Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1575/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: COELHO DE MATOS
Descritores: BENFEITORIA; POSSE
Data do Acordão: 10/26/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1273.º N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. O artigo 1273.º do Código Civil só se aplica, de modo directo, à posse propriamente dita, e não à mera detenção ou posse precária.
2. Não tem direito à indemnização por benfeitorias o embargante que, com base nelas, se opõe à execução para entrega de prédio que ocupou, primeiro com a condescendência dos pais e depois na qualidade de herdeiro e com a condescendência do outro co-herdeiro
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. A... e mulher, B..., deduzem embargos de executado, à execução n.º 80-A/90, da 2.ª Secção do tribunal da comarca de Torres Novas, nos termos do disposto no artigo 929º do Código de Processo Civil, contra C..., pedindo a condenação da embargada a pagar-lhes a quantia de Esc. 10.603.400$00 ou, em alternativa, Esc. 3.603.400$00, a título de benfeitorias, reconhecendo o direito de propriedade dos embargantes sobre o imóvel identificado no art.º 2º da petição de embargos e aceitando o direito de passagem para o mesmo, pela sua propriedade.
Alegam, em síntese, que nesse prédio e devidamente autorizados por seus pais e depois pela exequente, também herdeira, construíram um aviário, constituído por um pavilhão com 30 x 7m de área e área anexa para armazenagem de farinha, num total de 250 m2, o qual está inscrito na matriz predial sob o art.º 2086, em nome do embargante, construíram um poço com 11 metros de profundidade, fizeram terraplanagens de parte da propriedade, reconstruíram a cobertura da adega e construíram o prédio descrito na matriz sob o artigo 358.º e anexos, tendo gasto diversas importâncias, sendo que tais benfeitorias têm um valor acrescido de Esc. 10.603.400$00, tendo pavilhão um valor comercial de, pelo menos, Esc. 7.000.000$00, e tendo o direito de retenção sobre esses prédios.

2. A embargada contestou, por impugnação, concluindo pela improcedência dos embargos.
No prosseguimento da causa veio a ser proferida sentença que julgou os embargos parcialmente procedentes e condenou a embargada a pagar aos embargantes o montante de 5.736,18 euros (Esc. 1.150.000$00), acrescido do que se liquidar em execução de sentença relativamente ao valor do poço, nunca superior a 1646,03 euros (Esc. 330.000$00) sendo que os embargantes têm o direito de retenção sobre os referidos bens onde foram incorporadas as benfeitorias (incluindo sobre o poço) e absolveu a embargada do restante que é pedido pelos embargantes, devendo estes entregar àquela, conforme é pedido no requerimento de execução, a parte do terreno onde foi implantado o referido pavilhão, não havendo qualquer direito de retenção.

3. A embargante não se conforma e apela da decisão, concluindo:
1) Os ora Recorridos nunca foram possuidores de boa ou má fé dos prédios em discussão nos autos, mas meros detentores;
2) Para que haja benfeitorias, necessário é que exista uma prévia relação ou vínculo entre o benfeitorizante e a coisa, o que nos autos em discussão nunca sucedeu;
3) Os ora Recorridos eram meros titulares do direito à herança, sendo certo que com a abertura da sucessão ou herança transmite-se uma posse apenas jurídica ou ideal. A posse perfeita, verdadeira, em nome próprio tem de referir-se ao momento em que o possuidor a alcança de modo exclusivo sobre certos e determinados bens da herança em que se dá a "conversão da quota ideal" num poder concreto e exclusivo sobre esses bens;
4) Ora, no caso vertente duvidas não podem subsistir que as obras feitas de má fé, à revelia da sua real proprietária que apenas é condescendente, porque está longe, num terreno alheio que os ora Recorridos bem sabiam ser alheio, não pode ser considerada benfeitoria por o prédio não vir a sofrer alterações que lhe aumentem o valor nem evitem que o prédio se desvalorize;
5) Os Recorridos não provaram que o levantamento das "benfeitorias" não podia ser feito em detrimento do prédio, cabendo-lhes a eles o ónus da prova;
6) Em relação a todas as alegadas benfeitorias dúvidas não podem subsistir, nos termos do artigo 1273.º do C.C., que o direito do benfeitorizante é, em princípio, levantar as benfeitorias, apresentando-se o direito a indemnização como efeito ou consequência da existência de detrimento da coisa, provocado pelo levantamento, sendo que a possibilidade desse detrimento se configura como circunstância impeditiva daquele primeiro direito do benfeitorizante;
7) Certo é que o dono da coisa deve poder optar entre sofrer o detrimento (permitindo o levantamento das benfeitorias) ou evitá-lo (pagando a indemnização);
8) Ora, a Recorrente optou pelo levantamento das "benfeitorias" no momento em que se opôs aos embargos deduzidos;
9) Deveria o Tribunal a quo ter aplicado o direito tendo em consideração que se verifica por parte dos Recorridos mera detenção sobre os prédios objecto dos presentes autos, uma vez que bem conclui que as "benfeitorias" foram feitas em terreno alheio, que os Recorridos actuaram apenas por condescendência da ora Recorrente que trabalhava e vivia longe e que os Recorridos apenas estiveram na "posse" do terreno na qualidade de titulares do direito à herança de seus pais;
10) Deveria o Tribunal a quo verificar ainda que a Recorrente ao opor-se aos embargos optou pelo levantamento das benfeitorias, sendo certo que os ora Recorridos não provaram que o levantamento das benfeitorias não podia ser feito em detrimento do prédio, cabendo-lhes a eles o ónus da prova nesse sentido.
11) Deve ser revogada a sentença recorrida no que se refere ao pagamento pela ora Apelante aos Apelados do valor de Eur 5.736,18 acrescido do que se liquidar em execução de sentença relativamente ao valor do poço nunca superior a Eur 1.646,03, sendo retirado aos embargantes o direito de retenção sobre os referidos bens onde foram incorporadas as benfeitorias.

4. Não foram apresentadas contra-alegações. Estão colhidos os vistos legais. Cumpre conhecer e decidir. Os factos provados são os seguintes:
1) Correu termos, no Tribunal Judicial de Torres Novas, um inventário facultativo, com o n.º 80/90, por óbito de João Francisco e mulher, Maria Lopes Pereira, a que sucederam seus filhos Maria Celeste Pereira Rosa da Silva Pereira e João Francisco Pereira, casado com Emerita do Carmo Lapa de Almeida Pereira – Al. A) dos factos assentos;
2) No referido inventário, foram adjudicados, por sentença transitada em julgado, a ora exequente Maria Celeste Pereira Rosa da Silva Pereira, os seguintes prédios:
a) Um prédio rústico, com oliveiras e figueiras, sito no Rossio, freguesia de Assentiz, não descrito na Conservatória e inscrito na respectiva matriz sob o art.º 50º da secção AA;
b) Um prédio urbano, composto de casas de rés-do-chão, com 5 divisões, sito em Outeiro Grande, freguesia de Assentiz, que confronta do norte com João Lopes Pereira, do Sul e Nascente com Rua e Poente com Filipe da Conceição Gomes Tomás, não descrito na Conservatória e inscrito na respectiva matriz sob o art.º 359º;
c) Casas de rés-do-chão que servem de palheiro, com uma divisão e porta, sito em Outeiro Grande, Freguesia de Assentiz, que confronta do Norte, Nascente e Poente com António da Silva e do Sul com Rua, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 64230 a fls. 89 do livro B – 115 e inscrito na respectiva matriz sob o art.º 384;
d) Casas de rés-do-chão, sitas em Outeiro Grande, Assentiz, que confronta do Norte com parte rústica, do Sul com José Lopes Pereira Chixareiro, do Nascente com parte rústica e do Poente com Rua, não descrita na Conservatória e inscrito na respectiva matriz sob o art.º 358 – Al. B) do Factos Assentes;
e) No prédio referido em a) da alínea anterior, os embargantes fizeram uma construção para aviário – Al. C) dos Factos Assentes;
f) Na matriz urbana da freguesia de Assentiz, Concelho de Torres Novas, encontra-se inscrito, em nome do embargante, na matriz predial urbana, art.º 2086, um edifício descrito como barracão com 210 m2, com três divisões, sendo duas para armazém de farinhas e para galinheiro –Al D) dos Factos Assentes;
g) A embargante emitiu a declaração que se encontra a fls. 10, cujo teor se dá aqui por reproduzido – Al. E) dos Factos Assentes;
h) A construção referida na al. c) dos factos Assentes terá uma valor comercial de Esc. 5.000.000$00, com referência a 22 de Fevereiro de 2001 – resposta ao quesito 2º;
i) Os embargantes fizeram terraplanagens em parte da propriedade, construindo um caminho de acesso para máquinas e transportes comerciais - resposta ao quesito 3º;
j) Com o que valorizaram a propriedade, em pelo menos, Esc. 300.000$00, à data em que as obras foram feiras, sendo que, em 22 de Fevereiro de 2001, tal valor era de Esc. 625.000$00 – resposta ao quesito 4º;
k) Os embargantes construíram um poço, com 11 metros de profundidade, revestido a anéis de cimento, sendo que gastaram quantia não apurada em tal construção – resposta ao quesito 5º;
l) Os embargantes reconstruíram a cobertura da adega, em estrutura metálica revestida a chapa de alumínio, com a área de 60,5 m2, sendo que tal estrutura tinha o valor de Esc. 300.000$00, em 22 de Fevereiro de 2001 – resposta ao quesito 6º;
m) Os embargantes reconstruíram o prédio referido em d) da alínea B) dos Factos Assentes, instalando uma casa de banho, canalizações, nomeadamente de gás, valendo a mesma (casa de banho), em 22 de Fevereiro de 2001, a quantia de Esc. 225.000$00 – resposta ao quesito 7º;
n) A construção referida em C) dos Factos Assentes está degradada e não tem utilização prática – resposta ao quesito 9º;
o) Os embargantes apenas agiram sobre os prédios por condescendência da embargada, que ao tempo vivia e trabalhava longe de Torres Novas – resposta ao quesito 10º;
p) Os embargantes apenas estiveram na posse dos prédios referidos na alínea B) dos Factos Assentes na qualidade de titulares do direito de herança de seus pais – resposta ao quesito 11º.

5. Com estes factos a 1.ª instância considerou que os embargantes eram titulares de um direito a indemnização por benfeitorias úteis realizadas no prédio que coube à embargada por herança de seus pais e também pais dos embargantes; direito que pretendem exercer nos embargos à execução em que a embargada se prepara para reaver o prédio. Reconhecendo o direito a sentença condenou a exequente a indemnizar pelas benfeitorias e reconheceu aos embargantes o direito de retenção do prédio onde efectuou as benfeitorias.
Com a apelação a exequente pretende libertar-se da obrigação de indemnizar e retirar aos apelados o direito de retenção. Isto porque entende que não só não deveria indemnizar porque não pretende ficar com as ditas benfeitorias e fundamentalmente porque os embargantes carecem do direito que se arrogam.
Entende, a propósito, a apelante que o direito à indemnização carece dum requisito essencial que é a posse dos embargantes (artigo 1273.º 1 do Código Civil), já que não invocam qualquer outra relação jurídica - vg. comodato (artigo 1138.º), locação (artigo 1046.º 1), doação (artigo 2177.º) - que lhes confira o direito invocado.
Diz o n.º 1 do artigo 1273.º do Código Civil que “tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm o direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela”.
A inserção sistemática deste normativo no Código Civil - Capítulo IV (Efeitos da Posse), do Título I (Da Posse), do Livro III (Direito das Coisas) - conduz-nos de imediato à conclusão de que estamos aqui a falar de posse cuja noção repousa no artigo 1251.º “... o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real ”. É desse poder de facto exercido com intenção de se ser titular do direito correspondente que falamos quando temos pela frente uma situação como a do caso vertente em que se esgrimem direitos de indemnizar por se terem efectuado obras ou melhoramentos em coisa reivindicada triunfantemente pelo verdadeiro titular. É a este tipo de relação jurídica que o artigo 1273.º se refere. Fora da sua previsão estão, pois, “os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito” e “os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito”, sendo havidos como meros detentores ou possuidores precários - artigo 1253.º a) e b) do Código Civil.
E só o possuidor (não o detentor ou possuidor precário) tem direito a benfeitorias ou à respectiva indemnização, nos termos do artigo 1273.º, 1 e 2 do Código Civil. Como escreveram Pires de Lima e Antunes Varela ( Código Civil anotado, 2.ª edição, vol. III, pág. 44) “este artigo 1273.º só se aplica, de modo directo, à posse propriamente dita, e não à mera detenção ou posse precária”, sendo que existem casos especialmente previstos na lei a partir dos quais se remete para os preceitos deste artigo 1273.º, na definição do respectivo regime de benfeitorias, como sejam o do comodatário (artigo 1138.º), do locatário (artigo 1046.º 1), do donatário (artigo 2177.º).
Também nesta Relação se decidiu, num passado próximo ( Acórdão de 30/01/2001, relatado pelo então Desembargador Dr. Nuno Cameira, Apelação n.º 3365/2000. No mesmo sentido ver ainda acórdãos da RP de 10/02/76, BMJ, 257.º-192; RL, 16/03/79, CJ, 1979, 2.º, 596.) que “o direito à indemnização pelas benfeitorias realizadas na coisa, preceituado no artigo 1273º, n.º 1 do Código Civil, só se aplica de forma directa à posse propriamente dita, e não à mera detenção ou posse precária, casos estes em que esse direito só existe se houver expressa determinação legal”.
No caso vertente está provado que as reclamadas benfeitorias foram feitas em prédio da herança dos pais do embargante e da embargada, prédio esse que veio a ser adjudicado a esta, que agora o reclama em execução de sentença homologatória da partilha. Quando fizeram as benfeitorias os embargantes ocupavam o prédio e sabiam que era da herança. Sabiam que eram meros titulares do direito de herança de seus pais, tendo até alegado (artigo 20.º da petição inicial) que agiram com a condescendência dos pais do embargante e vindo a provar-se que também depois com a condescendência da embargada, que ao tempo vivia e trabalhava longe de Torres Novas – resposta ao quesito 10º. Ou seja, os embargantes nunca exercerem um poder de facto (corpus) sobre o prédio com a intenção (animus) de serem os seus únicos e exclusivos proprietários. Por isso nunca foram possuidores; foram meros detentores e, nessa perspectiva, não podem arrogar-se com direito a benfeitorias, louvando-se no artigo 1273.º do Código Civil. Consequentemente também não gozam do direito de retenção.
Concluindo:
- O artigo 1273.º do Código Civil só se aplica, de modo directo, à posse propriamente dita, e não à mera detenção ou posse precária.
- Não tem direito à indemnização por benfeitorias o embargante que, com base nelas, se opõe à execução para entrega de prédio que ocupou, primeiro com a condescendência dos pais e depois na qualidade de herdeiro e com a condescendência do outro co-herdeiro.

6. Decisão
Pelo exposto acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação procedente, em consequência do que revogam a sentença recorrida, improcedendo os embargos de executado.
Custas a cargo dos executados.
Coimbra,
Relator: Coelho de Matos; Adjuntos: Custódio Costa e Ferreira de Barros