Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7/12.5PTFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: PROCESSO SUMÁRIO
ACUSAÇÃO
FALTA DE PROMOÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
NULIDADE
Data do Acordão: 09/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 119º B), 389º Nº 2 CPP
Sumário: 1.- A acusação delimita o âmbito e conteúdo do objeto do processo; é ela que define o conjunto de factos que se entende constituírem um crime, estabelecendo assim os limites dos poderes cognitivos do tribunal;
2.- A dedução da acusação no processo é imprescindível e fundamental porquanto no nosso ordenamento jurídico-constitucional vigora o princípio do acusatório;
3.- Em processo sumário, não constando da ata de que se tivesse procedido à leitura do respetivo auto de notícia da autoridade que o elaborou, antes se constando que se passou de imediato à produção de prova com a audição das testemunhas sem que aquela formalidade tenha sido observada, omitiu-se formalidade essencial e insanável, que consubstancia a nulidade do artº 119º b) CPP.
Decisão Texto Integral: 1.
Nos autos de processo sumário nº 7/12.5.PTFIG do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, em que é arguido,

            A..., melhor id. os autos,
Foi o mesmo julgado e condenado como autor material de um crime p. e p. pelo art.º 292º, nº1, do Código. Penal,
- Na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis)
e
- Na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo período de 5 (cinco) meses, nos termos do art.º 69º nº 1 al. a) do C. Penal.

            2. Da decisão recorre o arguido apresentando as seguintes conclusões:

            2.1. A sentença é omissa quanto ao esclarecimento do direito do recorrente em realizar a contraprova.

            2.2. Com efeito, confrontando o depoimento da testemunha António Manuel Batista gomes com o teor do doc. de fls. 6, onde não consta qualquer declaração de que o arguido se recusou a assinar, não resulta inequívoco que o mesmo foi informado do seu direito de realizar a contraprova.

            2.3. Não existe acusação nos presentes autos. Inexistindo acusação ocorre uma nulidade processual insanável infirmando todo o processo.

            2.4. Na verdade, quando a acusação é realizada nos termos do nº 2 do artigo 389º, do CPP, deverá dar-se cumprimento ao mencionado no nº3 do artigo ou seja, deverá existir registo da leitura do auto de notícia quer em acta quer na gravação da audiência o que no presente caso não acontece.

            2.5. Sempre se deverá entender que a medida da pena principal e da pena acessória é excessiva, pois o arguido encontra-se socialmente inserido e é pessoa trabalhadora.

            Pelo que deverá o recurso ser julgado procedente nos termos requeridos.

            3. A este recurso responde o Ministério Público em 1ª instância, dizendo em síntese:

            3.1. Resulta do depoimento da testemunha B… que o arguido foi notificado que poderia requerer a contraprova.

            3.2. O doc. de fls. 6 não refere que o arguido se recusou a assinar, por mero lapso, já que o arguido se recusou a assinar qualquer documento.

            3.3. A acusação não padece de qualquer nulidade. Quando muito, a falta da leitura do auto de notícia configura uma irregularidade que se mostra sanada porque não alegada em tempo.

            3.4. A medida da pena principal e acessória é adequada e justa considerando a TAS com que o arguido conduzia.

            Deve ser julgado improcedente recurso.

 

            4. Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto mostra concordância com a resposta do MºPº em primeira instância, concluindo que o recurso deve improceder.

            5. Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.


II

Questões a apreciar:

1. A nulidade insanável por falta da leitura do auto de notícia em audiência.

2. A não notificação do arguido para exercer o direito à realização da contraprova.

3. A medida da pena principal e acessória.

                                                                III

Cumpre decidir:

            1ª Questão: a nulidade insanável por falta da leitura do auto de notícia em audiência.

            1. Estamos perante o julgamento do arguido pela prática do crime de condução em estado de embriaguez que seguiu, no presente caso, a tramitação do processo sumário dos artigos 381º e seguintes do Código de Processo Penal.

            E segundo esta forma processual, nos termos do artigo 389º, nº 2, do respectivo diploma, o Ministério Público pode substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção.

            Tendo sido esta a posição e pretensão do Ministério Público ao dar o despacho de fls. 14 dos autos, onde o refere expressamente.

            2. Importa esclarecer que a dedução da acusação no processo é imprescindível e fundamental porquanto no nosso ordenamento jurídico-constitucional vigora o princípio do acusatório – art. 32º, nº 5, da CRP.,

            A acusação tem, pois, por função, a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objecto do processo; é ela que define o conjunto de factos que se entende constituírem um crime, estabelecendo assim os limites dos poderes cognitivos do tribunal.

Segundo Figueiredo Dias, nisto se traduz o princípio da vinculação temática do tribunal.

Este processo penal de estrutura acusatória existe para assegurar sobretudo e na plenitude, as garantidas de defesa do arguido. O que implica a desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias que não constem do seu objecto, uma vez definido este pela acusação.

3. Segundo o teor da acta de audiência de fls. 27 a 29, de 20.2.2012, da mesma não consta que se tivesse procedido à leitura do respectivo auto de notícia da autoridade que o elaborou. E ouvida a gravação da prova/audiência que consta do CD junto aos autos, também não resulta que tal leitura tenha sido feita. Antes se constata que se passou de imediato à produção de prova com a audição das testemunhas sem que aquela formalidade tenha sido observada.

Ora, esta não leitura do auto de notícia corresponde a uma não promoção do processo pelo seu verdadeiro titular, o Ministério Público, faltando, por isso mesmo, a real e exacta acusação que define o âmbito do objecto processual a discutir. Trata-se sem dúvida de uma formalidade mas de uma formalidade essencial e insanável, que não se vê como possa ser ultrapassada uma vez que, manifestamente, não foi observada ou cumprida.

 A inobservância desta formalidade tem como “consequência fulminante” a nulidade do processo, ao abrigo do artigo 119º alínea b), do Código de Processo Penal – nulidade insanável – v. ac. do TRPorto de 30 de Junho de 1993, in CJ, Tomo III, fls. 260.

No mesmo sentido v. ac. do TREvora de 19.2.2002 in CJ, Tomo I, fls. 276 e acs do TRPorto de 13.2.1991, proferido no proc. nº 0410001[1], de 21.10.1992, proferido no proc. nº 9230611[2] e de 27.1.1993, proferido no proc. nº 9210897[3].

4. A verificação e procedência desta nulidade insanável prejudica a apreciação das duas outras questões suscitadas também pelo recorrente, pelo que as mesmas não serão objecto de conhecimento por este tribunal de recurso.


IV

Decisão

Por todo o exposto, julgando procedente o recurso, decide-se julgar verificada a nulidade insanável do artigo 119º alínea b), do Código de Processo Penal e, consequentemente, decreta-se a nulidade do julgamento e respectiva sentença, devendo os autos ser remetidos ao Ministério Público (em primeira instância e junto do Tribunal recorrido), para efectivação do respectivo inquérito dada a inviabilidade legal da realização do julgamento ainda sob a forma de processo sumário atentos os prazos consignados no artigo 387º, do CPP.

Sem custas.

Coimbra,

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            (Luís Teixeira, Relator)

            ______________________________________

            (Calvário Antunes, Adjunto)

[1] Com o seguinte sumário:

1- A nulidade da sentença decorrente da não enumeração dos factos provados ou da não indicação das provas que tenham servido para formar a convicção do tribunal - Arts. 379, a) e 374, n. 2, do C.P.P. - esta dependente de arguição antes do encerramento da audiência.
2- Não constando da acta referente a julgamento em processo sumário que o Ministério Publico apresentou a sua acusação na audiência ou que a substituiu pela
leitura do auto-de-noticia, há-de concluir-se que o Ministério Publico não promoveu o processo, com que foi cometida a nulidade insanável prevista na al. b) do Art. 119 do C.P.P..

[2] Com o seguinte sumário:

I - Em processo sumário, não figurando nos autos qualquer acusação, nem constando da acta de audiência que se haja procedido à leitura do auto de notícia, não podendo entender-se por tal a indicação sumária dos factos que se propunham provar, que, aliás, também não foi feita, verifica-se a falta de promoção do processo pelo Ministério Público referida no artigo 48 do Código de Processo Penal.
II - Tal falta configura nulidade insanável que torna inválido o julgamento e actos posteriores, devendo o processo ser remetido para a forma comum e julgado por juiz singular.

[3] Com o seguinte sumário:

Competindo ao Ministério Público promover o processo, nos termos do artigo 48, do Código de Processo Penal, e sendo a acusação (ou a sua substituição pela leitura do auto de notícia, no caso particular do processo sumário) a forma válida ou único meio de introdução dos autos em juízo (cfr. artigos 283, 389, nº 3, e 311 e seguintes, daquele diploma), sem ela não pode haver julgamento.
Tendo-se procedido a este apesar da sua falta, deverá o mesmo ser anulado, de harmonia com o disposto nos artigos 119, alínea b), e 122, do citado Código.