Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1606/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: REGULAÇÃO DO PODER PATERNAL
TRIBUNAL COMPETENTE
Data do Acordão: 11/16/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO - TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: -
Legislação Nacional: ARTºS 154º, 155º DA OTM E 117º DO CPC .
Sumário: I – Com a alteração introduzida pela Lei nº 133/99, de 28/8, na OTM, o legislador teve um claro propósito de harmonizar legislativamente as matérias sobre a competência dos tribunais e a conexão de processos .
II – A dependência da acção de regulação do poder paternal relativamente às acções de divórcio levou o legislador a determinar a apensação de processos .
III – A decisão transitada em julgado sobre a competência territorial ( competência relativa ) resolve definitivamente a questão da competência territorial, mesmo que seja oficiosamente suscitada – artº 111º, nº 2, do CPC .
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO

O Ex.mo Senhor Procurador Geral Distrital requereu, nos termos do art.117 do CPC, a resolução do conflito negativo de competência suscitado entre o 4º Juízo do Tribunal de Competência Especializada Cível da Comarca de LEIRIA e o 3º Juízo do Tribunal da Comarca de TOMAR, com fundamento em que ambos os Senhores Juízes, em relação à acção de regulação do exercício do poder paternal da menor A..., por decisões transitadas em julgado, se atribuem mutuamente competência, negando a própria.
Respondeu a Senhora Juiz de LEIRIA e o Ministério Público emitiu parecer concordante, no sentido de ser competente o 3º Juízo da Comarca de TOMAR.
II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. - Para a decisão da causa, relevam os seguintes elementos:
1) - Em 1/8/2002, o requerente C... instaurou, no 2º Juízo do Tribunal de Competência Especializada Cível da Comarca de LEIRIA, a acção de regulação do exercício do poder paternal relativamente à menor A..., contra a requerida B... (processo nº662/2002).
2) - Realizada a conferência, não tendo havido acordo, foram as partes notificadas para alegarem e apresentarem meios de prova.
3) - Em 15/7/2003, foi instaurada no 3º Juízo do Tribunal da Comarca de TOMAR acção de divórcio litigioso, com forma de processo especial, em que é Autora B... e Réu C... (processo nº980/03).
4) - A Senhora Juiz do 4º Juízo Cível de LEIRIA, tendo a informação de que fora instaurada a acção de divórcio, por despacho de 17/12/2003, declarou-se incompetente para conhecer e tramitar da acção de regulação do poder paternal, por considerar competente o 3º Juízo da Comarca de TOMAR, nos termos do art.154 nº4 da OTM, para onde remeteu o processo, a fim de ser apensado ao de divórcio.
5) - Este despacho transitou em julgado em 15/1/2004.
6) - O Senhor Juiz do 3º Juízo da Comarca de TOMAR, por despacho de 8/1/2004, declarou-se também incompetente para conhecer da acção de regulação do poder paternal, por considerar, em síntese, que aquando da instauração desta acção ainda não estava pendente a acção de divórcio, logo não sendo aplicável a norma do art.154 nº4 da OTM, e devolveu o processo a LEIRIA.
7) - Este despacho transitou em julgado em 22/1/2004.
8) - A Senhora Juiz do 4º Juízo Cível de LEIRIA, por despacho de 9/2/2004, considerou já haver tomado anteriormente posição definitiva sobre a questão da competência e remeteu novamente o processo a TOMAR, para aqui ser suscitado o conflito negativo de competência.
9) - Este despacho transitou em julgado em 26/2/2004.

2.2. – A resolução do conflito:
O art.155 da Organização Tutelar de Menores ( aprovada pelo DL nº414/78 de 27/10, com as alterações da Lei nº133/99 de 28/10 ) estipula a regra geral sobre a competência territorial nos processos tutelares cíveis, entre os quais a acção de regulação do exercício do poder paternal.
É territorialmente competente para decretar qualquer providência cível, o tribunal da residência do menor, no momento em que o processo é instaurado (nº1) sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente (nº6).
Fora das situações previstas nos nº 2 a 5 do art. 155 da OTM, para a acção de regulação do exercício do poder paternal é territorialmente competente o tribunal da residência do menor, no momento em que o processo for instaurado.
Conforme orientação jurisprudencial prevalecente, considera-se residência do menor o local onde ele se encontra com maior permanência e continuidade, e não onde ocasionalmente se encontre, ou seja, “ aquele onde possua o centro de uma vida organizada, em termos de estabilidade, aferida esta pelas respectivas duração e continuidade e onde, também, ocorreram as circunstâncias justificativas do desencadeamento da acção tutelar e onde possam, na prática, produzir-se os efeitos da decisão final a proferir “ ( cf., Ac do STJ de 18/1/2001, C.J. ano IX, tomo I, pág.69 ).
A razão de ser do preceito consiste no desejo de que os processos corram no tribunal onde seja mais fácil reunir os elementos necessários à defesa dos interesses do menor, presumindo-se que as maiores facilidades se obterão através do tribunal da residência dos menores no momento em que começa o processo ( cf., Parecer da Comissão Revisora do Código de Processo Civil de 1961 citado pelo Conselheiro Campos Costa em “Notas a Organização Tutelar de Menores de 1962 “, pág.216 ).
No entanto, o art.154 da OTM prevê a competência por conexão, traduzindo-se, assim, numa excepção à regra geral da competência territorial, estabelecida no art.155.
Na redacção do DL 314/78 de 27/10, dispunha o nº1 do art.154 - “ Quando a providência for conexa com acção que se encontre a correr termos em tribunal de família, é este tribunal o competente para conhecer dela “ - correndo a providência por apenso ( nº3 ).
Muito embora a norma se reporte aos tribunais de família (de competência especializada) deve estender-se a outros tribunais com competência em matéria de família, face ao preceituado no art.149 da OTM.
Porque a lei não definia o critério da conexão entre as duas acções, impunha-se o recurso subsidiário às regras do processo civil, com as necessárias adaptações, que não contrariassem os fins da jurisdição de menores ( art.161 da OTM ).
Estas regras são as constantes do art.275 do CPC (apensação de acções), abarcando não só os pressupostos de admissibilidade que legitimariam a coligação, mas também os do litisconcórcio, da oposição ou da reconvenção.
Com as alterações introduzidas pela Lei nº133/99 de 28/8, o nº4 art.154 da OTM passou a ter a seguinte redacção:
“ Estando pendente acção de divórcio ou de separação judicial litigiosos, as providências tutelares cíveis relativas à regulação do exercício do poder paternal, à prestação de alimentos e à inibição do poder paternal correm por apenso àquela acção “.

a) – A posição do Senhor Juiz de Tomar:
Considera o Senhor Juiz de Tomar não ser aplicável a regra do art.154 nº4 da OTM, visto que a acção de regulação do exercício do poder paternal foi instaurada em data anterior à do divórcio, logo esta não estava pendente.
Por ouro lado, a circunstância de haver sido intentada posteriormente a acção de divórcio não implica a apensação do processo tutelar cível, porquanto já se fixara a competência deste, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente ao momento da instauração do processo (art.155 nº6), pois de outra forma estar-se-ia perante um desaforamento ilegal.

b) – A posição da Senhora Juiz de Leiria:
Em contrapartida, sustenta a Senhora Juiz de Leiria que estando pendente acção de divórcio, há sempre lugar à apensação, independentemente do processo tutelar cível haver sido instaurado antes ou depois, baseando-se nos seguintes tópicos argumentativos:
Da norma do nº4 do art.154 da OTM resulta a opção do legislador em considerar a acção de divórcio ou separação judicial litigiosos como “ acção principal “, o que se justifica, designadamente, por em sede destas acções poderem serem tomas providências relativas à regulação do poder paternal ou outras decisões susceptíveis de interferir na vida dos filhos menores do casal, nos termos do art.1407 nº7 do CPC;
Sendo assim, o processo tutelar cível de regulação do poder paternal deve ser apensada enquanto “ processo dependente “, procurando o legislador evitar decisões contraditórias;
O tribunal que se pronuncia sobre o divórcio estará em melhores condições para decidir os efeitos quanto aos filhos, em virtude o melhor conhecimento da situação dos menores e dos interesses destes, podendo ser mais fácil obter o acordo dos pais;
A norma do art.155 nº6 da OTM não obsta à apensação das acções, desde que exista a conexão material (art.275 do CPC).

Sobre a interpretação do nº4 do art.154 da OTM consideramos, ressalvando o devido respeito, que a posição da Senhora Juiz de Leiria, também acolhida e desenvolvida no parecer do Ministério Público, se apresenta mais consistente em termos de hermenêutica jurídica.
Com a alteração introduzida pela Lei nº133/99 de 28/8 o legislador teve um claro propósito de harmonizar legislativamente as matérias sobre a competência dos tribunais e a conexão de processos, como, aliás, resulta expressamente da Proposta de Lei, que se transcreve:
“ A reforma do direito de menores, consubstanciada na proposta de lei de promoção de direitos e protecção das crianças e jovens em perigo e na proposta de lei tutelar educativa, impõe alterações ao Título III da Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, no que se refere às disposições gerais comuns aos processos tutelares cíveis.

Esta proposta de lei tem, assim, basicamente em conta a necessidade de harmonização legislativa, designadamente em matéria de competência dos tribunais e de conexão de processos, tendo-se aproveitado o ensejo para eliminar disposições tacitamente revogadas, que se referem aos processos da competência das conservatórias do registo civil (autorização para casamento) “.

A competência por conexão é um desvio à regra geral do art.155 da OTM, estando subjacente, entre outros, os princípios da economia processual e da uniformidade de decisões, verificados que estejam os elementos subjectivos ou objectivos da conexão.
Começando pelo argumento literal, a norma do art.154 nº4 da OTM não distingue se o processo de regulação do poder paternal deve ser instaurado antes ou depois da acção de divórcio, pois a única condição para a apensação é a pendência da acção de divórcio, o que significa que ela não ocorre quando o processo esteja findo.
Porém, o argumento literal não é decisivo, já que não resolve o problema do eventual desaforamento, uma vez que a competência se fixa no momento da propositura da acção, sendo, em princípio, irrelevantes as modificações de facto e de direito posteriores.
A matéria sobre a proibição de desaforamento, deixou de constar do Código de Processo Civil passando a ser regulada pela Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais ( art.19ºda Lei nº38/87 e art.23º da Lei nº 3/99 de 13/1 ).
O art.64 do Código de Processo Civil limita-se a consagrar a regra da oficiosidade da remessa, em casos de aplicação de leis transitórias, aplicáveis a processos pendentes, que tenham por objecto a regulamentação da competência territorial e material
O art. 22 nº1 da LOFTJ de 1999, consagra, como regra, que a competência dos tribunais se fixa no momento em que o processo ingressa no tribunal, “no momento em que a acção se propõe ”, sendo indiferentes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa.
Como corolário, deste princípio, o art.23 postula expressamente a proibição de desaforamento, ou seja, a deslocação da causa por determinação judicial do tribunal competente para outro, ressalvando, porém, “ os casos especialmente previstos na lei “.
Entre estes casos especialmente previstos na lei, destacam-se precisamente os da conexão, prevista no art.275 do CPC, sendo a norma do nº4 do art.154 da OTM uma manifesta concretização, adaptada aos processos de jurisdição de menores, tal como se salientou no douto parecer do Ministério Público.
Ora, foi justamente a dependência da acção de regulação do poder paternal relativamente à acção de divórcio que levou o legislador a determinar a apensação de processos, estabelecendo agora de forma vinculativa a conexão entre eles, ao contrário da anterior redacção.
Embora noutro contexto legislativo, esta dependência já havia sido justificada no Assento do STJ de 24/7/79 ( BMJ 289, pág.140 ), que entretanto caducara, ao fixar a seguinte doutrina - “ Em caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens decretados por um Tribunal de Família a este compete a regulação consequente do exercício do poder paternal “.
Mais recentemente e no âmbito do direito comunitário, também a propósito da competência judicial para o poder paternal, o Regulamento (CE) nº1347/2000 de 29/5/2000 ( relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e de regulação do poder paternal em relação a filhos comuns do casal ) veio consagrar a interdependência entre ambas as acções, prescrevendo o art.3º nº1 que os tribunais do Estado-Membro competentes para decidir de um pedido de divórcio, de separação de pessoas e bens ou de anulação do casamento são competentes para qualquer questão relativa ao poder paternal de filhos comuns, desde que o filho tenha a sua residência nesse Estado-Membro.
O Regulamento prevê como única causa de cessação da competência o trânsito em julgado de qualquer das decisões ou um dos processos findar por outra razão (art.3º nº3 ), o que significa ser também suficiente para a conexão a pendência do processo de divórcio.
Nesta perspectiva, considerando o argumento literal, a evolução legislativa e o argumento sistemático e teleológico, que concorrem para a correcta interpretação da norma do nº4 do art.154 da OTM, em princípio, não constitui obstáculo à apensação de processos a circunstância da acção de regulação do exercício do poder paternal haver sido instaurada em primeiro lugar, visto que a exigência legal é a de que a acção que está a correr no tribunal de família se encontre pendente, ou seja, que não haja terminado, por decisão transitada em julgado.
O impedimento legal à apensação poderá advir apenas do eventual desfasamento de processos, nos termos do nº1 do art.275 do CPC, aplicável por força do art.161 da OTM.
No caso concreto, verifica-se um conflito ( aparente ) negativo de competência, em razão do território, entre dois tribunais, para conhecer da acção de regulação do poder paternal ( art.115 nº2 e 3 do CPC ).
Sucede, porém, que a infracção às regras de competência territorial é qualificada como incompetência relativa ( art.108 do CPC ).
Sendo assim, a decisão transitada em julgado resolve definitivamente a questão da competência territorial, mesmo que seja oficiosamente suscitada ( art.111 nº2 do CPC ).
Enquanto que, nos termos do art.106 do CPC, a decisão sobre a incompetência absoluta, embora transitada, não tem, em regra, valor fora do processo em que foi proferida, a decisão sobre a incompetência relativa em razão do território, assume força de caso julgado material.
Já era assim na vigência do CPC de 1939, como referia o Prof. Alberto dos Reis ( CPC Anotado, I, 3ª ed., pág.247 ).
Daí que, por força do caso julgado material, a primeira decisão se imponha à segunda, como determina o art.675 do CPC, logo deve cumprir-se a primeira das decisões que transitou em julgado.
Mas se o que releva é anterioridade do caso julgado, e não a data da prolação das decisões, sucede que quando o Senhor Juiz de Tomar proferiu o despacho (em 8/1/2004) ainda não havia transitado a decisão da Senhora Juiz de Leiria ( 17/12/2003 ), pois só veio a ocorrer em 15/1/2004.
Em contrapartida, quando a Senhora Juiz de Leiria recebeu novamente o processo, já tinha transitado em julgado o despacho do Senhor Juiz de Tomar, em 22/1/2002.
Isto significa que o primeiro despacho a transitar em julgado sobre a competência territorial foi precisamente o de Tomar, pois até aí não havia conflito ( art.115 nº3 do CPC ).
Ora, nos termos do nº2 do artigo 111 do Código de Processo Civil, a decisão transitada quanto à competência territorial, resolvendo definitivamente a questão, deve ser acatada pelo tribunal ao qual aquela decisão atribuiu essa competência, não podendo este último, por isso, declarar-se incompetente em razão do território.
Se este tribunal, todavia, por despacho posterior, também transitado em julgado, não acatar aquela decisão, prevalecerá, independentemente do mérito, a decisão que transite em primeiro lugar, por força da imperatividade da norma do nº1 do art. 675 do CPC ( cf., neste sentido, e no âmbito dos processos de jurisdição de menores, por ex, Ac do STJ de 8/5/2003, de 29/1/2004, 10/12/2004, www dgsi.pt/jstj ).

III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Atribuir à Ex.ma Senhor Juiz no 2º Juízo do Tribunal de Competência Especializada Cível da Comarca de LEIRIA a competência para conhecer da acção de regulação do exercício do poder paternal da menor A....
2)
Sem custas.
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Coimbra, 16 de Novembro de 2004.