Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
340/03.7TBPNH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS FUTUROS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 07/15/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PINHEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 494.º; 496.º; 562.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. É ajustado o montante de € 200.000,00 para indemnizar o dano patrimonial futuro relativo a lesado com 42 anos, que ficou com uma IPP de 40% e auferia um salário mensal na ordem dos € 5.700,00, mas sem que se tenha provado a efectiva perda de rendimentos do trabalho.
2. Para ressarcir o dano não patrimonial é adequada a quantia de € 40.000,00.
3. As importâncias que o lesado despendeu ou deixou de receber por força do acidente podem ser actualizadas, desde que tenham perdido valor por via da inflação.
4. Cabe, no entanto, ao lesado alegar e provar o valor da inflação.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


I. Relatório:

A...., casado, assessor e director comercial, residente em ….., n.º 5 – Daimiel, Ciudad Real, Espanha, intentou acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra B...., com sede ….. Lisboa, alegando, em síntese, que:
No dia 9 de Fevereiro de 1999, pelas 13H15, ao Km 178,2 do IP n.º 5, freguesia de Pínzio, concelho de Pinhel, ocorreu um acidente de viação, no qual foram intervenientes os veículos matrícula 36-98-EH, conduzido por D....e no qual ele, autor, seguia como passageiro, no banco de trás, e o pesado de mercadorias 01-23-KF/L 136053.
O acidente foi provocado exclusivamente pelo condutor do veículo 36-98-EH, que seguia desatento e, por isso, invadiu a metade da faixa de rodagem destinada ao trânsito que circulava em sentido contrário, nomeadamente ao veículo pesado, tendo, por isso, ocorrido o embate entre os dois veículos.
Ainda que se não provasse a culpa do condutor do EH, sempre haveria uma presunção de culpa, nos termos do artigo 503º nº3 do CC, ou, em último caso, responsabilidade pelo risco.
A proprietária do veículo em que se fazia transportar havia transferido a sua responsabilidade para a ora ré, que, aliás, a assumiu perante si, só que não chegaram a acordo quanto à indemnização a pagar.
Sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais que discrimina, dos quais pretende ser ressarcido, quantificando alguns, mas remetendo a quantificação de outros para posterior liquidação, por impossibilidade de o fazer de momento.
Concluiu pelo pedido de condenação da ré no pagamento da importância de € 452.577,76, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efectivo pagamento, e, bem assim, no pagamento da indemnização a liquidar posteriormente, acrescida, igualmente, de juros de mora, nos termos sobreditos.
A ré, regularmente citada, apresentou-se a contestar pela forma seguinte:
Desconhece as circunstâncias exactas em que ocorreu o acidente, mas aceita a versão dos factos aduzida pelo autor e, consequentemente, a obrigação de indemnizar os danos provocados pelo seu segurado.
Ainda assim, o autor não seguia com o cinto de segurança, sendo certo que, se tal acontecesse, os danos sofridos seriam certamente menores, pelo que, atento tal facto, a culpa do lesado exclui ou reduz a obrigação de indemnizar a cargo do lesante, nos termos do disposto no artigo 570.º do CC.
Os danos peticionados pelo autor são manifestamente exagerados.
Deverá, finaliza, ser a acção julgada de acordo com a prova que se produzir.
O autor respondeu à contestação, sustentando serem falsos os factos alegados no que respeita à circunstância do autor alegadamente não levar o cinto de segurança.
No despacho saneador foram declaradas a validade e a regularidade da lide.
A selecção da matéria de facto foi alvo de reclamação do autor, atendida.
Concluída perícia médico-legal, apresentou o autor articulado superveniente, onde ampliou o pedido para o montante de € 502 577,76, em face do teor do relatório elaborado.
A ré respondeu de forma a impugnar os factos alegados, acabando por concluir pela improcedência do peticionado, por, para além do mais, já se achar contido no pedido inicialmente formulado.
O articulado foi admitido, na sequência do que foi seleccionada a matéria de facto considerada pertinente.
Realizada a audiência de discussão e julgamento – onde o autor voltou a requerer a ampliação do pedido, agora para € 1.000.000,00, que foi admitida – e dadas as respostas aos pontos de facto da base instrutória, foi proferida sentença, que condenou a ré a pagar ao autor a quantia líquida de € 229.171,12 acrescida de juros de mora, à taxa legal, sobre a importância de € 44.171,12, desde a citação, e sobre o restante valor, desde a própria sentença, e, ainda, uma importância a liquidar, relativa aos danos que o autor venha a sofrer com as operações a que terá, ainda, de se submeter.

Da sentença interpuseram recurso o autor e a ré, que alegaram e formularam as seguintes conclusões:
A – o Autor:
a) O apelante suportou e suportará, no futuro, danos não patrimoniais traduzidos em sofrimento, dores, angústia, desespero, tristeza, desgosto, inibição e dano/perda estética, conforme ficou provado nos quesitos 4 a 66, inclusive, e, em especial, nos quesitos 67 a 71, inclusive, da base instrutória. Por tais danos, e atenta a sua gravidade, deverá ser-lhe atribuída uma compensação não inferior a € 75.000,00.
b) Sofreu, ainda, dano não patrimonial traduzido no dano biológico permanente com que irá viver até ao fim dos seus dias, com a perda da disponibilidade e uso do seu corpo para os normais afazeres da vida quotidiana, fixada num juízo médico-legal em 40% (35%+5%) de incapacidade parcial permanente geral ou anátomo-funcional, conforme ficou demonstrado na resposta dada aos quesitos 66 e 66-D da base instrutória. Tal dano merece uma compensação não inferior a € 120.450,00.
c) Sofreu, também, o dano patrimonial futuro da perda de capacidade de ganho ou de perda de rendimentos, resultante da incapacidade parcial permanente profissional/laboral de 40% de que ficou afectado, conforme resulta da resposta dada aos quesitos 66-E, 72 a 75 e 93 da base instrutória. Esse dano deverá ser indemnizado em quantia não inferior a € 750.000,00.
d) Desembolsou a importância de € 500,00 em exame médico anterior aos presentes autos e destinado a apurar as lesões e sequelas que sofreu, conforme decorre da resposta dada aos quesitos 1, 2, 3 e 89 da base instrutória. Terá de ser ressarcido dessa quantia.
e) Desembolsou as quantias peticionadas nos artigos 92 e 95 da petição inicial, respectivamente, € 22.770,19 e € 1.000,00, e deixou de auferir as peticionadas no artigo 92 da mesma petição, no valor de € 21.125,57, das quais o tribunal recorrido já ordenou o pagamento de um total de € 44,395,76. Trata-se de importâncias de que deixou de dispor como bem entendesse, desde a data em que as suportou ou desde a data em que as poderia ter recebido e que perderam valor aquisitivo até à data da entrada da petição inicial em juízo, o que deverá levar a que sobre elas se vençam juros compensatórios, destinados a manter o valor da moeda até à data da citação da ré, ou, sempre, ao menos, desde 24.11.2003, data da entrada da propositura da acção, contados a uma taxa anual igual à da inflação, ou seja, de 4%. Esses juros, calculados até 24.11.2003, foram por si peticionados nos artigos 96 a 101, inclusive, e 120, todos da petição inicial, no valor de € 8.600,00, e deverão ser-lhe pagos pela ré.
f) O tribunal “a quo” fez uma errada aplicação dos artigos 483.º, 496.º, 562.º, 564.º e 566.º do Código Civil, pelo que a sentença terá, nas referidas partes, de ser alterada e substituída por outra que condene a ré a pagar-lhe as quantias em questão que, somadas ao já fixado em primeira instância, atingirão o montante global de € 998.721,00.

B – a Ré:
a) O ponto 73 da base instrutória deveria ter recebido a resposta de que o autor, à data do acidente, auferia um vencimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional em vigor à data da realização do julgamento, ou seja, € 426,00, com base na declaração fiscal que consta de folhas 658, em conjugação com o disposto nos números 7 e 8 do artigo 64.º do decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, na redacção que lhe foi dada pelo decreto-lei n.º 153/2008, de 6 de Agosto.
b) Auferindo o autor, à data do acidente, uma remuneração de € 426,00, a indemnização pelos danos patrimoniais futuros decorrentes da incapacidade parcial permanente de 40% que lhe foi atribuída deve ser fixada em € 16.000,00.
c) Auferindo o autor, à data do acidente, uma remuneração de € 426,00, a indemnização pelo período de cerca de 4 meses (113 dias) em que esteve impossibilitado de exercer as suas funções deve ser fixada em € 1.704,00.
d) Não está demonstrado nos autos que a incapacidade de que o autor ficou portador importa uma redução da sua capacidade de ganho proporcional à da incapacidade que lhe foi atribuída.
e) O autor não sofrerá um dano patrimonial futuro propriamente dito, mas um dano biológico com reflexo patrimonial, por cuja indemnização, na hipótese de se não alterar a resposta ao ponto 73 da matéria de facto, deve ser fixada em € 100.000,00.
f) A sentença recorrida violou os artigos 342.º, n.º 1 e 564.º, n.º 2, do Código Civil e os números 7 e 8 do artigo 64.º do decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, na redacção que lhe foi dada pelo decreto-lei n.º 153/2008, de 6 de Agosto.

O autor apresentou resposta à alegação da ré, pugnando pela improcedência do seu recurso, que concluiu assim:
a) A resposta dada ao quesito 73 não merece censura.
b) O tribunal baseou-se, e podia fazê-lo, num documento junto aos autos e no depoimento de uma testemunha e não, apenas, no documento, como a apelante pretende fazer crer.
c) Os números 7 e 8 do artigo 64.º do decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, não são aplicáveis aos factos dos autos, ocorridos em 9 de Fevereiro de 1999.
d) A interpretação a dar ao falado n.º 7 é a de que o tribunal deve ponderar as declarações ali aludidas, mas sem prejuízo de poder, também, ponderar outros elementos de prova, tudo com vista ao apuramento, como se lhe impõe pelos artigos 562.º e 566, n.º 2, do código Civil e do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, do dano real e efectivo sofrido pelo lesado.
e) A interpretação defendida pela ré para tal preceito legal viola a Directiva n.º 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio.
f) Viola, ainda, o princípio da tutela jurisdicional efectiva previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
g) O princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da mesma Constituição.
h) E, ainda, o princípio da separação de poderes consagrado no artigo 11.º da Constituição da República Portuguesa, mostrando-se, como tal, inconstitucional.
i) O recorrido sofreu uma perda na sua capacidade de ganho equivalente à incapacidade parcial permanente para o trabalho de 40% de que ficou afectado.
j) Sofreu, ainda, um dano biológico não patrimonial futuro, decorrente da incapacidade parcial permanente geral ou anátomo-funcional de 35%, mais 5% de dano futuro, de que ficou afectado.

A ré não respondeu à alegação do autor.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
São estas as questões a requerer solução:
1) A alteração da matéria de facto.
2) A quantificação dos seguintes danos:
– Dano patrimonial futuro;
– Dano patrimonial resultante da perda de salários durante o período em que o autor esteve absolutamente incapacitado para o trabalho;
– Dano patrimonial emergente da realização de exame no IML do Porto, acordado com a ré;
– Dano não patrimonial.
3) Os juros compensatórios com vista à reintegração do valor aquisitivo de quantias despendidas.


II. Foi a seguinte a matéria de facto dada por provada na sentença recorrida.

No dia 9 de Fevereiro de 1999, pelas 13h15, no Itinerário Principal (IP), nº 5, ao km 178.2, freguesia de Pínzio, concelho e comarca de Pinhel, ocorreu um acidente de viação – alínea A) dos factos assentes.
Foram intervenientes no mesmo o veículo ligeiro de passageiros de matrícula 36-98-EH, conduzido por D....e o veículo pesado de mercadorias de matrícula 01-23-KF/ L-136053, conduzido por C....– alínea B) dos factos assentes.
O A. fazia-se transportar como passageiro no banco traseiro do veiculo de matricula 36-98-EH – alínea C) dos factos assentes.
Nesta data, este veículo estava em poder da empresa Sandevide Importação EBP Alimentares, com sede na Av. José Malhoa n.º 9, em Lisboa, a quem a mesma pertencia – alínea D) dos factos assentes.
Era esta empresa que zelava pelo bom estado e manutenção do veículo – alínea E) dos factos assentes.
A condução do veículo 36-98-EH exercia-se no interesse desta empresa – alínea F) dos factos assentes.
D....conduzia o 36-98-EH por conta e sob as ordens de Sandevide Importação EBP Alimentares e no cumprimento de instruções e funções que esta lhe havia confiado – alínea G) dos factos assentes.
A empresa Sandevide Importação EBP Alimentares transferiu a respectiva responsabilidade civil por todos os danos causados ou decorrentes da utilização do veículo 36-98-EH para a ora Ré, através de acordo com esta, designado de contrato de seguro, e titulado pela apólice n.º AU.11011497, em vigor à data do acidente – alínea H) dos factos assentes.
A viatura 36-98-EH circulava no sentido Guarda/Vilar Formoso – alínea I) dos factos assentes.
A viatura 01-23-KF/L-136053 circulava em sentido oposto – alínea J) dos factos assentes.
Pelo facto de o condutor do veículo 36-98-EH não ir atento à sua condução e a olhar para o trânsito que vinha em sentido contrário, este veículo saiu da hemi-faixa por onde circulava, a da direita, atento o sentido por ele seguido – alínea K) dos factos assentes.
Transpôs o eixo da via – alínea L) dos factos assentes.
E invadiu a hemi-faixa de rodagem do sentido Vilar Formoso/Guarda, por onde circulava o veículo OI-23-KF/L-136053 – alínea M) dos factos assentes.
Nessa hemi-faixa de rodagem (destinada ao trânsito com o sentido Vilar Formoso/Guarda), a viatura 36-98-EH chocou com a respectiva parte da frente esquerda na parte frontal esquerda deste outro veículo – alínea N) dos factos assentes.
O condutor do veículo 36-98-EH contribuiu de forma exclusiva para a produção da colisão – alínea O) dos factos assentes.
Dessa colisão resultou a morte de D....– alínea P) dos factos assentes.
E ferimentos ligeiros no passageiro e condutor do 0l-23-KF/L, respectivamente E....e C....– alínea Q) dos factos assentes.
E, ainda, lesões físicas no A – alínea R) dos factos assentes.
Autor e Ré combinaram entre si que o primeiro se sujeitaria a exame médico a realizar pelo Instituto de Medicina Legal do Porto – resposta ao facto 1º da base instrutória.
E que a Ré se vinculava ao resultado do exame médico – resposta ao facto 2º da base instrutória.
Na sequência de tal observação, foi realizado exame e elaborado relatório em 25-09-2001 – resposta ao facto 3º da base instrutória.
Como consequência directa e necessária da colisão descrita, o Autor sofreu traumatismo facial no lado esquerdo com destruição da órbita, malar, maxilar superior e arco zigomático esquerdos – resposta ao facto 4º da base instrutória.
E fractura do lado esquerdo da mandíbula – resposta ao facto 5º da base instrutória.
E fractura do maxilar superior tipo Le Fort I do lado direito – resposta ao facto 6º da base instrutória.
E, também, fractura sagital entre ambos os maxilares – resposta ao facto 7º da base instrutória.
E diversas fracturas dentárias (incisivo central direito 1.1) – resposta ao facto 8º da base instrutória.
E, ainda, fractura coronal de ambos pequenos-molares superiores e inferiores – resposta ao facto 9º da base instrutória.
Para tratamento de tais lesões o Autor foi atendido de urgência no Hospital da Guarda – resposta ao facto 10º da base instrutória.
Tendo sido transferido no mesmo dia para o Hospital Ruber Internacional de Madrid, no qual esteve internado até ao dia 26 de Fevereiro de 1999 – resposta ao facto 11º da base instrutória.
No dia 17 de Fevereiro de 1999 o Autor foi submetido a uma intervenção cirúrgica para reduções ósseas e imobilização com mini e micro placas de titânio e seus correspondentes parafusos, reconstrução do chão orbitário com placas de ácido poliláctico reabsorvível – resposta ao facto 12º da base instrutória.
No dia 24 de Fevereiro de 1999 foi submetido a nova intervenção cirúrgica para realizar ferulizacão metálica com aparatologia de Erich e bloqueio intermaxiliar elástico – resposta ao facto 13º da base instrutória.
No dia 23 de Março de 1999, foi-lhe retirado o bloqueio intermaxilar – resposta ao facto 14º da base instrutória.
No dia 5 de Abril 1999 foram-lhe retiradas as férulas sob anestesia loco-regional – resposta ao facto 15º da base instrutória.
No dia 14 de Junho de 1999, fez nova intervenção cirúrgica de oftalmologia com cerclajem 2,4 vitrectomia e intercâmbio C3-F8, reaplicação da retina – resposta ao facto 16º da base instrutória.
O que o obrigou a um internamento hospitalar de 13 a 16 de Junho – resposta ao facto 17º da base instrutória.
Após o qual foi obrigado a um período de repouso absoluto com decúbito prono no domicílio por espaço de 30 dias – resposta ao facto 18º da base instrutória.
Até 14 de Outubro de 1999, realizou controlos clínicos semanais – resposta ao facto 19º da base instrutória.
Em 2 de Novembro de 1999, foi examinado no Centro Oftalmológico Gomez de Liano, no qual lhe foi diagnosticado, em consequência das lesões supra descritas, diplopia do OE por hipotropia – resposta ao facto 20º da base instrutória.
Em Fevereiro de 2000, apresentou complicação de infecção e inflamação de tecidos moles na região orbitária esquerda, relacionada com a existência de diminutas comunicações do complexo órbito-naso-maxilar – resposta ao facto 21º da base instrutória.
O que o obrigou a tratamentos com antibioterapia – resposta ao facto 22º da base instrutória.
Em 7 de Novembro de 2000, fez nova intervenção cirúrgica para resolução de catarata em OE, tendo tido alta hospitalar em 8 de Novembro de 2000 – resposta ao facto 23º da base instrutória.
Desde esta data que o Autor continua a fazer controlos médicos ambulatórios, cada 3 meses – resposta ao facto 24º da base instrutória.
No dia 14 de Junho de 2001 fez novo tratamento com laser por aumento da pressão intraocular do olho esquerdo, acompanhado de diminuição da aquidade visual – resposta ao facto 25º da base instrutória.
No conjunto destes tratamentos recebidos, o autor esteve internado, no hospital, durante um total de dezassete dias – resposta ao facto 26º da base instrutória.
Na data em que foi submetido a exame médico-legal pelo Instituto Nacional de Medicina Legal – Delegação do Porto, o A. apresentava, ainda, por causa daquela colisão, assimetria facial com afundamento do globo ocular esquerdo (enoftalmos) – resposta ao facto 27º da base instrutória.
E assimetria de ambos os globos oculares – resposta ao facto 28º da base instrutória.
Epífora (lacrimejo) do olho esquerdo na posição horizontal – resposta ao facto 29º da base instrutória.
Ausência de função pupilar (miose) – resposta ao facto 30º da base instrutória.
Afectação motora dos músculos oculares que impedem a elevação e o movimento à esquerda do globo ocular – resposta ao facto 31º da base instrutória.
Grande restrição do campo visual e diminuição da aquidade visual, área de edema da regia palpebral inferior e malar com um tamanho de 2.5 por 1.5 cm – resposta ao facto 32º da base instrutória.
Área de hipoestesia em hemiface esquerda e ramo mandibular esquerdo – resposta ao facto 33º da base instrutória.
Anestesia ao nível da mucosa oral da hemiboca esquerda e hipoestesia ao nível do hemilábio esquerdo – resposta ao facto 34º da base instrutória.
Assimetria da fenda bucal na abertura (diâmetro de abertura aproximado 3 cm - 3 traveses de dedo - 85%) – resposta ao facto 35º da base instrutória.
Assimetria da mordida, com desvio à direita – resposta ao facto 36º da base instrutória.
Ligeira crepitação à mobilização da articulação temporo-mandibular esquerda – resposta ao facto 37º da base instrutória.
Defeito de consolidação da fractura de apófise coronoides do ramo mandibular esquerdo – resposta ao facto 38º da base instrutória.
Presença de material de osteossíntese – resposta ao facto 39º da base instrutória.
Na sequência das sequelas resultantes das lesões provocadas pelo acidente as capacidades físicas e mentais do autor sofreram alguma alteração – resposta ao facto 41º da base instrutória.
O autor sofre de diplopia (visão dupla) no olhar para cima – resposta ao facto 42º da base instrutória.
Obrigando-o a adoptar uma posição forçada da cabeça para trás e na lateral, na tentativa de diminuir a percepção de duas imagens – resposta ao facto 43º da base instrutória.
Sofrendo de diminuição da aquidade visual 3/10 – resposta ao facto 44º da base instrutória.
O autor ficou com ausência de reflexo pupilar – resposta ao facto 45º da base instrutória.
De afectação motora dos músculos oculares que impedem a elevação e o movimento à esquerda do globo ocular – resposta ao facto 46º da base instrutória.
De redução do campo visual – resposta ao facto 47º da base instrutória.
De dificuldade para a mastigação dos alimentos em geral e, em particular, de alimentos duros (como sandes, maçãs, etc.) – resposta ao facto 48º da base instrutória.
Apresenta alguma dificuldade na elaboração das palavras, denominada de dislexia – resposta ao facto 49º da base instrutória.
Por vezes, tem dores ao nível da região zigomâtico-malar e mandibular esquerda – resposta ao facto 50º da base instrutória.
Estas dores obrigam-no, de forma esporádica, a tratamento com fármacos analgésicos e anti-inflamatórios – resposta ao facto 51º da base instrutória.
O A. passou a ter dificuldade em conduzir veículos automóveis durante o dia – resposta ao facto 53º da base instrutória.
E deixou de poder conduzir à noite – resposta ao facto 54º da base instrutória.
O autor, em virtude do referido nas respostas dadas aos artigos 42º a 47º da base instrutória passou a sentir maiores dificuldades para ler, ver televisão e trabalhar no computador, tendo necessidade de alguns períodos de descanso e pausas – resposta aos factos 55º a 58º da base instrutória.
Devido ao referido na resposta ao facto 48º da base instrutória, o autor viu-se obrigado a, na sua dieta alimentar, dar preferência a alimentos tenros – resposta aos factos 59º e 60º da base instrutória.
Como consequência das lesões sofridas e das sequelas de que ficou afectado, o autor sofreu uma incapacidade temporária absoluta geral durante 93 dias – resposta ao facto 63º da base instrutória.
E sofreu uma incapacidade temporária parcial geral de 574 dias – resposta ao facto 64º da base instrutória.
O autor sofreu uma incapacidade temporária permanente profissional para o trabalho de 547 dias – resposta ao facto 64º-A da base instrutória.
E sofreu uma incapacidade temporária absoluta profissional e para o seu trabalho de 113 dias – resposta ao facto 65º da base instrutória.
O autor ficou com uma incapacidade parcial permanente de 35% – resposta ao facto 66º da base instrutória.
O autor ficou afectado de anomalias ao nível da articulação tempora-mandibular esquerda – resposta ao facto 66º-A da base instrutória.
Onde se esboça artrose da mesma – resposta ao facto 66º-B da base instrutória.
Sendo de prever o agravamento, quer desta articulação, quer da contralateral – resposta ao facto 66º-C da base instrutória.
O que faz acrescer o grau de incapacidade descrito a resposta dada ao facto 66º, a título de dano futuro, de mais 5% – resposta ao facto 66º-D da base instrutória.
O autor ficou afectado de incapacidade permanente para o trabalho de 40% – resposta ao facto 66º-E da base instrutória.
Apenas quando conheceu o relatório junto aos autos a fls.417-426 o autor teve conhecimento exacto das sequelas e incapacidades que no mesmo se mostram determinadas – resposta ao facto 66º-F da base instrutória.
Com as lesões sofridas e os tratamentos a que foi submetido, o A. sofreu fortes dores, angústia e desespero – resposta ao facto 67º da base instrutória.
Sendo o seu "quantum doloris" fixável num grau 6 numa escala de l a 7 – resposta ao facto 68º da base instrutória.
O autor sofreu dano estético valorizável num grau 5, numa escala de 1 a 7 – resposta ao facto 68º-A da base instrutória.
O que lhe causou e causa tristeza, desgosto, inibição e angústia – resposta ao facto 70º da base instrutória.
Antes do acidente em apreço, o Autor era um homem forte, robusto e saudável – resposta ao facto 71º da base instrutória.
Na altura do acidente supra descrito, o A. exercia funções de assessor e director comercial na sociedade comercial Sociedad Productos Derivados del Viño, S.A. (Prodevisa), em Espanha – resposta ao facto 72º da base instrutória.
Onde auferia um vencimento mensal laboral de € 5 709,61 – resposta ao facto 73º da base instrutória.
O qual era auferido 12 meses por ano – resposta ao facto 74º da base instrutória.
Sendo que o salário base anual era cindido em 14 prestações, num total de rendimentos laborais anuais no valor de € 79 934,54 – resposta ao facto 75º da base instrutória.
A incapacidade temporária de trabalhar causou uma perda de vencimentos no valor de € 21 125,57 – resposta ao facto 76º da base instrutória.
O autor teve que pagar pelos tratamentos descritos de l0 a 26 um total de € 22 770,19 – resposta ao facto 77º da base instrutória.
Tendo sido as quantias de 1.176.126 pesetas e 412.591 pesetas ao Hospital Ruber Internacional, SA – resposta ao facto 78º da base instrutória.
E 980.000 pesetas à Clínica Berguer, SL – resposta ao facto 79º da base instrutória.
E 207.580 Pesetas à Stratec Medical, SA – resposta ao facto 80º da base instrutória.
E 20.000 pesetas à Recoletas C. Real – resposta ao facto 81º da base instrutória.
E 120.000 pesetas à Anesmar, SL – resposta ao facto 82º da base instrutória.
E 650.000 pesetas à AL Regeras Flores – resposta ao facto 83º da base instrutória.
E 15.000 pesetas à Clínica …. – resposta ao facto 84º da base instrutória.
E 60.000 pesetas, à Dra …. – resposta ao facto 85º da base instrutória.
E 75.000 pesetas ao Dr. …. – resposta ao facto 86º da base instrutória.
E € 210,35 ao Dr. …. – resposta ao facto 87º da base instrutória.
E € 224,45 ao Instituto de Medicina Legal do Porto – resposta ao facto 88º da base instrutória.
O autor, com as deslocações que teve de fazer, despendeu quantias não concretamente apuradas, mas não inferiores a € 500,00 – resposta aos factos 89º e 90º da base instrutória.
Para tratamento das lesões sofridas, o A. terá que ser sujeito a novas intervenções cirúrgicas, em concreto, para extracção da placa de osteossíntese do ângulo mandibular esquerdo, para exodontia do 3º grande molar (3.8) e para reconstrução dentária – resposta ao facto 91º da base instrutória.
Com as intervenções cirúrgicas que irá fazer o autor irá sentir dores – resposta ao facto 91º-A da base instrutória.
Nas referidas intervenções cirúrgicas terá que gastar, no mínimo, o montante de € 8 425,00 – resposta ao facto 92º da base instrutória.
O A. tinha 42 anos à data do acidente – resposta ao facto 93º da base instrutória.


III. O direito:

A. A alteração da matéria de facto

A Relação pode alterar a decisão de 1.ª instância sobre a matéria de facto em três circunstâncias, apenas:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova quer serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou (artigo 712.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na redacção anterior à introduzida pelo Decreto-lei 303/07, de 24 de Agosto, que é a aqui aplicável).
Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (n.º 1 do artigo 690.º-A).
Invocando-se prova gravada, tem o recorrente de indicar as passagens da gravação em que se funda (n.º 2 do mesmo preceito).
A apelante, muito resumidamente, coloca a questão nestes termos:
O artigo 73 da base instrutória, onde se pergunta se o autor auferia um vencimento mensal laboral de € 5.709,61, foi declarado provado, com base, exclusivamente, numa declaração emitida pela respectiva entidade patronal.
Mas erradamente, porque o artigo 64.º do Decreto-lei 291/07, de 21 de Agosto, aplicável ao caso dos autos, por força do artigo 12.º do Código Civil, manda atender aos rendimentos fiscalmente comprovados (n.º 1) e, não existindo estes, ao montante da retribuição mínima mensal garantida (n.º 2).
No ano do acidente, o autor auferiu, de acordo com a respectiva declaração de rendimentos, o quantitativo global de 11.185, 97 pesetas, o que corresponde a uma média mensal de 932,16 pesetas, que traduzidas, agora, para a moeda única europeia, perfazem o valor de € 5,60.
Desse modo, o rendimento a atender é o RMMG, ou seja, € 426,00.
Mas, ainda que se julgue não ser aplicável o dito artigo 64.º, o resultado é o mesmo, ou seja, tem de atender-se, tão-somente, à verdade fiscal, como forma, até, de combater a evasão ao pagamento de impostos.
Consequentemente, deve ser alterada a resposta ao quesito 73, de forma a ficar provado que o autor auferia o correspondente a € 426,00 mensais.
Daqui resulta, com evidente clareza, que o pedido de alteração se baseia na 1.ª parte da alínea a) do n.º 1 do citado artigo 712.º, que é como quem diz, na incorrecta apreciação dos elementos ao dispor do julgador, todos constantes do processo, pelo que a decisão do recurso haverá de ser tomada de harmonia com o modelo da reponderação, ao contrário do que sucede na hipótese da alínea c), em que o julgamento obedece ao princípio do reexame.
A tese do recorrido é a da inaplicabilidade do falado artigo 64.º, por se inserir no chamado direito probatório material, que se aplica, apenas, às situações de futuro, que não às de pretérito.
De todo o modo, a interpretação a dar-lhe não é a de que a prova dos rendimentos só pode ser feita com base na declaração fiscal, o que violaria Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho e a própria Constituição da República Portuguesa, mas a de que esta constitui um meio a prova a ponderar em conjunto com os restantes.
Não é verdade, de resto, que o tribunal tivesse fundamentado a resposta só no documento referido pela apelante, pois que atendeu, também, ao depoimento da testemunha …., prestado por carta rogatória.
As declarações fiscais não contradizem tais meios de prova, até porque se reportam ao ano de 1999 e aos seguintes, quando o que interessa são os rendimentos anteriores ao acidente, que ocorreu em 9 de Fevereiro de 1999.
Perante os termos em que a questão é colocada, haverá que apurar, em primeiro lugar, se a disposição chamada à liça pela recorrente é, ou não, aplicável ao caso dos autos e, na afirmativa, em que medida pode isso contender com a resposta dada ao artigo 73 da base instrutória; na negativa, qual a relevância da declaração de rendimentos do recorrido para o mesmo efeito.
A relação jurídica litigada tem origem em factos ocorridos em 9 de Fevereiro de 1999 (acidente de viação) e foi levada a juízo em 25 de Novembro de 2003. As disposições legais invocadas pela apelante, por sua vez, reportam-se a Agosto de 2008.
Visto a lei ser diferente da que vigorava à data, não só da constituição da relação material em causa, mas, também, da submissão do feito a tribunal, prefigura-se, de facto, um problema de aplicação das leis no tempo.
A questão só se suscita verdadeiramente quando não existam disposições transitórias gerais, válidas para todas as leis novas ou para certa categoria delas, ou disposições transitórias especiais, válidas para a lei em concreto. Sempre que tal suceda, a situação estará, em princípio, resolvida (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, página 42; Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, volume I, página 46; Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, página 46).
O problema é quando não existem normas transitórias, o que sucede as mais das vezes.
De acordo com Anselmo de Castro, a solução passa, em primeira via, pela interpretação concreta da lei nova e, depois, se tal se mostrar necessário, pelo recurso a critérios ou princípios gerais (ob. cit., páginas 47 e 53 e seguintes).
Como se sabe, no domínio do direito civil, vigora o princípio de que a lei só dispõe para o futuro; e mesmo quando lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se ficarem salvaguardados os efeitos já produzidos (artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil).
Não é esse, porém, o entendimento prevalecente em sede processual civil; bem pelo contrário, a doutrina dominante aponta para a aplicabilidade imediata da lei nova, mesmo em relação aos actos futuros a praticar nas acções já intentadas.
Subjaz a tal interpretação a filosofia de que o direito processual é um ramo de direito público, sendo a nova lei, por definição, melhor que a antiga, que as leis de processo têm natureza meramente instrumental (não conferem direitos, só indicam a maneira de os exercer) e que o princípio geral da não retroactividade significa, neste ramo do direito, tão-só e apenas, que os actos passados continuarão a aferir-se pela lei do tempo em que foram praticados (autores e obras acima referidas, páginas 43/44, 56/60 e 47749, respectivamente).
No que tange, especificamente, à questão das provas, parece não haver igualmente divergências entre os processualistas, que costumam distinguir entre o direito probatório material (o que se refere à admissibilidade dos meios e ao respectivo valor na demonstração dos factos) e o direito probatório formal (o que regula o modo de oferecimento e produção das diversas provas).
Para o direito probatório formal, funciona a regra da aplicação imediata da lei nova (às acções a propor no futuro e às diligências ou actos a praticar nas acções pendentes).
Em relação ao direito probatório material, haverá que distinguir, consoante a lei se refira à admissibilidade dos meios de prova para os factos em geral ou, ao invés, à admissibilidade para determinados factos especiais; na primeira hipótese, aplicar-se-á imediatamente a lei nova; na segunda, já não terá aplicação. É a lição de Manuel de Andrade (ob. cit., páginas 47/48), Vaz Serra (BMJ 110, páginas 177/179) e Antunes Varela (ob. cit., páginas 61/63).
Anselmo de Castro parte de uma outra distinção: a ampliação ou a restrição dos meios de prova; se a lei nova os amplia, será de aplicação imediata; mas se os restringe, já o não será, na consideração de que, desse modo, é atingida a própria relação material, o que não tem razoabilidade, tendo em conta a jurisprudência dos interesses (ob. cit., páginas 68/70).
Baptista Machado separa as hipóteses de se ter constituído, ou não, uma situação jurídica com base nos factos a provar; se não estava constituída quando a lei nova sobre a prova entrou em vigor, esta é imediatamente aplicável; mas se os factos a provar são elementos constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintivos duma situação jurídica que se toma como já constituída, modificada ou extinta antes da entrada em vigor da lei nova, esta será aplicável, ou não, consoante não frustre ou frustre as previsões e legítimas expectativas das partes; nesta perspectiva, “uma lei de direito probatório geral não será aplicável a um acto ou facto passado se, na sua incidência sobre o caso concreto, da sua aplicação puder resultar o não reconhecimento em juízo duma SJ constituída sobre a LA, tendo-se as partes assegurado, no momento da constituição, dos meios de prova exigidos por aquela lei”. De toda a maneira, e no que concerne ao valor probatório, para as provas com força probatória legalmente tabelada, rege a lei do tempo do acto (Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, páginas 273/283).
Seja qual for a perspectiva em que nos coloquemos, não há possibilidade alguma de o falado diploma se aplicar à hipótese dos autos, uma vez que se trata de uma lei de direito probatório material que rege para factos especiais (apuramento do rendimento do lesado para efeitos da determinação da indemnização por danos patrimoniais), restringe os meios de prova (ao tempo da propositura da acção, a prova dos rendimentos podia ser feita por qualquer meio e a nova lei redu-la a um único), frustra as expectativas do lesado (quando intentou a acção não podia razoavelmente contar que iria necessitar de prova especial para provar os seus rendimentos) e estabelece um regime de prova tarifado (só pode ser feito mediante documento de determinada natureza).
O decreto-lei em análise não é, pois, aplicável à situação vertida nos autos, ao contrário do que defende a apelante.
A pergunta que importa, agora, fazer é se os elementos de prova que constam do processo impõem resposta diferente da que foi dada ao artigo 73 da base instrutória, uma vez que a questão foi levada, também, às alegações de recurso.
Antes de concretamente nos debruçarmos sobre o assunto, importará advertir que as possibilidades de a Relação modificar a matéria de facto fixada em 1.ª instância se acham severamente limitadas pelo princípio da livre apreciação da prova, enunciado no artigo 655.º do CPC.
Se os factos provados lograrem suporte nos elementos probatórios, a fundamentação for devidamente estruturada e o raciocínio do julgador assentar em bases sólidas, reveladoras de um percurso lógica e racionalmente convincente, não há como alterar a decisão proferida.
A regra é a estabilidade e a excepção a modificabilidade. Dando ao princípio da prova livre o significado de “prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente, mas em perfeita conformidade com as regras da experiência e as leis que regulam a actividade mental (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume III, página 245), não se vê como alterar o decidido, se a solução encontrada reflectir, com razoabilidade, uma convicção fundada em provas credíveis à luz dos dados da experiência, da ciência e da razão.
Em rigor, só o erro notório, clamoroso, flagrantemente desconforme entre os elementos de prova e a decisão de facto pode permitir que a Relação tome decisão diferente da do tribunal “a quo. Trata-se de jurisprudência absolutamente uniforme, como se pode ver, entre muitos outros, dos acórdãos desta Relação, de 03.06.2003 e de 24.09.2003 (CJ, Ano XXVIII, tomo III, página 26, e tomo IV, página 17) e do acórdão da Relação de Lisboa, de 15.01.2004, CJ, Ano XXIX, tomo I, página 65).
Para responder afirmativamente ao artigo em apreço, baseou-se o tribunal no documento traduzido a folhas 195, emitido pela entidade patronal do autor, e no depoimento da testemunha Guillermo Rodriguez de La Cruz, assumidamente legal representante da mesma, ouvida por carta rogatória.
Na óptica da apelante, só os documentos de folhas 658 e seguintes (declarações anuais de IRPF, prestadas perante a “Agencia Tributaria” do país vizinho, respeitantes ao ano de 1999 e subsequentes) deveriam ser valorizados, sob pena de se estar a incentivar a evasão fiscal.
Mas não parece que a argumentação (a par de outra totalmente desapropriada, referente ao conceito diminuto em que os espanhóis terão os portugueses) faça sentido.
O que no quesito 73 se pergunta é quanto ganhava o autor, aquando do acidente, na Sociedad Productos Derivados del Viño; pretende-se conhecer, portanto, o seu rendimento real numa dada situação concreta.
Para prova da matéria, alegada pelo autor, foi junto um documento emitido pela respectiva entidade patronal e arrolada uma testemunha, legal representante da mesma entidade, que foi inquirida por deprecada; para contraprova dos factos, foi solicitado às competentes entidades espanholas, a pedido da ré, esclarecimento acerca da situação fiscal do autor relativamente aos anos de 1999 e seguintes.
O documento junto pelo autor e o depoimento da testemunha ouvida coincidem na indicação do montante auferido mensalmente pelo autor: € 5.709,61; a declaração de rendimentos do ano de 1999, por seu turno, contém a menção de ganhos anuais pouco superiores a duas dezenas de milhar de pesetas.
A qual das provas atribuir maior credibilidade?
Crê-se que às apresentadas pelo autor, pois que ninguém melhor do que a entidade patronal saberá quanto pagava ao seu trabalhador.
De resto, e bem vistas as coisas, a declaração de rendimentos não contraria o que foi asseverado por aquela entidade, pois que rendimento real e rendimento declarado são situações completamente diferentes. De resto, da declaração de rendimentos não se extrai, sequer, a natureza dos mesmos.
A ter havido, como poderá suceder, inexactidão na declaração de rendimentos, as suas eventuais consequências têm lugar noutra sede, a fiscal, que não na do apuramento da situação patrimonial do lesado para efeitos de responsabilidade civil.
Como quer que seja, o documento solicitado às autoridades espanholas não tem força bastante para, só por si, destruir a prova em que a decisão de facto assentou.
A resposta dada pelo tribunal nada tem de ilógico ou infundamentado; responder que o autor ganhava € 426,00, como pretende a recorrente, quando os meios de prova disponíveis dizem que esse valor era ultrapassado em mais de dez vezes, é que seria atentar contra a lógica e a razoabilidade das coisas.
Nenhum erro, pequeno que seja, quanto mais clamoroso, se detecta na resposta dada, quando estribada nos elementos de prova que constam do processo, pelo que o recurso terá, nesta parte, de improceder.

B. A quantificação dos danos

a) O dano patrimonial futuro

A sentença apelada fixou o valor do dano patrimonial futuro em € 160.000,00, louvando-se na matéria de facto provada relativamente ao lesado (rendimento anual de € 79.934,54, incapacidade de 40% e idade de 42 anos à data do acidente), numa expectativa de vida activa de 28 anos e na equidade, como elemento essencial da quantificação.
O autor, simultaneamente apelante e apelado, entende como mais correcto o valor de € 750.000,00, chamando em seu auxílio determinadas fórmulas matemáticas usadas por tribunais superiores e as regras vigentes em matéria de acidentes de trabalho (Lei n.º 100/07).
A ré, apelante e apelada, também, defende a atribuição de um montante bem inferior, propendendo para € 16.000,00 ou para € 100.000,00, conforme se altere, ou não, a resposta ao quesito 73; o argumento invocado, para a hipótese de a dita resposta não ser alterada, é o de não ter ficado provado que o autor venha a sofrer uma perda de capacidade de ganho proporcional ao rendimento que auferia.
Tendo improcedido o recurso no segmento da impugnação da decisão de facto, é evidente que cai imediatamente por terra a pretensão da seguradora de redução do valor indemnizatório, ao abrigo dessa situação; quanto ao mais, vejamos:
Em matéria de obrigação de indemnizar rege o princípio da reconstituição natural, estabelecido no artigo 562.º do Código Civil (diploma a que pertencerão os demais preceitos que venham a ser citados sem menção de origem), nos termos do qual o lesado deve ser colocado na situação em que se encontraria se não tivesse ocorrido o evento lesivo.
Mas como a reposição em espécie nem sempre é possível, seja por razões materiais (morte da pessoa ou destruição de coisa não fungível), seja por questões de insuficiência (porque não cobre todos os danos, por exemplo), seja por via da sua inadequação (em casos de excessiva onerosidade para o devedor), há que recorrer, então, à indemnização em dinheiro (artigo 566.º), a calcular em função da chamada “teoria da diferença”: diferença entre a situação (real) em que o lesado se encontra devido ao facto lesivo e a situação (hipotética) em que se encontraria se não tivesse sofrido o dano (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, volume I, 7.ª edição, páginas 902 e seguintes, e Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3.ª edição refundida, páginas 524 e seguintes).
O dever de indemnizar abrange não só o prejuízo causado (dano emergente), como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucro cessante), onde se compreendem os próprios danos futuros, desde que sejam previsíveis (artigo 564.º).
No que a estes se refere, tem a jurisprudência vindo a entender que a melhor forma de observar o princípio geral da reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (artigo 562.º do CC) é a de achar uma indemnização em dinheiro que corresponda a um capital gerador de rendimento equivalente ao que o lesado deixará de auferir, mas que se extinga no período provável de vida activa (acórdãos do STJ de 04.06.98, BMJ 478, página 344, de 15.12.1998, CJ de Acórdãos do STJ, Ano VI, Tomo III, página 155, de 25.06.2002, mesma CJ, Ano X, Tomo II, página 128, de 20.11.2003, mesma obra, Ano XI, Tomo III, página 149, e de 22.09.2005, obra citada, Ano XIII, Tomo III, página 38).
Para aí chegar (ao cálculo da indemnização), a solução tida, normalmente, por mais correcta é a que, apoiando-se em determinadas fórmulas matemáticas, não se esgota, contudo, nelas, até porque, como se escreveu no citado acórdão de 22.09.05, “essas tabelas assentam em elementos em constante mutação, como as taxas de juro, a própria taxa de incapacidade, tendo em conta os progressos espectaculares da medicina, da cirurgia e da indústria de próteses, a evolução da economia, o salário dos lesados, aquando do acidente, a esperança de vida”.
De sorte que, em última análise, e dada a falibilidade dos cálculos meramente numéricos, vem a ser a equidade (artigo 566.º, n.º 3) o elemento preponderante no estabelecimento da indemnização.
Em qualquer caso, sempre haverão de relevar para o cálculo o tempo provável de vida activa – que a jurisprudência, não obstante algumas oscilações, tem vindo, ultimamente, a situar nos 70 anos, como sucedeu, por exemplo, no referido acórdão de 22.09.05 –, a incapacidade de que o lesado ficou portador, o salário por ele auferido e a taxa de juro praticada no comércio bancário.
A circunstância de se não provar, como aqui se verificou, uma perda efectiva de rendimentos não obsta ao ressarcimento do dano; como se escreveu no acórdão do STJ de 17.05.1994, na sequência, de resto, de jurisprudência assente do mesmo Tribunal, a “incapacidade física implica uma indemnização por danos patrimoniais, mesmo que se não tenha provado uma diminuição actual da remuneração” (CJ do Supremo, Ano II, Tomo II, página 101).
Mas parece evidente, também, que a manutenção do status remuneratório não poderá ser desprezada, havendo de funcionar, quanto mais não seja, como factor de ponderação, à luz da equidade; equiparar quem nada perdeu a quem viu diminuir de forma efectiva a sua capacidade de ganho é que constituiria atropelo à equidade e à justiça.
Como se vê dos factos provados, o autor contava, à data do acidente, 42 anos de idade, pelo que tinha mais 28 anos de esperança de vida activa; exercia as funções de assessor e director comercial numa empresa de produtos vínicos, auferindo anualmente uma remuneração no montante de € 79.934,54; em resultado das lesões sofridas no acidente, ficou afectado de incapacidade permanente para o trabalho de 40%.
Por outro lado, as taxas de juro atingem, hoje, valores razoavelmente elevados, chegando, por vezes, consoante a instituição de crédito, o quantitativo depositado e o tempo do depósito, a mais de 5% ao ano, conquanto seja de admitir, como mais usual, a remuneração de 4%.
Neste condicionalismo, o capital necessário para, ao juro de 4%, obter um rendimento anual calculado com base na incapacidade parcial permanente verificada (cerca de € 32.000,00) seria de, aproximadamente, € 800.000,00.
Mas porque a duração da vida é incerta, o lesado recebe de uma só vez aquilo que receberia, faseadamente, ao longo do tempo, a manutenção do posto de trabalho não é um dado seguro e o capital tem de se esgotar no fim da vida activa, (mas sendo, também, correcto, em contrapartida, que os salários e o custo de vida tendem a aumentar, embora de forma muito paulatina, e que a vida física se prolonga, em regra, para além da vida laboral, conquanto com custos normalmente menores), aquele valor teria de sofrer uma apreciável redução (embora com variações de caso para caso, conforme as circunstâncias, tem-se entendido como acertada a redução em cerca de 1/3).
Só que, no caso, há um outro elemento, e de peso, a acrescer aos mencionados, que aponta para uma redução ainda maior: a falta (ou a não prova) de perda efectiva de capacidade de ganho.
Nestas hipóteses, de mero dano biológico, sem correspondência na capacidade de ganho, o montante indemnizatório não pode deixar de ser significativamente inferior, até porque, como se disse acima, se não devem equiparar situações totalmente diversas entre si.
Tudo sopesado, a verba de € 200.000,00, superior à arbitrada na sentença e à indicada pela seguradora, mas inferior à pretendida pelo lesado, será, muito provavelmente, a mais ajustada para ressarcir os danos no caso concreto, tendo em conta, muito especialmente, que o autor não viu diminuída a expressão da sua massa salarial.

b) O dano patrimonial resultante da perda de salários durante o período em que o autor esteve absolutamente incapaz para o trabalho

Na sentença fixou-se o valor do dano em € 21.125,57, com base na matéria de facto emergente das respostas aos quesitos 65.º (incapacidade absoluta profissional para seu trabalho durante 113 dias) e 76.º (perda de vencimentos no dito montante de € 21.125,57).
A discordância da apelante, que pretende ter sido a perda de, apenas, € 1.704,00, busca fundamento na alteração da resposta ao quesito 73.º, ou seja, na consideração de que o autor auferiria um vencimento mensal equivalente ao do RMMG (€ 426,00).
Improcedente que foi o recurso na parte referente à impugnação da decisão de facto, é óbvio que a sua tese não pode merecer acolhimento.
O autor auferia, não € 426,00, mas, sim, € 5.709,61 por mês, pelo que a perda efectivamente sofrida foi a declarada na sentença.

c) Dano patrimonial emergente da realização de exame no IML do Porto

No artigo 95 da petição inicial, alegou o autor ter despendido € 500,00 em deslocação à cidade do Porto, para realização de exame médico no IML, acordado com a ré.
Na sentença, decidiu-se não poder a indemnização incluir tal quantia, dada a existência de despacho, proferido a folhas 651, que declarou que a mesma entraria em regra de custas.
Diz, agora, o autor que a despesa ficou provada, por via das respostas aos quesitos 1.º, 2.º, 3.º e 89.º, e que a mesma não podia entrar em regra de custas, por se não tratar de perícia efectuada no decurso do processo, mas de exame combinado com a ré antes, ainda, da proprositura da acção.
Sobre este tema ficou provado o seguinte:
Autor e ré combinaram entre si que aquele se sujeitaria a exame médico a realizar no IML do Porto (resposta ao quesito 1.º).
E que a ré se vinculava ao resultado do exame médico (resposta ao quesito 2.º).
Na sequência de tal observação, foi realizado exame e elaborado relatório em 25.09.2001 (resposta ao quesito 3.º).
O autor, com as deslocações que teve de fazer, despendeu quantias não concretamente apuradas, mas não inferiores a € 500,00 (resposta conjunta aos quesitos 89.º e 90.º).
Porque relevante para a decisão da questão, importa explicar que nos quesitos 89.º e 90.º se pergunta, respectivamente, se o autor, na sua deslocação ao Porto, para fazer o exame médico-legal no IML, gastou € 500,00 e nas deslocações para outros tratamentos e exames gastou outros € 500,00.
Ao contrário do que resulta da conclusão formulada pelo autor nas suas alegações, não é o custo do exame que está em causa, mas, sim, as despesas ocasionadas com a deslocação.
E, neste particular, ficou provado, unicamente, que o autor despendeu em deslocações quantias não apuradas, mas não inferiores a € 500,00.
Ora, esta quantia – a única provada, repete-se – foi-lhe arbitrada na sentença, na sequência da resposta conjunta dada àqueles dois artigos.
Independentemente do acerto ou desacerto da decisão proferida a folhas 651, no sentido de a despesa entrar em regra de custas, nenhum fundamento há para o recurso, uma vez que não existe matéria de facto capaz de suportar a pretensão formulada.
A impugnação está, por conseguinte, votada ao insucesso.

d) Dano não patrimonial

No que concerne aos danos de natureza não patrimonial, cuja ressarcibilidade depende da sua gravidade, os critérios para a sua fixação encontram-se estabelecidos no artigo 496.º e 494.º do CC; a regra base é a equidade, tendo em atenção as circunstâncias do caso, de que avultam o grau de culpabilidade do agente, a sua situação económica e a do lesado e outras que se tenham apurado.
“A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo …, e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada). Por outro lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado” (Antunes Varela, ob. cit., 600).
“A indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente” (autor e obra citados, página 602).
A indemnização, ou compensação, deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, por isso que, não pode ser miserabilista, mas significativa (acórdão do STJ de 25.06.02, supra mencionado; em igual sentido, o acórdão do mesmo Tribunal, de 12.03.09, pesquisado na Internet).
No seu cálculo intervém, sobretudo, critérios de equidade (mas fundados nas circunstâncias do caso concreto), de proporcionalidade (em função da gravidade do dano), de prudência, de senso prático, de ponderação das realidades da vida (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição, página 449).
“(…) pretende-se encontrar aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal … a equidade é uma justiça de proporção, de adequação às circunstâncias, de equilíbrio” (Dario Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 2.ª edição, páginas 103/105).
Para as circunstâncias do caso, hão-de relevar a natureza e o grau das lesões, as suas sequelas (físicas e psíquicas), os tratamentos médicos, mormente intervenções cirúrgicas, os internamentos, o tempo de doença, o “quantum doloris”, a afirmação social, a alegria de viver, a auto estima, a idade, a esperança de vida e perspectivas de futuro (acórdão do STJ de 02.10.2007, CJ do STJ, Ano XV, Tomo III, página 68).
Revertendo ao caso dos autos, temos que foi grave a culpa do segurado da ré, que é (ou era até à data do sinistro, pelo menos) boa a situação económica do lesado e elevada a da obrigada a da apelante, como o é, notoriamente, a das companhias de seguros.
Quanto às circunstâncias do caso, é este o quadro factual apurado:
Como consequência directa e necessária da colisão descrita, o Autor sofreu traumatismo facial no lado esquerdo com destruição da órbita, malar, maxilar superior e arco zigomático esquerdos, fractura do lado esquerdo da mandíbula, fractura do maxilar superior tipo Le Fort I do lado direito, fractura sagital entre ambos os maxilares, diversas fracturas dentárias (incisivo central direito 1.1) e fractura coronal de ambos pequenos molares superiores e inferiores.
Para tratamento de tais lesões o Autor foi atendido de urgência no Hospital da Guarda, tendo sido transferido no mesmo dia para o Hospital Ruber Internacional de Madrid, no qual esteve internado até ao dia 26 de Fevereiro de 1999.
No dia 17 de Fevereiro de 1999, foi submetido a uma intervenção cirúrgica para reduções ósseas e imobilização com mini e micro placas de titânio e seus correspondentes parafusos, reconstrução do chão orbitário com placas de ácido poliláctico reabsorvível e no dia 24 do mesmo mês foi submetido a nova intervenção cirúrgica para realizar ferulizacão metálica com aparatologia de Erich e bloqueio intermaxiliar elástico.
No dia 23 de Março de 1999, foi-lhe retirado o bloqueio intermaxilar e no dia 5 de Abril do mesmo ano as férulas, sob anestesia loco-regional.
No dia 14 de Junho de 1999, fez nova intervenção cirúrgica de oftalmologia com cerclajem 2,4 vitrectomia e intercâmbio C3-F8, reaplicação da retina, o que o obrigou a um internamento hospitalar de 13 a 16 de Junho, após o qual foi obrigado a um período de repouso absoluto com decúbito prono no domicílio por espaço de 30 dias.
Até 14 de Outubro de 1999, realizou controlos clínicos semanais.
Em 2 de Novembro de 1999, foi examinado no Centro Oftalmológico Gomez de Liano, no qual lhe foi diagnosticado, em consequência das lesões supra descritas, diplopia do OE por hipotropia.
Em Fevereiro de 2000, apresentou complicação de infecção e inflamação de tecidos moles na região orbitária esquerda, relacionada com a existência de diminutas comunicações do complexo órbito-naso-maxilar, o que o obrigou a tratamentos com antibioterapia.
Em 7 de Novembro de 2000, fez nova intervenção cirúrgica para resolução de catarata em OE, tendo tido alta hospitalar em 8 de Novembro de 2000.
Desde essa data, continua a fazer controlos médicos ambulatórios, cada 3 meses.
No dia 14 de Junho de 2001, fez novo tratamento com laser por aumento da pressão intraocular do olho esquerdo, acompanhado de diminuição da aquidade visual.
No conjunto destes tratamentos recebidos, o autor esteve internado, no hospital, durante um total de dezassete dias.
Na data em que foi submetido a exame médico-legal pelo Instituto Nacional de Medicina Legal – Delegação do Porto, o A. apresentava, ainda, por causa daquela colisão, assimetria facial com afundamento do globo ocular esquerdo (enoftalmose), assimetria de ambos os globos oculares, epífora (lacrimejo) do olho esquerdo na posição horizontal, ausência de função pupilar (miose), afectação motora dos músculos oculares que impedem a elevação e o movimento à esquerda do globo ocular, grande restrição do campo visual e diminuição da aquidade visual, área de edema da regia palpebral inferior e malar com um tamanho de 2.5 por 1.5 cm, área de hipoestesia em hemiface esquerda e ramo mandibular esquerdo, anestesia ao nível da mucosa oral da hemiboca esquerda e hipoestesia ao nível do hemilábio esquerdo, assimetria da fenda bucal na abertura (diâmetro de abertura aproximado 3 cm - 3 traveses de dedo - 85%), assimetria da mordida, com desvio à direita, ligeira crepitação à mobilização da articulação temporo-mandibular esquerda, defeito de consolidação da fractura de apófise coronoides do ramo mandibular esquerdo e presença de material de osteossíntese.
Na sequência das sequelas resultantes das lesões provocadas pelo acidente as capacidades físicas e mentais do autor sofreram alguma alteração.
O autor sofre de diplopia (visão dupla) no olhar para cima, que o obriga a adoptar uma posição forçada da cabeça para trás e na lateral, na tentativa de diminuir a percepção de duas imagens, e de diminuição da aquidade visual 3/10.
O autor ficou com ausência de reflexo pupilar, com afectação motora dos músculos oculares que impedem a elevação e o movimento à esquerda do globo ocular, com redução do campo visual e com dificuldade para a mastigação dos alimentos em geral e, em particular, de alimentos duros (como sandes, maçãs, etc.).
Apresenta alguma dificuldade na elaboração das palavras, denominada de dislexia.
Por vezes, tem dores ao nível da região zigomâtico-malar e mandibular esquerda, que o obrigam, de forma esporádica, a tratamento com fármacos analgésicos e anti-inflamatórios.
O A. passou a ter dificuldade em conduzir veículos automóveis durante o dia e deixou de poder conduzir à noite.
Em virtude do referido nas respostas dadas aos artigos 42º a 47º da base instrutória passou a sentir maiores dificuldades para ler, ver televisão e trabalhar no computador, tendo necessidade de alguns períodos de descanso e pausas.
Devido ao referido na resposta ao facto 48º da base instrutória, viu-se obrigado a, na sua dieta alimentar, dar preferência a alimentos tenros.
Como consequência das lesões e das sequelas de que ficou afectado, o autor sofreu uma incapacidade temporária absoluta geral durante 93 dias e uma incapacidade temporária parcial geral de 574 dias.
Sofreu uma incapacidade temporária permanente profissional para o trabalho de 547 dias e uma incapacidade temporária absoluta profissional e para o seu trabalho de 113 dias.
Ficou com uma incapacidade parcial permanente de 35%.
E ficou afectado de anomalias ao nível da articulação tempora-mandibular esquerda, onde se esboça artrose da mesma, sendo de prever o agravamento, quer desta articulação, quer da contralateral, o que faz acrescer o grau de incapacidade descrito a resposta dada ao facto 66º, a título de dano futuro, de mais 5%.
O autor ficou afectado de incapacidade permanente para o trabalho de 40%.
Com as lesões sofridas e os tratamentos a que foi submetido, o autor sofreu fortes dores, angústia e desespero, sendo o seu "quantum doloris" fixável num grau 6 numa escala de l a 7.
O autor sofreu dano estético valorizável num grau 5, numa escala de 1 a 7, o que lhe causou e causa tristeza, desgosto, inibição e angústia.
Antes do acidente em apreço, era um homem forte, robusto e saudável.
Para tratamento das lesões sofridas, o autor terá que ser sujeito a novas intervenções cirúrgicas, em concreto, para extracção da placa de osteossíntese do ângulo mandibular esquerdo, para exodontia do 3º grande molar (3.8) e para reconstrução dentária, que lhe provocarão dores.
O A. tinha 42 anos à data do acidente.
O espectro factual escrito é, sem dúvida, grave, uma vez que as lesões, não completamente debeladas, ainda, foram extensas, os tratamentos e os períodos de internamento prolongados, as intervenções cirúrgicas repetidas, o “quantum doloris” intenso, o dano estético elevado, as sequelas anátomo-funcionais pesadas e o futuro pouco risonho, pelas dores que o apelante vai sentir para todo o sempre e pela limitação derivada da incapacidade de que ficou portador.
Na sentença valorizaram-se os danos em € 25.000,00, chamando-se à colação casos considerados semelhantes, julgados pelo STJ, mas o autor/apelante discorda, propondo, antes, o valor global de € 195.450,00, dividido em duas parcelas: uma de € 75.000,00, referente à afectação do seu estado de espírito (sofrimento, dores, angústia, desespero, tristeza, desgosto e inibição, passados, presentes e futuros) e ao dano estético (grau 5, numa escala de 1 a 7), e outra de € 120.450,00, respeitante à perda de disponibilidade do seu corpo para os normais afazeres, que não laborais, do quotidiano e durante toda a vida.
No que tange à perda de disponibilidade do corpo, diz não dever ser compensado em menos do que € 10,00 por dia, até ao termo da sua existência, que situa nos 75 anos (actual tempo médio de vida), argumentando, analogicamente, ser essa a quantia atribuída pela privação de certos objectos materiais, como os automóveis.
Mas não parece que tenha razão para tão elevada pretensão, à luz, pelo menos, da jurisprudência mais actual, mormente do STJ.
Sendo certo que se tem vindo a assistir, nos últimos tempos, ao aumento dos valores relativos aos danos não patrimoniais, não o é menos que ficam, ainda assim, bem longe do defendido pelo apelante.
Nos acórdãos do STJ de 22.09.05 (e em dois outros arestos ali referidos) e de 12.03.09, acima citados, chegou-se ao valor de € 100.000,00. Trata-se, no entanto, em qualquer dos casos, de situações bem mais graves do que a dos presentes autos; no primeiro está em causa uma jovem de 19 anos, que ficou paraplégica e, no segundo, uma lesada de 32 anos, que se locomove, mas claudicando, ficou impedida de exercer a sua profissão habitual (cozinheira), mas pode exercer outras, necessitará, no futuro, de assistência médica e medicamentosa e tem de recorrer a ajuda de terceiros para a realização de algumas tarefas básicas.
A situação do autor nada tem a ver com a daquelas lesadas; as lesões são muito menos graves, as consequências, também (basta dizer que não ficou impedido de exercer a sua profissão habitual), e a idade bastante mais avançada, em relação, sobretudo, à da primeira sinistrada.
E diga-se que a analogia com a indemnização pela privação do uso de veículo automóvel é, de todo, inconsequente, já que se trata de valores e situações distintos; não se pode comparar o incomparável.
O valor pretendido é exagerado, embora se pense que o atribuído na sentença é escasso para reparar (compensar) a extensão e as consequências das lesões resultantes do acidente, considerando-se, como mais correcto o de € 40.000,00.

C. Os juros compensatórios, com vista à reintegração do valor aquisitivo de quantias despendidas

O autor peticionou a condenação da ré no pagamento de juros compensatórios, à taxa de 4%, sobre importâncias que despendeu ou deixou de receber, como forma de reintegrar o valor aquisitivo da moeda, depreciada por via da inflação, mas a sentença não acolheu a sua pretensão.
No recurso, insiste pelos juros compensatórios sobre a quantia de € 44.395,76, desde 9 de Fevereiro de 1999, data em que fez os últimos pagamentos, até à data da citação da ré.
Em sede de matéria de facto, ficou provado que a incapacidade temporária de trabalhar causou uma perda de vencimentos no valor de € 21.125,57 (resposta ao quesito 76) e que o autor pagou por tratamentos efectuados € 22.770,19 e em deslocações € 500,00, num total, por conseguinte, de € 44.395,76.
Em tese, a posição do autor é absolutamente correcta; devendo a indemnização corresponder à diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (artigo 566.º, n.º 2, do Código Civil), haverá seguramente prejuízo para ele se as quantias gastas ou deixadas de receber em razão do acidente não representarem, em valor, aquando da sua entrega, o mesmo que representavam aquando da sua saída ou do seu não recebimento.
Corroendo a inflação, como é sabido, o poder aquisitivo do dinheiro, o ressarcimento do dano passa, no caso, pela actualização dos valores despendidos ou deixados de receber.
A questão, muito simplesmente, é que ficou por alegar ou por provar matéria indispensável à procedência da pretensão deduzida.
No que toca às importâncias de € 22.770,19 e de € 500,00, relativas a tratamentos e a deslocações, respectivamente, não se provou a data em que o autor as desembolsou, pelo que a actualização está completamente fora de causa; neste particular, incorre, aliás, o autor em enorme equívoco, pois que alegou ter efectuado os últimos pagamentos em 9 de Fevereiro de 1999, quando essa foi a data do acidente.
Quanto aos vencimentos que deixou de receber, já a situação é diferente, embora não propriamente clara. Diferente, na medida em que, reportando-se a incapacidade temporária para o trabalho aos 113 dias subsequentes ao acidente e devendo as remunerações ser pagas até ao fim de cada mês, o desapossamento da quantia em causa (21.125,57) ocorreu, o mais tardar, até finais do mês de Maio de 2000; mas pouco clara, porque o autor não alegou e, consequentemente, não logrou provar, a taxa de inflação verificada entre Junho de 2000 e a data da citação.
Se é certo que a inflação é facto notório, outro tanto não sucede com a respectiva taxa.
Deste modo, a actualização, admissível, só poderá ser efectuada em posterior liquidação em incidente próprio, onde se alegue e prove a taxa de inflação (neste sentido, o acórdão da Relação do Porto, de 13.07.1989, CJ, Ano XIV, Tomo IV, página 194).
Procederá, pois, o recurso somente em parte e na forma indicada.

Em conclusão, a sentença será parcialmente revogada, condenando-se a apelante a pagar ao apelado, para além do que se liquidar em incidente próprio, relativamente à actualização da quantia de € 21.125,57, entre Junho de 2000 e a data da citação, nos termos acima referidos, a indemnização global de € 284.171,12 (sendo € 244.171,12 de danos patrimoniais e € 40.000,00 de danos não patrimoniais), acrescida de juros de mora, à taxa legal:
– sobre a quantia de € 240.000,00, desde a data da sentença e até integral pagamento;
– sobre o demais, desde a citação e até efectivo pagamento.
Em tudo o restante, haverá de manter-se a sentença recorrida.


IV. Síntese final:

a) É ajustado o montante de € 200.000,00 para indemnizar o dano patrimonial futuro relativo a lesado com 42 anos, que ficou com uma IPP de 40% e auferia um salário mensal na ordem dos € 5.700,00, mas sem que se tenha provado a efectiva perda de rendimentos do trabalho.
b) Para ressarcir o dano não patrimonial é adequada a quantia de € 40.000,00.
c) As importâncias que o lesado despendeu ou deixou de receber por força do acidente podem ser actualizadas, desde que tenham perdido valor por via da inflação.
d) Cabe, no entanto, ao lesado alegar e provar o valor da inflação.


V. Decisão:

Em face do exposto, decide-se julgar a apelação parcialmente procedente e em consequência:
1. Revoga-se, em parte, a sentença apelada, a qual se substitui por outra que condena a ré a pagar ao autor:
a) A importância que se liquidar em incidente próprio, relativamente à actualização da quantia de € 21.125,57, entre Junho de 2000 e a data da citação, nos termos acima referidos.
b) A quantia de € 284.171,12, acrescida de juros, à taxa legal, pela forma seguinte:
– sobre a quantia de € 240.000,00 desde a data da sentença e até integral pagamento;
– sobre o demais, desde citação e até efectivo pagamento.
2. Mantém-se, no restante, o que foi decidido em primeira instância.
3. Custas por apelante e apelado na proporção do respectivo decaimento.