Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
281/08.1TBVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: SOCIEDADES COMERCIAIS
QUOTA SOCIAL
CONTITULARIDADE
VOTAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
NULIDADE
Data do Acordão: 11/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE OURÉM – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 59º, 60º E 222º DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
Sumário: I – No caso de contitularidade de quota – i.e., de haver uma quota e vários titulares dela – os contitulares devem exercer o seu direito social, designadamente o seu direito a participar nas deliberações sociais e a exercer o acto jurídico de voto, por intermédio de apenas um deles com quem a sociedade deve contactar (artº 222º, nºs 1 , 2, 3 e 4 do CSC).
II - No caso de titularidade de quota de participação, o voto dos contitulares, diverso do representante comum, é nulo.

III - A nulidade do voto, de harmonia com a chamada prova de resistência, só se repercute na validade da deliberação dos sócios, se tiver sido determinante para essa deliberação, segundo a regra da maioria aplicável.

IV - As deliberações e os votos abusivos não são identificáveis com o abuso do direito.

V - As deliberações dos sócios que incorram em abuso do direito, em qualquer das suas figuras, são nulas e não simplesmente anuláveis.

VI - A exigência de que a vontade da sociedade de levar à apreciação de um tribunal um qualquer direito ou interesse legítimo seja exteriorizada através de uma deliberação válida não representa uma limitação arbitrária desadequada ou desrazoável do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

A ré, M…, Lda. interpôs recurso ordinário de apelação da sentença da Sra. Juiz de Direito de Círculo de Ourém, que, julgando procedente a acção declarativa, com processo comum, ordinário pelo valor, proposta por A… e R… – na qual estes pediam “e declarasse a nulidade da deliberação da exclusão dos AA., ou se assim se não considerar, anulando-se esta como todas as primeiras cinco deliberações sociais tomadas na Assembleia-Geral da sociedade do passado dia 19 de Janeiroanulou as deliberações da ré, M…, Lda., tomadas em assembleia geral realizada no dia 19 de Janeiro de 2008, nos termos da qual os autores foram destituídos do cargos de gerentes da sociedade M…, Lda. e foi deliberada a instauração de acção judicial contra os autores, com vista à sua exclusão de sócios da ré”

A recorrente pede, no recurso, que “esta sentença seja considerada nula, que se revoguem parcialmente as respostas dadas a alguns números da Base Instrutória e se substituam por outras de acordo com as conclusões e consonantes com a prova produzida nos autos, que se julguem inexistentes os vícios apontados, na douta sentença recorrida, às deliberações em crise nos presentes autos e, em consequência, se substitua decisão proferida por outra que julgue os pedidos formulados pelos AA., infundados e improcedentes”.

A apelante extraiu da sua alegação estas conclusões:

Na resposta, os recorridos, depois de alegarem a caducidade do direito à impugnação e o carácter subsidiário do pedido de anulação das cinco primeiras deliberações tomadas na assembleia-geral de 19 de Janeiro de 2008, e de notarem que, no tocante à impugnação da decisão da matéria de facto, o recurso deve ser rejeitado, por a recorrente não ter cumprido o dever de indicar as passagens da gravação em que se funda nem ter procedido à sua transcrição, concluíram, enfim, pela improcedência dele.

A Sra. Juíza de Direito, depois de observar que o pedido de anulação das cinco primeiras deliberações era subsidiário do pedido de declaração de nulidade da deliberação que teve por objecto a destituição dos recorridos do cargo de gerente e a proposição de acção judicial com vista à sua exclusão, concluiu, porém, pela verificação da nulidade, por omissão de pronúncia, da sua sentença, reclamada pela recorrente, e procedeu à sua integração, tendo impresso, à parte dispositiva, este conteúdo: Termos em que julgo a presente acção provada e procedente e, em consequência, anulo as deliberações da ré M…, Lda., tomadas em assembleia-geral extraordinária realizada no dia 19 de Janeiro de 2008, que são as seguintes:

1º Análise das conclusões do inquérito com vista ao apuramento da verdade, e do relatório da auditoria que a actual gerência executiva solicitou face às denúncias que chegaram ao conhecimento de alguns gerentes.

2º Destituição, com justa causa, dos gerentes A… e R...

3º Deliberação sobre a exclusão judicial dos sócios A… e R…, incluindo a nomeação de representante especial da sociedade para esse efeito e a escolha de advogado para patrocinar a sociedade na respectiva acção judicial.

4º Deliberação sobre a instauração de acção judicial contra o ex-sócio S… e contra os sócios A… e R… com vista ao ressarcimento da sociedade em virtude dos actos lesivos e por estes praticados e nomeação do respectivo advogado para patrocinar a sociedade.

5º Deliberação sobre outras acções a tomar pela Sociedade como consequência dos assuntos tratados nos pontos anteriores e escolha de advogado que deverá representar a sociedade nas eventuais diligências judiciais.

O Relator, por decisão expressa, julgou o recurso tempestivo e admitiu-o.

2. Factos provados.

...

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente.

Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

Como é comum, a recorrente assaca à decisão impugnada o vício da nulidade.

Valor negativo, que no seu ver, tem esta causa precisa: a omissão de pronúncia.

Segundo a impugnante, a sentença não se teria pronunciado sobre todos os pedidos formulados pelos autores, mais exactamente quanto ao problema da invalidade das deliberações que tiveram por objecto os pontos 1, 4 e 5 da ordem de trabalhos da assembleia de sócios na qual foram aprovadas.

Os recorridos, na resposta ao recurso, obtemperaram, porém, que o pedido de anulação de todas as cinco primeiras deliberações tinha uma feição puramente subsidiária e que o silêncio da sentença quanto às deliberações diversas daqueles que anulou, devidamente interpretado, não tinha outro significado senão que tais deliberações não deveriam ser anuladas.

Todavia, a Sra. Juíza de Direito, chamada a pronunciar-se sobre a arguição, depois de observar que os recorridos tinham formulado dois pedidos – um, de declaração de nulidade da deliberação de destituição daqueles do cargo de gerente e de instauração, contra eles, de acção com visa à sua exclusão de sócios da apelante, e outro, de anulação das primeiras cinco deliberações tomadas naquela assembleia –, notou que este último pedido tinha natureza subsidiária, pelo que só teria de ser apreciado se o primeiro não procedesse – mas concluiu, afinal, perplexamente, que se verificava a nulidade acusada, e integrou a sentença impugnada, anulando também as deliberações relativas aos pontos 1º, 4º e 5º da ordem de trabalhos da assembleia de sócios realizada no dia 19 de Janeiro de 2008.

A perplexidade reside nisto: depois de argumentar com a ausência do dever de decidir, por força do seu carácter subsidiário, o último dos pedidos, a decisão de integração terminou por concluir que, afinal, se verificava, relativamente a ele, a omissão de pronúncia e, correspondentemente, a nulidade acusada.

Diz-se subsidiário o pedido quando é apresentado ao tribunal para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior (artº 469 nº 1 do CPC).

O pedido subsidiário pressupõe, portanto, um outro a que bem pode chamar-se de principal ou primário: o autor começa por formular uma certa pretensão com um determinado fundamento; mas porque não está seguro que essa pretensão venha a encontrar acolhimento pelo tribunal, deduz subsidiariamente uma outra, mais sólida, para ser considerada pelo tribunal no caso de não vingar a primeira.

Por força do carácter subsidiário, o tribunal só deve conhecer do pedido correspondente, caso julgue improcedente o pedido primário: se depois de julgar procedente o pedido principal, a sentença conhece do pedido subsidiário e igualmente o julga procedente, tem-se por certo que essa sentença é nula[1] – por excesso de pronúncia, dado que, neste caso, é patente que o tribunal conheceu de questão de que não devia tomar conhecimento (artºs 264 nº 1, 664, 2ª parte, e 668 nº 1 d), 2ª parte, do CPC).

Portanto, a decisão de integração da sentença final da causa é intrinsecamente contraditória, visto que depois de assinalar – com correcção - que o pedido de anulação das cinco primeiras deliberações era subsidiário do pedido da declaração da invalidade da deliberação de destituição dos autores e de exclusão destes do universo societário – e portanto, que, por força da procedência deste último – não estava vinculada ao dever de apreciar o primeiro – concluiu, incoerentemente, que tinha o dever de pronunciar sobre o pedido subsidiário e, julgando verificada a nulidade reclamada, pronunciou-se sobre tal pedido, julgando-o procedente.

Seja como for, exacto é, em todo o caso, que o decisor da 1ª instância supriu a nulidade assacada à sentença final da causa e procedeu à sua reparação.

Como a reclamação foi atendida, a nova decisão integrou-se na primitiva e dessa integração resulta uma inevitável repercussão sobre o recurso interposto, ainda que pela própria parte que requereu o suprimento da nulidade: o recurso passa a ter por objecto a sentença, tal como se apresenta agora, em consequência da integração da nova decisão na primitiva (artºs 670 nº 1, in fine, e nº 3, 1ª parte, do CPC).

E essa modificação do objecto do recurso é automática, não sendo mesmo necessário que a recorrente faça declaração alguma: desde que interpôs o recurso sem qualquer limitação, o recurso abrangerá a nova decisão em tudo o que lhe é desfavorável.

Todavia, a decisão de reparação da nulidade da decisão recorrida deixa, evidentemente, prejudicado o conhecimento do fundamento correspondente do recurso (artº 660 nº 2 do CPC).

Nestas condições, tendo em conta os parâmetros da competência decisória definidos pelo conteúdo da decisão recorrida e das alegações de ambas as partes, as questões controversas que importa resolver são as de saber se:

a) O recurso, no segmento relativo à impugnação da decisão da questão de facto deve ser rejeitado, com fundamento na insatisfação, pela recorrente, do ónus relativo a essa impugnação;

b) As deliberações tomadas na assembleia de sócios da recorrente, no dia 19 de Janeiro de 2008, devem ser anuladas com fundamento violação, no exercício do direito de voto, das regras relativas à contitularidade da quota, e no abuso do direito.

A resolução destes problemas vincula, naturalmente, ao exame, ainda que leve, do ónus de impugnação da decisão da matéria de facto a que lei vincula a recorrente, das regras relativas ao exercício dos direitos inerentes à quota indivisa e dos pressupostos do abuso de direito.

No julgamento do recurso importa, no entanto, ter presente o seguinte:

No direito português, a função do recurso ordinário é a reapreciação da decisão recorrida – e não um novo julgamento da causa.

Desta circunstância decorre, além do mais, a proibição da reformatio in peius.

Esta proibição traduz-se no seguinte: a decisão do tribunal de recurso não pode ser mais desfavorável ao recorrente do que a decisão impugnada (artº 684 nº 4 doo CPC).

A violação da proibição, pressupõe que o tribunal de recurso conhece de matéria que não podia apreciar, porque excede o âmbito da sua competência decisória: o acórdão do tribunal de recurso que desacate aquela proibição é nulo por excesso de pronúncia (artºs 668 nº 1 d), 2ª parte, 716 nº 1, 732, 752 nº 3 e 762 nº 1 do CPC).

Note-se que a proibição se mantém, mesmo quando o tribunal de recurso tem de apreciar matéria de conhecimento oficioso.

O Código das Sociedades Comerciais – CSC - pôs fim à velha controvérsia sobre os valores negativos das deliberações sociais, admitindo expressamente a nulidade destas, que parte da doutrina, sobretudo a mais antiga, repudiava (artº 56).

De harmonia com aquele Código, os valores negativos das deliberações sociais limitam-se à nulidade, à anulabilidade e à ineficácia – embora seja de admitir uma outra categoria de valor negativo: a inexistência (artºs 55, 56 e 58).

Dada a maior severidade de regime da nulidade – patente, por exemplo, na impossibilidade de renovação da deliberação nula por vício de substância – se, por exemplo, o tribunal recorrido concluiu pela anulabilidade da deliberação e se o tribunal de recurso entender que o caso é não de anulabilidade mas de nulidade – de que, em regra, conhece oficiosamente, não lhe é lícito, apesar disso, sob pena de violação da proibição da reformatio in peius, declarar tal nulidade (artº 286 do Código Civil e 62 do CSC).

3.2. Incumprimento pela recorrente do ónus de impugnação da matéria de facto:

O recurso de apelação, dado o seu carácter global, pode ter por fundamento – e até por único fundamento – um error in iudicando da matéria de facto, designadamente por erro na aferição ou na valoração das provas.

Todavia, quando a impugnação se dirige à decisão da questão de facto, exige-se que o recorrente se livre do ónus de impugnação do julgamento dessa matéria a que a lei de processo é terminante em vinculá-lo.

Realmente, sempre que a impugnação tem por objecto a decisão da matéria de facto, o recorrente deve especificar, sob a pena grave de rejeição do recurso, quais os pontos concretos que considera incorrectamente julgados e quais os meios de prova, constantes do processo ou do registo da gravação nele realizada, que impõem uma decisão diversa sobre esses pontos (artº 685-B nº 1 a) b) do CPC).

Neste último caso, quando os meios de prova invocados como fundamento no erro na apreciação da prova tenham sido gravados, e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, proceder à indicação das passagens da gravação em que se funda; não sendo possível, por força dos meios técnicos utilizados para a gravação, a identificação precisa e separada dos depoimentos, o recorrente deve proceder à transcrição dos depoimentos em que se funda (685-B nºs 2 e 4 do CPC).

Na espécie sujeita, a impugnação do julgamento da matéria de facto empreendida pela recorrente – como prontamente notaram os recorridos na sua resposta ao recurso - é, ao menos num ponto, inteiramente contrastante com o conteúdo que se deve assinalar ao ónus que a lei é terminante em fazer recair sobre ela.

Como decorre da acta da audiência de discussão e julgamento os actos de prova nela praticados oralmente foram objecto de registo sonoro, através do sistema habilus media audio, sistema de registo que, consabidamente, permite a identificação precisa e separada dos depoimentos.

A recorrente indica os meios de prova que, no seu ver, impunham, para alguns pontos da matéria de facto, uma decisão diversa daquela que foi encontrada pelo tribunal da audiência.

Mas é também indiscutível que a recorrente não indica as passagens da gravação em que se funda nem procedeu à sua transcrição.

De duas, uma: ou o sistema técnico utilizado para o registo da prova pessoal produzida na audiência permite a identificação precisa e separada dos depoimentos ou não; no primeiro caso, incumbia à recorrente a indicação das passagens do registo sonoro em que fundamenta a impugnação da matéria de facto; no segundo, competia-lhe proceder à respectiva transcrição.

A recorrente não fez nem uma coisa nem outra.

Tudo vincula, portanto, à conclusão da impontualidade do cumprimento, pela recorrente, dos ónus de impugnação do julgamento da matéria de facto, no tocante à indicação das passagens da gravação em que se funda ou da sua transcrição.

A lei é terminante na declaração de que o incumprimento pelo recorrente do referido ónus importa a rejeição, nessa parte, do recurso.

Pode, porém, perguntar-se se, face ao não cumprimento daquele especial ónus de impugnação, a rejeição do recurso é irremissível ou se não deve, neste domínio, actuar-se o princípio da cooperação intersubjectiva - na vertente do dever prevenção, que vincula o tribunal - e, consequentemente, preceder a decisão de rejeição do recurso, na parte afectada, por um despacho de convite, dirigido á apelante, de aperfeiçoamento da sua alegação, evitando, assim, que o êxito do recurso seja, no segmento referido à decisão da questão de facto, irremediavelmente comprometido por uso inadequado do processo.

A letra da lei inculca nitidamente uma resposta negativa.

De outro aspecto, o convite ao aperfeiçoamento da alegação, além de resolver num novo alargamento do prazo de oferecimento da alegação, contraria abertamente a razão que levou a lei a adstringir às partes àquele ónus: a de desmotivar impugnações temerárias e infundadas da decisão da matéria de facto.

Deve, por isso, concluir-se que não há, neste plano, espaço, para um tal despacho de convite ao aperfeiçoamento das alegações[2].

Nestas condições, é meramente consequencial a rejeição, na parte afectada, do recurso[3].

A matéria de facto sobre a qual há-de ser exercida a tarefa da reponderação da solução de direito encontrada pela sentença impugnada para a situação jurídica objecto da causa é, por isso, aquela que foi julgada provada pela instância de que provém o recurso.

Resta, contudo, saber se os factos fornecidos pelo processo – com consideração do princípio da aquisição processual e da análise do cumprimento do ónus da prova – permitem ou não concluir pela invalidade das deliberações dos sócios impugnadas e, portanto, pelo proferimento de uma decisão favorável aos recorridos ou antes á recorrente.

Para proferir a declaração constitutiva de anulação das deliberações dos sócios impugnadas, a sentença apelada socorreu-se, de forma concorrente, de dois fundamentos diferenciados: o abuso do direito, na modalidade de tu quoque; a violação, no exercício do direito de voto, das regras relativas à contitularidade de quota.

A recorrente dissente deste julgamento, salientando, de um aspecto, que de abuso no exercício do direito é coisa de que não pode falar-se e, de outro, que o voto conjunto e de sentido uniforme dos contitulares de quota não constitui causa de anulabilidade da deliberação dos sócios, e que pelo menos o voto do representante comum, que também é contitular, é válido e, em qualquer caso, que as deliberações sempre seria aprovadas com os votos dos sócios, membros da família M…; complementarmente, observa que as deliberações que tiverem por objecto os pontos 3, 4 e 5 da ordem de trabalhos da assembleia, respeitam e têm por finalidade a proposição de acções judiciais e a necessária designação de representação social, não sendo este processo o lugar adequado se decidir se esses vícios têm fundamento, apreciação que está reservada para o processo judicial que os tenha por objecto, não lhe podendo ser limitado ou cerceado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos, por se tratar de matéria constitucionalmente protegida.

Nestas condições está indicado que se examinem as regras de exercício do direito de voto no caso de contitularidade de quota, os pressupostos do abuso do direito, enquanto causa de invalidade das deliberações dos sócios e, por fim, o conteúdo do princípio constitucional do acesso ao direito.

3.3. Exercício do direito de voto no caso de contitularidade de quota:

No caso de contitularidade de quota – i.e., de haver uma quota e vários titulares dela – os contitulares devem exercer o seu direito social, designadamente o seu direito a participar nas deliberações sociais e a exercer o acto jurídico de voto, por intermédio de apenas um deles com quem a sociedade deve contactar (artº 222 nºs 1 e 2 do CSC).

O objecto da contitularidade – note-se – é a quota de participação e não a quota de capital.

Desde que a lei fixa, como regra, o exercício dos direitos pelo representante dos contitulares – como, por exemplo, o direito de voto – pode dar-se o caso de, no momento em que o direito deve ser exercido, faltar, temporária ou definitivamente, o representante comum.

Faltando, temporária ou definitivamente, o representante comum dos contitulares no momento em que o voto deve ser exercido, permite-se outro processo ou modo de exercício, pelos contitulares, daquele direito: apresentando-se mais que um titular para exercer o direito de voto e não havendo acordo entre eles sobre o seu sentido, prevalecerá a opinião da maioria dos contitulares presentes, desde que representem pelo menos metade do valor da quota e para o caso não seja necessário o consentimento de todos os contitulares (artº 222 nº 4 do CSC).

Mesmo nesta hipótese excepcional, a lei não deve ser interpretada no sentido de que o direito de voto pode ser exercido por um só contitular ou por um número deles que não represente, pelo menos, metade do valor total da quota.

Claramente não se adoptou, embora excepcionalmente, um regime de exercício individual do direito de voto, temperado pela exigência de certa maioria quando haja discordância entre os que se apresentaram a exercer aquele direito: adoptou-se antes um sistema de representação conjunta, por uma certa maioria de contitulares, o que é conforme com o propósito de remediar a falta de representante comum, dado que os contitulares só deixarão de exercer o direito de voto se, por motivos que lhe são imputáveis, não aproveitarem aquele remédio[4].

O representante comum dos contitulares pode exercer, perante a sociedade, todos os poderes inerentes à quota indivisa, só não podendo praticar actos que importem a extinção, alienação ou oneração da quota, aumento de obrigações, renúncia ou redução dos direitos dos sócios (artº 233 nºs 5 e 6 do CSC).

Fora dos casos excepcionais de impedimento, temporário ou definitivo do representante comum, ou de matéria que exceda a sua competência, a regra é, portanto, esta: os contitulares de uma quota devem exercer os direitos a ela inerentes através de um representante comum.

Lê-se na sentença impugnada que esta regra é imperativa – o que é exacto.

Mas nesse caso, sendo injuntiva, a sua violação pelas deliberações impugnadas daria lugar, na lógica da decisão recorrida, à nulidade e não – como se escreveu naquela sentença - ao vício da anulabilidade (artºs 56 nº 1 d), in fine, e 58 nº 1 a) do CSC).

Seja como for, na espécie do recurso, uma das quotas de participação na recorrente está indivisa e, portanto, sujeita a uma situação de contitularidade: a de …, de que são contitulares …, que têm como representante comum o primeiro deles - ...

E na tomada das deliberações impugnadas o direito de voto inerente à quota indivisa foi exercido não pelo representante comum – mas por este e por cada um dos demais contitulares.

Não sendo, comprovadamente, caso de impedimento do representante comum nem de assunto que excedesse a sua competência representativa, é claro a violação da norma injuntiva apontada.

Todavia, se por força dessa ofensa, se tem por segura a nulidade dos votos dos contitulares diversos daquele que reúne também a qualidade de representante comum, igualmente se tem por exacto que dessa nulidade não decorre, inexoravelmente, a invalidade das deliberações impugnadas.

As sociedades formam a sua vontade funcional através das deliberações sociais.

As deliberações sociais são actos muito peculiares, dado que, por um lado, são actos dos sócios e, por outro, são actos da sociedade.

Enquanto acto dos sócios a deliberação é um acto colectivo formado por uma pluralidade de actos jurídicos unitários – os votos – que são imputáveis a cada um dos sócios; como acto da sociedade, a deliberação é, no seu todo, um acto jurídico unitário, embora complexo, imputável à sociedade, ela mesma.

Na base da deliberação, está, necessariamente, uma votação.

Na situação mais comum, i.e., de pluralidade de sócios, na origem da deliberação está uma pluralidade de votos.

O voto é uma declaração e sendo uma declaração é também, por si, um negócio jurídico.

Está, por isso, inteiramente sujeito aos vícios que afectam os negócios jurídicos[5].

Assim, por exemplo, o voto que seja emitido em contravenção de uma norma jurídica injuntiva é nulo (artº 294 do Código Civil).

Se alguém for ilegalmente admitido a emitir voto, e o emitiu, a deliberação deve, em princípio, ser anulada: há um vício que não consiste na falta de maioria – mas sim na emissão ilegal de um voto.

Mas para se determinar a exacta repercussão do vício do voto sobre a validade da deliberação social, há sempre que recorrer à chamada prova de resistência.

Quando o voto é nulo, por violação dalguma disposição legal, o problema que se põe é o da influência que o voto nulo tenha tido para a maioria dos sócios que aprovou a proposta e, por isso, ditou a deliberação, pois bem pode suceder que, descontados os votos nulos, ainda assim se mantenha a maioria necessária para a tomada da deliberação.

A resposta exacta a este problema é esta: o vício do voto é relevante – mas só põe em causa a deliberação se o voto for determinante para essa mesma deliberação, segundo a regra da maioria aplicável.

Esta é a comummente chamada prova de resistência, que no nosso ordenamento surge disposta na lei civil geral para os votos em situação de conflito e, na lei societária, para os denominados votos abusivos (artº 176 nº 2 do Código Civil e 58 nº 1 a), in fine, do CSC).

Um tal regime é, patentemente, simples emanação do princípio geral de aproveitamento do acto jurídico, traduzido pela regra utile per inutile non vitiatur: é de elementar bom senso – sublinha-se – não invalidar uma deliberação por serem nulos os votos inúteis para a deliberação a tomar[6].

Nestas condições, no caso que constitui o universo das nossas preocupações, tudo está em saber se descontados os votos nulos, as deliberações impugnadas resistem ou não.

No primeiro caso, as deliberações mantêm-se, por a maioria em que se fundam não se mostrar prejudicada; no segundo, serão anuladas.

E a resposta que se tem por certa é a da resistência das deliberações contestadas.

Por duas ordens de motivos, de resto.

Em primeiro lugar, porque, pelas razões já apontadas, há apenas que ter por nulos – e, portanto, para descontar - os votos dos contitulares da quota indivisa diversos do contitular que reúne também em si a qualidade de representante comum, dado que só o voto daqueles e já não o deste é desconforme com a norma injuntiva relativa ao exercício do direito de voto em caso de contitularidade de quota.

E sendo o voto deste último inteiramente válido, segue-se que as deliberações teriam, ainda assim, sido aprovadas por um número de votos que excede a maioria absoluta, i.e., a expressão aritmética da metade e, portanto, pela maioria exigível para que fossem tomadas[7] (artº 250 nº 3 do CSC).

Em segundo lugar, mesmo que também o voto emitido pelo representante comum – e contitular – se devesse ter por nulo, ainda assim – dado o impedimento de voto dos recorridos – as deliberações contestadas obteriam a maioria exigida dos votos emitidos para a sua aprovação.

A recorrente tem, pois, razão quando sustenta na sua alegação que, por este fundamento, não há realmente razão para anular as deliberações impugnadas e, portanto, que, neste ponto, a decisão recorrida não é juridicamente conforme.

Simplesmente, a sentença impugnada adiantou, para concluir pela invalidade – rectius pela anulabilidade – das deliberações impugnadas, um outro fundamento - que na sua economia surge claramente como principal ou determinante: o abuso do direito.

               

3.4. Pressupostos do abuso do direito como causa de invalidade das deliberações dos sócios.

Assim como tem o poder de participar na formação das deliberações sociais, o sócio dispõe da faculdade de as impugnar e de pedir ao tribunal que, conforme o vício de que se encontrem feridas, as anule ou declare a sua nulidade ou inexistência (artºs 59 e 60 nº 1 do CSC).

A lei comina com o vício da anulabilidade, designadamente as deliberações que violem disposições da lei, quando ao caso não caiba nulidade, e do contrato de sociedade, e as que sejam apropriadas a satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do direito de voto, vantagens especiais para si ou terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos (artº 58 nº 1 a) e b) do CSC).

Nas deliberações que acarretam vantagens especiais para o sócio ou para terceiros, em detrimento da sociedade ou de outros sócios, o caso é, nitidamente, de desfuncionalização do voto – desde que orientada para uma finalidade axiologicamente negativa; nas deliberações cujo escopo seja simplesmente prejudicar a sociedade ou outros sócios, a causa de invalidade radica no seu carácter puramente emulativo.

Trata-se, em qualquer das situações, de deliberações abusivas, que comportam duas dimensões de ilicitude: a que atinge a deliberação em si mesma; a que inquina os votos abusivos.

Como a lei considera válida a deliberação se se mantiver, desconsiderados os votos abusivos, a maioria necessária para a aprovação, torna-se claro que é o vício do voto que vicia a deliberação: o vício incide primordialmente sobre o voto e só reflexamente sobre a deliberação[8].

Todavia, o exercício do direito de voto, pode, como em geral qualquer situação jurídica, incorrer no abuso do direito, em qualquer das modalidades das situações abusivas que compreende, designadamente, o tu quoque (artº 334 do Código Civil).

Resta, porém, saber como se relacionam entre si a categoria das deliberações abusivas e o instituto do abuso do direito.

Na jurisprudência é comum a metódica da transposição para o âmbito material das deliberações dos sócios do instituto do abuso do direito[9], o que leva a doutrina a observar que se verifica uma paulatina colonização dos votos abusivos pelo abuso de direito[10].

Não parece, no entanto, que as deliberações abusivas e os votos abusivos se devam identificar ou sequer ser referidas ao abuso do direito.

Nesta perspectiva, às deliberações e aos votos abusivos é aplicável o artº 58 nº 1 b) do Código das Sociedades Comerciais; às deliberações que incorram, nos termos gerais, no abuso do direito serão anuláveis por aplicação aplicável a alínea a) do mesmo preceito, de harmonia com a qual são anuláveis as deliberações que, designadamente, violem disposições da lei[11].

Trata-se, de resto, da conclusão a que chegou a sentença impugnada: as deliberações contestadas são anuláveis por terem incorrido em abuso do direito.

Mas há boas razões para divergir.

A lei fere com o vício da nulidade as deliberações dos sócios cujo conteúdo ofenda, directa ou indirectamente, preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios, i.e., preceitos legais injuntivos (artº 56 nº 1 d), in fine, do CSC).

Nos termos gerais, uma norma é imperativa ou injuntiva, designadamente quando concretize princípios injuntivos.

Temos por certo que a cláusula geral do abuso de direito é integrada por um conjunto de princípios injuntivos e portanto, que a norma que a contém – o artº 334 do Código Civil – é, também ela injuntiva.

Não faria sentido que violada esta norma ou qualquer dos princípios injuntivos que contém, se seguisse a anulabilidade: o caso é nitidamente de nulidade (artº 56 nº 1 d), in fine, do CSC)[12].

Seja como for, pode ter-se por adquirido, à certeza, que as deliberações dos sócios são inválidas sempre que incorram em abuso do direito.

Apesar de o abuso do direito ser de conhecimento oficioso[13], o mais distraído dos operadores ou observadores judiciários não pode deixar de notar que quase não há processo em que as partes, per abundantiam, ou á míngua de outros argumentos, não invoquem o abuso do direito.

Por contraste – e por certo também em consequência da erosão que o instituto sofre com a sua indevida convocação - há casos em que tal arguição de todo se justificaria, mas em que, inexplicavelmente, se omite a sua invocação.

O abuso do direito deve ser usado sempre que necessário.

O que não deve é ser banalizado, exigindo-se sempre uma ponderação cuidadosa dos seus requisitos e, portanto, a correcção, no caso concreto, da sua intervenção, sobretudo quando esta conduza a uma solução contrária à lei estrita[14].

De outro aspecto, o abuso do direito, exprimindo um nível último e irrecusável de funcionalização dos direitos à realização dos interesses que justificam o seu reconhecimento, é um instituto de carácter poliédrico e multifacetado como logo se depreende a partir da tipologia dos actos abusivos que se incluem na categoria e com os quais se procura densificar a indeterminação do conceito correspondente.

Assim, é reconduzido ao abuso do direito, como subtipo de acto abusivo, o tu quoque, que assenta neste pensamento angular: aquele que viole uma norma jurídica não pode, depois, prevalecer-se da situação daí decorrente, ou exercer a posição jurídica que violou, ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada.

Nitidamente, visa-se impedir que alguém que tenha adoptado uma conduta ilícita, tire partido dessa situação, prevalecendo-se dela para impor a outrem as consequências daí resultantes[15].

A sentença apelada foi terminante em declarar que o do direito de voto conducente à tomada das deliberações impugnadas foi exercido em abuso, na modalidade do tu quoque.

Se bem entendemos o seu pensamento, o carácter abusivo daquelas deliberações radicaria, em duas causas diferenciadas.

Por um lado, na circunstância de os fundamentos alegados nas deliberações impugnadas para destituir os recorridos da gerência e para os excluir da sociedade corresponderam a práticas instituídas há décadas, no seio da sociedade, por todos os sócios seguidas quando exerceram, quando exerceram a gerência da ré e por todas reconhecidas e aceites.

E que práticas são essas?

Essas práticas consistem – na linguagem técnica do relatório da auditoria às contas da recorrente, elaborado pela …, para o qual remetem as respostas dadas aos pontos 10 e 11 da base instrutória – na existência de receitas de vendas, e de prestações de serviços, no valor de largos milhares de euros – não reflectidas contabilisticamente.

Realmente, como também nota a sentença impugnada – e de resto a recorrente, sem qualquer pejo ou decoro, admitiu no articulado de contestação – existiu, durante anos, uma contabilidade paralela, com o dolo preciso de subtrair fraudulentamente os resultados de exercício ao pagamento de obrigações tributárias e de dividir pelos sócios as quantias ilicitamente subtraídas à administração fiscal.

Por outro lado, sob a aparência de violações, pelos recorridos dos deveres de lealdade, correcção e eficiência, do que se tratou foi de encontrar um pretexto para os excluir do universo societário, de impor, contra a vontade dos sócios detentores de metade do capital social da recorrente a entrada da sociedade J…, SA e, em última extremidade, inviabilizar o direito de preferência do recorrido, A…, na aquisição da quota, naquele capital, cedida àquela sociedade anónima.

Abstraindo da dificuldade, se não mesmo da impossibilidade, de reconduzir esta motivação das deliberações impugnadas aos quadros do tu quoque, o que logo fere à atenção, relativamente a este ponto, é a circunstância de não encontrar nos factos que devem ter-se por provados qualquer eco ou tradução.

Realmente, a matéria de facto disponível limita-se, neste particular, aos factos relativos à cessão da quota indivisa a J…, SA, ao desconhecimento, pela recorrente e pelos seus sócios, da cessão, à deliberação de recusa do consentimento na transmissão e às acções tendentes ao reconhecimento da eficácia dessa transmissão e ao reconhecimento do direito de preferir na cessão.

Dito doutro modo: os factos apurados na instância recorrida são insuficientes para que se conclua que as deliberações dos sócios consideradas se deve ter por abusivas, por terem sido iluminadas ou ordenadas pelo propósito último de permitir a entrada, no capital social da recorrente, de uma sociedade gestora de participações sociais e de prejudicar, definitiva e irremediavelmente o direito de preferência do recorrido A… na cessão, àquela sociedade, da quota indivisa no capital social da apelante.

                Neste ponto, acompanha-se a alegação da recorrente.

Mas, em contrapartida, já se adere, sem reserva, à sentença impugnada quando argumenta, para concluir pelo exercício abusivo do direito de voto, que também os sócios que votaram as deliberações são co-autores dos factos ilícitos – e mesmo criminosos – em que aquelas se fundamentam.

                Em vez de uma contabilidade organizada sob os princípios regulativos da fidelidade, inteligibilidade, relevância, fiabilidade e comparabilidade, de modo a reflectir, em cada momento, designadamente para efeitos fiscais, uma imagem verdadeira e apropriada da situação financeira da apelante, esta, dolosamente, recorreu, sistematicamente, a uma contabilidade paralela com o propósito último e declarado da sua subtracção ao cumprimento das respectivas obrigações fiscais e de repartição das quantias fraudulentamente subtraídas ao Estado pelos sócios, enriquecendo, assim, ilegitimamente o seu património dos últimos.

                Actos ilícitos – diz-nos eloquentemente a matéria de facto – que eram prática corrente de todos os sócios e sempre foram encaradas como normais na vida interna da sociedade.

                De resto, o caso é tanto mais censurável quanto è certo que o motivo de descontentamento dos sócios que votaram as deliberações impugnadas relativamente à gestão da recorrente – como linearmente decorre da matéria de facto julgada provada - reside na circunstância de a modificação do modo de organização da contabilidade ter provocado um aumento de custos, particularmente dos custos fiscais.

                Nestas condições, o voto subjacente à tomada das deliberações impugnadas, foi exercido em nítido abuso do direito, na modalidade do tu quoque. Aquelas deliberações são, por esse motivo, não apenas anuláveis – mas verdadeiramente nulas.

                Dado, porém, que apenas a recorrente impugnou a decisão recorrida – que concluiu pela anulabilidade – e, por força da proibição da reformatio in peius, a decisão do tribunal superior não lhe pode ser mais desfavorável de que a decisão recorrida, não é licito declarar tal nulidade.

Neste caso – se outra circunstância a isso não obstar – esta Relação deve limitar-se a julgar o recurso improcedente.

                Objecta, porém, a recorrente que, tendo as deliberações impugnadas por objecto a proposição de acções, designadamente com a finalidade de obter a exclusão judicial dos recorridos e de actuar contra estes e contra o ex-sócio S… a responsabilidade pelos danos que estes lhe causaram, vê coarctado o seu direito de acesso aos tribunais.

Não é patente, em face da alegação, qual é o exacto obstáculo que a impede de aceder aos tribunais.

Mas esse obstáculo só pode ser um: a invalidade das deliberações impugnadas.

É, naturalmente, legítima a preocupação da recorrente com a tutela dos seus direitos que – como prodigamente decorre da matéria de facto apurada - é inversamente proporcional ao seu desvelo no exercício dos seus deveres, designadamente fiscais.

Como quer que seja, esta alegação não toma em boa e devida conta o conteúdo do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.

3.5. Conteúdo do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.

Não sofre a mínima dúvida a atribuição, na Constituição Portuguesa, de um direito à jurisdição ou de acesso à justiça, que se desdobra na garantia de acesso aos tribunais e de uma garantia de acesso ao próprio direito (artº 20 nº 1)[16].

Este direito que constitui, de resto, simples decorrência do estado social de Direito também constitucionalmente consagrado, garante, de forma universal e geral, o direito de levar a sua causa à apreciação de um tribunal (artº 2 da CRP).

O direito de acesso ao direito ao direito e à tutela jurisdicional efectiva e o direito ao processo equitativo estão largamente dependentes de conformação através da lei e da disponibilização de processos garantidores de uma tutela judicial efectiva, dotados de uma estrutura informada pelo princípio da equitatividade.

Em qualquer caso, o direito à tutela jurisdicional efectiva – que substituiu o direito de acesso aos tribunais colocado na epígrafe do texto anterior da Constituição, vincando-se assim que se visa não apenas garantir o acesso aos tribunais mas sim e principalmente possibilitar a defesa de direitos e interesses legalmente protegidos através de um acto de jurisdictio.

Como quer que seja ninguém pode ser privado de levar a sua causa – quer ela se relacione com direitos fundamentais, quer, simplesmente com a defesa de um direito ou interesse legítimo – à apreciação de um tribunal, ao menos como último recurso.

O direito à tutela jurisdicional efectiva, nas várias dimensões em que é decomponível, não se identifica com o direito a uma decisão favorável, antes se reconduz, muito simplesmente, ao direito de obter uma decisão fundada no direito sempre que se cumpram os requisitos legalmente exigidos.

Aquele direito não é, portanto, conflituante, por exemplo, com a exigência do cumprimento de ónus processuais e com a observância de deveres de diligência: o direito à tutela jurisdicional efectiva só não pode ficar comprometido com a imposição daqueles ónus e deste deveres quando estes se mostrem desnecessários, desadequados e desproporcionados[17].

Apesar de ser uma garantia de natureza universal, o direito de acesso aos tribunais não é incompatível, por exemplo, com a exigência de que a vontade de aceder à tutela jurisdicional se tenha formado validamente.

O que o princípio exclui é, simplesmente, o preenchimento de qualquer condição ou pressuposto que seja arbitrariamente desadequado, que dificulte irrazoavelmente a acção judicial.

Como se notou já, as sociedades formam a sua vontade através de deliberações sociais.

Como acto da sociedade, a deliberação é um acto unitário complexo que integra os votos dos sócios e que se forma quando seja alcançada a maioria suficiente; quando essa maioria não seja obtida, há uma ausência ou recusa de deliberação, comummente designada como deliberação negativa.

A deliberação social, enquanto acto da sociedade, tem natureza negocial: a sua força jurídica decorre da autonomia privada e nela é particularmente relevante a vontade negocial.

Para aceder aos tribunais para tutela dos direitos ou das situações jurídicas subjectivas de que se julga titular, exige-se, por parte da recorrente, um acto de vontade que se forma através de uma deliberação social.

Mas um acto de vontade – e correspondentemente uma deliberação – que sejam válidos.

Não é o nosso caso.

Como decorre das considerações expostas, as deliberações impugnadas – todas as deliberações impugnadas - por haverem incorrido em abuso do direito, devem ter-se por inválidas.

E como a exigência de que a vontade da recorrente de recorrer à tutela jurisdicional se exprima por uma deliberação válida não é arbitrária nem dificulta, de forma irrazoável a acção judicial, não há a mínima razão para que a recorrente se queixe de qualquer restrição ou limitação ao exercício do seu direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.

O objecto desta acção e do recurso não é, evidentemente, constituído pelo direito ou pelo interesse legítimo que a recorrente pretendia, com algumas das deliberações impugnadas, levar ulteriormente à apreciação de um tribunal – mas pela invalidade daqueles deliberações através das quais exteriorizou a vontade de recorrer à via judicial.

E foi apenas sobre a questão da validade das deliberações impugnadas – e não também aquele outro direito ou interesse legítimo - que a sentença impugnada estatuiu.

O direito da recorrente de levar à apreciação judicial aquele direito ou interesse legítimo permanece, por isso, inteiramente incólume e a recorrente poderá exercê-lo, em toda a sua extensão, desde que para isso exprima a vontade correspondente – através de uma deliberação válida.

Todas as contas as feitas, a conclusão a tirar é, portanto, que o recurso não deve proceder.

Expostos todos os argumentos, afirma-se, em síntese apertada, que:

a) No caso de titularidade de quota de participação, o voto dos contitulares, diverso do representante comum, é nulo;

b) A nulidade do voto, de harmonia com a chamada prova de resistência, só se repercute na validade da deliberação dos sócios, se tiver sido determinante para essa deliberação, segundo a regra da maioria aplicável;

c) As deliberações e os votos abusivos não são identificáveis com o abuso do direito;

d) As deliberações dos sócios que incorram em abuso do direito, em qualquer das suas figuras, são nulas e não simplesmente anuláveis;

e) A exigência de que a vontade da sociedade de levar à apreciação de um tribunal um qualquer direito ou interesse legítimo seja exteriorizada através de uma deliberação válida não representa uma limitação arbitrária desadequada ou desrazoável do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva.

A recorrente sucumbe no recurso. Deverá, por isso, satisfazer as custas dele (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

Dada a pouca complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP (artº 6 nº 2 deste diploma legal e 8 nº 1 e 9 nº 1 da Lei nº 7/2012, de 13 de Fevereiro).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos da Tabela I-B integrante do RCP.

                                                                                                             

                                                                                                              Henrique Antunes (Relator)

                                                                                                             José Avelino Gonçalves

                                                                                                              Regina Rosa


[1] Ac. do STJ de 17.11.94, CJ, STJ, 94, III, pág. 143.
[2] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 170, nota 331, Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 80 e Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 141 e 142; contra Acs. do STJ de 09.10.08, www.dgsi.pt. de 01.10.98, BMJ nº 480, pág. 438.
[3] Ac. da RL de 02.11.00, www.dgsi.pt, José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, pág. 55, e Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 105, Cfr., no sentido da legitimidade constitucional do nº 2 do artº 690-A na redacção do DL nº 39/95, de 15 de Fevereiro – que impunha ao recorrente, também sob pena de rejeição do recurso, o ónus de proceder à transcrição, em escrito dactilografado, das passagens da gravação em que fundamenta o erro na apreciação da prova - o Ac. do TC nº 122/02, DR, II Série, de 29 de Maio de 2003.
[4] Raul Ventura, Sociedades por Quotas, Vol. I, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 1989, págs. 505 e 506.
[5] José de Oliveira Ascensão, “Invalidade das deliberações dos sócios”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Raul Ventura, edição da FDUL, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, págs. 20 e 21.
[6] José de Oliveira Ascensão, “Invalidade das deliberações dos sócios”, cit., pág. 42, Raul Ventura, Sociedades por Quotas, vol. II, Almedina, Coimbra, 1989, pág. 268, Brito Correia, Direito Comercial, Volume II, Deliberações dos Sócios, AAFDL, Lisboa, 1990, pág. 318 e Acs. da RC de 02.11.10 e da RL de 07.07.09, www.dgsi.pt.
[7] Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 4ª edição, Almedina Coimbra, pág. 404, Raul Ventura, Sociedades por Quotas, vol. II, cit., págs. 228 e 229 e Ac. da RC de 19.10.10, www.dgsi.pt.
[8] Oliveira Ascensão, Invalidades das Deliberações Sociais, Problemas do Direitos das Sociedades, Coimbra, 2002, pág. 398.
[9] Assim, v.g., os Acs. do STJ de 28.05.92, da RL de 03.03.94, www.dgsi.pt., e da RE de 27.04.89, CJ, 89, II, pág. 284.
[10] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, I, Das Sociedades em Geral, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 746.
[11] Pedro Pais de Vasconcelos, A Participação Social nas Sociedades Comerciais, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 161 e António Menezes Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, cit., pág. 745; Acs. da RP de 26.06.96, da RL de 10.11.09 e da RC de 21.12.10, www.dgsi.pt.
[12] António Menezes Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais Anotado, Coordenação: António Menezes Cordeiro, 2ª edição, 2011, págs. 231, 236 e 237, e o Ac. da RP de 13.04.99, CJ, 99, II, pág. 96.
[13] Cfr., v.g., Acs. do STJ de 22.11.94 e 25.11.99, CJ, STJ, II, III, pág. 157 e VII, III, 124.
[14] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, 2ª edição, Almedina, 2000, págs. 247 e 248.
[15] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2000, págs. 262 e 263, e Tomo IV, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 327, e Acs. da RP de 03.02.81, BMJ nº 304, pág. 469, e do STJ de 05.07.01, 24.01.02, 10.10.02, 13.02.03, 25.03.04, 22.05.05, 10.01.06, 09.06.09 e 18.03.10, www.dgsi.pt.
[16] Este direito à jurisdição ou de acesso à justiça é igualmente atribuído, por exemplo, pelo artº 10 da DUDH, pelo artº 14 nº 1 do PIDCP e pelo artº 6 nº 1 da CEDH.
[17] Assim, v.g., o Ac. do Tribunal Constitucional nº 556/08, de 19 de Novembro, www.tribunalconstitucional.pt.