Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
683/06.8TBSEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME FERREIRA
Descritores: ACÇÃO POPULAR
INTERESSES DIFUSOS
SUSPENSÃO DO PROCESSO
MORTE DE UM DOS AUTORES NA ACÇÃO
Data do Acordão: 12/19/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SEIA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ARTºS 276º, Nº 1, AL. A), E 277º DO CPC; 1º, Nº 2, 2º, NºS 1 E 2, E 14º DA LEI Nº 83/95, DE 31/08.
Sumário: I - A suspensão da instância prevista na al. a) do nº 1 do artº 276º e no nº 1 do artº 277º, ambos do CPC, apenas se justifica ou deve ter lugar quando se torne necessário proceder à habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda, conforme bem resulta do artº 371º, nº 1, 1ª parte, do CPC.

II - Quando não haja necessidade de se proceder a tal habilitação não terá qualquer justificação a referida suspensão da instância, e a morte de alguma das partes apenas poderá conduzir à extinção da instância, quando essa morte torne impossível ou inútil a continuação da lide – artº 276º, nº 3 do CPC.

III - Isto é, a referida habilitação apenas pode e deve ter lugar quando ocorra a transmissão da posição jurídica do falecido, quando há sucessão de direitos ou obrigações das partes falecidas na pendência da acção, por forma a que o transmissário ou sucessor possa ocupar tal posição, o que não pode ter lugar quando o direito do falecido tenha carácter pessoal e intransmissível

IV - Conforme resulta dos artºs 1º, nº 2; 2º, nºs 1 e 2, da Lei nº 83/95, de 31/08; e 26º-A, do CPC (acções para a tutela de interesses difusos), têm legitimidade para propor e intervir nas acções (ditas populares) e procedimentos cautelares destinados à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, …, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa (independentemente de terem ou não interesse directo na demanda), as autarquias locais e o Ministério Público.

V - Também resulta do artº 14º da citada Lei que “nos processos de acção popular o autor representa, por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto-exclusão…”.

VI - Não faz qualquer sentido acautelar a posição jurídica na causa de uma autora falecida, através da intervenção na acção dos seus sucessores, precisamente porque neste tipo de acções apenas está em causa a tutela ou defesa de interesses difusos, não de interesses próprios ou imediatos de qualquer um dos autores, isto é, o direito de que cada cidadão é portador neste tipo de causas tem carácter pessoal e intransmissível, pelo que não faz qualquer sentido nem é consentida a transmissão de uma qualquer posição jurídica em tais causas.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
I

No Tribunal Judicial da Comarca de Seia, A..., viúva, residente na Av. João Gonçalves, nº 5, Vila Chã, Santa Comba, Seia; B..., viúva, residente na Av. João Gonçalves, nº 13, Vila Chã, Santa Comba, Seia; e C..., viúva, residente no Beco Nossa Senhora da Consolação, Vila Chã, Santa Comba, Seia, instauraram contra D... e mulher E..., residentes na Rua João Gonçalves, nº 14, Vila Chã, Santa Comba, Seis, a presente acção popular civil, com processo declarativo ordinário, nos termos da Lei nº 83/95, de 31/08, pedindo a condenação dos R.R. a reconhecerem o carácter público do caminho e do largo descritos na petição e a absterem-se, no futuro, da prática de quaisquer actos que possam perturbar, limitar ou impedir a utilização dos ditos caminho e largo e em toda a sua plenitude.
II
Analisada essa petição pelo Digno Agente do Mº Pº junto do Tribunal e ordenado o prosseguimento do processo pelo senhor Juiz do processo, em obediência ao disposto no artº 13ºda Lei nº 83/95, pelos R.R. foi apresentada contestação, na qual defendem, muito em resumo, que não existe o alegado caminho público, distinto do Largo situado no local em causa, pelo que terminaram pedindo a improcedência da acção.
III
Terminados os articulados e enquanto se aguardava que fosse dado conhecimento nos autos do registo da acção, foi junto ao processo certificado do óbito da autora A..., ocorrido em 11/04/2007 – fls. 166 e 167.
Nessa sequência, foi proferido o despacho de fls. 175/176, no qual foi decidido ordenar a suspensão da presente instância, com vista a ter lugar a habilitação dos herdeiros da dita falecida.
IV
É deste despacho que pelos demais autores foi interposto recurso, conforme fls. 183, o qual foi admitido como agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo do processo.

Nas alegações que apresentaram as Agravantes concluíram do seguinte modo:
1ª - A suspensão da instância não é uma norma de aplicação imperativa a todos os casos de decesso de um autor.
2ª - Previamente à suspensão há que analisar o direito em causa e verificar se é passível de se transmitir pelo efeito sucessório, e se há incerteza de quem seja legítimo titular da relação jurídica processual respectiva.
3ª - No caso em apreço o direito que se pretende fazer valer não se transmite aos sucessores das autoras, sendo sim um direito exercido por uma comunidade, sendo só ela quem tem direito e interesse em agir.
4ª - Além de que o universo dos potenciais titulares do direito se encontra circunscrito à localidade de Vila Chã, sendo disso mesmo claro a dispensa de anúncios e a publicação apenas do edital na Junta de Freguesia onde a localidade se insere.
5ª - Pelo que também não existe incerteza quanto aos titulares da relação jurídica.
6ª - Esses titulares estão sujeitos às regras e consequências do artº 15º da Lei nº 83/95, de 31/08, pelo que esses são chamados à acção por essa via, sujeitando-se assim à decisão tomada.
7ª - Nada obstando que a acção prossiga, com a legitimidade das partes garantida.
8ª - Assim, inexiste nos autos motivo para que fosse determinada a suspensão da instância, o que deve ser revogado.
9ª - Foram violados os artºs 26º e 276º do CPC e o artº 15º da Lei nº 83/95, de 31/08.
10ª - Termos em que deve ser revogado o despacho recorrido.
V
Não foram apresentadas contra-alegações e no Tribunal recorrido ainda foi proferido despacho de sustentação, com base nos fundamentos constantes do próprio despacho recorrido.
VI
Nesta Relação foi aceite o recurso interposto e tal como foi admitido em 1ª instância, tendo-se procedido à recolha dos necessários “vistos” legais, pelo que nada obsta a que se conheça do seu objecto, o qual, como ressalta do supra exposto, se resume à reapreciação do despacho de fls. 175, onde foi determinada a suspensão da instância, com base no óbito de uma das autoras entretanto ocorrido.
Cumpre, pois apreciar, para o que importa, antes de mais, que atentemos na fundamentação do despacho recorrido, da qual consta o seguinte: “… As normas citadas (artºs 276º, nº 1, al. a), e 277º, nºs 1 e 3, do CPC) são de aplicação geral e imperativa, sendo afastadas apenas se e quando houver disposição em contrário… No que toca à acção popular, a Lei nº 83/95, de 31/08, contém normas específicas que, a respeito de algumas matérias, constituem uma derrogação do regime processual civil geral. O que não sucede quanto à questão em apreço, isto é, esse diploma não prevê qualquer excepção ao princípio geral consignado nos artºs 276º, al. a), e 277º, nº 1, do CPC. Razão pela qual se impõe a suspensão da instância para habilitação de herdeiros da co-autora (falecida)”.
Os Recorrentes manifestam-se contra este entendimento, conforme resulta da sua alegação de recurso, o que está traduzido nas conclusões que formularam e que acima se transcreveram.
Ora, e com o devido respeito por opinião contrária, afigura-se-nos que os Agravantes têm razão.
Com efeito, a suspensão da instância prevista na al. a) do nº 1 do artº 276º e no nº 1 do artº 277º, ambos do CPC, apenas se justifica ou deve ter lugar quando se torne necessário proceder à habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda, conforme bem resulta do artº 371º, nº 1, 1ª parte, do CPC.
Quando não haja necessidade de se proceder a tal habilitação não terá qualquer justificação a referida suspensão da instância, e a morte de alguma das partes apenas poderá conduzir à extinção da instância, quando essa morte torne impossível ou inútil a continuação da lide – artº 276º, nº 3 do CPC.
Conforme se escreveu no Ac. Rel. Co. de 30/04/2002, Proc. nº 42/02, disponível no site desta Relação, “a habilitação tem por objectivo colocar o sucessor no lugar que o falecido ou transmitente ocupava em processo pendente, e certificar que determinada pessoa sucedeu a outra na posição jurídica em que esta se situava”.
Isto é, a referida habilitação apenas pode e deve ter lugar quando ocorra a transmissão da posição jurídica do falecido, quando há sucessão de direitos ou obrigações das partes falecidas na pendência da acção, por forma a que o transmissário ou sucessor possa ocupar tal posição, o que não pode ter lugar quando o direito do falecido tenha carácter pessoal e intransmissível – veja-se, neste sentido, o Prof. Alberto dos Reis, in “Comentário ao C.P.C.”, vol 3º, pg. 235, onde defende que “se não há sucessor, porque o direito, de que o falecido era portador, tinha carácter pessoal e intransmissível, é claro que a suspensão (da acção) não se compreende nem se justifica”.
Ora, conforme bem resulta dos artºs 1º, nº 2; 2º, nºs 1 e 2, da Lei nº 83/95, de 31/08; e 26º-A, do CPC (acções para a tutela de interesses difusos), têm legitimidade para propor e intervir nas acções (ditas populares) e procedimentos cautelares destinados à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, …, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa (independentemente de terem ou não interesse directo na demanda), as autarquias locais e o Ministério Público.
Tais preceitos, conjugados com o artº 52º da Constituição da República Portuguesa, onde se consagra o direito de petição e o direito de acção popular a todos os cidadãos (legitimidade processual activa a todos os cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com os bens ou interesses em causa), para a defesa da saúde pública, dos direitos dos consumidores, da qualidade de vida, da preservação do ambiente e do património cultural e bem assim para assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais, revelam claramente que estamos perante a defesa de interesses públicos difusos, interesses de toda a comunidade, para cuja defesa se reconhece aos cidadãos em geral uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais interesses – vejam-se, neste sentido, os Prof. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, notas ao artº 52º.
É que estes interesses (ditos difusos) são interesses cuja titularidade pertence a todos e a cada um dos membros de uma comunidade ou de um grupo e que não são susceptíveis de apropriação individual por qualquer desses membros, conforme escreve Miguel Teixeira de Sousa in “As partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, pg. 55.
Donde resulta, desde logo, que qualquer dos autores nesta acção não está a prosseguir ou a tentar proteger (no imediato) interesses e bens pessoais ou próprios, mas interesses que, na perspectiva que vazaram na petição, poderão ser da comunidade de Vila Chã, Santa Comba, Seia, já que apenas procuram obter uma decisão que declare a natureza pública de um determinado caminho, com a condenação dos R.R. a assim o reconhecerem e respeitarem.
Ora, como também resulta do artº 14º da citada Lei, “nos processos de acção popular o autor representa, por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto-exclusão…”.
E uma vez recebida a petição de acção popular são citados os titulares dos interesses em causa na acção e não intervenientes nela para o efeito de passarem a intervir no processo a título principal, querendo – artº 15º, nº 1, da Lei nº 83/95.
Donde resulta que qualquer dos autores na presente acção ou o conjunto dos autores que a instauraram representa(m) já todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto-exclusão.
Pelo que se pode concluir que não só eventuais sucessores da autora falecida, com interesse na causa, já se considerem ou tenham de considerar como representados na acção (pelos outros co-autores sobrevivos), face à citação havida, pelo que não tem qualquer justificação implementar a sua habilitação para com eles prosseguirem os termos da presente demanda, mas também que não faz qualquer sentido acautelar a posição jurídica na causa da autora falecida, através da intervenção na acção dos seus sucessores, precisamente porque nesta acção apenas está em causa a tutela ou defesa de interesses difusos, não de interesses próprios ou imediatos de qualquer um dos autores, isto é, o direito de que cada cidadão é portador neste tipo de causas tem carácter pessoal e intransmissível, pelo que não faz qualquer sentido nem é consentida a transmissão de uma qualquer posição jurídica em tais causas.
Assim sendo, afigura-se correcta a posição dos Agravantes manifestada neste recurso, pelo que se impõe que seja entendido o conhecimento nos autos do óbito da autora A... como apenas significando ou tendo o efeito de a passar a considerar como excluída de parte activa no processo, prosseguindo este os seus regulares termos apenas com as duas outras autoras, enquanto partes activas, sem necessidade de ter lugar qualquer habilitação, face ao que não deve ser suspenda a instância.
Logo, impõe-se conceder provimento ao presente agravo, com revogação do despacho de fls. 175, face ao que se impõe o regular prosseguimento do processo, o que se determina.

VII
Decisão:
Face ao exposto, acorda-se em conceder provimento ao presente agravo, com revogação do despacho de fls. 175, determinando-se o regular prosseguimento do processo.

Custas a final, tendo-se presente o disposto no artº 20º da Lei nº 83/95, de 31/08.
***

Tribunal da Relação de Coimbra, em / /