Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2450/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
GARANTIA HIPOTECÁRIA: OBJECTO INDETERMINÁVEL
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ: INTERPRETAÇÃO DE REGRAS DE DIREITO
Data do Acordão: 11/16/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TÁBUA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: Nº 1 DO ARTº 280º DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: I – A vulgarmente designada hipoteca genérica, para ser válida, tem de obedecer a parâmetros objectivos de determinabilidade, uma vez que o objecto da obrigação não pode ser indeterminável, sob pena de nulidade, de acordo com o disposto no nº 1 do artº 280º do Código Civil.
II – Não se verifica tal indeterminabilidade se constar do registo o valor máximo garantido pela hipoteca, visto que, neste caso, esta estará sempre limitada pelo montante constante do registo.
III – A sustentação de teses controvertidas na doutrina e a interpretação de regras de direito, ainda que especiosamente feitas, mesmo que integre litigância ousada, não integra litigância de má fé.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A... e B..., deduziram, em 31/03/2003, embargos de executado no processo de execução ordinária nº 118/03, a correr termos pelo Tribunal da comarca de Tábua, em que é exequente a C...., com os seguintes fundamentos, em síntese:
A proprietária do bem imóvel hipotecado, e sobre o qual se inicia a penhora nos autos principais, é um terceiro – D.... – que não foi demandado na execução, quando deveria ter sido, pelo que falta à instância executiva um pressuposto processual, o que a torna irregular, devendo ser julgada extinta.
A hipoteca em causa é uma hipoteca genérica, e a lei não permite a constituição de hipoteca como forma de garantia a dívidas futuras., sendo nula, visto o seu objecto ser indeterminável.
A cláusula 7ª foi fixada no contrato de mútuo sem ter sido previamente informada aos executados, não tendo correspondência com as cláusulas gerais inseridas no documento assinado pela executada e fiadores, sob o título de “Condições Gerais”.
Os juros fixados configuram para a exequente um benefício excessivo e injustificado, pois ultrapassam o que é justo.
A exequente não alega o momento do vencimento da dívida, sendo certo que a executada B...fez entregas à exequente, por conta da dívida, de várias somas no decurso do ano de 2002, pelo que não aceitam o valor constante do requerimento executivo como sendo esse o saldo devedor em 01/12/2001, sendo nula a cláusula 7ª do contrato de mútuo.


Terminam, pedindo que, na procedência das excepções invocadas, seja arquivada a instância por falta de um pressuposto processual, ou, se assim se não entender, seja julgada nula a hipoteca constituída pelo terceiro por força do disposto no artº 280º, nº 1, do C.Civil e, se ainda assim se não entender, deve indeferir-se o pedido formulado de juros à taxa de 13,5% acrescida de 4% a título de mora, sobre o capital mutuado e em dívida.
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A embargada contestou, defendendo a improcedência dos embargos.
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Foi proferido despacho saneador/sentença, no qual foi decidido inexistir qualquer irregularidade da instância executiva, bem como a nulidade da hipoteca e da cláusula 7ª do contrato de mútuo, sendo, em consequência, julgados improcedentes os embargos e os embargantes condenados como litigantes de má fé na multa de 2 UC.
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Inconformados, interpuseram os embargantes recurso de apelação, rematando a sua alegação com extensas conclusões que, por isso, nos abstemos de reproduzir, mas que se reconduzem a duas questões:
1 - A hipoteca em que a embargante B...se responsabilizou perante a embargada é nula, por indeterminação do seu objecto;
2 - Os embargantes não deveriam ter sido condenados como litigantes de má fé, visto estarem em causa a interpretação e aplicação das regras de direito.
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A embargada contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Com interesse para a decisão do presente recurso, e tendo em conta os documentos juntos aos autos (fls.43/56 e 138/199), importa destacar o seguinte:
I - No exercício da sua actividade de crédito agrícola e demais actos inerentes à actividade bancária, a ora embargada concedeu à ora embargante B..., em 19/09/2000, o empréstimo nº 56013219256, no montante de 77.127.178$00 (correspondentes a 384.708,74 €), pelo prazo de 16 anos.
II - Este empréstimo foi titulado por documento particular – Contrato de Empréstimo Garantido por Fiança e Hipoteca e teve por base uma proposta de crédito apresentada pela mutuária em 31/05/2000.
III - Para garantia do capital mutuado, seus juros, despesas judiciais, extrajudiciais e outras, constituíram-se E... e mulher, A... (ora embargante), como fiadores e principais pagadores com a mutuária.
IV - Para garantia do bom e integral pagamento de todas as quantias devidas por força do empréstimo, foi constituída hipoteca a favor da mutuante, conforme escritura pública lavrada em 08/05/1995, de fls. 85vº a 88, do livro de notas 70-C, do Cartório Notarial de Tábua.
V - Na escritura referida em IV intervieram, como outorgantes, por si e em representação de D..., os mencionados E... e mulher, A..., os quais começaram por dizer que a sociedade D...., é dona e legítima possuidora de um prédio urbano, sito à Gândara, freguesia de Espariz, do concelho de Tábua, parte dele omisso na repartição de finanças e a parte restante inscrita sob os artºs 494 e 495, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 2237, e ali inscrito a favor da referida sociedade pela cota G-1, Ap. 01, de 11/04/1995.
Mais disseram (passando a transcrever-se):
«Que, para garantia do bom e integral pagamento à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Beira Serra, C.R.L., adiante designada somente por “Caixa Agrícola”, de:
a) Todas e quaisquer responsabilidades ou obrigações assumidas ou a assumir por eles próprios, pela sociedade “D...”, que representam, ou ainda pela sociedade “B...” – seja qual for a sua natureza ou origem, quer derivem, designadamente de letras, saques para aceite bancário, livranças, extractos de
factura, saldos devedores ou descobertos de contas de depósito à ordem ou


de contas de qualquer natureza, prestações de fiança ou avales, empréstimos concedidos ou a conceder por qualquer forma, quer derivem de quaisquer outras operações ou títulos;
b) Respectivos juros remuneratórios à taxa à data praticada pela “Caixa Agrícola”, actualizável por simples aviso, actualmente de quinze por cento ao ano, acrescidos, em caso de mora, da sobretaxa de quatro pontos percentuais, a título de cláusula penal, e capitalizáveis nos termos gerais; e
c) Todas e quaisquer despesas judiciais ou extrajudiciais, incluindo honorários de advogados e outros mandatários, feitas ou a fazer pela “Caixa Agrícola” para assegurar o seu crédito, calculadas, unicamente para efeitos de registo, em dois milhões quinhentos e oitenta mil escudos, constituem hipoteca a favor daquela Instituição sobre o prédio urbano antecedentemente referido pertencente à representada “D...”, até ao montante de sessenta e quatro milhões e quinhentos mil escudos».
VI – A hipoteca referida em V foi registada em 11/05/1995 – Ap. 06/950511.
VII - Por escritura de fusão de 29/12/1995, fundiram-se, por integração, as extintas cooperativas Caixa de Crédito Agrícola Mútuo Beira Serra, C.R.L., Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Arganil, C.R.L., e Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Bacia do Ceira, C.R.L., na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo Beira Centro, C.R.L. ora embargada.
VIII - A mutuária B....., utilizou a totalidade do empréstimo aludido em I.
IX - E... e A... passaram a ser, a partir de 10/09/1990, os únicos sócios da D...., e são os únicos sócios, desde 01/07/1972, de B....
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Como é sabido, a delimitação do objecto do recurso é feita pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o tribunal da relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código Proc. Civil).


1ª Questão: A hipoteca em que a embargante B....se responsabilizou perante a embargada é nula, por indeterminação do seu objecto.
Na 1ª instância decidiu-se que não estamos perante qualquer negócio jurídico nulo, mas perante hipoteca legalmente constituída, não obstante poder entender-se que a mesma garante obrigação (crédito bancário) futura ou eventual.
Vejamos.
Como se sabe, a hipoteca, como garantia real das obrigações, confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (artº 686º, nº 1, do Código Civil – diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência).
A obrigação garantida pela hipoteca pode ser futura ou condicional (nº 2 do mesmo preceito).
No entanto, a vulgarmente designada hipoteca genérica, para ser válida, tem de obedecer a parâmetros objectivos de determinabilidade.
É que o objecto da obrigação não pode ser indeterminável, sob pena de nulidade, de acordo com o disposto no nº 1 do artº 280º.
Como dizem Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte (Garantias de Cumprimento, 4ª ed., 93/94), nada obsta a que o objecto do negócio esteja, a dada altura, indeterminado; o que não ser é indeterminável, havendo uma diferença jurídica, para além de linguística, entre “indeterminado” e “indeterminável”: a prestação pode ser indeterminada, mas determinável, desde que se possa saber, no momento da constituição, qual o seu teor através de um critério para proceder à fixação do respectivo objecto. A prestação será indeterminável se não existir um critério para proceder à sua determinação.
O problema põe-se com mais acuidade em relação à fiança genérica, em que há uma obrigação pessoal do fiador perante o credor, correspondente à do devedor principal (cfr. artº 627º).
Por isso, impõe-se a necessidade de o fiador conhecer o critério ou critérios indispensáveis para delinear o limite do seu compromisso, sendo que a sua eventual obrigação futura deve ter conteúdo previsível no momento da estipulação da fiança.
Neste sentido vai a restante doutrina conhecida (cfr. Profs. Vaz Serra, R.L.J. 107º-255 e ss., Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 548, e Menezes Codeiro, Fiança de Conteúdo Indeterminado, CJ, Ano XVII, T3-61) e a jurisprudência mais recente do S.T.J. (cfr., entre outros, Acs. de 30/09/1999, CJ, T3-48, de03/02/1999, CJ; T1-75, de 14/12/1994, CJ, T3-171, de 11/05/1993, CJ, T2-98 e de 19/02/1991, R.O.A., Ano 51, II-525), que culminou com o Ac. Nº 4/2001, de 23/01/2001 (D.R., 1ª Série A, nº 57, de 08/03/2001), com força obrigatória para fixação de jurisprudência, onde se decidiu que “é nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha”.

No que diz respeito à hipoteca, que é o que está em discussão nos presentes autos, segundo aqueles autores (Romano Martinez e outro, ob. cit., pág.202), do contrato tem de constar um critério objectivo para a determinação da prestação garantida ou a garantir (aí referindo, na nota 432, que o Prof. Paulo Cunha, in Da Garantia nas Obrigações, T. II, pág. 313, exige quem na hipoteca de créditos futuros, se indique o montante assegurado, ao menos aproximadamente), não revestindo, todavia, a hipoteca genérica a mesma complexidade da fiança omnibus, pois do registo constará o valor garantido. Deste modo, mesmo que a hipoteca garantisse qualquer obrigação a constituir, estaria sempre limitada pelo montante constante do registo.

No presente caso, além de constar do registo o valor máximo garantido pela hipoteca (64.500.000$00), é perfeitamente determinável o objecto da obrigação a constituir, visto que estão apenas cobertos direitos de crédito resultantes de operações bancárias, que se prendem com a actividade bancária da “Caixa Agrícola” e com o recurso ao crédito bancário por parte de “D...”, e de “B..., crédito esse já concedido e a conceder por aquela “Caixa”, sendo a actividade comercial, bancária e financeira destas sociedades do conhecimento dos outorgantes na escritura da constituição da hipoteca, E... e mulher, A..., visto serem os únicos sócios dessas mesmas sociedades, os quais podiam controlar as dívidas que viriam a ser por elas contraídas.
Conclui-se, assim, pela validade da garantia hipotecária, e, portanto, pela improcedência do recurso quanto a esta questão.
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2ª Questão: Os embargantes não deveriam ter sido condenados como litigantes de má fé, visto estarem em causa a interpretação e aplicação das regras de direito.
Os embargantes foram condenados como litigantes de má fé, por se entender que deduziram os embargos sem fundamento para tal, tendo plena consciência da sua actuação, uma vez que sabiam que a questão por si levantada – nulidade da hipoteca e do contrato de empréstimo - não tem cabimento legal.
A questão levantada pelos embargantes é, como eles referem na sua alegação de recurso, uma questão de direito.
Ora, tem-se entendido na doutrina e na jurisprudência, sem discrepâncias, que a sustentação de teses controvertidas na doutrina e a interpretação de regras de direito, ainda que especiosamente feitas, mesmo que integre litigância ousada, não integra litigância de má fé (cfr. Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 2º Vol., pág. 263, Acs. do S.T.J. de 28/10/1975 e de 20/07/1982, BMJ 250º-156 e 319º-301, Ac. da R.C. de 26/04/1988, CJ, T2-75, Acs. do Tribunal Constitucional nºs 376/91 e 200/94, publicados no D.R., 2ª Série, de 02/04/1992 e 30/05/1994, respectivamente).
Como se diz naquele Acórdão do S.T.J. de 28/10/1975, a discordância na interpretação da lei e na sua aplicação aos factos é faculdade que não pode ser coarctada em nome de uma certeza jurídica, que seria, na maior parte dos casos, uma falaz ilusão.

Por isso, e tratando-se, no presente caso, de uma questão que, como atrás vimos, é controvertida, por poder apresentar dúvidas de interpretação no que diz respeito à determinação do objecto da hipoteca, é de concluir pela não integração da oposição dos embargantes no conceito de litigância de má fé, tal como vem previsto no artº 456º do Código de Processo Civil.
Não pode, assim, manter-se a condenação dos embargantes, procedendo o recurso no que a esta questão diz respeito.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em dar parcial provimento ao recurso, revogando o despacho saneador/sentença na parte em que condenou os embargantes como litigantes de má fé, no mais se confirmando tal despacho.

Custas por recorrentes e recorrida na proporção de metade.