Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
10/18.1TXCBR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: PERDÃO DE PENA
Data do Acordão: 10/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE EXECUÇÃO DAS PENAS – JUIZ 2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 2.º E 10.º DA LEI N.º 9/2020, DE 10 DE ABRIL
Sumário: O perdão previsto no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, verificados que sejam os demais requisitos legais, pode ser aplicado tanto a condenados que sejam reclusos à data da entrada em vigor daquele diploma (11-04-2020), como a condenados que, no decurso da vigência da mesma Lei, venham a estar na situação de reclusão.
Decisão Texto Integral:







Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                                      

                                                                                                                                   
I - Relatório:

1. No âmbito do Processo n.º 10/18.1TXCBR-B do Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, Juízo de Execução das Penas de Coimbra – Juiz 2, ao abrigo do disposto no art. 2º nº 1 da referida Lei 9/2020, foi declarada perdoada a pena única de 1 ano de prisão, aplicada ao condenado L., pelo cometimento de um crime de violação de proibições e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por decisão imposta no proc. 13/19.9SFGRD, que transitou em julgado no dia 19/2/2020 e cujo cumprimento o condenado iniciou no dia 26/6/2020, estando o seu termo previsto para 25/6/2021.

2. Inconformado com a decisão recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:

“1. O perdão previsto da lei 9/2020, de 10/04, que estabeleceu um regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, não é aplicável aos condenados que ainda não eram reclusos à data da sua entrada em vigor, mesmo que a sentença condenatória tenha transitado em julgado antes dessa data – 11/09472020.

2. Este é o entendimento sufragado no parecer 10/20 do Conselho Consultivo da PGR: “(…) O âmbito de aplicação subjetivo desta lei é muito claro. Como refere Nuno Brandão: «as circunstâncias extintivas ou flexibilizadoras do cumprimento da pena de prisão previstas na Lei n.º 9/2020 só são aplicáveis a condenados que se encontrem a cumprir pena de prisão no momento da sua entrada em vigor (11.04.2020). Com efeito, além de exigirem o trânsito em julgado da sentença condenatória em pena de prisão, tais medidas pressupõem ainda que a execução dessa pena se encontre já em curso. As razões excecionais que determinaram a aprovação da presente Lei só valem em relação aos condenados que se encontrem privados da liberdade no momento da sua entrada em vigor. Nessa medida, e para que fique claro que só esses condenados são destinatários deste regime excecional, nos artigos 2.º/1, 3.º/1 e 4.º/1 faz-se menção expressa aos reclusos – sc., os condenados privados da liberdade – como destinatários deste regime excecional.

(…) Na verdade, o elemento gramatical é bastante claro: «são perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado» (art.2.º, n.º 1);

«são também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado» (art. 2.º, n.º 2); e «o perdão (…) é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei» (art. 2.º, n.º 7). Em todos os casos, é pressuposto desta medida de graça que o beneficiário seja recluso e esteja condenado por sentença transitada em julgado, id est, que esteja em cumprimento de pena.”

3. As medidas excepcionais previstas nesta lei visaram, fundamentalmente, uma célere redução, com a equidade e proporcionalidade possíveis, do número de reclusos, de molde a conseguir-se uma mais eficaz resposta do sistema prisional em situação de infecção pelo coronavírus; daí que na lei se aluda sempre, e no âmbito subjectivo de aplicação, a condenados reclusos.

4. Ao interpretar a lei, o intérprete e aplicador não pode nunca desconsiderar a correspondência verbal com o diploma; e ao fixar-lhe o seu sentido e alcance, deverá presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados - cf. artigo 9º, do código civil.

5. As normas legais excepcionais – e esta lei 9/2020 é inequivocamente uma lei excepcional - não comportam aplicação analógica – cf. artigo 11º, do mesmo código -, sendo que as leis de amnistia ou de perdão, como normas excepcionais que são, não admitem interpretação extensiva ou restritiva, devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas.

6. O que lei 9/2020 consagrou, entre outras medidas, foi um perdão excepcional e não uma amnistia de crimes, num período de Estado de Emergência, entretanto cessado.

7. A dinâmica da lei 9/2020 deve respeitar os marcos previamente definidos e reportar-se a reclusos que o sejam no momento da sua entrada em vigor - 11 de Abril - e que no período da sua vigência adquiram as demais condições de perdão – remanescente inferior a dois anos em situação de cumprimento sucessivo de penas ou pena única inferior a dois anos atingido que seja o meio dela, posto que os crimes cometidos não estejam excluídos do seu âmbito de aplicação –, e termina nesses limites, não podendo ser extrapolada, comparando-se situações e injustiças dela decorrentes, sob pena de se poder dar o caso de o perdão assentar em “vontades” exteriores ao próprio sentido legal, como sejam, por exemplo, os casos de condenados contumazes que se apressariam a apresentar-se para prisão para que lhes fosse de seguida perdoada a pena, os casos de condenados em pena em execução em regime de permanência na habitação, que não foram visados pelo perdão e que para terminar com esse regime mais não teriam do que forçar a revogação desse regime, cortando a pulseira electrónica, e, de seguida, serem presos para logo serem libertados por via da aplicação desse perdão.

8.Estamos perante uma lei que previu um perdão por razões sanitárias muito específicas e, por conseguinte, tem ela de ser interpretada dentro dos limites estabelecidos, com as consequências decorrentes, quer no que tem de justo, quer no que possa ter de injusto aos olhos da comunidade.

9. E não valerá o argumento de que a situação de pandemia ainda acontece, porque, por essa via, e parece que a pandemia veio para ficar, nunca mais um condenado cumprirá pena inferior a dois anos, ainda que os tribunais de condenação os continuem a julgar, a condenar e a prender, num trabalho inglório, porque logo o tribunal de execução das penas os irá libertar, fazendo uma interpretação da lei que acaba por transformar um perdão excepcional numa amnistia de crimes.

10. Não podemos perder de vista o carácter excepcional desta lei e as específicas circunstâncias que motivaram a sua publicação, sendo que a diferenciação de tratamento assente em motivações objectivas, razoáveis e justificadas, não é atentatória do princípio da igualdade.

11.Decidiu mal a senhora juíza ao declarar perdoada a pena e ordenar a libertação do condenado.

12.O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 1º e 2º da lei 9/2020, de 10/04.

13. Deve ser revogado e substituído por outro que declare não perdoada a pena, emitindo-se o necessário e novo mandado de detenção.”


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3. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

4. Ao recurso respondeu o arguido/condenado, concluindo:

“31 - É facilmente percetível que não se fará justiça privando novamente este cidadão da liberdade, que não obstante tendo caído nas teias do crime, voluntariamente se encontrava a cumprir a sua pena de forma exemplar e foi libertado por decisão do tribunal.

32 - Não é legítimo que agora que se tenta reerguer, o que se prova porque foi de imediato trabalhar para dessa forma prover ao sustento da sua família, seja novamente detido e sujeito a nova quarentena em isolamento.

33 - Importa ainda aludir às consequências nefastas que o condenado poderá vir a sofrer ao ver revogada a decisão que o libertou: total descrença e descredibilização do sistema penal e por revolta a adoção por parte do condenado de comportamentos censuráveis de que até à data sempre se afastou.

34 - O regime de perdão excepcional previsto na Lei 9/2020 foi bem aplicado ao casu sub judice.

Termos em que deve ser negado provimento ao Recurso apresentado e consequentemente manter-se a Douta Decisão Recorrida, para se fazer como sempre a Completa e Inteira JUSTIÇA!”

5. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:

“1.O presente recurso, interposto pelo Ministério Público, visa impugnar o despacho proferido em 14/07/2020, no Processo n.º 10/18.1TXCBR, J 2, do Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, que se reporta à aplicação do perdão previsto na lei n.º 9/2020, de 10 de Abril ao caso do arguido L. que foi condenado, por decisão proferida no processo 13/19.9SFGRD, que transitou em julgado em 19 de Fevereiro de 2020, num pena única de 1 ano de prisão pela prática dos crimes de violação de proibições e de condução em estado de embriaguez.

O arguido iniciou o cumprimento da pena no dia 26-06-2020.

O despacho recorrido considerou que deverá à situação exposta ser aplicado o perdão do citado diploma legal, no seu art.º 2º, sob condição resolutiva do beneficiário não praticar infracção dolosa no ano subsequente.

2. Por discordar do sentido desta decisão judicial, apresenta o Ministério Público o presente recurso, pedindo que o despacho seja revogado por violação do disposto nos artigos 1º e 2º da lei n.º 9/2020, de modo que possa ser determinado o cumprimento da pena de prisão supra referida.

Fundamentalmente e atentas as conclusões de recurso apresentadas, defende-se que a citada lei só pode ser aplicada a reclusos, isto é, a arguidos condenados que estejam em efectivo cumprimento de pena de prisão no momento da sua entrada em vigor e não é o caso.

A lei em causa é uma lei de carácter excepcional e temporário justificado pela existência de uma situação de infecção epidemiológica que conduziu à declaração do estado de emergência no país.

Quer o espírito da lei, quer a intenção do legislador, expressa aliás, na exposição de motivos da citada lei, entre outros argumentos, apontam no sentido da interpretação apresentada na motivação de recurso.

Para concluir por pedir a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que ordene o cumprimento da pena de prisão.

Ao recurso apresentou resposta o arguido, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

3. O mesmo, porque interposto em tempo, foi admitido para subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo, nenhuma circunstância obsta ao seu conhecimento.

4. Sobre o objecto do recurso, deveremos dizer que se mostra devidamente fundamentada a posição assumida pelo Ministério Público discordante do despacho recorrido, sustentada nos mesmos pressupostos que o mesmo despacho aceita e que estão em causa na análise que se impõe de acordo com a motivação de recurso.

Com efeito, parece-nos fundamental ter presente os ditames jurisprudenciais resultantes das decisões dos nossos tribunais superiores, em concreto do Supremo Tribunal, referenciados na douta motivação de recurso, quanto à proibição, diríamos, de aplicação de interpretações extensivas ou analógicas das leis que concedem perdões e amnistias.

De facto, o legislador expressou-se no texto legal na exacta forma em que o pretendeu fazer, no caso em apreço motivado por razões específicas, excepcionais e de natureza temporária que referenciou desde logo na exposição de motivos, quando prevê que o perdão se aplica apenas a cidadãos reclusos, expressão que em termos técnico-jurídicos, ou mesmo literais, não apresenta qualquer dúvida quanto ao seu âmbito.

Aliás, acresce que o legislador teve o especial cuidado em atribuir a competência para aplicação da lei em causa, aos Tribunais de Execução de Penas, nos termos do n.º 8 do seu art.º 2, com o mesmo sentido de delimitar, limitando a aplicação da lei aos reclusos à data da sua entrada em vigor, quando é certo que noutras leis de concessão de perdão e de amnistia publicadas no passado tal não acontecia, cabendo aos Tribunais de Condenação a aplicação destas leis.

Em boa verdade, o sentido e o espírito da lei podem encontrar-se na pressão da sobrelotação dos estabelecimentos prisionais no apontado contexto do decretado “Estado Emergência” que se vivia à data e, tratando-se de uma lei excepcional e temporária não pode considerar-se como relevante, salvo o devido respeito, que a pandemia ainda não terminou e que o problema de saúde pública não se encontra ultrapassado, na medida em que o “Estado de Emergência”, legalmente, já cessou.

Sendo certo que a pandemia ainda não terminou, vigoram, porém, neste momento diferentes medidas e restrições menos rigorosas impostas por outras normas legais.

Contudo, evitando desnecessárias repetições à bem fundamentada motivação de recurso, que se nos afiguram desnecessárias, vamos concluindo por considerar que o douto despacho recorrido deve ser revogado, sendo certo que não se mostra violado, na hipótese de solução colocada pelo presente recurso, algum princípio constitucional, designadamente, o princípio da igualdade, pois que hipóteses como as que se colocam do despacho recorrido tratam situações e casos distintos, ocorridos também em datas diferentes, sendo certo ainda, acrescenta-se, que leis excepcionais e temporárias hão-de ter uma aplicação também restrita e balizada no tempo que as mesmas fixam e que correspondem à sua própria caracterização.

Deste modo, nada mais se acrescentará, para além da nossa expressa concordância com a mesma motivação.


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Pelo exposto e em concordância com recurso apresentado pelo Ministério Público, somos de parecer que o mesmo deverá ser merecedor de provimento, revogando-se o despacho recorrido.”

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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.

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6. Colhidos os vistos legais, realizou-se a legal conferência.

                                                                             

II - Cumpre apreciar e decidir:                            

II.1

Objecto do recurso - artigos 403.º, n.º 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal:

Aplicabilidade do perdão a recluso que tenha iniciado o cumprimento da pena de prisão após a entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril.


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II.2

Defende o recorrente que em todos os casos previstos no art 2.º, da mencionada lei é pressuposto da medida de graça que o beneficiário seja recluso, esteja condenado por sentença transitada em julgado e que esteja em cumprimento de pena.

A Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, veio estabelecer um Regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, prevendo um leque de medidas, entre as quais o perdão (total ou parcial) das penas de prisão.

Excluindo a aplicação de tais medidas a condenados por crimes cometidos contra elementos das forças e serviço de segurança, bem assim das forças armadas, no exercício das respectivas funções (artigo 1.º, n.º 2), colocando igualmente fora do âmbito do perdão os condenados pela prática dos ilícitos típicos referidos nas diferentes alíneas do n.º 6, do seu artigo 2.º e ainda os casos em que o sujeito activo revista alguma das qualidades aí previstas, no que à decisão a proferir importa, sob a epígrafe “Perdão”, dispõe o artigo 2.º:

“1 – São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.

(…)

3 – O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única.

(…)

7 – O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.

8 – Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente.

(…)”.

Prevê, por seu turno, o artigo 10.º da Lei n.º 9/2020, na redacção introduzida pela Lei n.º 16/2020, de 29.05, cuja entrada em vigor ocorreu em 03.06.2020, que a cessação da sua vigência acontecerá «na data a fixar em lei que declare o final do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19».

Como se conclui no acórdão desta Relação de 30 de Setembro de 2020, relatora Des Maria José Nogueira “ o perdão só pode incidir sobre penas relativas a pessoas condenadas, por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor do Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, que no momento da sua aplicação se encontrem efetivamente recluídas.”, ou seja, em efectivo cumprimento de pena de prisão em estabelecimento prisional, o que resulta de uma interpretação gramatical, sistemática e teleológica Lei n.º 9/2020.

Insusceptível de interpretação extensiva já que se trata de uma lei de carácter excepcional e temporário justificado pela existência de uma situação de infecção pandémica (vírus SARS-CoV-2), impõe-se uma interpretação declarativa da norma, “em que se declara o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo» - Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, 1978, p. 147 - apud Ac Rel Coimbra de 30 de setembro 2020, Relator Des Eduardo Martins., porquanto “é entendimento uniforme e pacífico de que “as leis de amnistia (num sentido amplo, aqui incluindo as leis que consagram perdões de penas), como providências de excepção, devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem extensões nem restrições que nelas não venham expressas” (cf. Ac. STJ de 07-12-2000, proc. n.º 2748/2000 – 5.ª; SATJ, n.º 46, 45) - Cf. Maia Gonçalves, Código Penal Português, Anotado, 16.ª ed., pág. 439.”

Atentemos na letra da lei n.º 1, do artigo 2.º, da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril:

“1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.”

A referência a recluso é isenta de qualquer limite temporal.

Recluso é o condenado em efectivo cumprimento de pena de prisão em estabelecimento prisional.

O que conjugado com o disposto no artigo 10.º (Cessação de vigência) da Lei 9/2020, de 10 de abril com a alteração da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio (art 3º), impõe como resultado de uma interpretação gramatical, sistemática e teleológica Lei n.º 9/2020, que o perdão é aplicável também a quem venha a iniciar em estabelecimento prisional o cumprimento da pena de prisão após a entrada em vigor da referida lei, verificados que sejam os demais pressupostos.

Com efeito, na interpretação declarativa «o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto directa e claramente comporta, por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo» - Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, p. 185. (…)”

Neste sentido, acórdão supra citado, que merece a nossa concordância:                                                                                                                                                                  


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“Em sede de interpretação de normas, há que atender ao que dispõe, de modo imperativo, o artigo 9.º, do Código Civil:

«1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»

Como deve, então, ser interpretado o n.º 1, do artigo 2.º, da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, cujo teor, relembre-se, é o seguinte:

“1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.

Nos termos da lei ora em causa, são apenas reclusos os cidadãos que o eram, de facto, à data da sua entrada em vigor ou todos aqueles que o vierem a ser após tal data, respeitadas que sejam as restantes circunstâncias previstas no mesmo diploma legal?

Do exame literal do texto do citado n.º 1, como resulta, aliás, da existente falta de unanimidade sobre o assunto, não resulta a solução dos problemas de interpretação, desde logo porque o elemento literal, ainda que claro quanto à palavra em si (recluso é aquele que está preso), não delimita no tempo tal realidade.

O recurso aos demais elementos de interpretação mencionados no já citado artigo 9.º apresenta-se, pois, como determinante.

Há, portanto, que considerar a interpretação lógico-sistemática, assim como a situação que se verificava anteriormente à lei e toda a evolução histórica, bem assim a história da génese do preceito, que resulta particularmente dos trabalhos preparatórios, e, finalmente, a interpretação teleológica.

No que concerne ao elemento histórico, há que ter em devida conta os precedentes legislativos em matéria de leis de clemência e, aqui, não vemos como não pode deixar de se reiterar que uma lei que prevê a aplicação de perdão deve sempre ser vista como lei excecional e temporária, com tudo o que isso implica, como já vimos, nos seus apertados limites.

Por sua vez, em termos de interpretação lógico-sistemática, merece especial ponderação a circunstância da lei ora em causa ter surgido inserida numa legislação abundante e diversificada que visou responder a uma situação de emergência, na tentativa de obstar à expansão de determinada doença nos estabelecimentos prisionais durante um determinado período, no âmbito de uma pandemia, cujo termo se afigura, ainda hoje, incerto.

Pode ser lido na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 23/XIV, de 2 de abril de 2020:

“(…) Neste contexto de emergência, o Governo propõe a adoção de medidas excecionais de redução e de flexibilização da execução da pena de prisão e do seu indulto, que, pautadas por critérios de equidade e proporcionalidade, permitem, do mesmo passo, minimizar o risco decorrente da concentração de pessoas no interior dos equipamentos prisionais, assegurar o afastamento social e promover a reinserção social dos reclusos condenados, sem quebra da ordem social e do sentimento de segurança da comunidade.

Estas medidas extraordinárias constituem a concretização de um dever de ajuda e de solidariedade para com as pessoas condenadas, ínsito no princípio da socialidade ou da solidariedade que inequivocamente decorre da cláusula do Estado de Direito. Assim, o Governo propõe o perdão das penas de prisão aplicadas por decisão transitada em julgado, cuja duração não exceda os dois anos ou, no caso de penas aplicadas de duração superior, se o tempo remanescente até cumprimento integral da pena for também igual ou inferior a dois anos. O perdão abrange as penas de prisão fixadas em alternativa a penas de multa e, em caso de cúmulo jurídico, a pena única, excluindo, porém, as penas aplicadas por crimes relativamente aos quais permaneçam prementes as exigências relativas de prevenção, geral e especial, e de estabilização dos sentimentos de segurança comunitários. O perdão é, ainda, concedido sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar.”

Daqui retiramos que a Proposta do Governo parecia apontar no sentido de serem tomadas medidas para um determinado momento, bem delimitado no tempo, isto é apenas para o imediato.

Contudo, constatamos que a versão final da Lei 9/2020, de 10 de abril, foi mais além da referida proposta e consagrou, expressamente, o seguinte:

“Artigo 10.º

Cessação de vigência

A presente lei cessa a sua vigência na data fixada pelo decreto-lei previsto no n.º 2 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, o qual declara o termo da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.”

Salvo o devido respeito, em termos sistemáticos, este artigo inculca a ideia de que a lei não visou apenas ser dirigida para o imediato, a quem já era recluso, mas pretendeu contemplar situações de futuros reclusos, pois consagra que a vigência da “presente lei” só cessará quando acabar a situação excecional de “prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.”

Aliás, tal ideia, veio a ser reforçada através da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, onde pode ser lido o seguinte:

“Artigo 3.º

Alteração à Lei n.º 9/2020, de 10 de abril.

O artigo 10.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, passa a ter a seguinte redação:

«Artigo 10.º

[...]

A presente lei cessa a sua vigência na data a fixar em lei que declare o final do regime excecional de medidas de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça no âmbito da prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.»

Ora, o legislador, em 29 de maio de 2020, veio afirmar que a Lei n.º 9/2020, se mantinha em vigor.

Por conseguinte, reiterou a ideia de que os reclusos que se encontrarem nas circunstâncias nela previstas devem beneficiar de perdão, o que só pode querer significar que a lei não se aplica só a quem era recluso à data da entrada em vigor da mencionada Lei n.º 9/2020, pois, quanto a tais cidadãos, já os Tribunais De Execução de Penas decidiram nos dias seguintes àquela.

Sem dúvida que, ao fazê-lo, está o legislador a afastar-se da doutrina e jurisprudências há muito existentes em sede de medidas de graça.

Porém, há que atender às circunstâncias em que a lei foi elaborada e às condições específicas do tempo que estamos a viver, sem paralelo com outros momentos em que foram publicadas leis de amnistia.

Com efeito, nas últimas décadas, nunca a sociedade se deparou com uma situação como aquela que surgiu na sequência da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.

Ao nível de evitar a disseminação da doença nos estabelecimentos prisionais, é bem claro que a quase totalidade dos governos mundiais visa apenas que os mesmos se destinem a uma criminalidade mais grave, deixando de fora reclusos condenados que tenham cometido crimes considerados menos graves, quando estejam em causa curtas penas de prisão, tendo presentes critérios de manutenção de saúde pública, enquanto se mantiver a pandemia.”


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III Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em negar provimento ao recurso, mantendo o despacho recorrido.

Sem tributação.

Coimbra, 28 de Outubro de 2020

Processado e revisto pela relatora                                                                                                              

Isabel Valongo - relatora

Jorge França - adjunta