Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
351/19.0T8MBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO
DECISÃO ADMINISTRATIVA DE CONDENAÇÃO
ELEMENTOS TÍPICOS
NULIDADE
TIPICIDADE
ABSOLVIÇÃO
Data do Acordão: 11/11/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MOIMENTA DA BEIRA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 41.º E 58.º, N.º 1, ALÍNEA B), DO DL N.º 433/82, DE 27-10 (RGCOC); ART. 379.º, N.º 1, AL. A), DO CPP
Sumário: I – A natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do elemento subjectivo da concreta contraordenação em causa, nomeadamente em termos de saber se estamos perante uma imputação a título de dolo ou, diversamente, a título de negligência.

II – Tal omissão, constituindo violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 58.º do RGCOC, determina, por aplicação da al. a) do n.º 1 do art. 379.º do CPP, ex vi do art. 41.º do primeiro dos referidos diplomas, a nulidade da decisão administrativa.

III – Não estando descrito na decisão administrativa o elemento subjectivo, impõe-se, por falta de tipicidade, a absolvição do arguido.

Decisão Texto Integral:






Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito dos autos de impugnação judicial de contraordenação n.º 351/19.0T8MBR.C1 por decisão da autoridade administrativa, Infra-Estruturas de Portugal, S.A., de 20 de maio de 2019, foi o arguido B. condenado pela prática de uma contraordenação grave p. e p. nos artigos 53.º, n.º 2 e 70.º, n.º 2, alínea d), ambos do EERRN (Estatuto das Estradas da Rede Rodoviária Nacional), na coima de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).

2. O arguido impugnou judicialmente a decisão da autoridade administrativa.

3. Realizada a audiência de discussão e julgamento por sentença de 4 de março de 2020 o tribunal decidiu [transcrição do dispositivo]:

Nos termos e pelos fundamentos expostos (…) julgar procedente o presente recurso de impugnação judicial e, consequentemente, declarar nula a decisão administrativa proferida contra B., sendo por isso absolvido o mesmo da sua prática.”

4. Inconformado com a decisão recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:

1. Por decisão administrativa da Infraestruturas de Portugal, S.A. (IP, S.A.), foi o arguido B. condenado pela prática da infração contida na al. d), do n.º 2, do artigo 70.º do Estatuto das Estradas da Rede Rodoviária Nacional (EERRN), no que aqui importa, numa coima no valor de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).

2. O arguido impugnou judicialmente aquela decisão administrativa.

3. Após realização de audiência de julgamento, o tribunal a quo proferiu decisão, por sentença, declarando nula a decisão administrativa, em suma, por ter considerado ser omissa quanto aos factos concretizadores do tipo subjetivo contraordenacional imputado ao arguido, em violação do previsto na al. b), do n.º 1, do artigo 58.º, do RGCO e, em consequência, absolveu o arguido e determinou o arquivamento dos autos.

4. Este recurso, versando sobre matéria de direito e, dentro desta, à incorreta interpretação dos artigos 58.º, n.º 1, al. b) e 64.º, n.º 3, do RGCO, divide-se em dois pontos: A) se falta o elemento subjetivo à decisão administrativa em mérito; B) respondendo afirmativamente à questão anterior, se em vez de determinar a absolvição e consequente arquivamento dos autos, não deveria ter sido determinada a devolução dos autos à entidade administrativa para suprir a nulidade verificada, caso assim entendesse.

5. Naturalmente, não concordamos que a decisão administrativa seja omissa quanto ao elemento subjetivo.

6. É necessário ter em devida conta que, dada a natureza da decisão administrativa - que, sendo uma decisão punitiva, pode vir a transmutar-se em acusação - e da fase que encerra - uma fase que partilha de algumas das características de um procedimento administrativo, como a celeridade e simplicidade processual -, é aceitável que haja uma “menor exigência” na fundamentação, no sentido de que esta não tem que ser tão exaustiva como na sentença penal – neste sentido acórdão do tribunal da relação de Lisboa de 19-02-2013, relator Neto de Moura e acórdão do tribunal da relação de Coimbra, de 09-01-2019, relator Vasques Osório, disponível em www.dgsi.pt.

7. Assim, a fundamentação da decisão da autoridade administrativa deve conter as razões, de facto e de direito, que levaram à condenação, de forma a permitir ao condenado um juízo de oportunidade e/ou conveniência quanto à impugnação judicial da decisão condenatória e, posteriormente, caso haja impugnação, possibilitar ao tribunal que a vai apreciar conhecer o iter lógico e racional de formação da decisão administrativa, é isso que decorre do mencionado artigo 58.º do RGCO.

8. É que, conforme decorre do artigo 62.º, n.º 1, do RGCO, havendo impugnação judicial da decisão administrativa, esta vale como acusação, no momento em que o Ministério Público torna os autos presentes ao juiz, daí o regime menos rigoroso e menos exigente da decisão condenatória da autoridade administrativa, quando comparado com os requisitos que a lei prescreve para a sentença condenatória penal, sendo essencial que satisfaça os requisitos mínimos duma acusação: identifique o arguido; narre os factos imputados (dessa forma delimitando o objeto do processo); e indique as disposições legais violadas, as sanções aplicáveis e as provas.

9. Na decisão administrativa em mérito, a entidade administrativa faz várias referências ao elemento subjetivo, senão vejamos a título exemplificativo:

a. “Ficou ainda provado que não foi submetido qualquer pedido à IP, S.A. para executar o aterro na zona da estrada e aqueduto. Estipula o legislador que a atuação de terceiros na área de jurisdição rodoviária fica sujeita a licenciamento, autorização ou parecer vinculativo pela administração rodoviária (leia-se IP, S.A. – Cfr. alínea a) do artigo 3.º do EERRN) sempre que os terceiros pretendam realizar obras ou atividades num bem do domínio rodoviário que interfiram com o solo, subsolo ou espaço aéreo da zona da estrada ou fora do domínio rodoviário (cf. Artigo 42.º EERRN), o que, aliás, já era do conhecimento do arguido atendendo aos processos de 2016 e 2017 registado em nome do arguido pelo que se limitou a executar o aterro na zona da estrada e aqueduto conformando-se com a possível realizar de um ilícito como consequência dessa conduta.” (sublinhado e negrito nosso).

b. Dizendo mais à frente: “Subjaz, sem dúvida, provado que o arguido atuou porque queria surribar os terrenos particulares, mas primeiro tinha que tirar a água abundante que escorreria quer do seu prédio quer dos prédios confinantes, formando uma charca, para tudo efetuando um aterro que atingiu claramente a zona da estrada (…) transformando um talude de aterro (…) em talude de escavação (…)”.

c. E continuando dizendo, ainda, que impendia sobre o arguido, como impende sobre todos os cidadãos, um dever de informação e cuidado que exige que se atue de forma responsável, diligente e competente, recolhendo toda a informação necessária, inteirando-se dos requisitos jurídicos que estão obrigados a cumprir, devendo sempre, em caso de dúvida, informar-se junto das autoridades competentes para o efeito, concluindo, por isso, “… que o arguido se conformou com a possibilidade da ocorrência do resultado pelo que atuou a título de dolo (eventual).” (sublinhado e negrito nosso).

d. Dizendo, ainda, a propósito da culpa que o arguido atuou de forma muito errada e muito censurável, consideração que apenas é compatível com uma conduta dolosa, pois, a negligência, sendo a violação de um dever de cuidado, compatível com uma atitude pessoal descuidada ou leviana, abarca um juízo de censurabilidade necessariamente menos gravoso.

10. Da fundamentação é possível extrair todo o processo cognitivo – ainda que mais tosco e menos organizado do que numa sentença judicial – realizado pelo relator para concluir que o arguido atuou como dolo eventual: o arguido realizou os trabalhos na estrada e aqueduto, sem se assegurar de que os podia fazer, conformando-se com a possibilidade de, desse modo, praticar um ilícito contraordenacional.

11. A atuação do arguido foi, por isso, expressão de uma atitude contrária e indiferente à ordem jurídica, típica de uma atuação dolosa.

12. Deste modo, dado o regime menos rigoroso previsto para a fundamentação da decisão administrativa – e que terá sido desconsiderado pela sentença de que se recorre - embora a referência ao tipo subjetivo da concreta contraordenação imputada ao arguido não prime pelo rigor formal, afigura-se-nos, ainda assim, que a descrição contida é suficiente para que o recorrente pudesse exercer, como efetivamente exerceu, o seu direito de defesa, não se verificando, pois, a alegada nulidade.

13. No que se refere à segunda questão, como vimos, o artigo 58.º, do RGCO segue a estrutura da sentença penal, muito embora de forma simplificada e proporcionada à fase administrativa do processo contraordenacional, constituindo, a falta de requisitos da decisão da autoridade administrativa, uma nulidade. Trata-se, por isso, porque a decisão da autoridade administrativa equivale a uma sentença penal, da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP.

14. Os artigos 379.º, n.º 2 e 414.º, n.º 4, do CPP, dão uma oportunidade ao tribunal a quo de suprir nulidades, restringindo-se, até onde for possível, as consequências da declaração de nulidade do ato.

15. Fora dos casos previstos no artigo 414.º, n.º 4, do CPP, prevê-se ainda a possibilidade de, já no tribunal de segunda instância, e sempre que se verifiquem os vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP (como é o caso dos autos, pois as deficiências por nós apontadas à decisão da autoridade administrativa consubstanciam, no fundo, “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”), poder ser reenviado o processo à primeira instância para novo julgamento (artigo 426.º do CPP).

16. Se as coisas se passam assim em processo penal, não se vê como, em matéria de contraordenações, e face ao disposto no artigo 58.º, do RGCO, não se tenha de obedecer a regras semelhantes e de respeitar os mesmos princípios processuais.

17. Entendemos, por isso, que, caso se verifique a nulidade em causa, competirá ao tribunal declará-la e determinar o reenvio do processo para tal autoridade administrativa, para esta proferir nova decisão, por forma a, nessa nova decisão, serem supridas as deficiências detetadas na decisão declarada nula, procedendo-se ao cabal cumprimento do disposto no artigo 58.º do RGCO – v. neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações”, UCE, p. 263; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-02-2013, relator Neto de Moura e o acórdão do tribunal da relação de Évora, de 25.09.2012, relator João Amaro, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

18. Ao declarar a nulidade da decisão administrativa, o tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 32.º, 41.º, n.º 1 e 58.º do RGCO (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro) e ainda o disposto nos artigos 374.º, n.º 2 e 3 e 379.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 14.º do Código Penal.

19. Ao determinar a absolvição do arguido e o arquivamento dos autos, a decisão do tribunal a quo violou o disposto no artigo 64.º, n.º 3, do RGCO e, ainda, o disposto nos artigos 379.º, n.º 1, al. a), n.º 2; 414.º, n.º 4 e 426.º, todos do CPP, aplicáveis por força do artigo 41.º, n.º 1, do RGCO.

20. Face ao exposto, entende-se dever dado integral provimento ao recurso apresentado, revogando-se a decisão recorrida, na parte em que declarou a nulidade da decisão administrativa por ser omissa no que respeita ao elemento subjetivo e determinando-se que o tribunal recorrido a substitua por outra que seja conforme à produção de prova realizada nos autos.

21. Caso assim não se entenda e seja de manter a declaração de nulidade, deve a sentença recorrida ser revogada na parte em que determina a absolvição do arguido e arquivamento dos autos, substituindo-se por outra que devolva os autos à entidade administrativa para, querendo, sanar a nulidade declarada.

Exas. Senhores Juízes Desembargadores, no entanto, decidirão e farão JUSTIÇA.

5. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

6. O arguido não respondeu ao recurso.

7. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no qual, acompanhando os fundamentos do recurso, se pronunciou no sentido da sua procedência.

8. Cumprido o n.º 2 do artigo 417.º do CPP, o recorrido não reagiu.

9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, no presente caso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, importa decidir se (i) a decisão administrativa não enferma de nulidade; (ii) a verificar-se a nulidade da mesma a sentença não deveria ter decidido pela absolvição do arguido com o consequente arquivamento dos autos, mas sim pela remessa dos autos à entidade administrativa com vista à respetiva sanação.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença [transcrição parcial]:

(…)

Da nulidade da decisão administrativa

Dispõe o n.º 1 do artigo 58.º do RGCO (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro) que: “A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a) a identificação dos arguidos; b) a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; d) a coima e as sanções acessórias”.

É controvertida a questão de saber a consequência processual resultante da omissão destes requisitos.

Há quem defenda que consubstancia uma nulidade, por aplicação subsidiária dos preceitos do processo criminal relativos às decisões condenatórias, em consonância com o preceituado no artigo 41.º do RGCO, nomeadamente, o regime previsto nos artigos 374.º, n.ºs 2 e 3 e 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal – neste sentido, cfr. MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, “Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 2.ª edição, Dezembro de 2002, Vislis Editores, págs. 334 e 335, anot. 4.

Por outro lado, há quem defenda que consubstancia uma mera irregularidade (aplicando-se o regime previsto no artigo 123.º do Código de Processo Penal) – neste sentido, cfr. ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, “Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas Anotado”, 6.ª edição, Almedina, Março de 2005, pág. 109, anot. 2.

No âmbito da primeira das posições enunciadas – aplicação do regime das nulidades da sentença – defendem os Ilustres Comentadores referidos que, além do mais, se trata de vício de conhecimento oficioso, por entenderem que, se o artigo 380.º do Código de Processo Penal ao estabelecer que o regime das irregularidades da sentença, de menor importância, compreende o conhecimento oficioso, deverá concluir-se que também valerá este conhecimento oficioso para as nulidades previstas no artigo 379.º, “pois seria incongruente um regime legal em que houvesse a preocupação de correção oficiosa de irregularidades de menor importância e não se possibilitasse ao tribunal corrigir as de maior gravidade” (cfr. ob. loc. cit.).

Face ao exposto, cabe, pois, apreciar se a decisão administrativa recorrida preenche os requisitos enunciados no artigo 58.º do RGCO e, em caso negativo, qual a consequência processual dessa omissão.

A decisão recorrida está plasmada a fls. 46 e ss dos autos.

Lida a decisão recorrida, na matéria de facto dada como provada é referido que:

“No dia 15 de Setembro de 2016, pelas 12.27m, na EN 226, ao km 21+630, lado direito, em ação de fiscalização da Infraestruturas de Portugal SA foi constado o circunstancialismo descrito no autor de notícia cujo teor se transcreve: verificado que o Sr. B. (…) por executar aterro na zona da estrada e aqueduto contrariando o previsto no art.º 53.º, n.º 2 do Estatuto das Estradas da Rede Rodoviária Nacional, publicado em anexo à Lei 34/2017, de 27 de Abril”.

Da leitura da decisão recorrida afere-se que esta não encerra em si e nos factos imputados ao arguido, nenhum de natureza subjetiva, comummente os chamados elementos subjetivos do tipo (nem a qualquer titulo de dolo nem se referindo a negligência- vide artigos 13º, 14º e 15º do Código Penal), neste caso da contraordenação que lhe era imputada.

Ora, “no artigo 14.º do Código Penal, constata-se que o tipo subjetivo de ilícito conceitualiza-se na sua formulação mais geral, como conhecimento e vontade da realização do tipo objetivo de ilícito, o mesmo será dizer, o dolo do tipo decompõe-se no conhecimento (momento intelectual) e vontade (momento punitivo) de realização do fato. (…) do que no elemento intelectual do dolo verdadeiramente e antes de tudo se trata é da necessidade para que o dolo do tipo se afirme, que o agente conheça, saiba, represente corretamente ou tenha consciência das circunstâncias de fato que preenche um tipo de ilícito objetivo (cfr. os ensinamentos de Jorge de Figueiredo Dias em Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Janeiro de 2011, Coimbra Editora, páginas 348-351; bem assim a jurisprudência que, em concretização desses ensinamentos, definiu a estrutura do dolo como comportando um elemento intelectual e elemento volitivo, consistindo aquele na representação pelo agente de todos os elementos que integram o fato ilícito e na consciência de que esse fato é ilícito e a sua prática é censurável, de molde que «a afirmação da existência do elemento intelectual do dolo exige que o agente tenha conhecimento da ilicitude ou ilegitimidade da prática do facto” – vide o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra 21.01.2014, processo n.º2572/10.2TALRA.C1, Vasques Osório).

Portanto, «[n]um crime/ ou contraordenação doloso, da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quais o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo)» (cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01.06.2011 no processo 150/10.5T3OVR.C1, Maria Pilar Oliveira).

Igualmente de relevo para a presente decisão, haverá de ter presente a jurisprudência fixada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 de 27 de Janeiro (in DR, 1ª Série, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015): - «[a] falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal».

Neste quadro doutrinal e jurisprudencial assim exposto, este Tribunal perfilha o entendimento segundo o qual «[a]jurisprudência fixada [pelo dito] Acórdão Uniformizador nº1/2015 não tem exclusivamente por objeto a falta absoluta, na acusação, da descrição do tipo subjetivo do crime imputado. (…)

O Acórdão Uniformizador nº 1/2015 veio fixar o sentido oposto a tal entendimento [recurso ao mecanismo do art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal], impedindo o recurso ao dito mecanismo para integrar também a deficiente descrição, por omissão narrativa, do tipo subjetivo do crime imputado, (…) e determinando, consequentemente, que a deficiente ou incompleta definição do tipo subjetivo de ilícito conduza, necessariamente, à absolvição» (aqui, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02.03.2016, no processo 2572/10.2TALRA.C2, Vasques Osório).

Deixamos aqui exarado que se concorda com o acórdão de fixação de jurisprudência acima referido, e mais entendemos que o mesmo não pode deixar de se aplicar também às contraordenações.

De facto, dispõe o art.º 58.º do RGCO que a «decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a) [a] descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas», havendo de considerar-se tais exigências (…) satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos.

De facto, os ditos requisitos visam, precisamente, a salvaguarda da possibilidade de exercício efetivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão (MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-Ordenações – Anotações ao Regime Geral das ContraOrdenações e Coimas, 2.ª edição de Janeiro de 2003, Vislis Editores, p.334; assim como o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.01.2007, processo n.º 06P3202, Henriques Gaspar).

Por isso, e pese embora não se preveja no diploma legal sob análise a consequência derivada da ausência da menção dos elementos indicados, a aplicação subsidiária dos preceitos do processo criminal (ex vi artigo 41.º do referido regime) haverá de determinar a nulidade da decisão, de harmonia com o disposto no artigo 379.°, n.º 1, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal.

Em síntese «decisão administrativa que não contenha os requisitos do artigo 58º, do referido Diploma, está ferida de nulidade, sendo-lhe aplicável a disposição do artigo 379.º, n.º 1, al. b) e c), do C.P.P., sendo estas, incontestavelmente de conhecimento oficioso pelo Tribunal» (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.07.2011, processo n.º990/10.5T2OBR.C1, Alberto Mira; bem como, inter alia, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.11.2009, processo n.º 686/08.8TTOAZ.P1, Fernanda Soares).

Neste conspecto – e sem descurar que à «decisão administrativa não é exigível o rigor formal que deve informar uma decisão criminal, havendo apenas que acatar o disposto no artigo 58º do RGCO», devendo «as exigências de fundamentação da decisão da autoridade administrativa (…) ser menos profundas do que as exigidas para os processos criminais» (acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09.07.2009, processo n.º2761/08-1, Maria Fernanda Palma) –, é na própria definição do que seja uma contraordenação que se deteta tratar-se de «todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima» (artigo 1.º do R.G.C.O.), acrescentando-se que só «é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência» (artigo 8.º do mesmo diploma legal).

De facto, «dos princípios basilares do direito contraordenacional é o princípio da culpa», sendo «necessário que [o facto] possa ser imputado a título de dolo ou negligência, consistindo o dolo no propósito de praticar o facto descrito na lei contraordenacional e a negligência na falta do cuidado devido, que tem como consequência a realização do facto proibido por lei» (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.03.2009, processo n.º529/08.2TBTMR.C1, Jorge Gonçalves, por apelo aos ensinamentos de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, in O Movimento da Descriminalização, em Jornadas de Direito Criminal.

Por outras palavras, bem mais elucidativas, a «imputação de factos tem de ser precisa e não genérica, concreta e não conclusiva, recortando com nitidez os factos que são relevantes para caracterizarem o comportamento contraordenacional, incluindo as circunstâncias de tempo e de lugar», e deve, «além disso, (…) conter os elementos do tipo subjetivo do ilícito contraordenacional» (acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 06.11.2008, processo n.º 08P2804, Rodrigues Costa).

No caso dos presentes autos, falta, entre o indicado como provado na Decisão Administrativa, a narração de factualidade concretizadora do tipo subjetivo da contraordenação lhe imputada, falta essa que, à luz da jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, não pode ser integrada em julgamento, ou neste caso no recurso de contraordenação interposto para o Tribunal de 1ª instância e logo na sua decisão final, mesmo com recurso ao disposto no artº 358º do CPP.

Por conseguinte, e recuperando as normas acima citadas, é seguro concluir que a decisão administrativa que foi exarada nos autos é nula, porque omissa em factos concretizadores do tipo subjetivo contraordenacional imputado (e pela qual condenou) o Recorrente e não esquecendo aqui que neste tipo de processos, como atrás se exarou esta reveste a natureza de uma “acusação”.

Concluímos, pois, que a decisão administrativa recorrida não contém os elementos exigidos na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do RGCO [omissão completa dos factos imputados do tipo subjetivo].

Resta, apenas, tomar posição acerca da consequência processual de tal omissão: nulidade ou mera irregularidade.

A nossa posição é a de que se trata de nulidade. Com efeito, sufragamos inteiramente os argumentos invocados por MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA (cfr. ob. loc. cit.), que aqui damos por reproduzidos, pois argumentam, validamente, no sentido do afastamento da posição defendida por ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, uma vez que não é o facto de a decisão condenatória se converter em acusação em caso de impugnação (nos termos do disposto no artigo 62.º, n.º 1, do RGCO) que impede a aplicação subsidiária do regime das nulidades, por comparação com o regime dos processos de contraordenações fiscais aduaneiras, em que a apresentação do processo ao juiz também é equivalente à acusação, mas sem que se impeça que a falta dos requisitos da decisão administrativa condenatória constitua nulidade insanável.

Acresce que entendemos que a posição adotada é a mais consentânea com a possibilidade do cabal exercício do direito de defesa da arguida – de consagração constitucional (cfr. artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa) –, porquanto a mesma, apesar de poder recorrer, como foi o caso, não se encontram na posse dos fundamentos da decisão que lhes permitam indicar os concretos pontos em que manifestam a sua discordância.

No mesmo seguimento, aceitar que uma decisão nestes termos consubstanciaria uma mera irregularidade também não permitiria fazer uma sindicância segura da mesma, pois são desconhecidos os juízos em que assenta.

Na esteira dos referidos Ilustres Comentadores entendemos também que se trata de vício de conhecimento oficioso, precisamente por aderirmos, também, aos argumentos que a este propósito invocam.

Face ao exposto, ao abrigo do disposto da conjugação das normas previstas nos artigos 58.º, n.º 1, alíneas b) e c), 41.º, n.º 1 do RGCO e 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, alínea a) e 380.º, do Código de Processo Penal, declara-se nula a decisão administrativa junta aos autos, determinando-se, consequentemente, o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 64.º, n.º 3, do RGCO, o que se decide, ao abrigo do disposto no artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (aplicável por força do disposto nos artigos 66.º do RGCO e 13.º, n.º 7, do Decreto-Lei n.º 17/91, de 10 de Janeiro), resultando prejudicado o conhecimento do de mais impugnado pelo arguido.

3. Apreciação

§1. Da nulidade da decisão administrativa em consequência da não descrição do elemento subjetivo da contraordenação

Insurge-se o Ministério Público/recorrente com a sentença proferida enquanto declarou nula, por ser omissa quanto aos factos concretizadores do tipo subjetivo, a decisão administrativa.

Com efeito, considerou o tribunal a quo não conter a mesma, conforme lhe era exigível pela alínea b), do n.º 1, do artigo 58.º do RGCOC, a descrição dos factos concernentes ao tipo subjetivo, limitando-se, antes, em sede de matéria de facto provada, a consignar: “No dia 15 de setembro de 2016, pelas 12.27m, na EN 226, ao Km 21+630, lado direito, em ação de fiscalização da Infraestruturas de Portugal SA foi constatado o circunstancialismo descrito no auto de notícia cujo teor se transcreve: verificado que o Sr. B. (…) por executar aterro na zona da estrada e aqueduto contrariando o previsto no art.º 53.º, n.º 2 do Estatuto das Estradas da Rede Rodoviária Nacional, publicado em anexo à Lei 34/2017, de 27 de abril”.

Por seu turno, o recorrente, defendendo uma menor exigência na fundamentação do procedimento administrativo (contraordenacional) quando comparado com o rigor pressuposto no processo de natureza penal, atenta a respetiva celeridade e simplicidade processual, conduzindo a que a mesma não tenha de ser tão exaustiva como a da sentença penal, destaca segmentos da decisão administrativa, nos quais, a seu ver, se conteriam referências ao elemento subjetivo, a saber:

- “Ficou ainda provado que não foi submetido qualquer pedido à IP, S.A. para executar o aterro na zona da estrada e aqueduto. Estipula o legislador que a atuação de terceiros na área de jurisdição rodoviária fica sujeita a licenciamento, autorização ou parecer vinculativo pela administração rodoviária (leia-se IP, S.A. – Cfr. alínea a) do artigo 3.º do EERRN) sempre que terceiros pretendam realizar obras ou atividades num bem do domínio rodoviário que interfiram com o solo, subsolo ou espaço aéreo da zona da estrada ou fora do domínio rodoviário (cf. Artigo 42.º EERRN), o que, aliás, já era do conhecimento do arguido atendendo aos processos de 2016 e 2017 registado em nome do arguido pelo que se limitou a executar o aterro na zona da estrada e aqueduto conformando-se com a possível realizar de um ilícito como consequência dessa conduta.” (sublinhado e negrito nosso);

- “Subjaz, sem dúvida, provado que o arguido atuou porque queria surribar os terrenos particulares, mas primeiro tinha que tirar a água abundante que escorreria quer do seu prédio quer dos prédios confiantes, formando uma charca, para tudo efetuando um aterro que atingiu claramente a zona da estrada (…) transformando um talude de aterro (…) em talude de escavação (…)”;

- “… que o arguido se conformou com a possibilidade da ocorrência do resultado pelo que atuou a título de dolo (eventual). (sublinhado e negrito nosso).”

Conclui, pois, no sentido de “… embora a referência ao tipo subjetivo da concreta contraordenação imputada ao arguido não prime pelo rigor formal” ainda assim encerrar a decisão administrativa descrição suficiente do respetivo elemento subjetivo, circunstância que contrariaria a declarada nulidade.

Vejamos.

A decisão administrativa de fls. 46 e ss. dos autos, mostra-se estruturada em VI pontos, sendo o IV reservado à “Fundamentação da Matéria de Facto e de Direito”; o V à “Determinação da medida da coima” e o VI à “Decisão”.

No dito ponto IV, no que respeita aos factos provados, lê-se:

Realizada a competente instrução ficou provado que:

No dia 15 de setembro de 2016 pelas 12h27m, na EN 226, Km41+630, lado direito, no âmbito de uma ação de fiscalização da IP, S.A., foi verificado que B. havia efetuado um aterro na zona da estrada e aqueduto, cometendo a infração prevista no artigo 53.º n.º 2 da legislação rodoviária em vigor (Estatuto das Estradas da Rede Rodoviária Nacional publicado em anexo à Lei 34/2015 de 27 de abril, doravante EERRN).”

Contudo, mais adiante na fundamentação da convicção, convocando os meios de prova considerados refere-se:

Ficou ainda provado que não foi submetido qualquer pedido à IP, S.A. para executar o aterro na zona da estrada e aqueduto”, ao que se seguem considerações de direito e razões de convicção.

E na parte que parece reservada ao direito mostra-se consignado:

Ora, resulta da prova produzida que o arguido agiu de forma censurável ao omitir os deveres de diligência a que era obrigado, não decorrendo das circunstâncias do caso em análise uma deficiência da sua consciência ético-jurídica que não lhe tenha permitido apreender corretamente os valores jurídicos protegidos pela norma, razão pela qual a culpa do arguido não pode ser afastada.

No caso sub judice, face aos factos provados, cremos que o arguido atuou de forma muito errada e muito censurável sendo-lhe exigível que se informasse convenientemente, não realizando qualquer aterro sem submeter previamente tal pretensão à Infraestruturas de Portugal, S.A.

O dever de informação e cuidado que impende sobre todos os cidadãos exige que estes atuem de forma responsável, diligente e competente, recolhendo toda a informação necessária, inteirando-se, nomeadamente, dos requisitos jurídicos que estão obrigados a cumprir, devendo em caso de dúvida e antes de iniciar as mesmas, informar-se junto das entidades competentes para o efeito, pelo que se entende que o arguido se conformou com a possibilidade da ocorrência do resultado pelo que atuou a título de dolo (eventual).”

Por fim, em sede de determinação da medida da coima, no segmento dedicado à culpa do agente destaca-se a seguinte passagem: “No caso presente, face aos dados provados, cremos que o arguido atuou de forma muito errada e muito censurável sendo-lhe exigível que se informasse convenientemente (…)”.

Isto dito.

Se se nos afigura incontestável não conterem os factos que foram dados por provados na decisão administrativa os elementos subjetivos da infração contraordenacional, também transparece inequívoco que a decisão, globalmente considerada, é tudo menos esclarecedora no que a tal respeita. Na verdade, não é a afirmação, em sede de direito, do dolo eventual, que resolve a disfunção detetada nas precedentes e subsequentes considerações sobre a falta de dever de cuidado, da diligência devida com vista à recolha da informação que evitaria a prática da infração.

Temos por pacífico que também a “matéria” relativa ao elemento subjetivo do ilícito terá de incluir-se na decisão administrativa, pois só assim resulta assegurado o exercício efetivo do direito de defesa, o qual apenas «poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão.» - [cf. Simas Santos e Lopes de Sousa, in “Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral”, 3.ª edição, Vislis Editores, anotação ao artigo 58.º].

Também vimos entendendo que o rigor da fundamentação imposto no processo de natureza contraordenacional não é (por regra) equivalente ao que é exigível no âmbito da sentença penal (artigo 374.º, n.º 2 do CPP) e isto no essencial pelas razões assim apontadas no acórdão do TRC de 12.07.2011 (proc. n.º 990/10.5T2OBR.C1): «por um lado, porque esta é uma decisão administrativa, que não se confunde com a sentença penal, como o ilícito contraordenacional não se confunde com o ilícito penal (são realidades distintas, revestindo a sentença penal uma maior solenidade, tendo em conta, precisamente, uma supremacia dos interesses em causa); por outro, porque aquela decisão, quando impugnada, converte-se em acusação, passando o processo a assumir uma natureza judicial (art.º 62.º, n.º 1, do DL 433/82, de 27.10 …)».

Contudo, a natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do elemento subjetivo da contraordenação, o que sucede no caso em apreço. Com efeito, se ainda nos parece possível conviver com a sua consideração para além do âmbito (da parte reservada) dos factos provados, posto que decorra inequivocamente do texto da decisão, considerado no seu todo, a forma de realização, ao nível da culpa, do ilícito, já não se nos afigura tolerável a ambiguidade em que, neste domínio, incorre a decisão administrativa. Com a certeza exigível, em face do teor da mesma, alguém poderá ficar seguro (na vertente factual) de se estar perante uma imputação ao nível subjetivo a título de dolo ou, pelo contrário, a título de negligência?

Considerando este tribunal, tal como a sentença recorrida, verificada a nulidade, decorrente da violação da alínea b), do n.º 1, do artigo 58.º do RGCOC, sem que nos suscite reserva - pese embora se reconheça tratar-se de aspeto que não tem merecido unanimidade [cf., v.g., Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, ob. cit., págs. 387-390; Pinto de Albuquerque, in Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações”, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 241; acórdãos do STJ de 21.09.2006 (proc. n.º 06P3200); do TRC de 12.07.2011 (proc. n.º 990/10.5T2OBR.C1) e de 02.03.2016 (proc. n.º 2572/10.2TALRA.C2), do TRE de 17.10.2006 (proc. 2194/06-1; do TRP de 24.02.2010 (proc. n.º 10798/08.2TBMAL.P1); Beça Pereira, inRegime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, Almedina, 2007, págs. 115-116; acórdãos do TRP de 15.03.2006 (proc. n.º 0443636)] – a oficiosidade do seu conhecimento, questão tão pouco ventilada pelo recorrente, importa decidir, nesta parte, pela improcedência do recurso.

§2. Da absolvição do arguido e arquivamento dos autos.

Defende ainda o recorrente, para o caso deste tribunal vir a confirmar a sentença, na parte em que declarou a nulidade da decisão administrativa, a respetiva revogação enquanto absolveu o arguido, determinando o arquivamento dos autos, pugnando pela sua substituição por outra que devolva os autos à entidade administrativa com vista à sanação da declarada nulidade.

A questão da consequência da nulidade da decisão administrativa, designadamente por omissão dos factos que perfetibilizam o ilícito contraordenacional, sendo que na situação concreta está em causa a omissão do elemento subjetivo, também não se tem apresentado pacífica. De um lado os que sustentam que a nulidade resultante da violação da alínea b), do n.º 1 do artigo 58.º do RGCOC, enquanto não contém uma descrição completa dos factos imputados, deve ser suprida pela autoridade administrativa - cf. v.g. os acórdãos do STJ de 06.11.2008 (proc. n.º 08P2804), do TRL de 28.04.2004 (proc. n.º 1947/2004-3), de 19.02.2013 (proc. n.º 854/11.5TAPDL.L1-5), do TRE de 25.09.2012 (proc. n.º 82/10.7TBORQ.E1); do outro a corrente que defende a absolvição do arguido (cf. v.g. os acórdãos do STJ de 29.01.2007 (proc. n.º 06P3202), do TRG de 19.05.2016 (proc. n.º 4302/15.3T8VCT.G1), do TRL de 31.10.2019 (proc. n.º 344/19.8T9MFR.L1-9).

Como refere o acórdão do TRL de 19.02.2013 (proc. n.º 854/11.5TAPDL.L1-5, “Se bem que a propósito do artigo 79.º do RGIT (preceito que, no que para o caso interessa, é idêntico ao artigo 58.º do RGCO), Simas Santos e Lopes de Sousa (“Contra-ordenações – Anotações ao Regime Geral”, Áreas Editora, 6.ª ed., 2011, págs. 431-432), defendem quena sequência da declaração de nulidade por falta de requisitos legais de aplicação da coima (…) o processo não é necessariamente distinto, devendo ser praticados os atos necessários para que ela deixe de existir, não impedindo que venha a ser proferida nova decisão, em substituição da anterior (…), desde que a nulidade que afetava a primeira possa ser sanada na nova decisão. O desaparecimento jurídico do ato nulo e dos atos que dele dependam com repetição do ato anulado (se ele não estiver sujeito a prazo que tenha expirado) é a regra generalizada do nosso ordenamento jurídico, como pode ver-se pelos artigos 201.º, n.º 2, e 208.º do C.P. Civil, e artigo 122.º, n.ºs 1 e 2, do C.P. Penal. Assim, se a nulidade, referente à parte administrativa do processo contra-ordenacional, é constatada em recurso judicial da decisão de aplicação de coima, não deve ser decidida (d) a absolvição da instância, mas sim a remessa do processo à autoridade administrativa para eventual sanação.”

No mesmo sentido, escreve Pinto de Albuquerque: “O tribunal pode, no exercício dos seus poderes de controlo da legalidade, ainda declarar a nulidade da decisão administrativa recorrida e ordenar a remessa dos autos à autoridade administrativa competente para a sanação do vício” – [cf. “Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações”, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 263].

Com todo o respeito pela posição em contrário e sem nos afastarmos da corrente que vê a violação do artigo 58.º, n.º 1 do RGCC (maioritariamente por aplicação do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, ex. vi do artigo 41.º do RGCO) como originando a nulidade da decisão administrativa, afigura-se-nos que a consequência há-de ser a absolvição.

Assim o entendeu o acórdão do STJ de 29.01.2007 (proc. n.º 06P3202) ao referir: “A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do artigo 58.º, n.º 1 do RGCOC constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.

A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão – sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material – tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não direta quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva; é o que dispõe o artigo 41.º do RGCOC sobre “direito subsidiário”, que manda aplicar, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.

Deste modo, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima (ou outra sanção prevista para uma contra-ordenação), e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374.º, n.º 1, alínea a) do CPP para as decisões condenatórias.

(…)

Não estando integrados os elementos da tipicidade da contraordenação referida pela decisão administrativa, a consequência terá de ser a absolvição.”

Se quisermos estabelecer o paralelo com o que sucede ao nível do processo criminal, equivalendo a decisão administrativa, quando judicialmente impugnada, à acusação, então temos de reconhecer que uma acusação manifestamente infundada, por omissa quanto à narração (completa) dos factos e que não obstante ultrapasse o crivo do artigo 311.º do CPP, mais tarde, realizado o julgamento, só pode conduzir à absolvição. Na verdade, sempre entendemos não ser possível na falta de descrição de todos os elementos do ilícito típico o tribunal socorrer-se dos institutos prevenidos nos artigos 358.º/359.º do CPP para transformar em crime aquilo que, à luz da acusação/pronúncia, o não era; pensamento este que resultou ainda mais fortalecido com a jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador n.º 1/2015.

Dada a natureza sancionatória do processo por contraordenação, não se vislumbra motivo válido para que semelhante orientação não seja seguida no âmbito do mesmo, sendo certo que a questão não pode, ao nível das consequências ser encarada como o que se passa com os vícios, designadamente da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Trata-se de problemática que se coloca a montante do vício, produzindo um efeito /consequência) muito mais definitivo, no caso a absolvição.

Em boa verdade, a equivalência da decisão administrativa, se judicialmente impugnada, à acusação transporta-nos para a disciplina do artigo 283.º do CPP enquanto comina de nulidade a acusação que não contiver a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança; patologia esta, que, respeitando à ausência de descrição completa dos elementos constitutivos do crime, não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada, não se vendo razão para que o mesmo não seja aplicável ao ilícito contraordenacional.

Conclui-se, assim, por não encerrar a decisão recorrida violação a qualquer das normas invocadas pelo recorrente.

III. Dispositivo

Pelo que precede, acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso.

Sem tributação.

Coimbra 11 de novembro de 2020

[Texto processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira – relatora

Isabel Valongo - adjunta