Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
426/07.9GCLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: VALOR DA PROVA PERICIAL
Data do Acordão: 09/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 163º DO CPP
Sumário: 1. O tribunal para não acatar um juízo técnico/científico do perito terá de ou partir duma base factual diversa daquela em que se baseou o perito ou renovar a perícia [ordenando uma segunda perícia] por outro perito e este divirja do juízo pericial anterior.
2. O que o tribunal não pode fazer é contrariar o juízo pericial na base duma argumentação puramente técnico/jurídica.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Criminal da Relação de Coimbra
I –
1- No processo n.º 426/07 do 1º Juízo criminal de Leiria, VA foi condenado na pena de 12 anos de prisão pela prática dum crime de homicídio qualificado na previsão dos art.ºs 131º e 132º/1 e 2 alíneas h) e i) do Código Penal.
2- O arguido recorre, concluindo –
1) Salvo o devido respeito, está-se em crer que a decisão em recurso incorre no vício da alínea b) do art.º410°/2 do Código de Processo Penal.
2) Com efeito, afigura-se ao recorrente que a peça tida em mira incorre no vício consistente na contradição insanável na fundamentação.
3) Na verdade, o tribunal dá por demonstrada a materialidade constante dos pontos 31) a 38) e simultaneamente dá por provada a materialidade inserta no ponto 39).
4) Circunstancialismo que, na óptica do recorrente, consubstancia a elencada vicissitude exprobrada pelo inciso normativo nomeado.
5) Está-se em crer que constitui aporia incontornável o dar-se por verificado que o arguido padece da patologia de Sindroma de Asperger, com o co-natural condicionamento em termos de personalidade e capacidade volitiva gerador de instabilidade emocional e motivador de dificuldades de relacionamento traduzida em comportamentos regressivos e traços psicopáticos e, simultaneamente que o mesmo tinha capacidade de entender o que fazia e podia determinar-se por tal entendimento.
6) Tal configura patente contradição, sobretudo se analisarmos o texto em causa sob o prisma das regras da experiencia comum que o texto legal em referência elege como padrões observáveis.
7) Deve frisar-se, ainda, que a tal actuação é credora de uma contundente verberação na medida em que se valora erradamente os dados fluentes dos contributos periciais.
8) Sendo certo que a valoração imperfeita, porque irremediavelmente escassa, em que se incorreu irrompe, manifestamente, "contra legem".
9) Efectivamente o artigo 163° do CPP subtrai a prova pericial à livre convicção do julgador,
10) Sendo certo que o n°2 do mencionado inciso taxa um especial dever de fundamentação quando existir essa referida divergência.
11) Face ao teor da peça em recurso indubitável é a constatação de que a divergência existiu não sendo detectável qualquer exercício de fundamentação de tal dissídio, especial ou normal.
12) Mas não se quedam por aqui as razões do inconformismo do recorrente.
13) Na verdade, também no que tange a subsunção jurídica preconizada no acórdão em recurso, há criticas a tecer.
14) Desde logo o tribunal ignora as repercussões oriundas da consideração do homicídio qualificado como um tipo de culpa construído através da técnica legislativa dos "exemplos padrão".
15) Com efeito, atenta a elaboração típica referenciada, as condições enumeradas no art. 132°/2 do Código Penal não funcionam automaticamente, antes assumindo um papel de índices semióticos da existência duma especial perversidade ou censurabilidade do agente.
16) O mesmo é dizer que só uma imagem global do facto agravada que traduza um mais acentuado desvalor de atitude se pode subsumir ao tipo em causa.
17) Ora uma personalidade como a do recorrente é incompatível com esse juízo de culpa agravado; trata-se de pessoa com a sua liberdade de agir claramente limitada.
18) Neste conspecto é evidente a violação do artigo 132/1 do Código Penal, na medida em que se não levou em conta a verdadeira essência desta figura típica.
19) Mostram-se assim violadas as alíneas h) e i) do n°2 do artigo 132° do Código Penal.
20) Na realidade, os autos não traduzem a existência de um "meio insidioso" ou "frieza de ânimo".
21) Relativamente a esta última dir-se-á que o condicionalismo endógeno referido na conclusão 5) é incompatível com tal estado de espírito.
22) Já no que tange à existência de "meio insidioso" não se tem por adequado que o efeito surpresa possa só por si revelar a "ocultação" ou carácter "sub-reptício" exigido pela expressão normativa.
23) Finalmente, quer o recurso nota o seu dissídio relativamente à pena aplicada.
24) Efectivamente a pena surge claramente desfasada dos preceitos normativos reitores deste segmento da juridicidade.
25) Designadamente mostram-se violados os art.ºs 71°/1 e 40/2 do Código Penal.
26) Os sobreditos incisos plasmam os critérios determinantes da fixação da medida da pena elegendo, a esse propósito, uma teleologia essencialmente preventiva, todavia temperada pela ideia da culpa.
27) Nomeadamente o n°2 do citado artigo 40° estabelece que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
28) Ora é manifesto que a punição que se verbera não levou em conta que a liberdade do agente de agir de acordo com o direito se encontrava diminuída pela patologia depressiva que a afligia.
29) Razão pela qual a pena aplicada surge como draconiana e em dessintonia com os preceitos invocados, mais a mais quando a moldura oscilava entre os 2 anos, 4 meses e 24 dias e 16 anos e oito meses de prisão.
30) Ora a predita normatividade e a moldura aplicável que a pena concreta se fixe num patamar sensivelmente menor.
3- Respondeu o Ministério Público pelo infundado do recurso, no que teve a concordância do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto.
4- Colheram-se os vistos. Cumpre apreciar e decidir! 
II –
1- Factos provados e sua motivação
A) Factos provados –
1) Em data não apurada, o arguido tomou a decisão de esfaquear o seu irmão RA, nascido a 29 de Julho de 1995, e por essa forma tirar-lhe a vida.
2) Além disso, pensou em levar à prática esse propósito em circunstâncias tais que posteriormente não fosse possível identificar o autor da prática de tal facto.
3) Com vista a alcançar tal desiderato, o arguido urdiu um plano segundo o qual iria atrair o seu irmão para um local ermo, a cerca de dois quilómetros da casa de habitação onde residia, alegando que havia encontrado uma ninhada de cães recém-nascidos e aí, com uma faca de cozinha, levaria à prática o seu projectado intento de lhe tirar a vida.
4) O arguido projectou ainda desfazer-se da faca utilizada no cometimento daquele acto logo após o ter realizado, e telefonar para os seus pais e para a emergência médica pedindo auxílio para o seu irmão, fazendo crer que este havia sido vítima de um ataque perpetrado por desconhecidos.
5) No dia 25 de Julho de 2007, por volta das 17.05 horas, o arguido encontrava-se na casa de habitação sita na Rua da Paz, n.º 92, Vale da Catarina, Caranguejeira, Leiria, juntamente com o seu irmão RA.
6) Por volta das 17.15 horas, em execução do que havia planeado, o arguido disse ao RA que havia descoberto no pinhal sito nas proximidades da casa onde se encontravam uma ninhada de cães recém-nascidos, e convidou-o a ir lá para lhos mostrar, convite que o RA aceitou, tendo ficado combinado entre ambos que o arguido iria a pé e, quando chegasse aos pretensos cachorros, enviaria uma mensagem escrita por telemóvel para o RA, que então se deslocaria para o local de bicicleta.
7) Entretanto, antes de sair de casa, o arguido muniu-se com uma faca de cozinha (apreendida nos autos) com 23,5 centímetros de comprimento, sendo 12 centímetros de lâmina, a qual estava na cozinha daquela habitação, e que colocou à cintura, entre as calções e as cuecas, tendo-se ainda munido de um par de luvas que colocou nos bolsos dos calções que na ocasião trajava.
8) De seguida, o arguido tomou o caminho do pinhal que confina com a Rua Vale da Branca, situado a cerca de 1.000 metros da sua residência.
9) Chegado à aludida rua, antes de entrar no pinhal, o arguido enviou uma mensagem escrita pelo telemóvel ao RA, dizendo-lhe para que fosse andando para o pinhal.
10) O RA recebeu a aludida mensagem e colocou-se ao caminho, fazendo-se transportar na sua bicicleta.
11) Entretanto, o arguido, após ter percorrido diversos caminhos no interior do aludido pinhal, chegou às imediações de uma linha de água situada num local conhecido por Vale da Janeca.
12) Aí, o arguido recebeu uma chamada no seu telemóvel realizada pelo Ricardo Alexandre, o qual pretendia saber ao certo onde aquele se encontrava.
13) Então, o arguido deu-lhe indicações precisas sobre a sua localização e, no seguimento dessas indicações, o RA chegou junto do arguido cerca de 1 minuto depois.
14) Mal aí chegou, o RA largou a bicicleta e encaminhou-se em direcção do arguido que, de imediato, apontou na direcção da mencionada linha de água e disse que estavam ali os cães.
15) Face a tal indicação, o RA deu alguns passos na direcção onde alegadamente estariam os cães, passando para a frente do arguido e ficando com as suas costas viradas para este.
16) Aproveitando tal situação, o arguido colocou então a sua mão esquerda sobre o ombro esquerdo do RA e, após ter retirado a faca que trazia à cintura, empunhou-a e deferiu um golpe nas costas do RA.
17) Ao sofrer tal golpe, o RA gritou e procurou virar-se para ficar face a face com o arguido mas, ao efectuar o indicado movimento de rotação, entrou em desequilíbrio e caiu no solo, ficando então deitado de costas no chão.
18) Aproveitando essa situação, o arguido acercou-se mais do RA e desferiu-lhe 15 facadas que atingiram o RA na cabeça, tronco e membros superiores pese embora, aquando das primeiras facadas, o RA tenha procurado defender-se tentando afastar o arguido com os seus membros superiores e inferiores.
19) Quando o RA perdeu as forças e deixou de esboçar qualquer reacção às facadas, o arguido calçou as luvas com que vinha munido e limpou nelas a faca que tinha ficado ensanguentada.
20) Posteriormente, o arguido telefonou primeiro para o pai e depois para a mãe, informando-os que o RA tinha sido esfaqueado e que estava morto.
21) Após, o arguido telefonou para o 112 pedindo auxílio e dando como ponto de referência a Rua da Paz com o intuito de orientar o pessoal da emergência médica na identificação do local da ocorrência.
22) Entretanto, o arguido começou a fazer o percurso inverso àquele que inicialmente havia realizado até à Rua da Paz.
23) Após ter percorrido cerca de 200 metros, o arguido encontrou dois indivíduos que andavam à lenha e a quem comunicou que tinham matado o seu irmão à facada.
24) Depois de ter percorrido mais alguns metros, o arguido saiu do caminho principal em que seguia, entrou cerca de 20 metros para dentro da vegetação e, no meio de uns arbustos de pequeno porte, lançou as aludidas faca e luvas.
25) Em consequência das indicadas facadas perpetradas pelo arguido, o RA sofreu as seguintes lesões físicas:
- No hábito externo:
Na cabeça: uma ferida cortante a nível médio, no lábio superior direito, oblíqua da direita para a esquerda, com 1,5 centímetro de comprimento;
No pescoço: uma ferida perfurante, horizontal, a 0,5 centímetro para a esquerda da proeminência laríngea, com 16 milímetros de comprimento por 4 milímetros de afastamento de bordos; uma ferida perfurante, com 11 centímetros de comprimento por 5 milímetros de afastamento de bordos (que designaremos por “ferida A”), situada para baixo e para a esquerda da ferida perfurante anteriormente referida (sendo que ambas as feridas tinham uma das pontas aguda e a outra romba); e quatro feridas incisas, superficiais, lineares, na face anterior esquerda do pescoço, entrecruzando-se, medindo a maior 7 centímetros de comprimento;
No tronco:
Ao nível da face posterior: ferida perfurante de orientação parasagital, vertical, na região dorsal a nível da base da omoplata esquerda e para dentro da mesma, medindo cerca de 11 milímetros de comprimento e com uma das pontas aguda e outra romba;
Ao nível da face anterior: uma ferida perfurante, elíptica, de bordos regulares, com 37 milímetros de comprimento por 14 milímetros de afastamento de bordos, superiormente colocada a 6 centímetros do mamilo esquerdo (que designaremos por “ferida B”); uma ferida perfurante mais pequena, adjacente a esta, ligeiramente abaixo e à esquerda desta, com cauda para cima e para a esquerda; uma ferida perfurante à esquerda, a 1 centímetro da linha média, medindo 2 centímetros de comprimento por 16 milímetros de afastamento de bordos, oblíqua para baixo e para a esquerda (que designaremos por “ferida C”); a 1 centímetro desta, e mais acima, uma ferida cortante e superficial, curvilínea de concavidade ascendente, para fora e para a esquerda, com 8 milímetros de comprimento; 7 centímetros para baixo e para fora da linha mamilar esquerda sobre o rebordo costal do mesmo lado, outra ferida perfurante, oblíqua para baixo e para dentro medindo 2 centímetros de comprimento por 6 milímetros de afastamento de bordos (que designaremos por “ferida D”);
No abdómen: complexo de três feridas cortantes, superficiais, medindo a maior e mais medial (que distava do umbigo, para baixo e para fora, quatro centímetros) 16 milímetros de comprimento por 6 milímetros de afastamento de bordos, com a forma de feijão;
Nos membros superiores: uma ferida perfurante na face anterior do terço superior do braço direito, com trajecto horizontal para a esquerda, estendendo-se da região deltoideia à clavicular direita, medindo 2 centímetros de comprimento por 6 milímetros de afastamento e com cerca de 6 centímetros de profundidade; outra ferida, distando 4 centímetros, para baixo e para fora, com 7 milímetros de comprimento (superficial); uma ferida cortante superficial com 3 centímetros de comprimento no terço médio do bordo medial do antebraço direito; uma ferida cortante superficial com 9 milímetros de comprimento na face posterior do terço inferior do antebraço direito; uma ferida perfurante no terço inferior do braço esquerdo com 0,5 centímetro de comprimento; uma ferida perfurante na face posterior do cotovelo esquerdo com 18 milímetros de comprimento; uma ferida perfurante, com 18 milímetros de comprimento, na face anterior do terço superior do antebraço esquerdo; uma ferida perfurante na face palmar da mão esquerda com 4 milímetros de comprimento; uma ferida cortante no dorso da mão esquerda com 16 milímetros;
Nos membros inferiores: uma ferida cortante com 13 milímetros de comprimento, vertical de dentro para fora, no terço médio da face externa da perna esquerda;
- No hábito interno:
No pescoço:
Ao nível do tecido celular subcutâneo e músculos: uma ferida perfurante do esternocleidomastoideu esquerdo em correspondência com a lesão perfurante referida acima como “ferida A”;
Ao nível dos vasos: uma ferida transfixiva da veia jugular esquerda com infiltração sanguínea ao longo da bainha carótida, mas sem perfurar a artéria carótida vizinha, em relação com a “ferida A”;
No tórax:
Ao nível das paredes: uma perfuração do grande peitoral esquerdo, com 3,5 centímetros de comprimento por 1,5 centímetros, no 2.º espaço intercostal esquerdo a 2,5 centímetros do bordo esquerdo do esterno, com orientação oblíqua para fora e para baixo (“ferida B”); uma perfuração a 4 centímetros da linha média, com 2,5 centímetros de comprimento, perfurando o músculo oblíquo externo esquerdo acima da 6.º costela, cortando o bordo superior desta, oblíqua para baixo e para dentro (“ferida D”);
Ao nível do esterno: uma ferida perfurante junto ao bordo direito, a nível do 4.º espaço intercostal, com 2 centímetros de comprimento, com orientação de cima para baixo e para dentro (“ferida C”);
Ao nível das costelas cartilagem e clavícula esquerda: uma ferida no bordo do arco posterior da 6.ª costela em relação à ferida perfurante dorsal;
Ao nível do pericárdio e cavidade pericárdica: hemopericardio e uma ferida perfurante da face esquerda do saco pericárdico, com cerca de 1 centímetro de comprimento;
Ao nível da aorta: perfuração da porção ascendente por ferida transfixiva medindo na parte anterior 13 milímetros e, na parte posterior, 5 milímetros (“ferida B”), situada a uma profundidade aproximada de 10 centímetros;
Ao nível do pulmão esquerdo e pleura visceral: uma ferida transfixiva na parte média do lobo superior medindo 1 centímetro de comprimento na face anterior e 8 milímetros na parte posterior (“ferida B”) a uma profundidade de cerca de 10 centímetros da superfície do corpo; uma ferida perfurante interessando a língula pulmonar e correspondente à “ferida D”;
Ao nível do timo: uma ferida perfurante superficial do lado esquerdo do timo (“ferida B”);
No abdómen:
Ao nível das paredes: uma ferida perfurante ao nível do músculo recto esquerdo do abdómen, perfurando o peritoneu parietal, com 1,5 centímetro, em relação com a maior das 3 feridas do complexo lesional abdominal descrito no hábito externo, sem infiltração sanguínea;
Ao nível do peritoneu e cavidade peritoneal: uma pequena perfuração do peritoneu parietal atrás referida;
Na coluna vertebral: uma ferida dos músculos paravertebrais em relação com a ferida perfurante descrita no dorso, atingindo o espaço inter-vertebral D6/D7 e apófise transversa direita de D7, com perfuração da dura e sem aparente lesão medular;
Nos membros:
Ao nível dos superiores: uma ferida perfurante do ombro direito de fora para dentro e da direita para a esquerda, horizontal, com aproximadamente 6 centímetros de profundidade, atingindo a região infra-clavicular direita;
Ao nível dos inferiores: uma infiltração sanguínea resultante das lesões neles verificadas no hábito externo.
26) Em consequência directa e necessária das descritas lesões torácicas, o RA perdeu a vida.
27) Ao agir da forma descrita, o arguido visou tirar a vida ao RA, como conseguiu.
28) Nos últimos tempos da sua vida, o arguido vinha percepcionando que o seu pai o tratava de forma desigual relativamente ao seu irmão RA, afigurando-se ao arguido que o RA era favorecido pelo seu pai em relação ao arguido. Uma das últimas situações que o arguido entendeu como sendo um favorecimento do RA em relação ao arguido foi a oferta de uma mota pequena ao RA por parte do pai de ambos, sem que ao arguido tivesse sido dada oferta similar.
29) Tais circunstâncias e crença por parte do arguido, conjugadas com as características da sua personalidade e a sua condição mental, contribuíram para que este tomasse a decisão de tirar a vida ao seu irmão e a executasse.
30) O arguido é um adolescente com bom desenvolvimento estato-ponderal e quociente de inteligência de tipo superior (Valor 129).
31) A nível da personalidade, apresenta exarcebados traços de egocentrismo, fantasia e ambição, aspirações intelectuais, com sentimentos de narcisismo e imaturidade afectiva, carácter obstinado e de posição, agressividade e impulsos de poder físico, controle racional com expressão de arrogância e de desdém. Projecta pouca capacidade representacional e de ressonância interna tanto a nível cognitivo como afectivo consequente ou anterior aos seus próprios comportamentos.
32) O arguido tem uma personalidade com traços psicopáticos e problemas de adaptação, podendo vir a desenvolver uma perturbação da personalidade consequente.
33) O seu perfil retrata uma personalidade pautada por acentuada imaturidade afectiva, com comportamentos manifestamente regressivos face ao seu grupo etário e extremamente dependente das figuras parentais. As pessoas com este tipo de personalidade tendem e denotar grande insegurança, com défices marcados ao nível da sua autonomização, e revelam por isso elevados níveis de ansiedade nos processos de tomada de decisão e de resolução de problemas. A tolerância à frustração é baixa e mostram um padrão de resposta marcado pela impulsividade e pela facilidade na passagem ao acto.
34) O perfil do arguido regista também uma personalidade instável, com tendência para a manifestação de actos que poderão resultar num elevado risco para o próprio ou para terceiros.
35) No plano relacional, revela atitude extremamente egocêntrica, denotando pouco interesse pelos direitos dos outros e pelas consequências das suas atitudes; revela postura reservada, com dificuldades na exteriorização dos seus afectos e no estabelecimento de relações afectivas próximas. Apresenta baixa ressonância afectiva, com uma certa incapacidade em estabelecer relações empáticas e afectivas. Mostra-se desconfiado e interpretativo, ficando excessivamente ofendido perante as mais pequenas críticas ou repreensões. Denota uma postura rígida, com um pensamento pragmático e muitas vezes dicotómico, não permeável à opinião de terceiros ou as experiências desconfirmatórias das suas crenças.
36) Tem tendência para um carácter metódico e perfeccionista, com emergência de eventuais comportamentos obsessivos e ritualizados.
37) O arguido é portador de Síndrome de Asperger, o qual é uma forma leve de autismo onde relevam, entre outras características:
- o prejuízo qualitativamente acentuado na interacção social e os padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e actividades, sem que, em simultâneo, se percepcione um atraso geral clinicamente significativo na linguagem, no desenvolvimento cognitivo ou no desenvolvimento de um comportamento adaptativo (excepto para as áreas de funcionamento/interacção social ou ocupacional, que surgem fortemente afectadas);
- a incapacidade de estimar a vida cognitiva, perceptiva e afectiva dos outros, bem como a de si próprio, onde a falta de ressonância afectiva intersubjectiva pode comprometer seriamente o experienciar sentimentos de vergonha, remorso ou arrependimento; egocentrismo, incapacidade de compreender as indicações sociais e aparente dificuldade para perceber o que os outros estão sentindo. O paciente pode ter compreensão técnica de que as outras pessoas têm sentimentos, mas é caracteristicamente incapaz de responder a elas adequadamente. Em decorrência disso, tende a basear-se em regras rígidas e formais do comportamento, para poder lidar com as situações sociais;
- a combinação de traços temperamentais, como a adaptação lenta ou mesmo inadaptação a situações novas, o baixo nível de actividade, o retraimento perante estímulos estranhos, a fraca intensidade das reacções emocionais e o elevado grau de humor negativo, que tendem a contribuir para o evidenciar de comportamentos pouco assertivos, particularmente em épocas de stress;
- a evitação de relacionamentos afectuosos e significativos, o afastamento do mundo real para a fantasia, as preocupações com devaneios ou com assuntos esotéricos e as dificuldades de conferirem as suas experiências com a realidade externa não deixam de contribuir para desvios no processo de pensamento, que se torna idiossincrático, permitindo que a realidade se confunda com a ficção, ainda que para o exterior apenas trespasse o quadro de indiferença, apatia, falta de iniciativa e humor inconstante;
- a possibilidade de ocorrência de explosões de impulsos agressivos ou destrutivos, enquanto resposta desfocada da realidade, por incapacidade de manusear intra-psiquicamente a agressão e a hostilidade.
38) O Síndrome de Asperger assume a condição de doença de carácter heredo-constitucional (neuro-psiquiátrico desenvolvimental), que determina forte condicionalismo em termos de personalidade e da capacidade volitiva do arguido. O seu tratamento deve ser feito por haver tendência para a esquizofrenia. Na ausência de tratamento, existe o perigo de repetição do tipo de actos como o descrito nas als. 1) a 27). O tratamento do doente com medicação e psicoterapia pode levar à sua estabilização, sendo que, porém, a cura não é possível.
*39) Apesar do descrito nas als. 31) a 38), o arguido, ao agir da forma descrita nas als.1) a 27), tinha capacidade de entender que o que estava a fazer era um acto proibido e punido pela lei, o que sabia quando agiu de tal forma; tinha ainda o arguido capacidade de optar por não agir dessa forma. Porém, o arguido decidiu assim actuar, o que fez de forma voluntária e consciente.
40) Do certificado de registo criminal relativo ao arguido, nada consta.
41) O arguido confessou os factos e indicou às autoridades policiais como os praticou, bem como onde colocara a faca e luvas supra referidas.
42) O arguido pertence a uma família com favoráveis condições sócio-económicas, sendo o mais velho de dois irmãos. O seu crescimento processou-se, nos primeiros anos, sem indícios de desorganização pessoal, mantendo aparentemente um nível de envolvimento adequado com a família bem como razoável ligação e empenho à escola e, mais recentemente, a existência de aspirações educacionais.
43) Na sua plataforma familiar, verificou-se porém um crescente nível de conflito entre os pais e dificuldade na gestão dos papéis parentais, evidenciando o arguido sinais manifestos de ansiedade, hostilidade e retraimento comunicacional.
44) Nesse contexto, e por solicitação da sua mãe, o arguido iniciou em Junho de 2005 acompanhamento psicológico, apresentando sentimentos de forte intensidade emocional, frustração, zanga e raiva, expressos essencialmente ao nível familiar. A dificuldade na gestão dos afectos e na capacidade de exprimir as suas emoções e sentimentos levou a uma proposta de intervenção assente em sessões regulares e de periodicidade quinzenal de psicoterapia. Em 2 de Maio de 2006, o arguido, não obstante a positiva adesão ao acompanhamento, decidiu afastar-se do processo terapêutico, não tendo este, no entanto, sido considerado concluído pelo respectivo terapeuta.
45) A separação dos pais do arguido, ocorrida em Dezembro de 2006, levou ao confronto do arguido com um conjunto de rupturas no quadro familiar onde a dissociação ao nível afectivo parece ter sido marcante.
46) Após a separação dos pais, o arguido, por sua iniciativa – e por resistência à mudança –, manteve-se a viver com o pai, passando a mãe – a quem, por decisão judicial, fora confiado o filho mais novo – a residir num apartamento arrendado em Pousos, Leiria. A mãe do arguido continuou, porém, a ser um elemento fundamental e participativo no quotidiano do arguido.
47) O arguido estabelecia com o pai um relacionamento reservado ao nível comunicacional, mantendo com a mãe uma relação mais próxima.
48) O arguido completou, no passado ano lectivo, o 11.º ano, mantendo em atraso a disciplina de matemática do 10.º ano de escolaridade. Encontrava-se inscrito no 12.º ano de escolaridade em Escola Secundária de Leiria, tendo como objectivo o ingresso no ensino superior.
49) Não obstante o temperamento reservado que o caracterizava, mantinha no meio social e na escola um convívio e integração adequados, tendo constituído no estabelecimento de ensino relações de amizade.
50) O arguido deu entrada no Estabelecimento Prisional Regional de Leiria em 27 de Julho de 2007. Fortemente descompensado, reiniciou naquele Estabelecimento Prisional, por solicitação própria e com aceitação dos pais, um programa de acompanhamento psicológico com o seu Psicólogo. Os pais manifestam disponibilidade para prestarem apoio ao arguido, continuando porém a existir uma latente instabilidade no meio familiar, agravada pelos factos acima referidos, que se repercute negativamente na interacção entre os diversos elementos.
51) Em 16 de Junho de 2005, o arguido apresentava problemas ao nível da auto-imagem e funcionamento afectivo, nomeadamente: dificuldade de modelação das suas descargas emocionais; dificuldade em lidar com situações emocionalmente mais complexas; tendência para ser mais negativista e oposicionista; auto-imagem desvalorizada; tendência para intelectualizar a sua auto-imagem; tendência para manifestar comportamentos de dependência; presença de interferências emocionais nas suas actividades de mediação; dificuldades ao nível da organização de pensamento.
52) Observado novamente em 17 de Janeiro de 2008, o arguido apresentou problemas ao nível da auto-imagem, dos seus relacionamentos interpessoais e funcionamento afectivo. Devido às suas dificuldades no âmbito relacional, o arguido tende a sentir com frequência episódios depressivos. As suas dificuldades relacionais parecem dever-se não só a uma certa inaptidão para as relações mas também devido a uma auto-estima bastante desvalorizada. Para fazer face à situação, o arguido tende a recorrer, principalmente, ao evitamento e à fantasia, aumentando o seu isolamento social e consequente compensação de necessidades e, por outro lado, torna o seu pensamento menos convencional e distorcido, facilitando os episódios em que não controla a sua ideação. Este evitamento, tanto das situações emocionais como das situações relacionais, tem impedido que o arguido desenvolva novos recursos mais adaptativos para fazer face às diversas exigências das situações. Como reacção à situação actual, o arguido tem vindo a sentir um aumento do seu mal-estar que se faz sentir tanto a nível ideativo como emocional.
B) Motivação – O tribunal baseou a sua convicção nos seguintes meios de prova:
- documentos de fls. 5. 21-41, 53-59, 141.155, 212, 337-354, 492-497, 505-513, 514-528 e 549-552; relatórios de fls. 298-308, 313-316, 357-366, 432-436, 456-457, 499-501 e 611-615; autos de fls. 60 e 102-139 e 371; certificado de registo criminal junto a fls. 426;
- Declarações do arguido, que confessou os factos com excepção da motivação considerada provada na al. 29) dos factos provados;
- Depoimento das seguintes testemunhas:
1. FA, um dos indivíduos referidos na al. 23) dos Factos Provados, e que descreveu o que o arguido disse e fez quando o encontrou naquelas circunstâncias de tempo e lugar de forma no essencial coincidente com a provada;
2. JD, o outro dos indivíduos referidos na al. 23) dos Factos Provados, e que confirmou no essencial o que ficou provado sobre o comportamento do arguido quando encontrou o depoente naquelas circunstâncias;
3. DC, inspector-chefe da Polícia Judiciária que foi ao local no dia dos factos no exercício das suas funções. Descreveu o que ali constatou. Esclareceu que foi o arguido quem disse onde escondera a faca e as luvas, indicando esse local à Polícia Judiciária;
4. MI, inspectora da Polícia Judiciária, que se deslocou ao local no dia dos factos no exercício das suas funções. Descreveu o que constatou então, nomeadamente o comportamento do arguido, na ocasião, que qualificou como frio;
5. FF, inspector da Polícia Judiciária, que inspeccionou o local e a vítima na data dos factos, que descreveu. Esclareceu ainda que o arguido, na ocasião, aparentava no local dos factos excitação e nervosismo, mas que passou a aparentar calma e frieza quando já se encontrava em casa. Confirmou que, a partir de dado momento, o arguido colaborou na investigação, levando-os ao local onde escondera a faca;
6. FS, Médico Psiquiatra que observou o arguido após os factos, e que confirmou o seu relatório junto a fls. 514 e seguintes, esclarecendo mais alguns detalhes, como sejam o de o Síndrome de Asperger ser uma forma leve de autismo, que o tratamento do mesmo deve ser feito por haver tendência para a esquizofrenia, e na ausência do mesmo há perigo de repetição deste tipo de actos;
7. EM, amigo do arguido desde os 15-16 anos, que conheceu na escola. Descreveu de forma vaga a forma de estar do arguido, esclarecendo que o mesmo não tinha comportamentos violentos, apesar de aparentar frustração. Relativamente ao relacionamento entre o arguido e o seu irmão, nunca lhe notou nada de estranho, sendo certo porém que não conheceu o RA. Esclareceu ainda que o arguido se mostrava triste com a separação dos pais.
No que respeita à forma como ocorreram os factos propriamente ditos (als. 1) a 28) dos Factos Provados), teve-se em atenção especialmente as declarações do arguido, que confessou no essencial todos os factos, apenas não o fazendo na parte em que se considerou como provado que para a actuação do arguido contribuiu o facto de sentir que era desfavorecido no tratamento dispensado pelo pai relativamente ao irmão. Atendeu-se ainda à reconstituição dos factos efectuada nos autos, cujo auto consta a fls. 102 a 139, elementos esses que confirmam os factos considerados provados.
Quanto à motivação que presidiu à actuação do arguido, e que é referida nas als. 28) e 29) dos Factos Provados, é certo que o arguido não a admitiu, declarando que gostava do irmão e que não entendia o que fez nem porque o fez. A forma como prestou declarações neste ponto demonstrou, porém, que o arguido tentava racionalizar a sua actuação, evitando (voluntária ou inconscientemente) voltar ao tempo dos factos e explicar o que o motivou. Porém, várias circunstâncias permitem que o Tribunal conclua que, para a actuação do arguido, contribuiu a motivação considerada como provada:
- o próprio arguido declarou, em julgamento, que o pai favorecia o irmão em relação a si, mimando mais o irmão do que o arguido, e confirmou que considerou injusto que o pai tivesse oferecido ao irmão a mota sem que o tenha feito igualmente ao arguido;
- que tal tratamento desigual afectava o arguido de forma intensa é patente em vários pontos dos relatórios de avaliação psicológica relativos ao arguido. Assim, veja-se a fls. 506, “Estão presentes indícios de conflitos fraternos que se fundam na percepção de que o seu irmão se encontra num papel privilegiado relativamente a si próprio”; a fls. 518, o arguido referiu que o pai despediu-se do irmão com dois beijos e uma carícia no cabelo, algo que nunca fizera com o arguido, e ainda que contou, por iniciativa própria, que o pai sempre foi mais ligado ao irmão, manifestando com este filho afectos que jamais manifestou para com ele, o que se agravou com a separação dos pais; e a fls. 611, onde o arguido referiu que a sua gravidez não foi planeada ao contrário do que sucedeu com o irmão, ênfase que em si é expressivo;
- o próprio acto em si, aliado à dependência parental evidenciada pelo arguido, revela que para o mesmo contribuiu uma situação de rivalidade pelas atenções/afectos dos progenitores que, não raro, se encontra entre irmãos.
Relativamente às lesões causadas pelo arguido ao RA, atendeu-se essencialmente ao relatório de autópsia junto a fls. 357 e seguintes, de onde também resultou demonstrado o nexo causal entre a actuação do arguido e o falecimento de RA em termos directos e necessários.
As características da faca usada pelo arguido constam especificamente do auto de fls. 371.
Ficou afastada a demonstração que o arguido agiu sem capacidade de avaliar o seu acto e de decidir de acordo com essa avaliação, demonstrando-se antes que o arguido dispunha dessa capacidade. Todos os elementos juntos aos autos que a esta questão respeitam (relatórios de avaliação psicológica e exames psiquiátricos feitos ao arguido) referem que o arguido tinha tal capacidade, ainda que diminuída, mas não excluída.
No que se refere às condições pessoais, sociais, e familiares do arguido, atendeu-se essencialmente ao relatório social junto aos autos, conjugado com os relatórios de avaliação psicológica e de perícia psiquiátrica e dos relatórios elaborados pelos Srs. Drs. ED e FS.
Quanto à data de nascimento de RA, atendeu-se ao documento de fls. 5. Atendeu-se ainda, quanto ao facto considerado provado na al. 40), ao Certificado de Registo Criminal do arguido.                                 
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2- Questões suscitadas no recurso –,
a) A existência de contradição insanável entre os factos provados sob as alíneas 31) a 38) e o que se deixou provado sob a alínea 39); b) A presença de erro notório na apreciação da prova por violação do art.º 163º do CPP; c) Erro de direito no enquadramento dos factos no tipo de homicídio qualificado face à anomalia psíquica de que o arguido é portador; d) O excesso de pena.

3- Apreciação –
3.1- O recorrente começa por referir a presença de contradição insanável entre os factos provados ao afirmar-se, por um lado, que o arguido é portador do síndrome de Asperger – o que determina forte condicionalismo em termos de capacidade volitiva – e, pelo outro, que o arguido tinha a capacidade de entender que «o que estava a fazer era um acto proibido e punido por lei (…) e tinha a capacidade de optar por não agir dessa forma; que decidiu assim actuar de forma voluntária e consciente».
Não cremos que exista essa oposição entre as referidas asserções, ou seja, que haja contradição que as tornem logicamente inconciliáveis. O síndrome de que o arguido era portador não lhe retirava por completo vontade própria e a capacidade de se auto-determinar, embora lha mitigasse, pelo que o tribunal decidiu correctamente que o arguido «tinha capacidade de optar por não agir dessa forma».
A motivação de direito revelada no acórdão dá uma noção exacta da situação ao referir que «tendo-se demonstrado que o arguido agiu de forma (…) consciente, sabendo que o seu acto era proibido e tendo no momento dos factos capacidade, ainda que não integral, para se determinar de acordo com a avaliação que fez do seu acto, tem de se concluir que pese embora as especiais características da sua personalidade e da sua condição mental a sua actuação foi ainda um acto de vontade e liberdade»[1] .
Porém, também entendemos que o afirmado pelo tribunal em termos de auto-determinação do agente deve conter aquele algo mais que vem referido na perícia de fls. 611/615. É que o perito concluiu que «o examinado padece de Anomalia Psíquica, nomeadamente de Síndrome de Asperger. Assim, não podemos ser alheios ao facto de esta condição determinar um forte condicionalismo em termos de personalidade e da capacidade volitiva do examinado. Embora, aparentemente, a sua capacidade de se auto-determinar e de avaliar a ilicitude dos factos estivesse parcialmente preservada.
Entende o perito que se justifica a formulação de juízo de imputabilidade sensivelmente diminuída».
A nosso ver, este juízo técnico foi parcialmente ignorado ao não ser afirmado no n.º 39), em perfeita sintonia com o dito no n.º 38) que «o arguido tinha a capacidade de se auto-determinar diminuída face ao síndrome de Asperger de que era portador, em termos de se ter a sua imputabilidade sensivelmente diminuída»
 3.2- Esta omissão prende-se com aquela outra questão suscitada pelo recorrente da violação do art.º 163º do CPP, ou seja, que ao ter-se o arguido por totalmente imputável se violou o juízo técnico/ pericial.
O art.º 163º do Código de Processo Penal estatui – 
«1 – O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
2- Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência».
Ora o perito afirmou que sofrendo o arguido de síndrome de Asperger, esta anomalia “determinava-lhe forte condicionalismo (…) da capacidade volitiva”, pelo que “se justificava a formulação de juízo de imputabilidade sensivelmente diminuída”.
Este juízo do perito é um juízo técnico/científico. E foi postergado pelo tribunal que afirmou a total imputabilidade do arguido.
Mas o tribunal para não acatar tal juízo teria de ou partir duma base factual diversa daquela em que se baseou o perito [o que não aconteceu], ou renovar a perícia [ordenando uma segunda perícia] por outro perito e este divergisse do juízo pericial anterior.
O que o tribunal não pode fazer é contrariar o juízo pericial na base duma argumentação puramente técnico/jurídica.
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva [Curso de Processo Penal, II, Editorial Verbo, 1999, pp. 178/179] só na base de argumentos da mesma natureza, ou seja, só na base doutros argumentos periciais poderia o tribunal divergir do juízo técnico/pericial. O julgador só poderia arredar a conclusão inscrita no parecer técnico com fundamento noutra crítica material da mesma natureza.
Assim, violou-se a regra da prova tarifada constante do art.º 163º do CPP, ou seja, uma «lex artis» –, o que configura erro notório na apreciação da prova [art.º 410º/2 alínea c) do CPP]. Porém, tal erro é suprível já que apenas há que ajustar a decisão de facto ao juízo pericial postergado.
Assim, mantendo-se inalterada toda a restante decisão de facto e procurando preservar dentro do possível a redacção do n.º 39) dos factos provados, altera-se esta alínea para o seguinte – «Ao agir da forma descrita nas alíneas 1) a 27) o arguido sabia que o que estava a fazer era um acto proibido e punível por lei. Fê-lo voluntariamente pois tinha capacidade de optar por não actuar dessa forma, embora a sua capacidade de auto-determinação se encontrasse fortemente condicionada face ao Síndrome de Asperger de que era portador». E acrescenta-se uma outra alínea com o n.º 39-A) com a seguinte redacção – «Este condicionamento da sua capacidade volitiva fazia com que a sua imputabilidade ficasse sensivelmente diminuída».
3.3.1- A perícia não afirma que o arguido não seja imputável; embora saibamos que a afirma a sua imputabilidade como sensivelmente diminuída. Nem do artigo 20º/2 do Código Penal resulta que a inimputabilidade seja uma inevitabilidade em todos os casos de sensível diminuição da capacidade volitiva. Também da decisão de facto não resulta expresso que o arguido não se deixe influenciar positivamente pelo cumprimento da pena.  
E o facto do arguido ter a sua capacidade de se auto-determinar diminuída nos termos supra referidos não será, a nosso ver, óbice à integração da conduta no tipo de homicídio qualificado.
Efectivamente, a anomalia psíquica do agente não o afectava ao nível da consciência, da compreensão da gravidade dos factos e da sua valoração, mas tão só ao nível do controlo da vontade.
O arguido possuía uma capacidade normal para compreender o desvalor da sua conduta. E o desvalor desta pode variar em função da espécie e modos de execução do facto, constituindo uma base de graduação da ilicitude que se repercute na medida da pena.
O elemento subjectivo geral do tipo, o dolo, é uma entidade complexa portadora de sentidos diversos consoante a sua valoração é objecto da ilicitude ou da culpa: em sede de tipo de ilícito, enquanto determinante da direcção do comportamento, o dolo entende-se como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo; como forma de culpa, enquanto modo de formação da vontade que conduz ao facto, o dolo é portador do desvalor da atitude pessoal contrária ao direito[2].
O conhecimento compreensivo que o arguido tinha da carga da ilicitude decorrente do modo da sua acção não deixa de acarretar maior censurabilidade a esta, censurabilidade que só posteriormente deve ser atenuada [atenuação extraordinária da pena] face à presença de alguma limitação do agente ao nível do auto-domínio.
O art.º 132º trata duma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi consumada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Nesta medida pode afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa[3] como consequência de um maior grau de ilicitude do facto.
Como refere Teresa Serra (ob. cit., pp. 65/66), “Uma análise, ainda que breve, das mencionadas circunstâncias, evidencia, pelo menos no que a parte delas respeita, um mais acentuado desvalor da conduta que implica um maior grau de ilicitude (…). No caso do homicídio consumado, o aumento da ilicitude resulta do maior desvalor da conduta e pode estar relacionado (…) com os modos de execução do facto (…). Desta maneira, parece evidente que as circunstâncias do n.º2 do art.º 132º traduzem tanto um aumento da ilicitude e, logo em regra, um aumento correlativo do grau de culpa, como um maior desvalor da culpa decorrente da intervenção de elementos autónomos, não relacionados com a ilicitude (…). Embora se compreendam as razões que levam à afirmação de que as referidas circunstâncias constituem elementos da culpa, dela retirando as devidas consequências designadamente para a problemática da participação, não parece que se mostre necessário recorrer a tais meios para alcançar os fins sistemáticos desejados”.         
O referido parece-nos justificar que o tribunal parta da moldura penal do tipo qualificado atenta a maior ilicitude do facto decorrente do modo da sua execução e só depois se pondere a imputabilidade diminuída do agente decorrente duma menor capacidade de auto-domínio.
3.3.2- O tribunal recorrido afirma uma actuação insidiosa «pois atraiu a vítima sob falso pretexto para um local ermo e, após, estando estas de costas, desferiu o primeiro golpe com uma faca. A actuação do arguido revela assim que procurou surpreender a vítima, agindo de forma dissimulada, retirando praticamente toda a capacidade de reacção da vítima».
Estas considerações parecem-nos correctas já que o meio é insidioso quando torna especialmente difícil a defesa da vítima. Será insidioso o meio cuja forma assuma características enganadoras, sub-reptícias ou ocultas. Na insídia o agente aproveita a distracção da vítima para actuar; age enganando-a; cria uma situação que a coloca em posição de não poder resistir como em circunstâncias normais sucederia. Trata-se dum conceito que abarca os meios aleivosos, traiçoeiros e desleais. Ora, a actuação do arguido foi quanto à vítima totalmente inesperada e traiçoeira.
Também concordamos com o tribunal ao ponderar que «houve reflexão sobre os meios empregues»: a escolha dum sítio distante de casa e ermo –, facilitador da sua actuação e que, na sua óptica, também impediria a sua descoberta como agente do crime; a invenção da história do ninho de cachorrinhos –, de modo a atrair o irmão ao local convidando-o a ir ter com ele de bicicleta sem lhe revelar previamente o sítio; o preparar-se para o acto que projectou com uma faca de cozinha e um par de luvas, todas estas circunstâncias revelam essa reflexão.
Há apenas a clarificar que a qualificação do crime por uma destas circunstâncias faz com que a outra seja tomada como circunstância agravante geral na concreta determinação da pena (cfr. Teresa Serra, ob. cit., pág. 102).
3.4- Quanto à pena, entendemos que esta deverá ser especialmente atenuada face ao menor grau de imputabilidade do arguido[4].
Na óptica pericial, da anomalia do arguido poderá decorrer “uma eventual perigosidade difícil de avaliar desde já”, pelo que carece antes do mais de «adequada reabilitação sócio/terapêutica»[5].
Neste caso especial dum jovem psiquicamente afectado mas motivado para a vida, a pena deve quedar-se na medida do necessário à sua recuperação social. E atenta a sua idade (17 anos) uma pena excessivamente prolongada que lhe coarcte todos os sonhos e perspectivas do futuro por si idealizado, só trará efeitos nefastos à finalidade de recuperação.
Parece-nos, pois, que a pena deve ser reduzida face à menor imputabilidade do arguido e às finalidades das penas. Com efeito as razões de diminuição da culpa são, em princípio, também comunitariamente compreensíveis e aceitáveis e determinam que, no caso concreto, as exigências de tutela dos bens jurídicos e de estabilização das normas sejam menores[6].  
Perante as especiais características do caso assume especial relevo a prevenção especial positiva. E já vimos que, face à anomalia psíquica de que é portador, o que mais sobreleva no caso não é a pena mas o tratamento psicoterapêutico do arguido.
No especial contexto em que um jovem mata o irmão apenas por “ciúme” dos carinhos paternos a este dispensados em medida superior, a finalidade de prevenção geral deverá ceder perante a prevenção especial positiva [recuperação social do arguido] dando-se pouco relevo à prevenção especial negativa[7] ([8]).
A pena abstracta, ou seja, a penalidade do tipo qualificado especialmente atenuada vai de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão.
Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo depuseram a favor e contra o agente.
O arguido confessou os factos para os quais não tem uma explicação pessoal; manifesta arrependimento e não tem quaisquer antecedentes. Será, a nosso ver, ainda um jovem socialmente promissor desde que sujeito a adequada reabilitação sócio/terapêutica e a pena a aplicar lhe não coarcte de vez qualquer reinserção social.
Ponderados todos os factores e o mais que ficou dito, temos por equilibrada uma pena que se fixe próxima da média da penalidade abstracta. Fixa-se, assim, a pena em nove anos de prisão.
III – Decisão –
Em conformidade com o exposto decide-se  -
A) Quanto à decisão de facto -  
1) Alterar o 39) dos factos provados para o seguinte – «Ao agir da forma descrita nas alíneas 1) a 27) o arguido sabia que o que estava a fazer era um acto proibido e punível por lei. Fê-lo ainda voluntariamente pois tinha capacidade de optar por não actuar dessa forma, embora a sua capacidade de auto-determinação se encontrasse fortemente condicionada face ao Síndrome de Asperger de que era portador».
2) E aditar uma outra alínea com o n.º 39-A) aos factos provados, com a seguinte redacção – «Este condicionamento da sua capacidade volitiva fazia com que a sua imputabilidade ficasse sensivelmente diminuída».
 B) Fixar em nove anos de prisão a pena em que o arguido fica condenado.
Porque decaiu parcialmente, condena-se o recorrente em custas, com a taxa de justiça que se fixa em 4 UCs.

Coimbra,  


[1] A censura da culpa jurídico/penal tem que assentar em dois pressupostos que representam outras tantas exigências normativas: por um lado, a censura da culpa só pode ser excluída (…) por circunstâncias extraordinárias; por outro, pressupõe-se que todo o homem (…) consegue reunir a força de vontade necessária para combater e vencer a tentação criminosa [Teresa Serra, Homicídio Qualificado pp. 44/45].
                       [2] Teresa Serra, ob. cit. p. 32
[3] A culpa consiste num juízo de censura dirigido ao agente que, tendo podido actuar segundo o dever, optou por agir ilicitamente, evidenciando uma atitude contrária ao direito [Teresa Serra, ob. cit., p. 35].
[4] Não se ignora a jurisprudência que afirma que nem sempre uma imputabilidade diminuída leva à diminuição da pena, como acontece quando qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto se revelam, apesar da diminuição da imputabilidade, particularmente desvaliosas e censuráveis (v. g. casos de especial brutalidade ou crueldade) – Ac STJ, CJ 2007,3, 220. 
[5] Neste domínio da perigosidade a análise pericial manifesta-se num mero juízo de probabilidade [«eventual perigosidade difícil de avaliar desde já»], pelo que carece do valor vinculativo referido no art.º 163º/1 do CPP quanto aos juízos científicos.
                       [6] Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal , p. 110
[7] Quanto à prevenção geral positiva pela medida da pena faz apelo à consciencialização geral da importância social do bem jurídico tutelado pela norma e ao restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal dos bens jurídicos fundamentais à vida colectiva e individual.
Pela prevenção especial pretende-se obter a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva) e a dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa). Nos infractores ocasionais, a ter de aplicar-se uma pena, é este o sentido único da prevenção especial.
A prevenção especial não é um valor absoluto, mas duplamente limitado pela culpa e pela prevenção geral. Pela culpa, pois o limite máximo da pena não pode ser superior à medida da culpa. Pela prevenção geral que dita o limite mínimo correspondente à garantia da manutenção da confiança da comunidade na efectiva tutela dos bens jurídicos violados e à dissuasão dos eventuais prevaricadores.
Uma pena excessivamente longa poderá conduzir à quebra da inserção social do agente. Quebrada a inserção social do agente pelo encarceramento, muito dificilmente o agente será reintegrado na sociedade após o cumprimento da pena, o que pode frustrar as finalidades da pena criminal.
A culpabilidade estabelece o limite máximo da pena, mas razões de prevenção especial podem levar o juiz a fixar uma pena abaixo do limite determinado pela culpabilidade, evitando-se o efeito dessocializador que pode resultar da pena justa em função da culpabilidade.    

[8] (…) até agora, continuam a ser insondáveis os mecanismos de eficácia da prevenção tanto geral como especial, em virtude da sua extraordinária complexidade. Daí que não existam critérios que possibilitem a determinação da pena preventivamente correcta, tanto mais que é óbvia a dificuldade de medir a própria necessidade de prevenção geral  (…) [Teresa Serra, ob., cit., p. 46]