova indicados pela arguida B... como impondo decisão diversa da tomada relativamente aos pontos 2, 9, 10, 11 dos factos provados são insusceptíveis de alcançarem aquele desiderato.

Improcede este segmento do recurso da arguida B... .

1.3 Do recurso interposto pela arguida C...

- Erro de julgamento - impugnação da matéria de facto provada constante dos pontos 4 e 9 a 12.

Vem a arguida C... alegar que a prova produzida impõe decisão diferente da que foi tomada no acórdão recorrido, no que se refere aos factos provados nºs 4 e 9 a 12.

Tendo sido documentadas, através de gravação, as declarações prestadas oralmente na audiência de discussão e julgamento, o tribunal de recurso pode conhecer de facto - cf. artigos 363.º e 428.º do CPP -, na vertente alargada, ou seja, para além do que resulta do mero texto da decisão recorrida, por si, ou conjugada com as regras da experiência, posto que se mostrem cumpridos os ónus previstos no artigo 412.º do CPP.

Assim:

1. De harmonia com o n.º 3 do citado preceito, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente especificar:

a. Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b. As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, eventualmente

c. As provas que devem ser renovada], prescrevendo, por seu turno, o n.º 4 do referido artigo 412.º do CPP que «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação».

2. O nível de exigência do recurso em sede de matéria de facto, reforçado com a Reforma de 2007, tem de ser entendido, como vem sendo assinalado pelos tribunais superiores, de que os recursos constituem remédios jurídicos destinados a corrigir erros de julgamento, não configurando, como tal, o recurso da matéria de facto para a Relação um novo julgamento em que este tribunal aprecia toda a prova produzida na 1.ª instância como se o julgamento ali realizado não existisse – cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 15.12.2005, 09.03.2006, 04.01.2007, proferidos respectivamente nos procs. n.º 05P2951, n.º 06P461, n.º 4093/06 – 3.ª.

Por outro lado,

3. «A especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida … que considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença», sendo que «A exigência legal de especificação das “concretas provas” só se queda satisfeita com a indicação do conteúdo específico do meio de prova …» - cf. acórdão do TRC de 22.10.2008, proferido no proc. n.º 1121/03.3TACBR.C1.

Significa, pois, que «… o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso da matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (…), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (…) nos pontos incorretamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no seu entender, impõem decisão diversa da recorrida» - cf. acórdão do STJ de 24.10.2002, proc. n.º 2124/2 – ( sublinhado nosso).

O que não se confunde com a eventualidade de uma outra leitura da prova, pois caso a mesma consinta duas ou mais decisões de facto e o julgador, fundamentadamente, opte por uma delas em detrimento das outras, a decisão que proferir sobre a matéria de facto é, em princípio, inatacável.

4. A não observância nem nas conclusões nem na correspondente motivação, em toda a sua extensão, dos ónus de impugnação inviabiliza o convite ao aperfeiçoamento.

Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça tem-se vindo a pronunciar no sentido de que o seu não cumprimento não justifica o convite em referência uma vez que só se pode corrigir o que está mal cumprido e não o que se tem por incumprido – cf., entre outros, os acórdãos de 17.02.2005 (proc. n.º 05P058), 09.03.2006 (proc. n.º 06P461), 28.06.2006 (proc. n.º 06P1940), 04.10.2006 (proc. n.º 812/06 – 3.ª), 04.01.2007 (proc. n.º 4093/06 – 3.ª e de 10.01.2007 (proc. n.º 3518/06. – 3.ª)], solução que o Tribunal Constitucional já considerou não violar o direito ao recurso, como decidiu no acórdão n.º 259/02, de 18.06.2002 (DR II Série, de 13.12.2002), posição retomada no acórdão n.º 140/04 (DR II Série, de 17.04.2004).

Revertendo aos autos, sobre a concreta impugnação da recorrente C... é manifesto o propósito em provocar a sindicância alargada da matéria de facto, fazendo alusão às próprias declarações prestadas em audiência e ao depoimento da testemunha G... prestado para memória futura. Omite, porém, nas conclusões e na motivação quais as concretas passagens das declarações e depoimentos, que, na sua perspectiva, impunham que se desse como não provada a matéria de facto descrita nos factos dados como provados no acórdão sob recurso. Inevitavelmente as «concretas provas» indicadas não surgem correlacionadas com cada um daqueles, e porque apela a prova que – mesmo em face do teor dos seus argumentos – se revela incapaz de «impor» decisão diversa da recorrida.

Como resulta da análise da motivação de facto acima transcrita, a decisão do tribunal recorrido encontra-se devidamente fundamentada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção, justificando os motivos que levaram a dar credibilidade à versão dos factos resultante do conjunto da prova produzida, permitindo aos sujeitos processuais e a este tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que subjaz à convicção do julgador.

Através da motivação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida fica-se ciente do percurso efectuado pelo tribunal a quo onde seguramente a racionalidade se impõe mas onde a livre convicção se afirma com apelo ao que a imediação e a oralidade e justificando a convicção formada quanto à matéria em causa de forma lógica e de acordo com as regras da experiência comum.

Por isso, não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, nenhuma censura merece o juízo valorativo acolhido em 1ª instância.

Em suma, à recorrente C... incumbia indicar com precisão onde, em seu entender, foi cometido o erro e indicar os meios que inequivocamente o demonstram, pois a modificação da decisão de facto só pode dar-se se e quando as provas especificadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da recorrida e não, quando apenas permitam decisão diversa.

Contudo, resultando igualmente incumpridos os ónus de impugnação nas vertentes assinaladas, transparecendo, antes, com nitidez o propósito da recorrente em sobrepor a sua convicção àquela, de sinal contrário, que foi a do tribunal, impõe-se realçar que a alteração legislativa de 2007 impos ao recorrente um ónus acrescido de relacionar o específico facto impugnado com a concreta prova que reclame outra solução.

A recorrente C... não cumpriu com essa imposição.

De notar que a recorrente afirma que “está registado nos autos e transcrito o depoimento prestado pela testemunha G... em declarações para memória futura nos termos previstos no artigo 271.º do Cod. Penal. Esse depoimento é todo ele conforme com o depoimento da arguida prestado em julgamento. Lido este depoimento, para o qual se remete, verifica-se que – só no final – a testemunha admite que a partir de determinada altura a arguida C... ficou a saber que a testemunha G... se prostituía no apartamento.”

Ora, como bem salienta o MP na sua resposta, tal referência, em nada infirma os factos dados como provados, antes pelo contrário, apenas os confirma e corrobora, pois que a testemunha “acabou por dizer que efectivamente disse à arguida C... que se prostituía naquele apartamento, assim deitando por terra a versão da arguida de que nunca soube deste facto…”

Impõe-se, portanto, perante a apontada inobservância, concluir que se mostra prejudicada a sindicância da matéria de facto na modalidade alargada, isto é para além do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, sendo, na sobredita vertente, o recurso da arguida C... rejeitado.

- Do vício de erro notório na apreciação da prova

De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 410.º, do CPP, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

Em qualquer das referidas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos estranhos àquela para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.

Os vícios do artigo 410.º, n.º 2 são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei.

Neste caso, o objecto da apreciação é apenas a peça processual recorrida.

Porém, os vícios do artigo 410.º, n.º 2 não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questão do âmbito da livre apreciação da prova, princípio ínsito no citado normativo.

Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.

Como resulta quer da motivação, quer das conclusões do recurso, é manifesto que a recorrente confunde o âmbito dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, com o recurso versando a matéria de facto, isto é, com o chamado erro de julgamento.

Apenas assim se compreende que a recorrente invoque o apontado vício como corolário da sua apreciação da prova produzida, confundindo, pois, vícios da decisão judicial com o erro de julgamento.

Trata-se, na verdade, de opções processuais distintas, reclamando tratamento diferenciado.

A divergência entre o que na sentença se deu como provado e aquilo que deveria ter sido dado como provado traduz erro de julgamento da matéria de facto, sindicável pelo tribunal superior se tiver havido documentação da prova produzida em audiência e o recorrente interessado na respectiva impugnação observar, em sede de recurso, o que dispõe o artigo 412.º.

A arguição deste vício nos termos legalmente previstos desencadeia a reapreciação da matéria de facto à luz da prova produzida em audiência e pode conduzir à alteração da factualidade provada.

Já a arguição dos vícios previstos no artigo 410.º pressupõe que estes resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, portanto, sem recurso à reapreciação da prova produzida em audiência, não permitindo sindicar a matéria de facto nos termos amplos em que o consente a invocação de erro de julgamento mediante impugnação da matéria de facto provada, e conduzirá, normalmente, ao reenvio do processo para novo julgamento, total ou parcial.

Invoca a recorrente o erro notório na apreciação da prova por entender que das suas declarações, em conjugação com as regras da experiência comum, não se pode retirar a conclusão de que soubesse que a testemunha G... se dedicava à prostituição no apartamento referido e dessa actividade retirasse rendimentos para si própria.

Pela simples leitura do acórdão recorrido, resulta manifesto que para além das declarações da arguida, o tribunal recorrido apreciou e conjugou outra prova, como sejam o depoimento para memória futura prestado pela testemunha G... e os documentos referidos no ponto 7 da fundamentação relativa aos factos dados como provados.

Da conjugação de tal prova com as regras da experiência impõe-se concluir que tendo o apartamento apenas dois quartos, uma cozinha, um quarto de banho e entrada - auto de busca e apreensão e respectivo croquis do apartamento em questão a fls. 170, conforme  convicção quanto à matéria de facto provada – cfr. 1738) - necessariamente a arguida C... - que aí também se dedicava à prostituição de forma regular - tinha que se aperceber  da entrada de diversos clientes por dia para o quarto em que se encontrava a  testemunha G... , já que esta aí se prostituiu durante vários meses (dois a três dias por semana, senão mesmo diariamente).

A este propósito escreveu-se na motivação do acórdão recorrido: “Contudo, confirmando a arguida C... que ela própria utilizava o mesmo apartamento para ali se prostituir, onde a testemunha G... se deslocava duas a três vezes por semana, senão mesmo diariamente, como a arguida confessou, não podia esta ignorar que aquela ali se prostituía, até porque ela própria o fazia, disse, quando a G... ali se encontrava, circunstância aliás ocorrida no momento da busca, tendo esta anúncios no jornal relativos à sua atividade sexual.”

Por outro lado, é insustentável admitir que alguém que alegava dificuldades económicas para se sustentar, porque estava desempregada e vivia a expensas do namorado, se desse ao luxo de gastar 150 euros por mês num apartamento apenas para ali se encontrar com o namorado - ponto 3 dos factos provados.

E como alerta o MP - a recorrente “não poderia não se aperceber dos anúncios colocados em jornais ( KK... e Diário de y (...) ) pela dita G... a publicitar a sua actividade de prostituição naquele local, quando a própria arguida C... também colocava anúncios do mesmo género, na mesma altura, nos mesmos jornais.”

O erro notório na apreciação da prova é um vício que se verifica “quando da factualidade provada se extraiu uma conclusão ilógica, irracional e arbitrária ou notoriamente violando as regras da experiência comum” BMJ nº476, pág. 253., ou seja, sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal. Trata-se de um erro ostensivo, patente e de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, é facilmente detectado pelo homem médio - Cfr. Acórdãos do S.T.J. de 22/11/89 - BMJ nº391, pág. 433 e de 26/09/90 - BMJ nº399, pág. 432.

Ocorre também erro notório quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis - Simas Santos, Leal Henrique e Borges de Pinho, Código de Processo Penal – 2º Vol., 1996, pág.515..

É através da indicação das provas que serviram para formar a convicção do julgador e do seu exame crítico, que o tribunal de recurso vai poder verificar se o tribunal “a quo” seguiu ou não um processo lógico e racional na apreciação da prova, isto é, vai revelar o raciocínio feito para se chegar a determinado convencimento.

Ora, constando da decisão recorrida os elementos que em razão das regras de experiência e de critérios lógicos, constituíram o substrato racional – que se apresenta em perfeita harmonia lógico-dedutiva e descritiva - que conduziu à convicção do Tribunal a quo quanto à matéria de facto dada como provada, da respectiva análise conclui-se que não padece de qualquer erro na apreciação da prova e muito menos notório.

Aliás, não se verifica nenhum dos vícios elencados no art. 410º, nº2 do Código de Processo Penal.       

            Improcede também este segmento do recurso da arguida C... .


*

IV Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento aos recursos, mantendo-se o acórdão recorrido.

Condenam cada uma das arguidas e recorrentes em 4 (quatro) U.C.s de taxa de justiça.

Coimbra, 28 de Fevereiro de 2018

(Texto processado e integralmente revisto pela signatária – artigo 94.º,n.º 2, do CPP.)

Isabel Valongo (relatora)



Jorge França (adjunto)