Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2696/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. ARTUR DIAS
Descritores: ÓNUS DE APRESENTAÇÃO DE TESTEMUNHA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 11/18/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO E APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO AGRAVO; IMPROCEDENTE A APELAÇÃO
Área Temática: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E CÓDIGO CIVIL
Legislação Nacional: ARTº 342º, Nº 2 DO C.C.; ARTºS 16º, 17º E 48º DA LULL; ARTºS 467º, Nº 2, 512º, Nº 1, 512-A DO C.P.C.
Sumário:
I- Recai sobre a parte o ónus de apresentar testemunha indicada na p. i., omitida no rol junto após a notificação prevista no artº 512º, nº 1 do CPC e posteriormente incluída em requerimento de ampliação do dito rol.
II- É ao embargante que incumbe a prova de que uma das duas letras de câmbio dadas à execução se destinava a "reformar" a outra.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
1. RELATÓRIO
Por apenso à acção executiva em que é exequente “Pavi..., Lda”, com sede na Estrada de Castelo de Bode, ..., Tomar e executada “Hen..., Lda”, com sede na Calçada dos Sete Moinhos, ..., em Lisboa, deduziu a segunda os presentes embargos, com eles visando a extinção da execução.
Alegou, em síntese, que houve uma indevida cumulação do valor de duas letras dadas à execução, visto que uma é a reforma da outra; e que as dívidas reclamadas pela embargada se encontram extintas, porquanto a embargada e a embargante se forneceram mutuamente de produtos dos seu comércio, tendo convencionado que as suas relações comerciais se organizariam sob a forma de conta-corrente, pelo que todos os movimentos eram lançados em conta, a crédito ou a débito consoante a sua natureza, sendo imediatamente exigível o saldo final, o qual se mostra favorável à embargante.
No final da petição foi arrolada a testemunha Otília ..., com domicílio profissional na sede da embargante.
Foi proferido despacho liminar que, considerando inepta a petição, na parte em que a embargante invocou a seu favor um saldo favorável de uma alegada conta-corrente, mandou prosseguir os embargos apenas quanto ao outro fundamento.
A embargada contestou impugnando a factualidade alegada pela embargante.
Foi proferido despacho saneador, imediatamente seguido da selecção dos factos assentes e da organização da base instrutória.
Na fase da instrução, a embargante, além de ter requerido a gravação da audiência final, arrolou duas testemunhas (António José Lopes da Fonseca e Luís Salvador Sirgado).
Já na fase do julgamento, a embargante, invocando expressamente o disposto no artº 512º-A do C.P.C., requereu a ampliação do seu rol de testemunhas, adicionando às duas inicialmente indicadas, as testemunhas Ilídio Marques Afonso, Otília Maria Narciso Alves Xavier e Victor Manuel da Cruz Simião, “todas com na sede da Embargante” A interpretação que se faz da expressão usada – em que é notório ter sido omitida a palavra “domicílio” - é de que as testemunhas aditadas têm domicílio na sede da embargante..
Tal alteração do rol foi admitida por despacho constante de fls. 37 dos autos, devidamente notificado às partes.
Antes de designar a data para julgamento o Mº Juiz, mencionando expressamente o artº 155º do Cód. Proc. Civil, mandou notificar os ilustres mandatários para, no prazo de cinco dias, informarem se estavam de acordo com a realização da audiência de discussão e julgamento no dia 11 de Dezembro, às 11 horas ou para, em igual prazo, apresentarem conjuntamente datas alternativas.
Perante a passividade dos ilustres mandatários das partes, foi o julgamento marcado para a referida data.
Na véspera do julgamento (10/12/2002), pelas 20.45 horas, foi recebido no Tribunal de Tomar, da parte do ilustre mandatário da embargante, o “fax” junto a fls. 63 e 64, informando que não iria comparecer na audiência e expondo a razão de tal atitude da seguinte forma:
“A testemunha Otília Xavier, indicada na petição de embargos, domiciliada em Lisboa, havia sido informada de que iria receber uma carta de notificação para depor no Tribunal de Lisboa. Sucede que acabo de ser informado de que essa testemunha não foi notificada para depor em Lisboa, por razões que desconheço, o que me leva a crer que essa diligência não terá sido requerida. A testemunha declarou-se indisponível para se deslocar amanhã a Tomar. Assim, eu próprio não me deslocarei a Tomar, para obviar à necessidade de me deslocar duas vezes para a audiência.
Aproveito a oportunidade para prescindir das testemunhas António José Fonseca e Luís Salvador Sirgado.
Mais solicito a Vº Exª, na medida em que tal solicitação possa ser atendida, que a nova data da audiência seja agendada para uma manhã, preferencialmente à 2ª ou à 6ª feira”.
Na data designada, feita a chamada, constatou-se que faltavam quer as três testemunhas adicionadas, quer o ilustre advogado da embargante, tendo sido presente o “fax” referido.
Foi, então proferido o seguinte despacho:
“A testemunha Otília Maria Narciso Alves Xavier foi aditada ao rol de testemunhas pelo requerimento entrado em juízo em 21/11/2002. Nos termos do art° 512°-A, n°2, do C.P.C, incumbia à parte a sua apresentação, pelo que nada se determina quanto a esta questão.
Considerando que foi observado o preceituado no art° 155° do C.P.C, não se verifica qualquer circunstancialismo que impeça a presença do ilustre mandatário da embargante, determino o prosseguimento da presente audiência.
Notifique.”
Inconformada, a embargante veio, dentro do prazo legal, interpor recurso, que foi admitido como agravo, com subida diferida e efeito devolutivo.
Entretanto, a audiência prosseguira, tendo no seu âmbito sido proferida decisão quer sobre a matéria de facto, quer sobre a matéria de direito, acabando os embargos por ser julgados totalmente improcedentes.
De novo inconformada, a embargante recorreu, tendo o recurso sido admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito devolutivo.
No final da alegação relativa ao agravo a embargante formulou as conclusões seguintes:
1. Tendo uma testemunha sido indicada num articulado, residindo esta fora do círculo judicial e não tendo sido declarado, aquando do seu oferecimento, que a parte a apresentaria no Tribunal, deve ser ouvida por teleconferência na própria audiência e a partir do tribunal da comarca da área da sua residência;
2. Assim, in casu, a testemunha Otília Xavier deveria ter sido notificada para ser ouvida por teleconferência a partir do tribunal da comarca de Lisboa;
3. Não tendo ela sido notificada para o efeito, deveria o Tribunal a quo adiar a sua inquirição;
4. O facto de o nome dessa testemunha constar de um requerimento de aditamento do rol das testemunhas resulta de uma manifesto lapso de escrita;
5. Como tal, não pode ter o efeito de significar que a parte ficou obrigada a apresentá-la no tribunal da acção;
6. Ao entender que não deveria determinar o adiamento da inquirição dessa testemunha, o Tribunal a quo violou o disposto nos arts. 623°, n° 1, e 629º n° 3, d), do C.P.C., e no art. 249° do C.C. .
Na alegação apresentada relativamente à apelação a embargante formulou as conclusões seguintes:
1. A questão de saber se, sendo apresentados dois títulos, eles se referem ao mesmo crédito ou a créditos diferentes, é um facto constitutivo do direito invocado pelo credor;
2. Ao entender que é ao devedor que compete provar, como facto impeditivo do direito do credor, que não existe um concurso de títulos de aquisição da prestação, aplicando ao caso o art. 342°, n° 2, do C.C., o Tribunal a quo incorreu em erro na subsunção, uma vez que é facto constitutivo do direito do credor a inexistência de tal concurso, nos termos do disposto no art. 342°, n° 1, do CC;
3. Assim, in casu, não tendo a Apelada logrado provar que não existia tal concurso de títulos, os embargos deveriam ter sido julgados procedentes;
4. Julgando diferentemente, a sentença recorrida violou o disposto no art. 342°, n° 1, do C.C. .
A embargada apenas respondeu à alegação relativa à apelação, defendendo a confirmação da sentença recorrida.
Foi, quanto ao agravo, proferido despacho de sustentação.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. De facto
Na 1ª instância foram considerados provados os factos seguintes:
A) O legal representante da executada Hengor – Sociedade de Construções, Lda., apôs a sua assinatura e o respectivo carimbo da firma, transversalmente no lado esquerdo das letras constantes de fls. 6 e 7 dos autos principais, titulando as quantias de 284.454$00, com vencimento a 7/6/2000 e de 585.247$00 com vencimento a 7/4/2000, por baixo da expressão “Aceite”;
B) Ambas as letras se destinavam a saldar transacções comerciais entre a executada e a exequente.
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2.2. De direito
Tendo em atenção que, de acordo com os artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que são colocadas a este Tribunal as questões seguintes:
- No agravo, se a testemunha Otília Maria Narciso Alves Xavier devia ter sido ouvida por teleconferência na própria audiência e, não tendo sido notificada para esse efeito, se o tribunal deveria ter adiado a sua inquirição (e, por arrastamento, a própria audiência);
- Na apelação, se era sobre a exequente/embargada que recaía o ónus de prova da demonstração de que os dois títulos executivos respeitavam a créditos diferentes.
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2.2.1. Agravo
Os elementos processuais com relevo para a decisão do agravo constam expressamente do relatório (ponto 1. deste acórdão), dispensando-nos de aqui os elencar de novo.

A embargante, fazendo uso duma faculdade de há muito reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência e actualmente - desde a entrada em vigor da alteração introduzida no Cód. Proc. Civil pelo Dec. Lei nº 242/85, de 9/7 -, prevista na própria lei (artº 467º, nº 2), apresentou logo na petição inicial dos embargos um rol de testemunhas, constituído por uma única testemunha – Otília Xavier.
Posteriormente, notificada nos termos do nº 1 do artº 512º do Cód. Proc. Civil, a embargante fez juntar aos autos o requerimento de fls. 27, em que declara vir apresentar o seu rol de testemunhas, indicando as testemunhas António José Lopes da Fonseca e Luís Salvador Sirgado, nenhuma referência fazendo à testemunha Otília Xavier, seja no sentido da manutenção, seja no sentido da substituição.
Mais tarde, porém, através do requerimento de fls. 35, a embargante requereu, ao abrigo do disposto no artº 512º-A do C.P.C., ampliação do seu rol de testemunhas, entre as aditadas incluindo a testemunha Otília Maria Narciso Alves Xavier, tal como as outras duas com domicílio na sede da embargante, isto é, em Lisboa.
No tribunal “a quo” entendeu-se que, nas descritas circunstâncias, por força do disposto no nº 2 do artº 512º-A do CPC, ficava a incumbir à embargante a apresentação da testemunha em questão. Certamente por esse motivo, e atendendo ao disposto nos artºs 628º, nº 2 e 623º, nº 1 do aludido diploma legal, apesar de residir fora da área do círculo judicial de Toamar, não se diligenciou pela audição daquela testemunha por teleconferência, designadamente, não se notificou a mesma para esse efeito. E, tendo a testemunha faltado na data designada para julgamento, entendeu-se que a falta não constituía fundamento para adiamento (artº 629º, nº 3, al. d) do CPC), tendo a audiência prosseguido e sido concluída.
A embargante, como resulta do teor do “fax” que fez juntar ao processo na véspera da audiência de discussão e julgamento, bem como da alegação de recurso, entende que a testemunha Otília Xavier deveria ter sido notificada para ser ouvida por teleconferência na própria audiência e, não o tendo sido, nem se tendo disponibilizado para comparecer na sede do tribunal “a quo”, deveria a inquirição ter sido adiada. Para assim concluir, a embargante põe o acento tónico na indicação da testemunha em causa no final da petição de embargos e desvaloriza, atribuindo-o a “manifesto lapso de escrita”, o facto de a ter incluído no requerimento de ampliação.

De acordo com o nº 1 do artº 512º do CPC, “quando o processo houver de prosseguir e se não tiver realizado a audiência preliminar, a secretaria notifica as partes do despacho saneador e para, em 15 dias, apresentarem o rol de testemunhas, requererem outras provas ou alterarem os requerimentos probatórios que hajam feito nos articulados e requererem a gravação da audiência final ou a intervenção do colectivo”.
Interpretando a disposição legal referida, afigura-se-nos que há que distinguir conforme as partes hajam ou não feito requerimentos probatórios nos articulados. Se os fizeram, a notificação destina-se a alterarem (o que inclui substituir e/ou completar) tais requerimentos e requererem a gravação da audiência final ou a intervenção do colectivo. Se os não fizeram, a notificação destina-se a que os façam - apresentando o rol de testemunhas e requerendo outras provas - e a que requeiram a gravação da audiência final ou a intervenção do colectivo.
Ou seja, tendo a parte apresentado rol de testemunhas nos articulados, nomeadamente na petição inicial, o requerimento que, sem qualquer referência ao rol anterior, apresente na sequência da notificação prevista no artº 512º, nº 1 do CPC, se arrola testemunhas, só pode ser interpretado como alteração. Se essa alteração integra substituição ou complemento, deverá ser a parte a esclarecê-lo, não competindo ao tribunal adivinhá-lo O Prof. Lebre de Freitas, em Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, págs. 386/387, refere que a notificação prevista no artº 512º, nº 1 do CPC, além de dar conhecimento às partes do despacho saneador e da selecção da matéria de facto, se destina ainda a dar-lhes conhecimento “de que têm o prazo de 15 dias para requererem a prova (testemunhal e outra) ou, se a tiverem já requerido nos articulados (ver o art. 467-2, quanto à petição inicial), alterarem ou completarem o requerimento então feito (...)”. .
No caso “sub judice”, o comportamento posterior da embargante, designadamente ao requerer a ampliação do seu rol de testemunhas, incluindo entre as testemunhas aditadas o nome da que indicara na petição inicial, é demonstrativo de que considerou que com o rol apresentado substituíra, excluindo-a, a testemunha Otília Xavier.
A alegação de manifesto lapso de escrita, feita nesta fase de recurso, não convence. Convenceria se, no requerimento apresentado no seguimento da notificação prevista no nº 1 do artº 512º do CPC, a embargante tivesse expressamente referido, de forma inequívoca, que mantinha a indicação da testemunha Otília Xavier, feita na petição. Nesse caso, colheria a argumentação da embargante, não podendo deixar de entender-se que aditar ao rol um testemunha que já consta dele só pode integrar um lapso.
Não se encontram, pois, razões de censura do despacho recorrido, o que equivale a dizer que deve o mesmo ser mantido, com o consequente não provimento do agravo.
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2.2.2. Apelação
Face ao despacho liminar de indeferimento parcial, os embargos de executado ficaram com um único fundamento: o de que duas das letras dadas à execução – uma de esc. 585.247$00, com vencimento em 7/4/2002 e uma de esc. 284.454$00, com vencimento em 7/6/2000 – titulam a mesma dívida, já paga, sendo a segunda “reforma” da primeira.
Fundamento esse que a embargada contestou, negando o pagamento e a invocada “reforma” e alegando que a emissão das letras, nomeadamente da vencida em 7/6/2000, teve como causa o fornecimento à embargante de materiais cerâmicos.
Na base instrutória perguntou-se se a letra com data de vencimento de 7/6/2000 se destinava a reformar a letra com data de vencimento a 7/4/2000 (quesito 1º); se foram pagas (quesito 2º); e se ambas as letras se destinavam a saldar transacções comerciais entre a executada e a exequente (quesito 3º).
Os quesitos 1º e 2º obtiveram resposta de “não provado” e o 3º de “provado”.
E, consequentemente, considerando-se que “cabia à embargante demonstrar o facto impeditivo que fundamenta os embargos”, foram estes julgados improcedentes.
Na alegação de recurso defende a embargante, se bem a entendemos, que não era ela que devia provar se uma letra se destinava à “reforma” da outra, antes sendo a embargada quem devia provar que as letras respeitam a créditos diferentes.
Parece-nos óbvio que a embargante não tem razão.
Dadas as conhecidas características da literalidade, abstracção e autonomia da obrigação cambiária, o direito da exequente de reclamar da executada, enquanto aceitante, o pagamento dos montantes titulados pelas letras decorre, uma vez que as mesmas se encontram já vencidas, da simples circunstância de ser portadora legítima daquelas (artºs 16º e 48º da LULL), qualidade que não vem posta em causa.
Nas obrigações cambiárias, a invocação da relação subjacente ou fundamental, quando admissível (artº 17º da LULL), é sempre matéria de excepção, pois se traduz na alegação de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do portador do título.
Com efeito, “in casu”, ao alegar que a letra de esc. 284.454$00 se destinou a “reformar” a letra de esc. 585.247$00, a embargante invocou a relação subjacente, visando demonstrar que, apesar de portadora desta última letra, a embargada não tem direito a reclamar o respectivo pagamento.
É, pois, claro que se está perante um facto impeditivo do direito invocado pela exequente/embargada, cuja prova compete, nos termos do artº 342º, nº 2 do Cód. Civil, à executada/embargante.
De resto, embora tal não lhe competisse, a embargada provou que os dois títulos se não referem ao mesmo crédito – isto é, que a letra vencida em 7/6/2000 se não destinou à “reforma” da letra vencida em 7/4/2000 – pois ficou assente que ambas as letras se destinavam a saldar transacções comerciais entre a executada e a exequente.
Naufragam, portanto, as conclusões da alegação da apelante, com as consequentes improcedência da apelação e manutenção da sentença recorrida.
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3. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em:
a) Negar provimento ao agravo e confirmar o despacho recorrido;
b) Julgar improcedente a apelação e manter a sentença sob recurso.
As custas são a cargo da agravante e apelante.