Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3776/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
SUA FINALIDADE
Data do Acordão: 01/18/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SANTA COMBA DÃO - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS. 616º DO C. CIV. .
Sumário: I – A Acção de impugnação pauliana tem como finalidade conferir ao credor a possibilidade de obter contra um terceiro que procedeu de má fé ou que se locupletou, a eliminação do prejuízo resultante do acto impugnado .
II – O credor, uma vez julgada procedente a impugnação pauliana, tem direito à restituição efectiva dos bens ao alienante e direito de execução no património do obrigado à restituição .
III – O âmago essencial de um pedido de impugnação pauliana será a declaração de ineficácia da venda com vista a permitir ao credor, posteriormente, a execução do bem alienado .
Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- A..., com sede na Rua da Arrábida, 66, r/c esq., Lisboa, propõe contra a B..., com sede no Bairro de S. Domingos, Santa Comba Dão e C... e mulher D..., residentes na Rua Isidoro Gomes da Silva, nº 6, r/c, Agualva, Cacém, Sintra, a presente acção com processo ordinário, pedindo que seja declarada impugnada e nula, por ser simulada, a compra e venda dos prédios identificados no nº 18 da p.i., formalizada pela escritura pública celebrada entre os 1ª e 2ºs RR. a 17-1-01 no Cartório Notarial de Santa Comba Dão, serem tais bens restituídos à 1ª R., ordenando-se o cancelamento das inscrições registais a favor dos 2ºs RR. respeitantes a cada um dos identificados prédios.
Fundamenta o seu pedido, em síntese, no facto de ser credora da 1ª R. e que esta ter transmitido aos 2ºs RR. inúmeros imóveis, de forma simulada e apenas com o propósito de esvaziar o seu património em detrimento dos credores e assim inviabilizar a satisfação dos créditos destes.
1-2- Foi exarada informação nos autos ( a fls. 82 ) de que a R. Construtora S. Domingos, havia sido declarada falida por decisão de 17-6-02, tendo a A. requerido o prosseguimento do processo contra a massa falida da R., com citação do liquidatário judicial, o que foi deferido.
1-3- Os RR., apesar de regularmente citados, não contestaram, razão por que foram confessados os factos alegados na p.i., de harmonia com o disposto no art. 484º nº 1 do C.P.Civil.
1-4- Foi proferida sentença, na qual foi julgada procedente a acção e em consequência foi declarada ineficaz, em relação à A., o contrato de compra e venda celebrado entre os 1ª e 2ºs RR. a 17-1-01 no Cartório Notarial de Santa Comba Dão, na medida em que os bens em causa sejam necessários para satisfação do crédito da A., identificado no art. 17º da p.i., ordenando-se ainda o cancelamento das inscrições registais efectuadas com base em tal transmissão.
1-5- Não se conformando com esta sentença, dela veio recorrer a massa falida da R. Construtora S. Domingos Ldª, recurso que foi admitido como apelação e com efeito suspensivo.
1-6- A recorrente alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- Há litispendência entre a presente acção e a acção 193/2001 do 2º Juízo do Tribunal de Santa Comba Dão, devendo a sentença conhecer desta excepção dilatória e absolver os RR. da instância.
2ª- A A. pede a declaração de nulidade, por simulação, da escritura celebrada em 17-1-01 entre a R. e os RR., pelo que declarando a sentença a impugnação pauliana da mesma, será esta nula nos termos do art. 668 nº 1 al. e) do C.P.Civil.
3ª- O pedido de declaração de nulidade por simulação da aludida escritura com a consequente restituição dos bens à 1ª R., importa a nulidade desta e não a sua ineficácia em relação à A..
4ª- Os factos confessados, por falta de contestação, são aptos, em via principal e peticionada pela A., a conduzir à declaração de nulidade por simulação da referida escritura e não à ineficácia da mesma em relação à A., regressando os bens ao património da 1ª R..
5ª- Ainda que assim se não entenda, devem os bens ser restituídos à massa falida, nos termos do art. 159º do CPEREF, a fim de serem liquidados entre os credores comuns e não apenas em benefício da A..
6ª- Ao decidir como decidiu, a sentença violou o disposto nos arts. 497º, 499º, 494º al. i), 668º nº 1 al. c) do C.P.Civil e ainda os arts. 240º, 289º, 605º, 610º e 615º do C.Civil e o art.159º do CPEREF.
1-7- A parte contrária não respondeu a estas alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivos dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas ( arts. 690º nº1 e 684º nº 3 do C.P.Civil ).
2-2- A primeira colocada pela apelante prende-se com a verificação em concreto da excepção da litispendência entre a presente acção e a acção 193/2001 do 2º Juízo do Tribunal de Santa Comba Dão.
A excepção foi levantada pelo liquidatário da R. Construtora de S. Domingos, através do requerimento de fls. 93.
O Mº Juiz ordenou a junção aos autos de elementos para conhecer da excepção e na douta sentença apreciou-a. Em síntese referiu que não ocorria a litispendência porque não existe identidade de pedidos e causa de pedir, apesar de em ambas as acções se pretender tornar ineficaz o mesmo negócio jurídico.
Por sua vez a apelante defende que nas duas acções a causa de pedir e o pedido são iguais, ou pelo menos, idênticos nos seus elementos essenciais. Acrescenta que cotejando ambas as acções não pode deixar de se concluir que há uma clara identidade de causas de pedir, a nulidade por simulação da escritura de compra e venda celebrada em 17-1-01 entre a 1ª R. e os 2ºs RR. e do pedido, declaração de nulidade por simulação da mesma escritura formulado pela A. nesta acção.
Vejamos:
Nos termos do art. 497º nº 1 do C.P.Civil ( diploma de que serão as disposições a referir sem menção de origem) “ as excepções de litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado”.
Portanto para o que aqui releva, ocorre a excepção da litispendência sempre que se repete estando a anterior ainda em curso.
Estabelece, por sua vez, o art. 498º nº 1 que “repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”. Acrescenta o nº 2 do mesmo artigo que “há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”, o nº 3 que “ identidade de pedido quando numa acção e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico” e o nº 4 que “há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico”. Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido”.
Quer isto dizer que repete-se uma causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
Com a excepção da litispendência visa-se evitar que a mesma acção, venha a ser posteriormente decidida de forma diferente, pelo mesmo ou por outro tribunal.
Somos em crer que em relação a esta componente teórica, nenhuma dúvida se levanta.
A questão está em saber-se, se no caso vertente, ocorre ou não a mencionada excepção.
A demandante e demandados nesta acção já acima se identificaram. Recorda-se aqui que são partes nesta acção, como A., A... e como RR., a B... e C... e mulher D....
Por sua vez na acção 193/01 que corre seus termos ( igualmente ) no Tribunal Judicial de Santa Comba, é A., Sérgio Manuel da Silva Ferreira Leitão e RR., os RR. desta acção ( B... e C... e mulher D... ).
Quer isto dizer que a A. na presente acção e o A. na acção 193/01 são diferentes, donde se conclui que não existe identidade de partes nas duas acções.
Esta circunstância será já suficiente para dizer que, não existindo identidade de sujeitos, não ocorre a excepção da litispendência.
Mas ainda há mais. Como é evidente, numa acção e noutra os sujeitos activos ( diferentes ) baseiam-se em negócios diversos ( donde resultaram os seus créditos ) para formularem os pedidos que deduziram. Com efeito nesta acção o A. baseia-se no contrato de compra e venda celebrado com a R. B... em 3-11-00 ( mediante o qual adquiriu a essa R. os dois imóveis referidos no art. 2º da p.i. ) que a R. incumpriu e na acção 193/01 o aí A. fundamenta o seu pedido no contrato promessa de compra e venda celebrado também com a mesma R. em 26-4-00 (mediante o qual prometeu adquirir a essa R. uma moradia T4 que identifica ), contrato que a R. igualmente não cumpriu.
Assim sendo parece-nos claro que é diversa a causa de pedir invocada numa e noutra acção, pelo que também por este prisma não ocorre a dita excepção.
Também não nos parece que exista identidade de pedidos, pela simples razão que tanto um A. como outro querem coisas diversas. É certo que ambos pretendem a devolução dos imóveis em causa ao património da R. B... com a finalidade de repor a garantia patrimonial da devedora. Mas os seus objectivos não são coincidentes, pois cada um deles pretende satisfazer o seu próprio crédito.
Não ocorre pois a excepção da litispendência.
Sustenta depois a apelante que a A. pede a declaração de nulidade, por simulação, da escritura celebrada em 17-1-01 entre a R. e os RR., pelo que declarando a sentença a impugnação pauliana da mesma, será esta nula nos termos do art. 668 nº 1 al. e) do C.P.Civil. O pedido de declaração de nulidade por simulação da aludida escritura com a consequente restituição dos bens à 1ª R., importa a nulidade desta e não a sua ineficácia em relação à A..
Concretizando melhor o que a apelante pretende, diremos que segundo ela, todos os factos articulados vão no sentido do pedido de declaração de nulidade por simulação da escritura, com a consequente restituição dos bens à 1ª R.. Não formula, porém, ainda que subsidiariamente, a declaração de ineficácia do acto de compra e venda celebrado entre a 1ª e 2ª R., pelo que a sentença recorrida, ao exarar a condenação que proferiu, condenou além do pedido, pelo que é nula, nos termos do art. 668º nº 1 al. e).
Nos termos do art. 668º nº 1 al. e) a sentença é nula quando condene em quantidade superior ( ou em objecto diverso ) ao pedido. Sanciona-se aqui o excesso de pronúncia, com a nulidade.
A este propósito, estabelece o art. 661º do C.P.Civil que “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”. Isto é, a sentença deve-se conter e circunscrever àquilo que é pedido pelo demandante. Mas evidentemente que o pedido deve ser entendido na sua essência e não num sentido formal ou literal.
Como acima já se referenciou, a A. pediu que seja declarada impugnada e nula, por ser simulada, a compra e venda dos prédios identificados no nº 18 da p.i., formalizada pela escritura pública celebrada entre os 1ª e 2ºs RR. a 17-1-01 no Cartório Notarial de Santa Comba Dão, serem tais bens restituídos à 1ª R., ordenando-se o cancelamento das inscrições registais a favor dos 2ºs RR. respeitantes a cada um dos identificados prédios.
Na douta sentença recorrida foi declarada ineficaz, em relação à A., o contrato de compra e venda celebrado entre os 1ª e 2ºs RR. a 17-1-01 no Cartório Notarial de Santa Comba Dão, na medida em que os bens em causa sejam necessários para satisfação do crédito da A., identificado no art. 17º da p.i., ordenando-se ainda o cancelamento das inscrições registais efectuadas com base em tal transmissão.
Isto é, a A. pediu se declare impugnada e nula a venda em causa por ser simulada, com a restituição de tais bens ao património da 1ª R.. Por sua vez a sentença declarou ineficaz a venda, em relação à A., na medida em que os bens em causa sejam necessários para satisfação do crédito da mesma.
A questão que se coloca será a de saber se esta condenação extravasou o pedido, conforme sustenta a apelante e, consequentemente, padece a sentença da salientada nulidade.
A acção de impugnação pauliana tem como finalidade, como se sabe, conferir ao credor a possibilidade de obter, contra terceiro que procedeu de má fé ou que se locupletou, a eliminação do prejuízo resultante do acto impugnado. Com efeito, estabelece o art. 616º nº 1 do C.Civil “julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei”. Desta disposição resulta, que o credor, uma vez julgada procedente a impugnação, tem direito à restituição efectiva dos bens ao alieanante ( o que não terá interesse na generalidade dos casos - vide a este propósito o C.Civil Anotado dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela -) e direito de execução no património do obrigado à restituição.
Evidentemente que, face a estas circunstâncias, numa acção de impugnação pauliana o cerne da questão será para o credor, a restituição efectiva dos bens ao alienante/devedor ou o direito de execução no património do obrigado à restituição. Ou por outras palavras, o âmago essencial do pedido será a declaração de ineficácia da venda com vista a permitir ao credor, posteriormente, a execução do bem alienado. Esta essência foi mantida na decisão proferida. Ser declarada nula ou ineficaz a venda, sendo tão só uma questão de direito, é um assunto marginal à essência do pedido. De resto, a próprio A. formulou ( também ) o pedido de declaração da impugnação, pedido que foi deferido, sendo que a restante condenação não é mais do que a consequência jurídica da procedência da impugnação. Sublinhe-se ainda que, de harmonia com o disposto no art. 664º, o tribunal não está sujeito às qualificações jurídicas feitas pelas partes, razão por que não existiu propriamente uma alteração do pedido, mas sim uma caracterização jurídica diversa do pretendido.
Quer isto tudo dizer que, a nosso ver, o decidido pelo tribunal, contem-se no pedido formulado pelo A.. A essência do pedido manteve-se, pelo que também aqui carece a apelante de razão.
Por fim, sustenta a apelante que, devem os bens ser restituídos à massa falida, nos termos do art. 159º do CPEREF, a fim de serem liquidados entre os credores comuns e não apenas em benefício da A..
Como ponto prévio deveremos sublinhar que o CPEREF ( Dec-Lei 132/93 de 23/4 ) está hoje revogado ( tendo-o sido pelo Dec-Lei 53/2004 de 18/3 ), mas continua a aplicar-se aos processos pendentes à data da entrada em vigor do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas ( Dec-Lei 53/2004 de 18/3, hoje já com as alterações introduzidas pelo Dec-Lei 200/2004 de 18/8 ), ou seja, continua a ter aplicação aos autos pendente em 18-9-04 ( momento da entrada em vigor do novo diploma ). Assim é aquele diploma ( Dec-Lei 132/93 de 23/4 - CPEREF- ) que se deve aplicar ao caso vertente.
Entrando propriamente na questão que nos é colocada, diremos que neste aspecto a apelante tem alguma razão.
O art. 157º, estabelece que são impugnáveis em benefício da massa falida todos os actos susceptíveis de impugnação pauliana nos termos da lei civil, acrescentando o art. 159º nº 1, ambos do CPEREF, que resolvido o negócio jurídico ou julgada procedente a impugnação pauliana, os bens ou valores correspondentes revertem para a massa falida. O nº 3 desta disposição estabelece que a contraparte que tenha direito à restituição, é o seu valor considerado como crédito comum.
Em nota a este artigo refere-se no CPEPEF anotado de João C. Fernandes e J. Labareda que “a acção de impugnação tanto pode ser promovida pelo liquidatário como pelos credores. Mas quando instaurada por alguns destes, uma vez procedente aproveita a todos e não somente ao proponente” ( 2ª edição, pág. 392 ). Isto é, em caso de procedência da acção de impugnação, a correspondente restituição de bens reverte para a massa falida, sendo considerado o crédito do autor da acção como crédito comum.
Claro que o decidido na sentença não contradiz estes entendimentos, simplesmente o alcance a dar à decisão terá que ser diversa, dada a situação de falência da R. Construtora S. Domingos. Neste contexto, entendemos dever aditar à decisão que a restituição de bens ordenada reverte para a massa falida, sendo considerado o crédito da A. como crédito comum.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, nega-se provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.
Porém, pelas ditas razões, adita-se ao aresto que a restituição de bens ordenada, dada a demonstrada situação de falência da R. Construtora S. Domingos Ldª, reverte para a massa falida, sendo considerado o crédito da A. como crédito comum.
Custas pela apelante