Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1162/07.1TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA
PROVA DE ARBITRAMENTO
Data do Acordão: 05/06/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Legislação Nacional: ARTIGOS 520.º; 521.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. Na hipótese da prova por arbitramento, o fundamento da antecipação da sua produção traduz-se no perigo de se apagarem os vestígios dos factos que se pretendem verificar, devido ao justo receio de impossibilidade futura da produção da prova dos mesmos, ou, ainda que não se extingam de todo, tenderem a perder o relevo e a sua significação característica.
2. Invocado e demonstrado, sumariamente, o «periculum in mora», não se deve ser, demasiadamente, exigente na sua apreciação, não se tornando necessário que o Tribunal adquira a segurança completa de que o mesmo existe, bastando que a justificação produzida pelo requerente o habilite a formar um juízo de probabilidade ou de verosimilhança.
3. Invocando-se, como fundamento do pedido de produção antecipada da prova por arbitramento, a resolução do contrato de empreitada celebrado com a requerida, devido à existência de alegados defeitos na obra e à ultrapassagem do prazo acordado para a sua conclusão, e o recurso à colaboração profissional de um outro empreiteiro, o que implicará a eliminação dos defeitos existentes, está alegado o justo receio de que, na acção principal a propor, venha a ser já impossível a verificação dos defeitos da obra, por os mesmos, entretanto, irem ser afastados, podendo a remoção próxima dos invocados defeitos, com vista à sua eliminação e ao prosseguimento imediato da obra, vir a comprometer, no futuro, aquando da propositura da acção, a apreciação da sua existência, extensão e significado, atendendo à grande dificuldade de, então, obter a produção da prova indispensável para tanto.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A...., ladrilhador, residente em ….., interpôs recurso de agravo da decisão que indeferiu a produção antecipada de prova, por si requerida, contra B....com sede em ……, terminando as suas alegações, com o pedido da sua revogação, caindo, também, o despacho que recaiu sobre
o pedido de aclaração, e substituição por outra que defira a realização da produção antecipada de prova, formulando as seguintes conclusões:

1ª – O requerente veio a Juízo pedir a produção antecipada de prova regulada nos artigos 520° e 521° do Código de Processo Civil.
2ª - Para tanto, alegou e documentou estar em litígio com uma empresa de construção civil, aqui requerida, com quem contratara a construção duma casa, iniciada mas não concluída, com faltas e defeitos em relação ao acordado, tendo havido já resolução do contrato em causa.
3ª - Alegou também a contratação de novo empreiteiro, bem como o propósito imediato de prosseguimento e conclusão dos trabalhos, uma vez efectuada a diligência judicial impetrada.
4ª - Alegou ainda que irá processar a requerida por incumprimento contratual, em processo que revestirá necessariamente a forma ordinária, atentos os valores contratuais em jogo e o disposto, imperativamente, no artigo310°, n°1, do CPC.
5ª - Por último, por se tratar de prova pericial, "mencionou com precisão os factos sobre que há-de recair", para nos atermos à letra da lei, isto é, indicou exaustivamente o objecto da perícia (cfr. diversas alíneas do artigo 18o da p.i.).
6ª - Dito de outro modo, o alegante deu total satisfação às exigências formais e de fundo a que se referem, respectivamente, os artigos 521° e 520°, já acima citados.
7ª - A decisão de rejeição do peticionado assenta num duplo equívoco, como tal, sistematizado que, bem vistas as coisas, se pode fundir num só.
8ª - E esse é o da impropriedade do meio processual utilizado, tendo em atenção o fim em vista, a saber, o atestado do estado duma obra, alegadamente com faltas e defeitos, quando se anuncia a sua continuação e acabamento.
9ª - E é também o da inexistência de alegação de factualidade por força da qual os meios de prova em questão, ou seja, as faltas e defeitos da obra, seriam passíveis de desaparecimento por recusa de realização da diligência requerida.
10ª - A prova pericial é a princesa do elenco respectivo, como tal justamente etiquetada, logo a seguir à rainha das ditas, que é a prova documental e muito acima, na hierarquia correspondente, à prova testemunhal, justamente apostrofada pela sua falibilidade.
11ª - O requerente tem direito a processar a requerida pela ilicitude da conduta que lhe assaca e irá fazê-lo.
12ª - Mas, irá, não quer dizer que a instrução do processo respectivo pela realização duma vistoria suceda dum momento para o outro, sendo de todo em todo imprevisível o quadro temporal da sua ocorrência.
13ª - Ora, o recorrente tem também direito a continuar e concluir a obra em apreço no menor lapso de tempo, destinada a sua habitação, direito este último, inclusive, com dignidade constitucional.
14ª - Porém, esses trabalhos suplementares passam, naturalmente, por eliminação de defeitos e supressão de faltas.
15ª - Cândido Figueiredo, no seu Grande Dicionário da Língua Portuguesa, 10a edição, volume I, p. 944, ensina que eliminar é fazer sair, expulsar, excluir, suprimir, fazer desaparecer.
16ª - E, no volume II da dita obra, agora a p. 1096, refere que suprimir é extinguir.
17ª - Assim, o prosseguimento da obra passará pelo desaparecimento de faltas e defeitos.
18ª - Mas são precisamente esses vícios e omissões que constituem a causa de pedir da acção de indemnização que o requerente irá instaurar contra a requerida e de cuja prova aquele terá o respectivo ónus.
19ª - Sendo assim, como é, ou o requerente espera pelo trânsito em julgado da sentença da dita acção, o que pode demorar anos, para, só depois, concluir a obra.
20ª - Ou parte já para este tipo de trabalho e fica sem prova segura, como é a pericial, à sua disposição, no contexto da acção nova, com os riscos correspondentes.
21ª - Na verdade, defeitos e faltas da obra serão consumidos pelo recomeço dos trabalhos.
22ª - Para obviar a uma dessas situações é que o legislador pensou e escreveu a disciplina da produção antecipada de prova.
23ª - Por último, mesmo que o articulado inicial em questão fosse omisso e (ou) insuficiente na sua teorização, o que se não aceita, nem assim o tribunal a quo podia rejeitar a pretensão do alegante, antes, sim, convidá-lo ao seu aperfeiçoamento.
24ª - O despacho posto em crise fez errada interpretação e (ou) aplicação, por acção e (ou) omissão, de todas as disposições legais aludidas ao longo desta peça, aqui tidas por reproduzidas e integradas.
Não foram apresentadas contra-alegações. 
O Exº Juiz sustentou a decisão questionada, entendendo não ter causado qualquer agravo ao recorrente.
Este Tribunal da Relação considera que se encontram provados, com interesse relevante para a decisão do mérito do agravo, os seguintes factos:
1 – O recorrente alegou, para o efeito de fundamentar a providência solicitada, ter celebrado um contrato de empreitada com a requerida, mediante o qual esta se comprometeu a construir uma moradia, mas que ficou por concluir, no prazo máximo para a sua realização, em 10 de Outubro de 2006, apesar de já ter sido paga, para além de apresentar um conjunto de defeitos, sendo que irá recorrer a outro empreiteiro para continuar a obra, e o recomeço dos trabalhos contende com o estado actual da mesma e implica a eliminação e remoção de tais defeitos, interessando, assim, saber em que fase a obra se encontra, para continuar a construção, o que não se compadece com as delongas da acção que irá ser instaurada contra a requerida.
2 – A decisão recorrida considerou, no essencial, que a produção antecipada de prova não pode ser um meio de se averiguar do estado em que se encontra determinada construção, tendo como escopo permitir que se possa proceder à sua continuação ou acabamento, mas apenas o meio de acautelar a prova de factos já ocorridos e que venham a ser de muito difícil verificação no futuro.

  

                                                               *

Tudo visto e analisado, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

A única questão a decidir, no presente agravo, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), consiste em saber se existe fundamento legal para o deferimento da diligência da produção antecipada de prova.


                 DA PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA

Dispõe o artigo 520º, do CPC, a propósito da produção antecipada de prova, que “havendo justo receio de vir a tornar-se impossível ou muito difícil o depoimento de certas pessoas ou a verificação de certos factos por meio de arbitramento ou inspecção, pode o depoimento, o arbitramento ou a inspecção realizar-se antecipadamente e até antes de ser proposta a acção”.
Para o efeito, o requerente da prova antecipada justificará, sumariamente, a necessidade da antecipação, mencionará com precisão os factos sobre que há-de recair e, quando a diligência seja solicitada antes da propositura da acção, há-de indicar-se, sucintamente, o pedido e os fundamentos da demanda e identificar-se a pessoa contra quem se pretende fazer uso da prova, em conformidade com o preceituado pelo artigo 521º, nºs 1 e 2, do CPC.
Sendo certo que o período normal de produção de prova se inicia com a abertura da instrução, pode acontecer que, em certos casos, assuma carácter urgente, incompatível com a espera pelo momento normal ou oportuno ou com o risco da sua perda, se houver de aguardar-se pela fase processual própria para a sua realização.
Assim sendo, a justificação sumária do fundamento legal da produção antecipada de prova depende da existência de justo receio de vir a tornar-se impossível ou muito difícil o depoimento de certas pessoas ou a verificação de certos factos, por meio de arbitramento ou inspecção, no decurso do período normal da instrução.
Na hipótese da prova por arbitramento ou inspecção judicial, o fundamento da antecipação traduz-se no perigo de se apagarem os vestígios dos factos que se pretendem verificar.
Tratando-se da situação de justo receio de impossibilidade futura da produção da prova, os vestígios dos factos que se pretendem fixar, através do arbitramento ou da inspecção judicial, estão prestes a desaparecer, enquanto que, na situação de grande dificuldade, os vestígios dos factos, ainda que não se extingam de todo, tendem a perder o relevo e a sua significação característica.
Entretanto, o arbitramento ou a inspecção judicial podem realizar-se, antecipadamente, sendo requerido em processo já pendente, ou antes de ser proposta a acção, enquanto acto preventivo e preparatório de uma acção futura.
Porém, a diligência da produção antecipada de prova, tendo embora grande afinidade com as providências cautelares, dado que se pretende, através delas, evitar um prejuízo que se receia, o denominado «periculum in mora», que consiste na possibilidade de desaparecer ou de se tornar muito difícil a produção de determinada prova, se houver de esperar-se pela fase normal da instrução do processo, distingue-se destas, por lhe faltar o requisito da aparência do direito, o designado «fumus boni iuris», o qual, nas providências cautelares, ao contrário do que sucede com a diligência da produção antecipada de prova, se contenta com a justificação sumária da necessidade da antecipação.
Invocado e demonstrado, sumariamente, o «periculum in mora», não se torna necessário que o Tribunal adquira a segurança completa de que o mesmo existe, bastando que a justificação produzida pelo requerente o habilite a formar um juízo de probabilidade ou de verosimilhança[1].
Efectivamente, a produção antecipada de prova consiste num incidente destinado a acautelar a produção de prova e não a proteger o direito, sendo o seu fim a própria prova que, uma vez produzida, esgota, com carácter definitivo, a finalidade a que tendia, enquanto que, no procedimento cautelar, o fim visado é a tutela do direito, ainda que de forma provisória e precária, com vista a obter uma decisão, como acto preparatório da acção a propor[2].
Revertendo ao caso em apreço, importa reter que o requerente, como fundamento do pedido de produção antecipada da prova por arbitramento, considerando a pretensão de resolver o contrato de empreitada que celebrou com a sociedade requerida, devido à existência de alegados defeitos na obra e à ultrapassagem do prazo acordado para a sua conclusão, e de recorrer à colaboração profissional de um outro empreiteiro, o que implicará a eliminação dos defeitos existentes, invoca o justo receio de, na acção principal a propor, ser impossível, por via disso, a verificação dos defeitos da obra, por os mesmos terem sido, entretanto, removidos.
Assim sendo, independentemente da viabilidade do mérito da futura acção a propor, com o fundamento invocado pelo requerente que, para o efeito do deferimento da diligência de produção antecipada de prova não interessa considerar[3], importa reconhecer, manifestamente, que a remoção próxima dos invocados defeitos, com vista à sua eliminação e ao prosseguimento imediato da obra, pode vir a comprometer, no futuro, aquando da propositura da acção, a apreciação da sua existência, extensão e significado, atendendo à grande dificuldade de, então, obter a produção da prova indispensável para tanto.
 E isto, sem esquecer que se não deve ser, demasiadamente, exigente na apreciação do «periculum in mora», bastando, como já se disse, que a justificação produzida pelo requerente habilite o Tribunal a formar um juízo de probabilidade ou de verosimilhança.
Além do mais, o requerente mencionou, com precisão, os factos sobre que há-de recair a diligência, indicando, sucintamente, pois se trata de uma providência solicitada antes da propositura da acção, o pedido, os fundamentos da demanda e a identificação da pessoa contra quem se pretende fazer uso da prova.
Importa, assim, deferir a diligência de produção antecipada de prova solicitada pelo requerente, verificados que estão a totalidade dos requisitos indispensáveis para a sua procedência.

                                                    *

CONCLUSÕES:

I - Na hipótese da prova por arbitramento, o fundamento da antecipação da sua produção traduz-se no perigo de se apagarem os vestígios dos factos que se pretendem verificar, devido ao justo receio de impossibilidade futura da produção da prova dos mesmos, ou, ainda que não se extingam de todo, tenderem a perder o relevo e a sua significação característica.
II - Invocado e demonstrado, sumariamente, o «periculum in mora», não se deve ser, demasiadamente, exigente na sua apreciação, não se tornando necessário que o Tribunal adquira a segurança completa de que o mesmo existe, bastando que a justificação produzida pelo requerente o habilite a formar um juízo de probabilidade ou de verosimilhança.
III – Invocando-se, como fundamento do pedido de produção antecipada da prova por arbitramento, a resolução do contrato de empreitada celebrado com a requerida, devido à existência de alegados defeitos na obra e à ultrapassagem do prazo acordado para a sua conclusão, e o recurso à colaboração profissional de um outro empreiteiro, o que implicará a eliminação dos defeitos existentes, está alegado o justo receio de que, na acção principal a propor, venha a ser já impossível a verificação dos defeitos da obra, por os mesmos, entretanto, irem ser afastados, podendo a remoção próxima dos invocados defeitos, com vista à sua eliminação e ao prosseguimento imediato da obra, vir a comprometer, no futuro, aquando da propositura da acção, a apreciação da sua existência, extensão e significado, atendendo à grande dificuldade de, então, obter a produção da prova indispensável para tanto.

         

                                                               *

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar provido o agravo e, em consequência, revogam a decisão recorrida, que deverá, com base na prova perfunctória analisada, decretar a diligência da produção antecipada de prova por arbitramento requerida.

                                                       *

 Custas, a cargo da agravada ..….


[1] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, 1981, 331 a 337; Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III; 2001, 83 e 84.
[2] RL, de 12-10-95, CJ, Ano XX, T4, 109.
[3] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, 1981, 337.