Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2184/06.5JFLSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: ACUSAÇÃO
ELEMENTO SUBJECTIVO
Data do Acordão: 07/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - SERVIÇOS DO M.º P.º
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 283º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: A falta de narração, na acusação pública, do elemento subjectivo do crime traduz uma pura inexistência de tipicidade, não sendo admissível, posteriormente, por exemplo, em sede de instrução, para efeito de pronúncia, a alteração dos factos da acusação, por forma a que daquela passem a constar factos integrantes de um comportamento típico do(s) agente(s), uma vez que tal alteração, neste caso, consubstanciaria a convolação de uma conduta atípica em conduta típica.
A possibilidade de, após a dedução da acusação pública, na qual não constam todos os elementos típicos do crime imputado, se poder reformular essa peça processual, seria manifestamente violadora do princípio do acusatório e das mais elementares garantias de defesa do arguido.
Decisão Texto Integral: I - Relatório

1. No âmbito do inquérito registado sob o n.º 2184/06.5JFLSB que correu termos nos Serviços do Ministério Público de ZZZ..., o Ministério Público proferiu, em 22 de Abril de 2010, a fls. 407/418 (vol. 2.º), ao abrigo do disposto no artigo 283.º, do Código de Processo Penal, acusação contra os arguidos P..., B... e C..., devidamente identificados nos autos, imputando-lhes a prática, em co-autoria material, de um crime de administração danosa, p. e p. no artigo 235.º do Código Penal.


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2. A assistente VV... -  E.M. requereu a sua constituição como assistente - que viria a ser admitida, por despacho de 07-12-2010 -, e, simultaneamente, aderiu à acusação pública e acusou, também, pelos factos narrados a fls. 478 v.º, 479 e 480.

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3. Inconformados com a acusação pública, os arguidos B... e P... requereram a abertura de instrução, nos precisos termos de fls. 512/542 e 585/596, respectivamente.

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4. Admitida a abertura da instrução, teve lugar o respectivo debate. A final, foi proferida decisão instrutória, na qual foi decidido não pronunciar todos os arguidos pela prática do referido crime de administração danosa.

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5. Inconformados, o Ministério Público e a assistente VV... - E.M. interpuseram recurso da decisão instrutória de não pronúncia, tendo formulado na motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

5.1. Ministério Público:

1.ª - No texto da acusação inexiste omissão dos factos que integram o elemento subjectivo do crime de administração danosa imputado aos arguidos.

2.ª - Não há que aplicar analogicamente o teor de douto Acórdão n.º 7/2005, de 12/5/2005, à presente situação jurídica.

3.ª - Não é aplicar jurisprudência de douto Ac. da Relação de Lisboa de 30/1/2007 aos presentes autos, porque o texto da acusação contém todos os pressupostos, nomeadamente, de facto, ao nível do tipo objectivo e do tipo subjectivo de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança pela prática do crime de administração danosa.

4.ª - O processo penal português tem uma “estrutura acusatória integrada por um princípio de investigação oficial”.

5.ª - O crime de administração danosa exige uma específica intenção em relação à violação “das normas de controlo ou regras económicas”, já que, em relação ao resultado típico, não existindo qualquer limitação, o dolo determinar-se-á segundo os critérios e os princípios gerais e, logo, é admissível o dolo em qualquer das suas formas - directo, necessário ou eventual (cfr. artigo 14.° do Código Penal) (vide Costa Andrade, CCCP, vol. II, p. 552).

6.ª - Uma coisa é agir intencionalmente em relação aos actos, em si mesmo, outra é agir intencionalmente em relação aos efeitos lesivos desses mesmos actos.

7.ª - Circunstância do crime é, em geral, aquilo que está em torno (em redor) do crime (circum stat), mas que não fazendo parte do tipo de crime, depõe a favor ou contra os arguidos, nos termos do art. 71.º, n.º l e n.º 2 do Código Penal.

8.ª - As mesmas têm de ser traduzidas em factualidade no despacho de acusação tendo sempre como padrão a densificação do sentido axiológico-normativo com que pretende a salvaguarda de específicos bens jurídicos.

9.ª - Quando se escreveu no despacho de acusação que “os arguidos agiram pensando que assim evitariam uma despesa excessiva resultante de adopção do abastecimento através do PT existente, o qual careceria de ser adoptado para o efeito e considerando que o gerador a adquirir poderia ser utilizado posteriormente nas caves do topo Norte do X...” está-se a referir a momento cronologicamente anterior a contrato misto de aluguer e prestação de serviços em apreciação nos autos, em que arguidos ponderaram um negócio de compra e venda de gerador.

10.ª - Quanto se escreveu no despacho de acusação que a “a decisão tomada pelos arguidos foi ditada pela adopção da solução mais rápida e fácil, face a iminência da chegada do dia previsto para inauguração do CMP 6/6/2004”, está-se a factualizar a valoração de critérios de alegada urgência temporal que têm de ser ponderados com valoração de critérios de necessidade e gestão racional, nos termos de despacho de acusação, o que se indicia que não existiu.

11.ª - Quando se escreveu no despacho de acusação que os arguidos “desinteressaram-se e ignoraram a real possibilidade da utilização do gerador se arrastar por um período dilatado de tempo, muito superior ao inicialmente previsto, originando os custos que vieram a ocorrer”, está-se a factualizar uma circunstância agravante do dolo directo intencional, na perspectiva de omissão imprópria, já que o prejuízo adveio não só do acto inicial de celebração de contrato de aluguer, mas sobretudo da sua vigência durante seiscentos e dois dias.

12.ª - A acusação só se considera manifestamente infundada por inexistência de factos que constituam crime quando, inequivocamente, faltem elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito penal ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante, o que não é manifestamente o caso.

13.ª - O dolo específico do crime em causa encontra-se expressamente escrito em diversos artigos da acusação, nomeadamente:

i. Os arguidos, como administradores da VV..., perante o problema do fornecimento de energia ao CMP, incorreram na adopção de soluções erradas em detrimento de outras mais ponderadas, coerentes e económicas.

ii. Com efeito, os mesmos, logo no início, considerando os valores de consumo de energia previstos, deveriam ter contemplado no projecto inicial da parte eléctrica do CMP, a construção de um Posto de Transformação.

iii. Para tal haviam sido alertados pelo Eng. L..., responsável pela realização do projecto apresentado à EDP e por esta indeferido.

iv. Os arguidos, como administradores da VV..., com base nos conhecimentos próprios e nos aconselhamentos técnicos e económicos que obtiveram junto de diversas entidades, públicas e privadas, teriam necessariamente de ter decidido pelo fornecimento de energia eléctrica, a título provisório, através do PT da EDP já existente, como sendo a melhor e mais segura solução.

v. Não tendo sido previsto no projecto electrotécnico a construção de PT e face à não aprovação daquele pela EDP, tal teria sido a solução lógica, ponderada, racional e economicamente adequada.

vi. A administração da VV... tinha a consciência de que a construção do PT próprio e sua ligação à rede, nunca seria feita a curto prazo, face à necessidade, entre outras, de proceder à consulta de preços para adjudicação do serviço e às normais delongas do evoluir do processo até obter energia da EDP, pelo que nunca deveria ter adjudicado o aluguer de um gerador que sabia, no mínimo, originar uma facturação mensal de 62.197 euros.

vii. Ao praticarem os factos acima relatados os arguidos causaram um prejuízo que se pode quantificar num montante significativo, rondando um milhão de euros, correspondente à diferença de despesa verificada entre a opção por eles assumida, num total de l.129.584,46€, sem iva, e a que ocorreria se tivessem optado pela solução oferecida pelo gabinete de planeamento da EDP, em que, depois da realização do pagamento relativo às parcelas do PT e da linha de Média Tensão, (26.500€+5.418€), acresceria um valor de consumo mensal na ordem dos 10.000€, a valores de Fevereiro de 2006.

viii. Os arguidos actuaram no interesse e proveito da empresa que administravam, a VV....

ix. Ao tomarem a decisão de manterem para abastecimento de energia ao CMP o gerador da “F... SA”, pagando por tal utilização os valores acima mencionados, os arguidos estavam cientes dos custos económicos e financeiros de tal decisão.

x. Desprezaram a possibilidade dos custos inerentes à utilização do gerador daquela se acumularem a atingirem um valor muito significativo.

xi. Actuaram em comunhão de esforços e intenções levando à prática, de forma conjunta, uma decisão tomada de forma consensual entre eles.

xii. Agiram de forma livre, consciente e voluntária, aceitando a possibilidade das suas condutas determinarem a prática de actos que sabiam ser proibidos por Lei.

14.ª - Quando o douto tribunal a quo rejeitou a acusação por manifestamente infundada considerando que os factos não constituem crime mediante uma interpretação divergente de quem deduziu essa acusação, salvo melhor entendimento, procedeu a uma opinião divergente, objectivamente equívoca e controversa da inexistência dos factos que sustentaram a imputação efectuada aos arguidos.

15.ª - Existiu pois violação dos princípios do acusatório e do inquisitório.

16.ª - Só com os elementos do texto da acusação, não poderia o tribunal concluir que os factos não constituíram crime.

17.ª - Só quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la, o que não é manifestamente o caso.

18.ª - Se o Tribunal reconhecer que a acusação do M.P. deve ter outro conteúdo por ser legalmente incorrecta, não se justifica uma nova acusação - o Juiz de Instrução, sempre que entenda alterar o conteúdo da acusação, altera-a sempre que se trate de alteração não substancial dos factos acusados.

19.ª - Quando o tribunal a quo afirma que “dos factos acima referidos é manifesto que não resulta uma actuação com dolo directo por parte dos arguidos em relação à violação de regras de gestão” e que “os arguidos terão tomado tal decisão, não com o fim em si mesmo de tal violação mas adoptaram a decisão com vista a evitar, na altura em que terão tomado, excessivos gastos e ainda em face de iminência da chegada do dia previsto para a inauguração” está a proferir uma decisão de mérito, dando prevalência à tese de arguidos sem analisar a prova que resultou quer da fase de inquérito, quer da fase de instrução e ultrapassa o texto da acusação, o que faz sem fundamentar as suas afirmações quanto ao tipo subjectivo com os elementos probatórios (documentais e testemunhais) que constam de autos.

20.ª - A falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto é uma nulidade.

21.ª - Face ao valor de caso julgado formal de decisão de tribunal a quo, no sentido de evitar nova dialéctica entre acusação/arguidos ao longo de todo um “novo” processo penal (sem embargo do princípio in dubio pro reo), com efeitos sociológicos estigmatizantes resultante do conhecimento público, importaria pois que o douto tribunal a quo apreciasse, sem condicionamentos, a prova indiciária produzida e proferisse decisão de mérito quanto à existência ou inexistência de indícios suficientes do crime imputado a arguidos.

22.ª - Caso existisse a nulidade do disposto no art. 283.º, n.º 2, al. b), 120.º, n.º 2 e n.º 3 do Código Processo Penal a mesma não se encontra no elenco das nulidades insanáveis do art. 119.° do Código Processo Penal.

23.ª - Salvo melhor entendimento, o tribunal a quo utilizou um conjunto de silogismos e analogias com o art. 311.º, n.º 3, al. d) do Código Processo Penal e criou uma norma (inexistente) de uma nulidade insanável, quando existe norma expressa.

24.ª - O elenco das nulidades insanáveis é taxativo, por se tratar de uma norma excepcional e não admite aplicação analógica (P...Pinto de Albuquerque).

25.ª - No âmbito da hermenêutica jurídica a lei não contém frase ou palavra inútil, supérflua ou sem efeito e caberia, salvo melhor entendimento, ao Tribunal aplicar o disposto no art. 122.° do Código Processo Penal e determinar o efeito da repetição do acto nulo por ser possível e necessária.

26.ª - Não é de aplicar a jurisprudência de Ac. de Relação de Lisboa de 30/1/2007, porquanto o despacho de acusação contém factos que integram o elemento subjectivo do crime imputado aos arguidos.

27.ª - Ao decidir como decidiu, salvo melhor entendimento, o douto tribunal a quo violou o disposto nos artigos 311.º, n.ºs 2 e 3, 283.º, n.º 3, 283.º, 119.º, 120.º, 121.º e 122.º, todos do Código Processo Penal, n.º 5 do art. 32.º da Constituição da República bem como os deveres de fundamentação de acto judicial e os princípios do inquisitório e da estrutura acusatória do Código Penal.

Pelo exposto, com o devido respeito por douto tribunal a quo, que se reafirma que muito é, julgando-se o presente recurso procedente, deve revogar-se o douto despacho de não pronúncia por outro que proceda à valoração de todos os elementos probatórios constantes dos autos e que se profira despacho de pronúncia quanto a todos os arguidos pela prática do crime de administração danosa, previsto e punido pelo art. 235.º do Código Penal ou, caso assim não se entenda, que determine a repetição do acto eventualmente declarado nulo, com remessa dos autos ao Ministério Público para ser proferido despacho de encerramento de inquérito.

5.2. Assistente VV... - E.M.:

1.ª - O Digno Magistrado do Ministério Público deduziu acusação contra os Arguidos, imputando-lhes a prática, em co-autoria material, de um crime de administração danosa, p. e p. pelo art. 235.º do Código Penal.

2.ª - Inconformados com o despacho de acusação, vieram os arguidos B... e P... requerer a abertura da fase de instrução.

3.ª - Foi declarada a abertura da instrução. Procedeu-se à realização de debate instrutório, com a observância do pertinente formalismo e no decurso do qual foram juntos os documentos que constam a fls. 706ss. Na fase de saneamento da decisão instrutória foi proferida decisão instrutória de não pronunciar todos os arguidos pela prática do crime de administração danosa p. e p. pelo art. 235.º do C. Penal, e consequentemente, determinar o arquivamento dos autos.

4.ª - Segundo a douta decisão instrutória, e como fundamento factual da mesma, o Meret. Juiz reconheceu que se imputam aos arguidos a prática de todos os factos constantes da acusação deduzida.

5.ª - Considerou, a douta decisão instrutória, que se encontrava preenchido, o dolo quanto ao resultado típico. De facto, segundo a decisão instrutória em apreço, quanto ao dano patrimonial provocado, o dolo, ainda que eventual ou mesmo necessário, existiu por parte dos arguidos, nos termos dos factos que lhes estão imputados. Daí a argumentação, constante da pg. 21, § 3º.

6.ª - Ou seja, considerando os factos imputados aos arguidos e constantes da douta decisão instrutória, o Meret. Juiz de Instrução deu por indiciado o dolo quanto ao dano patrimonial provocado, ou seja, em relação ao resultado típico.

7.ª - Entende, porém, o Meret. Juiz de Instrução, em relação ao elemento subjectivo, que, para a violação das normas, terá que existir dolo directo, e “não resulta da acusação que os arguidos tenham actuado com dolo directo em relação a tais violações”.

8.ª - Sucede que o Meret. Juiz de Instrução parece incorrer numa incorrecta interpretação da lei, respeitante ao art. 235.º/1 do C.P., bem como da doutrina que cita, em relação ao Professor Costa Andrade. De facto, entende o Meret. Juiz, e correctamente, que no art. 235.º do C.P. tem de haver dolo quanto a todos os elementos do tipo. O que significa que tem de haver dolo quanto à violação das “normas de controlo ou regras económicas (...)” e também quanto ao dano patrimonial provocado. Entende ainda que os níveis de dolo exigidos em relação a cada um dos dois momentos são diferentes. Neste sentido, o dolo quanto ao dano pode ser apenas eventual.

9.ª - No entanto, o que não é de aceitar é a consideração e a fundamentação, por parte do Meret. Juiz, de que o dolo, quanto à violação das normas de controlo ou regras económicas (...) tem que ser directo, não bastando que seja necessário (pg. 20, §§ 2.º e  3.º da douta decisão instrutória).

10.ª - A violação das “normas de controlo ou regras económicas de uma gestão racional” pode incluir o dolo directo e o necessário, a não ser assim, de outro modo, só haveria dolo no crime de administração danosa - e, com isso, crime - quando os administradores, actuassem com vontade imediatamente dirigida à própria violação das normas de controlo ou regras económicas (...), sendo o bem jurídico violado a própria violação dessas normas de controlo ou regras económicas. Ora, só poderia ser assim, se em causa estivesse um mero crime de dever e não, como é o caso dos autos, um crime de dano.

11.ª - Na verdade, não é de um crime de dever que trata a administração danosa. O que está em causa é uma censura por uma administração geradora de danos patrimoniais. O que se pune é uma, “má administração” provocadora de danos e não uma pura conduta formal violadora de deveres deontológicos.

12.ª - Pelo que, entre os actos incriminados se incluem comportamentos de administração dirigidos a satisfazer o interesse da Pessoa Colectiva, em que os agentes (administradores, gestores, etc.), representam, como consequência necessária da sua conduta dirigida à administração da Pessoa Colectiva, a violação de normas de controlo ou regras económicas (...), conformando-se com essa necessidade.

13.ª - A interpretação, supra exposta, do art. 235.º/1 do C.P., preenche totalmente a exigência típica de que, quanto à violação desses deveres, o agente actue “intencionalmente”. Pelo que, a douta decisão instrutória efectua uma errada interpretação e aplicação do art. 235.º/1 do C.P. e art. 14.º/2 do C.P..

14.ª - Existem indícios suficientes no sentido de que, mesmo pretendendo os arguidos, nas palavras do Meret. Juiz de Instrução, e dos factos constantes da acusação, uma solução mais rápida e fácil, face à urgência que descreve (iminência do dia previsto para a inauguração), os arguidos sabiam que, necessariamente, violavam normas de controlo ou regras económicas (...) e aceitaram essa violação, como consequência necessária da sua conduta.

15.ª - Nestes termos, o dolo previsto no art. 235°/1 do C.P., quanto à violação das normas de controlo ou regras económicas de uma gestão racional, basta que seja, apenas, necessário, incluindo, portanto, o tipo subjectivo, o dolo directo e o necessário em relação à violação das referidas normas.

16.ª - Pelo exposto, ainda que não se considerasse como verificado o dolo directo, a douta decisão instrutória deveria, sempre, que concluir que os agentes, ora arguidos, teriam actuado com dolo necessário e, portanto, dando por preenchido, através dos factos constantes da acusação, o tipo subjectivo do crime de administração danosa p.p. no art. 235.º do C.P. e violação intencional das normas de controlo ou regras económicas de uma gestão racional.

17.ª - Porém, resulta, sempre, dos factos, constantes da acusação, imputados aos arguidos, e reconhecidos pelo Meret. Juiz, na douta decisão instrutória, que existiu dolo directo por parte dos arguidos. De facto, quando actuaram, os arguidos actuam com o objectivo de violar normas de controlo ou regras económicas (...), pois, só assim entendiam ser possível encontrar uma solução rápida e fácil que permitisse assegurar abastecimento de electricidade a tempo da inauguração do Complexo Municipal de Piscinas.

18.ª - A douta decisão instrutória considera que a factualidade alegada na acusação não permite concluir pela violação intencional, por parte dos arguidos, das regras de gestão, uma vez que incorre num vício de interpretação conceitual, efectuando uma errada interpretação e aplicação entre os conceitos de dolo e culpa, confundindo-se dolo com causas de exclusão e de atenuação de culpa.

19.ª - A douta decisão instrutória efectua, nestes termos, uma análise, dos factos que são imputados aos arguidos na acusação deduzida, com base em, apenas, alegadas meras motivações daqueles, ou seja, na culpa. Porém, a análise, da douta decisão instrutória, deveria assentar, somente, nos factos que determinam o preenchimento, ou não, dos elementos do tipo, neste caso do elemento subjectivo respeitante à “violação das normas de controlo ou regras económicas”.

20.ª - Na determinação do dolo (mesmo directo), cabe, apenas, apreciar o que o agente psicologicamente sabe e quer, enquanto que, na determinação da culpa, uma vez assente o que o agente psicologicamente sabia e queria (ou seja, que actua com dolo), cabe, somente, apreciar, para efeitos de determinação da consciência de ilicitude e de exigibilidade dirigida ao agente no caso, as suas motivações, as razões que o levaram a actuar do modo como o fez, nomeadamente, quando as mesmas possam ser relevantes para efeitos de exclusão ou atenuação de exigibilidade de actuação de acordo com a norma, i.e., de atenuação ou de exclusão de culpa.

21.ª - Assim, no caso em apreço dos autos, para efeitos de determinação do dolo, certamente que os arguidos, na sua qualidade de administradores (aliás, aparentemente experimentados), estão sujeitos a exigências de eficácia e eficiência na gestão, logo ao cumprimento de estritos critérios de racionalidade económica, bem como, de transparência nas decisões tomadas. Isto parece ser conhecido destes arguidos. Pelo que, os arguidos sabem, entre outras coisas, que:

i) a  adjudicação  de  obras  e  serviços exige  a  consulta  de  diferentes propostas e preços;

ii) se exige uma ponderação cuidada dos custos financeiros das opções a tomar, em função de diversos critérios, nomeadamente, o tempo que determinada solução provisória possa implicar (no caso, o tempo que um gerador teria de estar em uso), tendo para isso que antecipar contratempos previsíveis (no caso, a previsível não aprovação de projectos e de obras por parte da EDP e também a necessidade de prévia certificação de geradores).

22.ª - Ora, nos termos dos factos imputados aos arguidos, e constantes da acusação, tal como é reconhecido pelo Meret. Juiz, verifica-se e alega-se que:

- Adoptou-se a solução mais dispendiosa, sem que os arguidos tivessem procedido à sua comparação com os custos, bem menos onerosos, resultantes da obra proposta pela EDP;

- Sabiam os arguidos da necessidade de manter a solução de adopção de um gerador por um longo período de tempo;

- Não deviam os arguidos iniciar a obra em simultâneo com o processo burocrático necessário à sua aprovação;

23.ª - Certamente que os arguidos sabiam ser aquelas normas de controlo ou regras económicas (...) às quais estavam vinculados, e que as não cumpriram, tendo actuado no sentido de as violar. É a própria acusação que diz, em conclusão, tal como é reconhecido pelo Meret. Juiz, e face à descrição feita, que  os  arguidos  actuaram  em  comunhão de esforços e intenções, precisamente, sublinhando aquilo que corresponderá aos elementos representativo e volitivo do dolo - mesmo directo - do crime de administração danosa.

24.ª - Pelo que, a douta decisão instrutória deveria, face aos factos descritos na acusação, considerar como verificado e preenchido o dolo directo.

25.ª - Ora a douta decisão instrutória, apenas vem determinar no sentido da não existência de dolo típico, contrariando os factos que se encontram alegados e descritos na acusação deduzida e indiciados, na própria decisão, uma vez que se confunde dolo com culpa.

26.ª - A douta decisão instrutória ao fundamentar-se com base na factualidade alegada da “solução mais rápida e fácil, face à iminência da inauguração do CMP (...)” e de que os arguidos “agiram pensando que assim evitariam despesa excessiva”, encontra-se a analisar a “culpa”, ou a atenuação da mesma, que, contudo, nada se consubstancia com a prévia determinação do dolo.

27.ª - De facto, os arguidos quiseram violar normas de controlo e regras económicas e aceitaram provocar danos patrimoniais à pessoa colectiva, pelo que, de acordo com os factos constantes da acusação, verifica-se a existência de dolo directo por parte dos arguidos.

28.ª - Nestes termos, não há dúvida da indiciação do dolo típico e se dúvidas houvesse quanto à intensidade de culpa, é necessário referir que a apreciação e determinação da culpa está excluída da fase de instrução, encontrando-se, apenas, reservada ao julgamento.

29.ª - Pelo que, dos factos constantes da acusação e imputados aos arguidos, encontram-se indiciados todos os elementos do crime, encontrando-se, portanto, preenchidos, na acusação deduzida, todos os elementos subjectivos do crime de administração danosa. Ou seja, dos factos alegados na acusação, verifica-se, pelo menos indiciariamente, que os arguidos actuaram com dolo directo, violando as normas de controlo e regras económicas de uma gestão racional.

30.ª - Verifica-se, nestes termos, uma errada aplicação e interpretação do art. 14.º do C.P. e art. 235.º/1 do C.P.. De igual modo, não foi cumprido o disposto no art. 308.º/1 do C.P.P., bem como o previsto no art. 368.º/2 do C.P.P..

31.ª - Resultam, ainda, dos autos, elementos de provas documentais e testemunhais, nas duas fases do processo, inquérito e instrução, que permitem concluir a verificação dos factos comprovativos da actuação dolosa, com dolo directo, por parte dos arguidos.

32.ª - Verifica-se a título de prova documental: Fls. 120 a 122; Fls. 92 do inquérito; Acta do conselho de administração n.° 168 de 04-06-2004; Fls. 87 do inquérito; Fls. 86 do inquérito; Fls. 48, 49, 50 a 68 e 94 do inquérito, respeitante aos custos do aluguer do gerador, com conhecimento dos administradores, ora arguidos e com ordens de pagamento, totalizando um custo de € 1.429.645,53 euros; Fls. 167; Acta do conselho de administração, Acta n.° 171 de 23-06-2004; Acta do conselho de administração, Acta n.° 167 de 03/06/2004; Fls. 77 do Inquérito; Fls. 78 do Inquérito

33.ª - De igual forma, em relação à prova testemunhal, ainda que arrolada por um dos arguidos, dão-se como verificados os factos que consubstanciam a prática do crime de administração danosa, nomeadamente no que respeita ao preenchimento do dolo directo em relação à violação das normas de controlo e regras económicas, a saber, consultados os depoimentos seguintes:

a) Depoimento do Arguido B... (1 a 103);

b) Depoimento da testemunha Dr. A...: (222 a 295);

c) Depoimento da testemunha E... (01 a 40, fls. 21/62).

d) De igual modo, refira-se os depoimentos das testemunhas, inquiridas em fase de inquérito, Eng.º G... e Eng.º L... .

34.ª - Resultam, assim, dos elementos de prova e factos descritos na acusação, indícios suficientes da prática, por parte dos arguidos, do crime que lhes foi imputado. A decisão instrutória, ao ter decidido pela não pronúncia dos arguidos, violou o disposto no art. 308.º/1 do C.P.P..

35.ª - A acusação em causa não padece de qualquer nulidade, atendendo ao disposto no art. 283.º/3 do C.P.P. e art. 235.º do C.P., preenchendo todos os requisitos previstos nos referidos artigos, pelo que, não pode ser considerada nula.

36.ª - Em relação ao requisito da alínea b) do n.º 3 do art. 283.º do C.P.P., consta da acusação uma narração dos factos que fundamentam ao arguido a aplicação de uma pena ou medida de segurança, pelo que, não foi violado o art. 283.º/3/b do C.P.P., tendo sido efectuada uma errada interpretação e aplicação da presente norma.

37.ª - A douta decisão instrutória ao declarar a não pronúncia dos arguidos, após considerar que se verificava uma nulidade da acusação com base no art. 283.º/3/b do C.P.P., violou o disposto no art. 308.º do C.P.P. e art. 122.º do C.P.P..

38.ª - De facto, o Meret. Juiz apenas poderia concluir pela não pronúncia dos arguidos após apreciar o mérito da causa, sendo que, por outro lado, o mérito nunca poderá ser apreciado na fase de saneamento. Nestes termos, na fase de saneamento preliminar, como foi aquela em que a decisão instrutória se situou, apenas se podem apreciar os pressupostos processuais, nomeadamente das nulidades.

39.ª - Apenas se nada obstar ao conhecimento do mérito da causa, é que o Meret. Juiz de Instrução pode decidir pela pronúncia ou não pronúncia. Deste modo, a falta de um pressuposto processual, nomeadamente, a hipotética verificação de nulidade, apenas poderia implicar a sanação da suposta nulidade, ou a anulação do acto e a absolvição da instância, nunca a não pronúncia dos arguidos.

Nestes termos e nos melhores de direito, com o sempre suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado  provimento  ao  presente  recurso  e, consequentemente:

1.°)  Revogar a decisão instrutória, de não pronúncia, substituindo a mesma por outra que pronuncie todos os arguidos pelo crime de administração danosa por que vinham acusados;

2.º) Subsidiariamente ao pedido em 1.º), caso assim não se entenda, revogar a decisão instrutória e substituir por outra que ordene a sanação da suposta e alegada nulidade, caso se entenda a verificação da mesma, ou a anulação do acto e a absolvição da instância.


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6. Os arguidos remataram as suas respostas aos recursos nos seguintes termos:

6.1. Arguido P...:

Não existe qualquer nulidade, vício ou irregularidade na decisão proferida pelo Digníssimo Juiz de Instrução Criminal de ZZZ....

Não nos oferece qualquer reparo ou juízo de censura a mesma.

A decisão é proferida de acordo com, entre outros, o sentido do:

- Acórdão n.º 7/2005, de 12/05/2005, do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça; e

- Acórdão do Tribunal constitucional n.º 358/04, de 19/05, in Proc. 807/03, publicado no DR, 2.ª série, de 28/06/04.

Pelo que, devem ser indeferidos os recursos interpostos pelo Digno Magistrado do Ministério Público e pela Assistente VV... - E.M..

Mantendo-se, na íntegra, a decisão de não pronúncia dos arguidos, designadamente de P..., como é de elementar justiça.

6.2. Arguido B...:

1. Não há qualquer nulidade da decisão instrutória, por falta de fundamentação: o despacho de não pronúncia do arguido, ora respondente, e dos demais arguidos, encontra-se suficientemente fundado quanto às razões de facto e de direito que levaram o Tribunal a quo a concluir que a acusação deduzida nestes autos omite a factualidade integrante do elemento subjectivo do crime de administração danosa, na parte em que o mesmo exige a violação intencional das regras de gestão económica racional da unidade económica em causa.

2. Salvo o devido respeito - que é muito - não tem razão o Ministério Público quando afirma que ao Tribunal a quo estava vedada a possibilidade de aplicar analogicamente a jurisprudência vertida no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 7/2005, do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 12 de Maio de 2005, à presente situação jurídica.

3. Trata-se da mesma questão: a acusação e o requerimento de abertura de instrução têm, obrigatoriamente, de conter todos os elementos mencionados nas alíneas do n.º 3 do artigo 283.º do CPP, sob pena de, assim não sendo, se coarctarem princípios essenciais do processo penal, designadamente as garantias de defesa do arguido e a estrutura acusatória do processo penal.

4. À luz destes princípios, tanto um como a outra desempenham a mesma finalidade: delimitam o objecto do processo, descrevendo a factualidade que serve a imputação da prática de determinado crime ao arguido, definindo o âmbito da perseguição penal que lhe é dirigida e limitando, do mesmo passo, a actividade de investigação do juiz e a decisão de pronúncia ou de não pronúncia.

5. Perante a similitude das situações em presença, as consequências terão de ser naturalmente idênticas: a insuficiência na descrição da factualidade impõe, por isso, que o juiz (de instrução ou de julgamento) determine a rejeição do requerimento para abertura da instrução ou da própria acusação.

6. A analogia entre a acusação e o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente tem sido pacificamente aceite na jurisprudência dos nossos Tribunais superiores, incluindo pelo Tribunal Constitucional, que a propósito da (im)possibilidade de endereçar um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução, ao Assistente, se pronunciou, entre outros, no Acórdão 358/2004, de 19 de Maio de 2004, no qual sustentou que «existe (...) uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287.º, n.º 2, remeta para o artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução», concluindo ainda que «a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura da instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa», (sublinhados nossos)

7. Consequentemente, a acusação pública, à qual falte a narração dos factos que determinam a aplicação ao arguido de uma pena, tem necessariamente de ser rejeitada, nos termos conjugados dos artigos 283.º , n.º 3, alínea b), e 311.º, n.°s 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP.

8. O que leva a concluir que a analogia levada a cabo pelo Tribunal a quo na decisão instrutória é processualmente admissível - uma vez que dela não resulta qualquer enfraquecimento da posição processual do Arguido, pois não se trata de uma analogia in malam partem (a única proibida em processo penal) -, pelo que a mesma, ao determinar a não pronúncia dos arguidos, com fundamento na deficiente factualidade vertida na acusação pública, fez uma aplicação correcta das normas conjugadas, previstas nos artigos 283.º, n.º 3, alínea b), e 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), e ainda no artigo 308.º, n.º l, in fine, do CPP.

9. Admitir a aplicação, in casu, da norma segundo a qual no caso de ocorrer a omissão da narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido, há lugar ao aperfeiçoamento da acusação pública, mas não do requerimento para abertura da instrução do assistente que padeça da mesma deficiência significaria uma violação os princípios da igualdade e da proporcionalidade consagrados nos artigos 13.º, n.º l, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa («CRP»).

10. A partir da prova produzida em instrução não resulta qualquer alteração dos factos descritos na acusação, seja ela substancial (cfr. artigo 359.º do CPP) ou não substancial, sendo que, para além dos mais, o Ministério Público não identifica, nas suas motivações e conclusões de recurso, quais os factos susceptíveis de configurar uma alteração perante o que já constava da acusação.

11. Da leitura das conclusões de recurso resulta que o Ministério Público funda a sua discordância da decisão instrutória não no surgimento de factos, a partir da prova produzida ao longo da fase de instrução, mas sim na circunstância de “não resulta[r] inequívoco que não se encontrem em termos factuais preenchido o elemento subjectivo do crime de gestão danosa imputado, pois descreve-se na acusação, (...) comportamentos humanos dos agentes (arguidos) que configuram o crime em causa, nomeadamente da violação intencional das regras de gestão” (cfr. fls. 14 das motivações de recurso).

12. Também na manifestação desta discordância, o Ministério Público falha a indicação dos factos que baseiam a suposta indicação da violação intencional das regras de gestão da VV..., pelo Arguido, ora respondente.

13. Perante a insuficiência do quadro factual descrito na acusação quanto a esta indiciação, outra alternativa não restava ao Juiz de Instrução Criminal senão a de proferir um despacho de não pronúncia - o que veio a suceder -, pois, caso contrário, estar-se-ia perante uma violação, flagrante e inadmissível, do princípio do acusatório.

14. Deixar a apreciação sobre a falta dos elementos constantes nas alíneas do n.º 3 do artigo 283.º do CPP para a fase de julgamento, nos termos do artigo 311.º, n.º 3, alínea d), do CPP, em vez de o fazer na instrução - requerida pelo Arguido -, colide frontalmente com o direito de o Arguido não ser submetido a julgamento ou, melhor, “a não ser estigmatizado, vexado, prejudicado em vários direitos fundamentais (imagem, honra e consideração, direito ao trabalho) por um julgamento criminal, quando não haja razões suficientes para isso” (cfr. Raul Soares Veiga, “O Juiz de Instrução e a Tutela de  Direitos Fundamentais”, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, pág. 214).

15. À luz do objecto do recurso, tal como definido pelos recorrentes, nas suas conclusões, sempre se imporá uma de duas soluções:

a. Caso o Tribunal ad quem venha a considerar que a factualidade omitida na acusação pública deduzida nestes autos constitui um elemento essencial, sem o qual a imputação pretendida fica irremediavelmente afectada, não lhe restará alternativa senão a de reconhecer a bondade da decisão instrutória, mantendo a decisão de não pronúncia do Arguido, ora respondente - e, em rigor, dos restantes co-Arguidos;

b.  Na hipótese de se considerar que a Acusação descreve um quadro factual destinado à indiciação do crime de administração danosa imputado aos Arguidos, então, ao Tribunal ad quem caberá concluir que o reconhecimento, em sede de libelo acusatório, de que os Arguidos, com a sua decisão, «[p]ensavam (...) evitar a despesa excessiva resultante da adopção do abastecimento através do PT já existente», indicia uma conduta meramente negligente, não punível, porque atípica à luz da norma do artigo 235.º, n.º l, do CP.

16. Sendo este último o entendimento do Tribunal ad quem, impor-se-á a não pronúncia dos Arguidos, não sendo admissível a alteração dos factos da acusação, por forma a que desta passem a constar os factos integrantes de um comportamento típico dos agentes, uma vez que tal alteração, neste caso, consubstanciaria a convolação de uma conduta atípica em conduta típica - numa substituição, in totum, inadmissível da Acusação e não, como parece ser a ratio do artigo, de uma tipicidade noutra tipicidade.

17. A acção típica prevista na norma do artigo 235.º, n.º l, do CP, pressupõe necessariamente a existência de uma infracção a normas de controlo ou a regras económicas de gestão racional, daí resultando um dano patrimonial para a referida unidade económica - sendo dentro deste quadro que se impõe avaliar a existência dos indícios do crime imputado ao Arguido, ora respondente.

18. O tipo previsto no artigo 235.º, n.º 1., do CP, acarreta uma dupla relevância do elemento volitivo, exigindo, por um lado, a violação intencional dos deveres de cuidado na gestão da unidade económica, e bastando-se, por outro, com a circunstância de o agente perspectivar, como resultado possível da sua acção, a ocorrência do dano patrimonial na unidade económica e actuar conformando-se a essa mesma possibilidade.

19. Compreende-se facilmente a razão de ser da particular exigência do tipo no que respeita ao seu elemento subjectivo: a incriminação prevista no artigo 235.º, n.º l, não pretende abranger todas e quaisquer violações de deveres de cuidado de gestores e administradores, excluindo as decisões que, sem serem propositadamente dirigidas à violação das regras de gestão racional da unidade económica, se compreendem no limite do risco admissível, inerente a toda a actividade económica.

20. O que limita o âmbito desta incriminação à hipótese em que o gestor ou administrador da unidade económica, através do exercício dos poderes inerentes ao cargo desempenhado, quer desrespeitar as regras de boa gestão a que está funcionalmente obrigado e ainda - directa, necessariamente ou admitindo-o como um resultado possível - causar um dano patrimonial relevante à unidade económica que dirige.

21. E permite a seguinte conclusão: nem todas as decisões que causem um prejuízo patrimonial à unidade económica integram o tipo incriminador previsto no artigo 235.º do CP.

22. Contrariamente ao que resulta do quadro factual descrito pela acusação pública e, bem assim, dos juízos conclusivos que a mesma encerra, a imputação da prática do crime de administração danosa não se basta com a mera avaliação retrospectiva de hipóteses alternativas, abstractas e não previsíveis, ao resultado efectivo da conduta, antes exigindo uma ponderação dos elementos relevantes, conhecidos pelo agente no momento da alegada violação das regras económicas de gestão, cujo cumprimento se lhe impunha - ou seja, in casu, aquando da tomada da decisão sobre aluguer do gerador pelos Arguidos.

23. Resulta da prova recolhida ao longo do inquérito que o abastecimento, a título provisório, com recurso a gerador a gasóleo era, de acordo com os técnicos responsáveis, a solução que melhor se adaptava às circunstâncias concretas, não se impondo, por conseguinte, ao Arguido - nem, em rigor, a nenhum dos restantes administradores - optar de uma solução diferente da que veio a ser efectivamente adoptada.

24. Também quanto à indiciação do resultado da acção típica se deve sustentar que, em face dos elementos factuais de que dispunha e das circunstâncias que acompanharam a fase de realização das obras de remodelação e ampliação do CMP, o ora Arguido agiu na convicção de que a sua decisão era a que melhor acautelava os interesses patrimoniais da VV..., por duas ordens de razões: i) porque o fornecimento de energia eléctrica com recurso ao gerador a gasóleo se previa como meramente provisório; ii) e ainda porque o aluguer do gerador tinha como pressuposto a construção do PT privativo do CMP, que permitiria o fornecimento de energia eléctrica, em média tensão, ou seja, a um custo significativamente inferior ao que decorreria do fornecimento em baixa tensão.

25. Neste contexto, os excertos da acusação referidos na decisão instrutória evidenciam ser, lógica e factualmente, incompatível o reconhecimento, no libelo acusatório, de que o(s) Arguido(s), em face da situação com que foram confrontados e perante a necessidade de encontrar uma solução em tempo útil, agiu(iram) pensando assim evitar a despesa excessiva resultante da adopção do abastecimento através do PT já existente, com a imputação de uma conduta da qual resultariam intencionalmente violadas as regras de gestão económica da VV....

26. Resulta igualmente indiciado que o pelouro pelo qual o Arguido, ora respondente, era responsável na Administração da VV..., em nada se relacionava com a obra de remodelação e ampliação do Complexo Municipal …;

27. E que as funções por este desempenhadas, no período que mediou entre Abril e Junho de 2004, não permitiram, nem exigiram, um acompanhamento distinto do processo do gerador, por parte do Arguido, ora respondente.

28. Contrariamente ao sustentado nas alegações da Assistente, não é verdade que a decisão instrutória considere indiciariamente demonstrados todos os factos constantes de acusação deduzida pelo Ministério Público, na qual se imputava ao Arguido, ora respondente, a prática de um crime de administração danosa; naquela, o Juiz de Instrução Criminal transcreveu o conteúdo da acusação, enquanto exposição de indícios, para em seguida proceder à avaliação da (ir)relevância criminal das condutas descritas, em particular, no que respeita ao preenchimento dos elementos subjectivos do tipo de administração danosa.

29. Também não corresponde à realidade a afirmação da Assistente, quando refere que a decisão instrutória considerou preenchido o dolo do(s) Arguido(s) quanto à produção do resultado típico - a causação de um prejuízo patrimonial à VV..., uma vez que o despacho de não pronúncia, ao referir que “voltando ao caso concreto resulta da acusação que os arguidos agiram pensando que assim evitariam uma despesa excessiva resultante do abastecimento através do PT já existente”, quer significar que os Arguidos tomaram a decisão em causa com a finalidade de evitar qualquer prejuízo, actuando em sentido inverso ao da causação do dito prejuízo.

30. Por fim, também não é verdade que na decisão instrutória se encontre indiciado que os arguidos i) adoptaram a solução mais dispendiosa; ii) sabiam da necessidade de manter a solução do gerador por um longo período de tempo; iii) e não deviam iniciar a obra em simultâneo com o processo burocrático necessário a sua aprovação - sendo que esta conclusão, agora trazida à colação pela Assistente, não se encontra referida no libelo acusatório, nem no despacho de não pronúncia.

31. Deste modo, não resultando da Acusação quaisquer elementos que permitam indiciar a violação intencional das regras de gestão, pelo ora Arguido, ou sequer que este tenha actuado conformando-se com a possibilidade de da sua conduta resultar um dano patrimonial para a VV..., sempre se imporá a sua não pronúncia.

Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, vem o Arguido, ora respondente, solicitar que seja julgado improcedente o recurso e mantida a decisão recorrida, na íntegra.

Caso assim não se entenda, deverão V. Exas. proferir Acórdão que determine a não pronúncia do Arguido pela prática do crime de administração danosa de que é acusado nestes autos, com fundamento:

a) Na atipicidade da conduta do Arguido, ora respondente, uma vez que a Acusação lhe imputa um comportamento meramente negligente; ou

b) Na absoluta falta de indícios, relativamente ao Arguido, ora respondente, da violação intencional das regras de boa gestão económica da VV..., exigida pelo tipo incriminador.

Assim se fará a costumada e boa justiça!

6.3. A Arguida C... pugna, em suma, pela manutenção da decisão recorrida.


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7. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, a fls. 3676/3677, cujo teor, na parte essencial, se reproduz:

«Não estamos deste modo, no campo de análise dos indícios existentes nos autos quanto à prática dos factos e que parece não existirem dúvidas quanto esse aspecto, mas antes perante a análise sobre se na acusação constam todos os elementos factuais necessários à subsunção legal do crime de administração danosa. E entre estes apenas no que diz respeito à verificação do elemento subjectivo por parte dos arguidos quanto à violação das normas de gestão racional.

Circunscrito que está, desta forma, a nosso ver, o âmbito do recurso, também assim delimitado pelas conclusões do recurso do Ministério Público e da assistente, embora assente em diversos factos que aparecem descritos na acusação, cabe desde já afirmar que nos parece assistir razão aos recorrentes, devendo os arguidos ser pronunciados pela prática do crime de que foram acusados.

E, já o dissemos, não estamos perante uma questão de análise da falta de indícios.

Para fundamentar a sua decisão dá o tribunal a quo uma especial importância ao facto de o Ministério Público deixar alegado na acusação que os arguidos, em relação à deliberação de 4 de Junho de 2004 agiram pensando que assim evitariam uma despesa excessiva resultante da adopção do abastecimento através do PT existente, o qual careceria de ser adoptado para o efeito e considerando que o gerador a adquirir poderia ser utilizado posteriormente nas caves do topo Norte do X....

Ora, como bem explicita o Ministério Público nas suas bem fundamentadas alegações o que se pretendeu descrever é que, de acordo com os indícios existentes, os arguidos ponderaram inicialmente um negócio de compra e venda de um gerador, mas que intencionalmente afastaram mais tarde, para celebrar um negócio de aluguer e prestação de serviços que causou à assistente um prejuízo de um milhão de euros.

Está, assim, a descrição desta factualidade cronologicamente assente num momento anterior à celebração do contrato misto de aluguer e prestação de serviços que está em causa nos autos.

Por outro lado, quando o mesmo despacho recorrido assenta a sua fundamentação no facto de se afirmar na acusação que a mesma decisão tomada foi ditada pela adopção da solução mais rápida e fácil, pela iminência da chegada data da inauguração ou ainda porque os arguidos se desinteressaram e ignoraram a real possibilidade de utilização do dito gerador se arrastar por um período dilatado de tempo, muito superior ao inicialmente previsto, está a acusação, para além da descrição factual indiciária, a descrever factos que tinham necessariamente que ser ponderados pelos elementos do Conselho de Administração, valorando os critérios de necessidade e gestão racional, que se indicia não terem existido, tal como mais adiante se descreve minuciosamente na mesma acusação. E ainda a revelar factos que agravam as consequências danosas dessa deliberação, pois que o prejuízo adveio deste acto inicial e ainda do seu protelamento no tempo, por quase dois anos.

Acresce que como bem se refere e se fundamenta na motivação do Sr. Procurador-Adjunto o elemento subjectivo encontra-se plasmado na acusação pública com todo o pormenor que descreve na parte final desta que nos dispensamos de repetir, dando-se aqui por reproduzidas as respectivas motivações.

Aliás, acrescenta-se que na descrição desses factos da acusação se encontra claramente explicitada, conforme se pode verificar no despacho recorrido a fls. 13 a 19 (751 a 757 dos autos), o elemento subjectivo da infracção, o qual surge feito de forma algo extensa e até complexa, por complexa ser, naturalmente, a matéria em apreço.

Deste modo e tendo ainda em conta toda a fundamentação minuciosa e cuidada apresentada pelos recorrentes no sentido da não verificação da nulidade, com a qual concordamos inteiramente, somos de parecer que não estamos perante acusação manifestamente infundada nos temos decididos, tendo o Tribunal violado na sua aplicação as normas dos artigos 283.º, n.º 2 al. a) e 120.º, n.º 2 e 3 al. c) do CPP ao considerar verificada nulidade de acusação.

Devendo ser substituído o despacho recorrido por outro que determine a pronúncia dos arguidos, nos termos dos artigos 307.º e 308.º do CPP, deixando para julgamento a apreciação do mérito da causa».


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8. Cumprido o art. 417.º, n.º 2 do CPP, só o arguido B... exerceu direito de resposta, reiterando tudo quanto foi por si alegado na resposta apresentada às motivações e conclusões dos recursos.

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9. Colhidos os vistos, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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II. Fundamentação:

1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e objecto do recurso:

Como flui do disposto no n.º 1 do art. 412.º do CPP, e de acordo com jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.

As conclusões apresentadas pelos recorrentes circunscrevem o recurso às seguintes questões:

A) Se a decisão recorrida padece de nulidade, porque não fundamentada;

B) Se a acusação pública contém os factos consubstanciadores do tipo subjectivo do crime de administração danosa, p. e p. pelo artigo 235.º, n.º 1, do Código Penal, devendo, em consequência, ser revogada a decisão instrutória de não pronúncia por outra que pronuncie todos os arguidos pela prática, em co-autoria, do referido ilícito penal;

C) A verificar-se nulidade do libelo acusatório, pela não descrição de tais factos, se esse vício determina a repetição da acusação, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 283.º, n.º 2, alínea b), 120.º, n.ºs 2 e 3 e 122.º, todos do Código de Processo Penal.

D) Se a decisão instrutória de não pronúncia violou os princípios do acusatório e do inquisitório;

E) Se foi violada a norma do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.


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2. Factualmente, a acusação pública está elaborada nos termos infra transcritos:

«A VV... - E. M. (adiante designada por VV...), é uma empresa pública municipal criada nos termos da Lei 58/98, de 18 de Agosto, e dotada de personalidade jurídica, com autonomia administrativa e financeira e património próprio, a qual se encontra sujeita à superintendência da Câmara Municipal de ZZZ....

A mesma tem por objecto social a criação, construção, gestão e exploração de equipamentos desportivos, de lazer e turismo bem como a organização de actividade nestas áreas.

A sua gestão é da competência do Conselho de Administração, o qual ordena a prática  de todos os actos  e operações  referentes ao exercício  da sua actividade.

O arguido P.... pertenceu, como respectivo Presidente, ao Conselho de Administração da VV... de Maio de 2001 a Junho de 2005.

O arguido B...pertence, como administrador, ao Conselho de Administração daquela desde Janeiro de 2002.

E a arguida C... pertenceu, como administradora, ao Conselho  de Administração  da VV...  de Dezembro de 2003 até Junho de 2005.

A direcção e acompanhamento das obras de remodelação e ampliação do Complexo Municipal de Piscinas de ZZZ... ( CMP) era da responsabilidade da VV..., a qual decidia os termos da sua realização.

Os arguidos, como administradores da VV..., acompanhavam todo o processo referente à remodelação e ampliação do CMP, reunindo, analisando, discutindo e deliberando, de forma conjunta, sobre todos os aspectos relacionados com o evoluir daquela.

No âmbito do projecto de remodelação e ampliação do Complexo das Piscinas de ZZZ... houve necessidade de submeter à aprovação da EDP, o projecto na vertente de abastecimento de electricidade e sistema de instalação eléctrica do CMP.

Nessa circunstância, em 26 de Fevereiro de 2004, o respectivo projecto electrónico é enviado à EDP - ZZZ... para aprovação.

No mesmo, da autoria  do Eng. L... e elaborado em Maio de 2003, não foi prevista a construção de um Posto de Transformação (PT) de electricidade privativo do CMP para alimentação de energia a todo o complexo.

O projecto em causa não veio a ser aprovado pela EDP, a qual, em 12 de Abril de 2004, informou por escrito a VV... que a alimentação do CMP exigia a construção de um Posto de Transformação de Média Tensão de forma a ligar o CMP à rede pública, assim possibilitando o abastecimento por linha de média tensão.

O CMP na altura estava dotado de um Posto de Transformação o qual era o utilizado no complexo, antes da remodelação e ampliação, funcionando em Baixa Tensão.

Em face da resposta negativa da EDP, os arguidos, como administradores da VV... viram-se confrontados com a necessidade de adoptar uma solução sendo que a abertura do CMP estava prevista por aquela para 6 de Junho de 2004.

Aproveitando o facto de uma das empresas do consórcio que realizava as obras de remodelação e amplificação do CMP - “F... SA” - ter, em obra, um gerador a gasóleo que fornecia electricidade ao complexo, os arguidos, de forma consensual, resolveram utilizar esse recurso para garantir o abastecimento de energia ao CMP.

Assim, em reunião de 4 de Junho de 2004, os arguidos enquanto membros do Conselho de Administração da VV..., deliberaram - acta n.º 168 do CA da VV... - a aquisição do gerador da F... e adjudicar a esta prestação de serviços de manutenção e abastecimento do mesmo - a partir do Sábado seguinte - de acordo com a proposta de preço diário de 2073,23 euros, até que existisse um novo PT no CMP.

Pensavam assim evitar despesa excessiva resultante da adopção do abastecimento através do PT já existente, o qual careceria de ser adaptado para o efeito, e considerando que o gerador a adquirir poderia ser utilizado posteriormente nas caves do topo Norte do X....

O Conselho de Administração da VV..., apesar de ter deliberado a aquisição do gerador, não concretizou essa compra e adjudicou à F... SA a continuação da utilização do gerador na forma de aluguer, a manutenção e o abastecimento do mesmo por  2.073, 23 euros por dia, o que conduzia a um gasto mensal de 62197 euros.

Entretanto em reunião do CA da VV... - acta 171 de 23 de Junho  de 2004 - os arguidos decidem que a construção de um Posto de Transformação permitiria efectuar o abastecimento de energia ao CMP a um preço inferior.

Lançados consulta - em 26-06-2004 - e concurso - em 26-8-2004 - para fornecimento e instalação de Posto de Transformação, os mesmos viriam a ser anulados em 8-7-2004 e 9-9-2004, respectivamente .

Apenas em 8-3-2005 é feita consulta para a execução do Posto de Transformação.

Entretanto, já em 3-11-2004 a EDP aprovara o projecto contendo os novos termos em que se faria o abastecimento de energia ao CMP (com posto de transformação próprio ) ali apresentado, em 21-10-20043, pela VV... .

Em 23 de Março de 2005 efectiva-se a adjudicação à empresa Euromatel da construção, pelo valor de 30151,45€ do Posto de Transformação, acrescido de 1650€ correspondentes ao disjuntor a colocar naquele.

Em 21 de Abril de 2005, após conclusão da construção do PT, a VV... requisita a ligação do PT à EDP, a qual, em 13 de Setembro efectua a vistoria indispensável.

Na sequência da intervenção da Direcção Regional do Centro do Ministério da Economia, não é permitida a entrada em funcionamento do PT, devido a deficiências detectadas, designadamente, o gerador instalado não se encontrava licenciado e havia que identificar quadros de BT e apresentar projecto eléctrico rectificativo.

Após sanar as irregularidades anotadas, em Dezembro de 2005, a VV... solicita nova vistoria à EDP e, realizada esta, apenas em 24 de Janeiro de 2006 se inicia o fornecimento de energia ao CMP pela EDP.

Verifica-se assim que a VV... utilizou o gerador disponibilizado pela “F... SA”, para abastecer o CMP, desde 1 de Junho de 2004 até 23 de Janeiro de 2006, num total de 602 dias de utilização.

Em Junho de 2005 foi efectuada a substituição do gerador inicial por outro menos potente, o que significou uma redução diária de 500 euros no custo de utilização, ou seja, o valor diário passou para 1573,23 euros.

Temos pois que de 1-6-2004 a 31-5-2005 registou-se um total de 365 dias contabilizados a 2073,23 euros por dia, no montante global de 1.129.584,46€, acrescido de IVA, à taxa em vigor na altura.

Do valor em dívida, com referência à data de 9-10-2006, apenas foi pago ao Grupo Lena a quantia de 359943,32€.

Refira-se que no 1.º mês de consumo de energia fornecida pela EDP, pelo PT, em Média Tensão, corrido entre 24-1-2006 e 25-2-2006, o custo apresentou-se como sendo de 9561,64 euros.

Os arguidos, como administradores da VV..., perante o problema do fornecimento de energia ao CMP, incorreram na adopção de soluções erradas em detrimento de outras mais ponderadas, coerentes e económicas.

Com efeito, os mesmos, logo no início, considerando os valores de consumo de energia previstos, deveriam ter contemplado no projecto inicial da parte eléctrica do CMP a construção de um Posto de Transformação.

Para tal haviam sido alertados pelo Engenheiro L..., responsável pela realização do projecto apresentado à EDP e por esta indeferido.

A realização do projecto electrotécnico e o seu pedido de aprovação junto da EDP, ao contrário das boas práticas, foi realizado, já com as obras de remodelação e ampliação do CMP em curso, o que, tecnicamente, não deve ser feito.

Os arguidos deveriam ter acautelado, em tempo útil, a feitura e aprovação do mencionado projecto, obviando às consequências da sua não aprovação pela EDP.

Existindo um PT, que anteriormente ao início das obras abastecia a piscina existente, não se encontra justificação para o facto de não ter sido definida a continuidade desse abastecimento de energia eléctrica, ainda que provisoriamente e enquanto não fosse concluída a obra e o licenciamento do PT privativo do CMP.

Era tecnicamente possível o fornecimento de energia para o CMP sem a construção de um Posto de Transformação, sendo que aquele seria feito em Baixa Tensão.

Seria possível a alimentação em baixa tensão, ou seja sem a necessidade de construção de PT, ainda que os encargos de potência que iriam ser pagos à EDP fossem maiores e o custo da energia em baixa tensão fosse superior ao custo da energia em média tensão.

Os custos desta ligação efectuada pela EDP, seriam de 26500€ mais IVA, no acto da ligação, mais o custo da construção de um ramal, no valor de 5 418,00€ mais IVA, conforme parecer de planeamento da EDP, emitido em 12-2-2004 e comunicado à VV....

O tempo de execução seria de 15 dias para a EDP apresentar o orçamento final e de 20 dias para execução, depois de ter sido efectuado o pagamento dos valores acima mencionados .

O custo da energia seria um pouco mais cara por ser fornecida em BT, sendo de aproximadamente mais 500 euros mês, ou seja, tendo como referência o primeiro mês de facturação da EDP - 24-1-2006 a 25-2-2006 - que foi de aproximadamente 9500 euros (mais precisamente 9561,64 euros) em Média Tensão (MT) ficaria em cerca de 10000€ em BT.

Ou seja, o custo da energia fornecida pela EDP seria de 41918€ (26 500 + 5418 + 10 000) no primeiro mês e de aproximadamente 10000€ nos meses seguintes, contra os cerca de 62000€ pagos mensalmente à Construtora .

A decisão de aquisição/adjudicação do gerador de 800 KVA à “F... SA”, ao arrepio das correctas práticas de decisão, não foi antecedida de qualquer consulta de preços ou concurso aberto entre possíveis fornecedores.

Sendo certo que a empresa em causa não se mostra vocacionada para a venda/aluguer de equipamentos de fornecimento de energia, mas antes para as actividades de construção civil.

Ao tempo em que os arguidos optaram pela aquisição/aluguer do gerador, caso tivessem feito indagações prévias de preços e condições teriam constatado que o fornecimento de energia com gerador a gasóleo, em média, é o dobro do preço da tarifa em Baixa Tensão.

Constatariam igualmente que, para um gerador de potência igual ao existente inicialmente no CMP, o seu aluguer diário, com consumos de 41 litros/hora de gasóleo ,ascenderia a um valor médio de cerca de 1269 euros por dia (IVA incluindo), conforme elementos fornecidos pelas empresas Sinergética e Satelci, dedicadas ao aluguer de geradores.

Os arguidos não efectuaram uma leitura correcta e ponderada do tempo que, previsivelmente, iria decorrer desde o indeferimento do projecto inicial até à normalização do fornecimento de electricidade pela EDP.

Assentaram a sua previsão num máximo de dois meses quando na realidade, tiveram de lançar uso da solução por si adoptada, durante 602 dias.

Em face das condicionantes existentes - necessidade de consultas para fornecimento e instalação de PT , vistorias várias, necessidades de correcção de erros e irregularidades, demoras imputáveis a terceiros, como a DRC do Ministério da Economia e EDP - não seria expectável que a situação se regularizasse a breve trecho tal como os arguidos previram.

A decisão tomada pelos arguidos - formalizada na acta n.º 168 de 4/6/2004 - foi ditada pela adopção da solução mais rápida e fácil, face à iminência da chegada do dia previsto para a inauguração do CMP, 6-6-2004.

Existiram ainda uma série de factos que provocaram um enorme atraso na adjudicação e construção do PT, assim como na sua entrada em funcionamento:

- O projecto em causa é aprovado pela Direcção Regional do Centro do Ministério da Economia, apenas em 3-11-2004.

- Apenas em 17-03-2005, e depois de mais uma consulta pública de preços, o CA da VV... logrou adjudicar o fornecimento e montagem do PT.

- A VV... não procedeu à legalização do gerador junto da entidade competente - Direcção Regional do Centro do Ministério da Economia, a qual exigiu a obtenção da necessária licença.

  Os arguidos, como administradores da VV..., com base nos conhecimentos próprios e nos aconselhamentos técnicos e económicos que obtiveram junto de diversas entidades, públicas e privadas, teriam necessariamente de ter decidido pelo fornecimento de energia eléctrica, a titulo provisório, através do PT da EDP Já existente, como sendo a melhor e mais segura solução.

  Não tendo sido previsto no projecto electrotécnico a construção de um PT e face à não aprovação daquele pela EDP, tal teria sido a solução lógica, ponderada, racional e economicamente adequada.

  A administração da VV... tinha a consciência de que a construção do PT próprio e sua ligação à rede, nunca seria feita a curto prazo, face à necessidade, entre outras, de proceder à consulta de preços para adjudicação do serviço e às normais delongas do evoluir do processo até obter energia da EDP, pelo que nunca deveria ser adjudicado o aluguer de um gerador que sabia, no mínimo , originar uma facturação de 62197 euros.

  Ao praticarem os factos acima relatados os arguidos causaram um prejuízo que pode quantificar num montante significativo, rondando um milhão de euros, correspondente à diferença de despesas verificada entre a opção por eles assumida, num total de 1129584,46€, sem IVA, e a que ocorreria se tivessem optado pela solução oferecida pelo gabinete de planeamento da EDP, em que, depois da realização do pagamento relativo às parcelas do PT e da linha de Media Tensão (26500 euros + 5418 euros) acresceria um valor de consumo mensal na ordem dos 10000 euros a valores de Fevereiro de 2006.

  Os arguidos actuaram no interesse e proveito da empresa que administravam, a VV....

  Ao tomarem a decisão de manterem para abastecimento de energia ao CMP o gerador da “F... SA”, pagando por tal utilização os valores acima mencionados, os arguidos estavam cientes dos custos económicos e financeiros de tal decisão .

  Desinteressaram-se e ignoraram a real possibilidade da utilização do gerador se arrastar por um período dilatado de tempo, muito superior ao inicialmente previsto, originando os custos que vieram a ocorrer.

  Desprezaram a possibilidade dos custos inerentes à utilização  do gerador se acumularem a atingirem um valor muito significativo.

  Actuaram em comunhão de esforços e intenções levando à prática, de forma conjunta, uma decisão tomada de forma consensual entre eles.

  Agiram de forma livre, consciente e voluntária, aceitando a possibilidade das suas condutas determinarem a prática dos actos que sabiam ser proibidos por Lei».


*

3. Por sua vez, o despacho recorrido é do seguinte teor, nas passagens que temos como relevantes:

«1. Relatório:

O DM do MP  deduziu acusação,  requerendo o julgamento  perante Tribunal Singular  dos arguidos :

- P... (…);

- B... (…);

- C... (…), 

imputando-lhes a prática, em co-autoria material, de um crime de administração danosa p. e p. pelo art. 235.º do Código Penal.

Inconformado com o despacho de acusação veio o arguido B... requerer a abertura da fase da instrução, a fls. 512 ss, e 195 ss alegando, em síntese (…).

Inconformado com a acusação deduzida veio o arguido P... requerer a abertura da fase da instrução alegando, no essencial, que falta um dos requisitos da intencionalidade do crime de administração danosa imputado; mais invoca a nulidade da acusação por não especificar o motivo que leva a imputar a conduta a título de dolo e não a título de negligência existindo apenas a remissão para um chavão sem que se descortine em que consiste a actuação subjectiva presumindo-se o dolo do arguido; a acusação não se encontra devidamente fundamentada em conformidade com o exigido por lei no que concerne aos elementos subjectivos do crime imputado.

Com tais fundamentos conclui requerendo a não pronúncia do arguido e subsequente arquivamento dos autos.

2. Saneamento:

O Tribunal  é competente .

Inexistem nulidades ou questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer além da seguinte:

Nulidade da acusação por insuficiência de factos no que tange aos elementos subjectivos do crime de administração danosa imputado, por violação do disposto no art. 283.º, n.º 3, alínea b), do CPP. 


*

Os requerentes de modo expresso ou implícito invocam a referida nulidade como se atesta dos respectivos requerimentos de abertura de instrução .

O DM do MP pronunciou-se a fls. 627 pelo deferimento de tal nulidade com as legais consequências .

                                                 *

Imputa-se aos arguidos a prática dos seguintes factos:

(…).

                                                 *

No que concerne ao crime de administração danosa p. e p. pelo art. 235.º a lei estabelece que «Quem, infringindo intencionalmente normas de controlo ou regras económicas de uma gestão racional, provocar dano patrimonial importante em unidade económica do sector público ou cooperativo é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias».

A conduta típica do crime em causa analisa-se numa actividade não de execução livre mas «uma combinação do modelo de execução vinculada e de execução típica. Por um lado, o dano tem de ser produzido infringindo intencionalmente normas de controlo ou regras económicas de uma gestão racional; por outro lado, inversamente, tal pode acontecer sob as formas ou procedimentos mais diversificados» - Prof. Costa Andrade, Comentário Conimbricense, tomo II , p. 542.

A punição através do art. 235.º do Código Penal postula uma dupla exigência quanto ao respectivo elemento subjectivo: em primeira linha a intencionalidade dos factos praticados em violação das normas de gestão racional e, em segunda linha, a verificação das consequências desses mesmos factos que têm de ser abrangidas por qualquer forma de dolo, incluindo o dolo eventual.

Ou seja , a tipicidade do crime de administração danosa implica «a verificação dolosa não só relativamente aos factos mas também às consequências» - cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 10-03-2004 relatado pelo Exm.º Juiz desembargador Dr. Serafim Alexandre, acessível in www.dgsi.pt .

   O crime em causa só é punível a título de dolo , afastando-se a mera negligência com o fim de «afastar da vida dos negócios o perigo, ainda muito grande, do medo da responsabilidade» - Prof. Costa Andrade ob. cit. p. 551.

Já no preâmbulo do  Dec. Lei 48/95 de 15 de Março o legislador estabelecia que:«… Daí que não seja punível o acto decisório que, pelo jogo combinado de circunstâncias aleatórias provoca prejuízos, mas só aquelas condutas intencionais que levam à produção de resultados desastrados. Conceber de modo diferente seria nefasto - as experiências estão feitas - e obstaria que essas pessoas de melhores e reconhecidos méritos receassem assumir lugares de chefia naqueles sectores da vida económica nacional».

O dolo em relação aos actos de violação das normas de controlo ou regras económicas de uma gestão racional tem de se traduzir num acto de específica intenção, ou seja de dolo directo, afastando-se deste modo o dolo necessário e eventual mas também não sendo exigível um elemento subjectivo da ilicitude.

Trata-se «(…) de um facto congruente no que toca às relações entre o tipo objectivo e subjectivo, não se fazendo intervir qualquer intenção de obtenção de vantagem ou produção de prejuízo (como acontece com o crime de infidelidade, art. 224.º). O dolo tem de abarcar todos os elementos da factualidade típica. Se em relação à violação de normas de controlo ou regras económicas se exige uma específica intenção (que afasta nos termos gerais o dolo eventual) já em relação ao resultado típico bastará o dolo eventual» - cfr. Prof. Costa Andrade , ob. cit. p. 552.

Compulsados os factos descritos na acusação verifica-se que se parte do princípio de que a actuação dos arguidos de em 4 de Junho de 2004, enquanto membros do Conselho de Administração deliberaram a aquisição do gerador da F... e adjudicaram a prestação de serviços de manutenção e abastecimento do mesmo - a partir do Sábado seguinte - de acordo com a proposta de preço diário de 2073,23 euros, até que existisse um novo PT no CMP constituiu um acto de violação de uma gestão racional perante o problema de fornecimento de energia ao CMP, com a adopção de soluções erradas em detrimento de outras mais ponderadas, coerentes e económicas.

Mas em relação ao elemento subjectivo não resulta da acusação que os arguidos tenham actuado com dolo directo em relação a tais violações; ou seja e em conformidade com o disposto no art. 14.º , n.º 1 do CPenal , existe dolo directo quando o gente actua representando um facto que preenche um tipo de crime actua com intenção de o realizar.

Ou seja, o dolo directo ou de 1.º grau a realização do facto típico é o fim, i. é o objectivo imediato da acção do agente sendo irrelevante que este objectivo imediato seja o único objectivo do agente ou seja um meio para a realização de um outro facto típico.

  Já no dolo necessário a realização do facto típico não é o objectivo imediato da conduta mas o agente sabe que tal realização é uma consequência certa, ou quase certa, da sua conduta.

  Por fim, o dolo eventual analisa-se em o agente representar como possível a realização do facto típico e conformar-se com o risco de a sua conduta vir, efectivamente, a realizar tal facto - cfr. art. 14.º , n.º 3 do CP.

Cfr. Prof. Taipa de Carvalho , Direito Penal Parte Geral , 2008 p. 325.

  Ora, e voltando ao caso concreto, resulta da acusação que os arguidos agiram pensando que assim evitariam uma despesa excessiva resultante da adopção do abastecimento através do PT já existente, o qual careceria de ser adoptado para o efeito, e considerando que o gerador a adquirir poderia ser utilizado posteriormente nas caves do topo Norte do X.... Mais se refere na acusação que a decisão tomada pelos arguidos foi ditada pela adopção da solução mais rápida e fácil , face à iminência da chegada do dia previsto para inauguração do CMP, 6-6-2004.

Dos factos acima referidos é manifesto que não resulta uma actuação com dolo directo por parte dos arguidos em relação à violação de regras de gestão. Ou seja, os arguidos terão  tomado tal decisão, não com o fim em si mesmo de tal violação mas adoptaram a decisão com vista a evitar,  na altura em que a terão tomado, excessivos gastos e ainda em face da  iminência da chegado do dia previsto para a inauguração, na própria tese da acusação.

  Mais se refere na acusação que a actuação dos arguidos ao desinteressarem-se e ignorarem a possibilidade da utilização do gerador se arrastar por um período dilatado de tempo, muito superior ao inicialmente, originando custos que vieram a ocorrer e desprezaram a possibilidade dos custos inerentes à utilização do gerador se acumularem e atingirem um valor muito significativo o que permite para a existência de circunstâncias que não foram abrangidas por qualquer forma de dolo, mas apenas a título de negligência .

  Por outro lado, resulta da própria acusação que o fornecimento de energia eléctrica através do gerador foi equacionado como uma solução meramente provisória, e que o  aluguer do gerador foi realizado supondo a construção  do PT privativo do CMP e que iria previsivelmente determinar o fornecimento de energia eléctrica, em média tensão, portanto com um custo inferior àquele que previsivelmente seria através do fornecimento em baixa tensão .

Em conformidade a factualidade alegada em sede de acusação, e nos termos acima expostos não permite concluir pela actuação por parte dos arguidos de violação intencional de regras de gestão não se encontrando em termos factuais preenchido o elemento subjectivo do crime de gestão danosa imputado.

  Quanto à solução jurídica para o caso seguem-se os argumentos do douto Acórdão da Relação de Lisboa de 30-1-2007, relatado pelo Exm.º Juiz Desembargador Dr. José Adriano, acessível in www.dgsi.pt:

«I - É nula a acusação pública - conduzindo à sua rejeição por ser de reputar manifestamente infundada - quando a mesma é omissa quanto aos factos que integram o elemento subjectivo do crime imputado ao arguido.

II - Concluindo o juiz de instrução que a acusação não contém todos os pressupostos - nomeadamente, de facto - de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, só lhe resta a alternativa de proferir despacho de não pronúncia, nos termos do art. 308.º, n.º 1, in fine, do CPP.

III - Não pode, naquele caso, o juiz de instrução devolver o processo ao MP, para reformular a acusação declarada nula».

 A nulidade, no caso concreto, decorre do disposto no art. 283.º , n.º 2 al. b) , 120.º n.ºs 2 e 3 alínea c) do CPP.

Se em princípio, a declaração de invalidade de um acto determina a sua repetição, sempre que esta seja necessária e ainda seja possível, podendo o processo ser remetido para a fase de inquérito, há que trazer à colação que se não tivesse sido requerida a instrução o processo seria remetido para a fase de julgamento e o respectivo juiz ao proferir despacho ao abrigo do art. 311.º, do CPP e constatando a escassez de factos para preenchimento do tipo legal de crime imputado, deveria rejeitar a acusação, por manifestamente infundada, ao abrigo do n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do mencionado normativo legal.

Igualmente, caso tal falha não tivesse sido detectada nestas fases processuais e o processo chegasse a julgamento, ao lavrar a sentença, o juiz julgador, perante a insuficiência dos factos, só tinha uma solução: absolver o arguido.

Isto porque, perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32.º, n.º 5, da CRP), o tribunal - leia-se o juiz -, na sua natural postura de isenção, objectividade e imparcialidade, cujos poderes de cognição estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não pode nem deve dirigir recomendações ou convites para aperfeiçoamento, muito menos ordenar, ao MP, para que este reformule, rectifique, complemente, altere ou deduza acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais - assistente ou arguido. Ou seja, perante uma acusação deduzida contra certo arguido e por determinados factos, integrantes de um dado tipo legal, o juiz de julgamento tem de limitar-se a conhecer daquela concreta acusação que foi formulada, aceitando-a ou não a aceitando, condenando ou absolvendo, consoante a fase processual. Não tem uma terceira alternativa, a de sugerir ou ordenar a rectificação ou aperfeiçoamento da acusação, voltando os autos ao anterior momento do encerramento do inquérito. O mesmo se passa com o juiz de instrução. Requerida esta fase pelo arguido para contrariar a acusação pública, ou particular nos casos de procedimento dependente de acusação particular, o JIC, chegado o momento de sobre ela decidir, ou considera que aquela contém todos os elementos essenciais e que há “indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena …” e, então, profere despacho de pronúncia, ou faz um juízo negativo e profere despacho de não pronúncia. Não pode ordenar, perante a insuficiência de factos, que os autos voltem ao MP - ou ao acusador particular - para que seja completada a acusação  -  cfr. Acordão citado .

Note-se que veio a ser fixada jurisprudência no caso de insuficiência de facto do próprio requerimento de abertura de instrução cfr Acórdão n.º 7/2005, de 12/05/2005, do Plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

«Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287.º, n.º 2, do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».

Ora tal convite também não pode ser extensível ao MP.

Resulta do próprio acórdão uniformizador, «a falta de narração de factos na acusação conduz à sua nulidade e respectiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada (4), nos termos dos arts. 283.º, n.º 3, alínea b), e 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP (…). Significante, ainda, estar vedado ao juiz do julgamento direccionar convite ao Ministério Público para complementar o elenco factual acusatório, ante e com apoio nos peremptórios termos do citado art. 311.º, n.º 3, alínea b)».

Também o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 358/04, de 19/05, in Proc. 807/03, publicado no DR 2.ª série, de 28/06/046 decidiu:

«A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre aos quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução (…). «Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura de instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas no n.º 3 do art. 283.º, do Código de processo Penal. Tal exigência decorre […] de princípios fundamentais de processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória», referindo-se ainda, no mesmo acórdão, «que tal exigência é suficientemente justificada e legitimada, “sendo a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa”».


*

4. Decisão:

Pelo exposto, declaro encerrada a instrução e decido não pronunciar os arguidos P..., B..., C... pela prática do crime de administração danosa p. e p. pelo art. 235.º do C . Penal, e consequentemente, determinar o arquivamento dos autos.

Sem custas,  por não serem devidas.

Registe e notifique».


*

4. Do mérito do recurso:

4.1. Da invocada nulidade do despacho de não pronúncia, por falta de fundamentação:
Em consonância com o norma do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, impõe o n.º 5 do artigo 97.º do Código de Processo Penal, a fundamentação dos actos decisórios, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
A consagração do dever legal de fundamentação exige que o despacho ou sentença judicial (cfr. artigo 374.º daquele diploma) contenham o substrato factual e as razões de direito que conduziram a que a declaração decisória do tribunal se formasse em determinado sentido, permitindo, assim, que os sujeitos processuais visados e, no fundo, a própria comunidade, possam apreender o processo lógico ou racional que subjaz à decisão.
Como acentua Marques Ferreira, um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com razões que hão-de impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhe subjaz[1].
Porém, no caso dos despachos judiciais, satisfaz a exigência da citada norma a indicação sucinta dos factos e da razão jurídica que serve de fundamento à decisão.
Analisando o despacho recorrido, não se pode dizer que seja prolixo no cumprimento dos referidos requisitos. Mas também temos como evidente que dá a conhecer com suficiência os motivos que determinaram o sentido decisório, traduzidos, em suma, na falta de narração, em plenitude, no libelo acusatório deduzido pelo Ministério Público, do elemento subjectivo do tipo de crime de administração danosa, p. e p. pelo artigo 235.º, n.º 1, do Código Penal, deficiência que conduziu, pelas razões claramente invocadas, com recurso a jurisprudência, desde logo, ou seja na fase prévia de saneamento a que se reporta o n.º 3 do artigo 308.º, do Código de Processo Penal, sem necessidade, portanto, de averiguação da in(suficiência) de indícios e, assim, de cumprimento do disposto no n.º 2 do referido artigo, à declaração de nulidade da acusação e, em consequência, à não pronúncia dos arguidos.
Se a fundamentação e o acto decisório em causa são juridicamente correctos, essa é outra questão que, em momento próprio, cumpre apreciar.   
Porém, ainda que existisse falta de fundamentação do despacho recorrido, o que, como vimos, não é o caso, tal omissão, por não estar expressamente prevista como nulidade pela lei, consubstanciaria mera irregularidade (cfr. art. 118.º do CPP), que, por não ter sido arguida no prazo e nos termos previstos no artigo 123.º do mesmo Código, teria de se considerar já sanada no momento em que o recurso do Ministério Público foi interposto.

*

4.2. Se a acusação pública contém os factos consubstanciadores do tipo subjectivo do crime de administração danosa:

Dispõe o art. 283.º do Código de Processo Penal:

«1. Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele.

2. Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

3. A acusação contém, sob pena se nulidade:

a) (...)

b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática (...);

c) A indicação das disposições legais aplicáveis»;

(…)».

Como se retira da norma citada, é elemento fundamental da acusação a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção, ou seja, os elementos constitutivos do crime. São estes que constituem o objecto do processo daí em diante e são eles que fixam e delimitam o objecto do processo.

A exigência de indicação precisa na acusação dos factos imputados ao arguido, emanação clara do princípio acusatório consagrado no n.º 5 do art. 32.º da Constituição, tem como implicação directa, que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento.

Como realça Jorge Figueiredo Dias[2], a concepção típica de um “processo acusatório” implica a “estrita ligação do juiz pela acusação e pela defesa”, em sede de determinação do objecto do processo como em sede de ponderação de cognição e dos limites da decisão.

E mais adiante (pág. 145), acerca da vinculação temática do tribunal, como efeito consubstanciador dos princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal, afirma este autor:

«Deve pois afirmar-se que objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (...) e a extensão do caso julgado».

«As garantias de defesa a que se refere o art. 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental, inculcam, assim, a necessidade de o arguido conhecer, na sua real dimensão, os factos de que é acusado, para que deles possa convenientemente defender-se.

 E isto implica, nomeadamente, que não possa ser surpreendido em julgamento com factos que a acusação lhe não tivesse posto “diante dos olhos”»[3].

Como alerta Germano Marques da Silva[4], «A descrição dos factos e de todas as circunstâncias pertinentes deve ser muito cuidada, pois se é certo que na fase de julgamento podem ser ainda consideradas as circunstâncias que não impliquem alteração substancial dos factos (artigo 358.º), é de todo o interesse que todas as circunstâncias conhecidas no momento da acusação sejam nela descritas para serem objecto de defesa, de apreciação no julgamento e consideradas na decisão».

Em suma, a acusação deve conter os factos relevantes para a imputação do crime e a determinação da espécie e da medida da sanção.


*
É chegado o momento de ver se a lei impõe que, da acusação, conste a imputação expressa do tipo objectivo de crime imputado ao(s) arguido(s), ou se bastará a dedução dos respectivos elementos a partir da narração dos factos que aquela peça processual contenha.
A jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores tem marcado posições antagónicas sobre esta questão.
Assim, o Ac. da Relação de Guimarães de 7 de Abril de 2003[5], embora a propósito do crime de difamação imputado, necessariamente, em acusação particular deduzida por assistente, perfilhou o entendimento da não existência de presunções de dolo e, por isso, não ser possível afirmar a sua existência a partir, simplesmente, das circunstâncias externas da acção concreta.
Nele se escreveu a dado passo: «A tese de que é desnecessária a referência expressa à conduta dolosa (…), não pode ser acolhida.
(...)
Nos nossos dias ninguém sustenta a existência de presunções de dolo. Processualmente, o dolo só é apreciado de forma indirecta, através de actos de natureza externa, mas é sempre necessário comprovar a existência dos diversos elementos constitutivos e relacioná-los com as pertinentes circunstâncias típicas da parte especial (cfr. Figueiredo Dias, RLJ, Ano 105.º, n.º 3.474, pág. 125, sendo “absolutamente indispensável, em qualquer campo do direito penal, a velha e ultrapassada ideia de um “dolus in re ipsa” que sem mais resultaria da comprovação da simples materialidade de uma infracção”.
(...).
Não se pode pois ter como implícita ou subentendida a descrição do dolo na acusação particular».
Posição diversa manifestou o voto de vencido inserido no referido acórdão. Nele, considerou-se que a lei exige a indicação de factos e não de conclusões que reduzem o dolo a fórmulas vulgarmente usadas, tais como “o arguido quis lesar ...”, ou “o arguido agiu com dolo ...”, ou ainda “o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei”, ou, por fim, “o arguido tinha plena consciência da ilicitude da sua conduta”. Com tais fórmulas, acrescenta-se, ou é referido aquilo que se deduz dos factos alegados ou, então, reafirmam-se conclusões que dos mesmos factos se extraem.
Em igual sentido caminhou o Ac. da Relação de Guimarães 6 de Outubro de 2004[6], do qual foi relator o Ex.mo Sr. Desembargador que lavrou o voto de vencido a que se aludiu supra.
Para além dos excertos que se citaram, ficou escrito neste aresto:
«Não se trata de se aceitarem “presunções de ilícito”, mas sim da relevância criminal de certos factos, aos quais sempre se podem opor outros que impeçam a perfeição do tipo ou que integrem causas justificativas ou de exclusão da ilicitude.
Assim sendo - como parece que é - torna-se irrelevante a inclusão antecipada de qualquer conclusão e muito menos o uso de fórmulas.
(...) O que legislador pretende é que ao submeter-se uma pessoa a julgamento se defina aquilo que ela “fez” e a postura subjectiva com que agiu e não que se utilizem expressões sedimentadas pela prática que se apliquem a todos os casos.
(...)».
Aderimos, sem qualquer reserva, à primeira das duas posições expostas, pelas justas razões expostas no Acórdão que se vem de referir.
E assim é, independentemente de tomarmos posição acerca da  vexata quaestio doutrinária, traduzida em saber se o dolo constitui matéria de facto ou matéria de direito, muito embora se diga que o Supremo Tribunal de Justiça vem unanimemente referindo, a propósito da amplitude dos seus poderes cognitivos no âmbito da “revista alargada”, essencialmente quanto ao crime de homicídio, que a intenção definidora do dolo directo constitui matéria de facto[7].
Efectivamente, há quem entenda que a “representação” e a “vontade” tidas como elementos do dolo penal não são fenómenos (ou factos) mentalísticos, mas sim conceitos mentalísticos, que não são descritivos, mas explicativos e valorativos, e que, como todos os conceitos, mais não são do que o arrimo para a resolução de um determinado problema, para a fixação de uma específica intencionalidade - problema e intencionalidade esses que são jurídicos[8].
Seja como for, não é permitido no nosso sistema jurídico a aplicação de qualquer tipo de sanção sem que ao arguido seja garantida uma das exigências  fundamentais do Estado de Direito material: o direito de defesa, na dupla vertente, de facto e de direito.
O ponto de vista que ao direito importa é a referência dos acontecimentos às normas jurídicas, e ao processo, os comportamentos humanos que por lei são declarados passíveis de sancionamento.
Neste sentido, o direito de defesa tem de ser configurado também em função da consequência jurídica decorrente do concreto substracto factológico imputado ao arguido.
Os factos jurídicos processuais que hão-de constar da acusação são, por isso, todos os que integram os pressupostos necessários à procedência do pedido (a aplicação da sanção solicitada).
O agente, para poder ser punido a título de dolo, há-de ter representado e querido praticar um certo acto que é tipificado na lei penal como crime.
Seguindo de novo Germano Marques da Silva[9], «O processo penal com estrutura acusatória limita o objecto do processo ao facto descrito na acusação. Entendemos que a delimitação do facto se há-de fazer necessariamente em função das normas incriminadoras mencionadas na acusação e que revelam qual o bem jurídico protegido e, muitas vezes, os termos limitados da protecção desse bem jurídico, pois que só o facto, enquanto alegadamente delitivo (facto qualificado), interessa ao processo e tem virtualidade para que o processo se abra e prossiga. O facto puro desqualificado, não existe para o direito, é uma entequélia. A acusação só pode ser recebida enquanto os factos descritos na acusação correspondam a um tipo legal incriminador».
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Sobre a estrutura do dolo, é ponto indiscutível que o mesmo é composto por um elemento cognitivo ou intelectual e por um elemento volitivo.
«Basicamente… dolo corresponde ao conhecimento e à vontade de praticar um certo acto que é tipificado na lei como crime»[10].
Para se poder afirmar que o agente actuou dolosamente, tem, em primeiro lugar, que se poder dizer que o agente conhecia os elementos essenciais do tipo que a sua conduta objectivamente preenche. Não um conhecimento vivo, nítido, reflectivo acerca dos elementos objectos do tipo, mas unicamente um conhecimento que possibilite a percepção das coordenadas básicas da realidade objectiva.
A representação intelectual relevante relativa aos elementos normativos do tipo não tem de consistir numa exacta apreciação ou conhecimento técnico-jurídicos, mas tão-só numa “valoração paralela na esfera do leigo”[11].
Por sua vez, o elemento volitivo do dolo consubstancia-se na vontade de realizar um certo comportamento e/ou de obter um determinado resultado.
É comum distinguir três modalidades de dolo, assentando a distinção entre elas sobretudo - mas não exclusivamente -, em diversas configurações do referido elemento volitivo.
De acordo com a previsão do artigo 14.º do Código Penal, o dolo apresenta-se sob as formas de directo, necessário ou eventual.
No dolo directo, o agente actua com intenção de realizar o facto típico, ou seja, com vontade de praticar o facto previsto num determinado tipo-norma penal. Daí que, tradicionalmente, se identifique esta espécie de dolo com o termo “intenção”.
No dolo necessário, o desiderato do agente, ao agir, não é a realização do facto que preenche um tipo de crime, mas outro facto. Simplesmente, ao querer este segundo facto, o agente representa como consequência necessária da sua conduta o facto típico, aceitando, ao actuar, tal consequência.
Por fim, o dolo eventual, onde o elemento intelectual é definido pela possibilidade de produção do facto típico, caracterizando-se o elemento volitivo pela aceitação da produção do facto típico, representado como possível em consequência da conduta do agente.
Em relação à maioria dos crimes, qualificar um certo acontecimento a título de dolo ou de negligência significa escolher entre a punibilidade e a impunidade da conduta.
O problema coloca-se com maior acuidade quando em causa estão figuras tão próximas quanto são o dolo eventual e a negligência consciente.
Segundo o disposto no artigo 15.º, alínea a) do Código Penal, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
«a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto».
Como vimos, no dolo eventual, o agente prevê um certo resultado como possível e age no quadro dessa aceitação, enquanto no domínio da negligência consciente, age com consciência do perigo criado, mas se convence que ele não se irá verificar.
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Dispõe o artigo 235.º do Código Penal [texto introduzido pelo DL n.º 48/95, de 15-03, que não sofreu alteração com a revisão do CP, levada a efeito pela Lei n.º 59/2007, de 04-09]:
«1 - Quem, infringindo intencionalmente norma de controlo ou regras económicas de uma gestão racional, provocar dano patrimonial importante em unidade económica do sector público ou cooperativo é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias».
O preâmbulo do Código Penal (versão originária) explica-nos as razões do referido tipo de crime, embora por referência aos pretéritos artigos 332.º e 333.º, nos seguintes termos: «sublinhe-se a consagração de um capítulo especial relativo aos chamados “crimes contra o sector público ou cooperativo agravados pela qualidade do agente”. Visa-se, assim, proteger penalmente um vasto sector da economia nacional mas não tolher os movimentos dos responsáveis que os representam. Sabe-se que a vida económica se baseia, muitas vezes, em decisões rápidas que envolvem riscos, mas que têm de ser tomadas sob pena de a omissão ser mais prejudicial que o eventual insucesso da decisão anteriormente assumida. Daí que não seja punível o acto decisório que, pelo jogo combinado de circunstâncias aleatórias, provoca prejuízos, mas só aquelas condutas intencionais que levam à produção de resultados desastrosos. Conceber de modo diferente seria nefasto - as experiências estão feitas - e obstaria a que essas pessoas de melhores e reconhecidos méritos receassem assumir lugares de chefia naqueles sectores da via económica».
Tem vindo a ser entendido em relação ao crime em análise, na vertente objectiva:
- É um crime específico próprio que só pode ser praticado por quem detiver certas qualidades pessoais, nomeadamente o estar incumbido da gestão de unidade do sector público ou cooperativo fundamentando tais elementos a própria ilicitude do facto[12];
- O sujeito passivo é a entidade pública ou do sector cooperativo;
- Ao nível da conduta típica, «obedece a uma combinação do modelo de execução vinculada e de execução típica. Por um lado, o dano tem de ser produzido “infringindo intencionalmente normas de controlo ou regras económicas de uma gestão racional”; por outro, inversamente, tal pode acontecer sob as formas ou os procedimentos mais diversificados»[13]. Com a fórmula “normas de controlo ou regras económicas de uma gestão racional”, «terá o legislador pretendido significar o conjunto de deveres objectivos de cuidado pertinentes às legis artis duma gestão responsável, em última instância apostada em minimizar os custos e maximizar os proventos. Terá, noutros termos, pretendido sinalizar as exigências de “uma gestão sã e independente”… ou, noutra das formulações legais, da “diligência de um gestor criterioso e ordenado…»[14];
- Sendo um crime material de dano, pode ser praticado através de omissão (imprópria). «Será assim sempre que o omitente, violando o seu dever de garante, deixe de levar a cabo as acções capazes de evitar um prejuízo ou de assegurar um ganho patrimonial»[15];
- o resultado da acção típica é a ocorrência efectiva de um “dano patrimonial importante”;
Quanto ao tipo subjectivo e em relação à violação das “normas de controlo ou regras económicas” se exige dolo directo. É o que resulta, afigura-se-nos, do inciso “intencionalmente”. No mais, ou seja, no que tange ao resultado típico, bastará qualquer modalidade de dolo, inclusive o dolo eventual[16].
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Passando ao caso concreto dos autos, é evidente que a ausência de dolo (directo) não repousa nas razões concretizadas no parágrafo 5.º de fls. 22 da decisão instrutória [«… resulta da acusação que os arguidos agiram pensando que assim evitariam uma despesa excessiva resultante da adopção do abastecimento através do PT existente, o qual careceria de ser utilizado posteriormente nas caves do topo Norte do X.... Mais se refere na acusação que a decisão tomada pelos arguidos foi ditada pela adopção da solução mais rápida e fácil, face à iminência da chegada do dia previsto para inauguração do CMP, 6-6-2004»].

Acolhemos aqui as considerações tecidas pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, quando escreve: «Ora, como bem explicita o Ministério Público… o que se pretendeu descrever» nos parágrafos 4.º e 5.º de fls. 4 da acusação, correspondente a fls. 410 dos autos [«Assim, em reunião de 4 de Junho de 2004, os arguidos enquanto membros do Conselho de Administração da VV..., deliberaram - acta n.º 168 do CA da VV... - a aquisição do gerador da F... e adjudicar a esta prestação de serviços de manutenção e abastecimento do mesmo - a partir do Sábado seguinte - de acordo com a proposta de preço diário de 2073,23 euros, até que existisse um novo PT no CMP; Pensavam assim evitar despesa excessiva resultante da adopção do abastecimento através do PT já existente, o qual careceria de ser adaptado para o efeito, e considerando que o gerador a adquirir poderia ser utilizado posteriormente nas caves do topo Norte do X...], «é que…os arguidos ponderaram inicialmente um negócio de compra e venda de um gerador, mas que intencionalmente afastaram mais tarde, para celebrar um negócio de aluguer e prestação de serviços que causou à assistente um prejuízo de um milhão de euros».

Por outro lado, o facto descrito no parágrafo 4.º de fls. 9 do libelo acusatório [A decisão tomada pelos arguidos - formalizada na acta n.º 168 de 4/6/2004 - foi ditada pela adopção da solução mais rápida e fácil, face à iminência da chegada do dia previsto para a inauguração do CMP, 6-6-2004], também nada esclarece, obviamente, na referida vertente.
Dito isto, os recorrentes vislumbram nos factos que o Ministério Público elenca na sua motivação de recurso referência expressa ao dolo directo.
Para ver, em pormenor, se assim é, passamos a transcrever de novo tais factos:

«i. Os arguidos, como administradores da VV..., perante o problema do fornecimento de energia ao CMP, incorreram na adopção de soluções erradas em detrimento de outras mais ponderadas, coerentes e económicas.

ii. Com efeito, os mesmos, logo no início, considerando os valores de consumo de energia previstos, deveriam ter contemplado no projecto inicial da parte eléctrica do CMP, a construção de um Posto de Transformação.

iii. Para tal haviam sido alertados pelo Eng. L..., responsável pela realização do projecto apresentado à EDP e por esta indeferido.

iv. Os arguidos, como administradores da VV..., com base nos conhecimentos próprios e nos aconselhamentos técnicos e económicos que obtiveram junto de diversas entidades, públicas e privadas, teriam necessariamente de ter decidido pelo fornecimento de energia eléctrica, a título provisório, através do PT da EDP já existente, como sendo a melhor e mais segura solução.

v. Não tendo sido previsto no projecto electrotécnico a construção de PT e face à não aprovação daquele pela EDP, tal teria sido a solução lógica, ponderada, racional e economicamente adequada.

vi. A administração da VV... tinha a consciência de que a construção do PT próprio e sua ligação à rede, nunca seria feita a curto prazo, face à necessidade, entre outras, de proceder à consulta de preços para adjudicação do serviço e às normais delongas do evoluir do processo até obter energia da EDP, pelo que nunca deveria ter adjudicado o aluguer de um gerador que sabia, no mínimo, originar uma facturação mensal de 62197 euros.

vii. Ao praticarem os factos acima relatados os arguidos causaram um prejuízo que se pode quantificar num montante significativo, rondando um milhão de euros, correspondente à diferença de despesa verificada entre a opção por eles assumida, num total de 1129584,46€, sem iva, e a que ocorreria se tivessem optado pela solução oferecida pelo gabinete de planeamento da EDP, em que, depois da realização do pagamento relativo às parcelas do PT e da linha de Média Tensão, (26500€+5418€), acresceria um valor de consumo mensal na ordem dos 10000€, a valores de Fevereiro de 2006.

viii. Os arguidos actuaram no interesse e proveito da empresa que administravam, a VV....

ix. Ao tomarem a decisão de manterem para abastecimento de energia ao CMP o gerador da “F... SA”, pagando por tal utilização os valores acima mencionados, os arguidos estavam cientes dos custos económicos e financeiros de tal decisão.

x. Desprezaram a possibilidade dos custos inerentes à utilização do gerador daquela se acumularem a atingirem um valor muito significativo.

xi. Actuaram em comunhão de esforços e intenções levando à prática, de forma conjunta, uma decisão tomada de forma consensual entre eles.

xii. Agiram de forma livre, consciente e voluntária, aceitando a possibilidade das suas condutas determinarem a prática de actos que sabiam ser proibidos por Lei».

Contudo, nos factos reproduzidos, tal como na restante matéria de facto, não vemos consagrado, de modo nenhum, a intenção dos arguidos de infringirem normas de controlo ou regras económicas de uma gestão racional. Em abono da verdade, algumas das expressões utilizadas sugerem até a actuação a título de negligência (“deveriam ter contemplado no projecto inicial”; “desprezaram a possibilidade dos custos inerentes à utilização do gerador”).

Chega-se a dizer, inclusivamente, no ponto viii, que os arguidos actuaram no “interesse e proveito da sociedade”, sendo a palavra sublinhada incongruente com a verificação da intenção que o tipo de crime do artigo 235.º exige.

Mutatis mutandis, o mesmo acontece com a descrição contida no ponto xii onde, a final, está sugerida, embora incorrectamente, o dolo eventual ou a negligência consciente.

Mas não ficamos por aqui.

Em determinado passo da acusação, está escrito: os arguidos «assentaram a sua previsão num máximo de dois meses quando, na realidade, tiveram de lançar uso da solução por si adoptada durante 602 dias»; «em face das condicionantes existentes - necessidades de consultas para fornecimento e instalação de PT, vistorias várias, necessidades de correcção de erros e irregularidades, demoras imputáveis a terceiros, como a DRC do Ministério da Economia e EDP - não seria expectável que a situação se regularizasse a breve trecho tal como os arguidos previram» (o sublinhado pertence-nos), referências essas também a indiciar tão só negligência.

Aliás, esse ponto de facto está em evidente contradição com aqueloutro escrito mais adiante, do seguinte teor: «A administração da VV... tinha a consciência de que a construção do PT próprio e sua ligação à rede nunca seria feita a curto prazo (…)».
Não deixaremos de anotar, por fim, as posições divergentes assumidas pelo mesmo Magistrado do Ministério Público no recurso e a fls. 627.
Aqui, tendo “vista” dos autos, rectius, das nulidades invocadas, no requerimento de abertura de instrução, pelo arguido P..., pronunciou-se nos seguintes termos: «Compulsados os autos, salvo melhor entendimento, o constante na douta acusação, no 5.º parágrafo de fls. 410 e 4.º parágrafo de fls. 415, coloca em causa a existência do tipo subjectivo, nomeadamente o último parágrafo de fls. 416 e os quatro primeiros parágrafos de fls. 417 (…)», correspondendo três destes últimos parágrafos aos pontos x, xi e xii supra reproduzidos e tendo o outro a seguinte redacção: «Desinteressaram-se e ignoraram a real possibilidade da utilização do gerador se arrastar por um período dilatado no tempo, muito superior ao inicialmente previsto, originando os custos que vieram a ocorrer».
No recurso, a exegese dos mesmos pontos de facto situou-se nos precisos termos já referidos.


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4.3. Quais as consequências jurídicas da falta de indicação, na acusação, dos elementos relativos ao tipo subjectivo de ilícito?

Versando sobre a finalidade imediata e âmbito da instrução, diz-nos o art. 286.º do CPP que a instrução visa o reconhecimento jurisdicional da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, no sentido de que se não está perante um novo inquérito, mas apenas perante uma fase processual de comprovação (jurisdicional dos pressupostos jurídico-factuais da acusação).

«Encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, que é logo ditado para a acta, considerando-se notificado aos presentes, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução» (art. 307.º, n.º 1 do CPP).

Sobre a natureza da decisão a proferir após o encerramento da instrução, dispõe o art. 308.º do CPP:

«1. Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de um pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
2. É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 283.º, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior.

3. No despacho referido no n.º 1 o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer».

A propósito da questão em aberto, escreve Germano Marques da Silva:

«A instrução destina-se a comprovar a acusação para o que o juiz é competente para ordenar ou praticar os actos de instrução que considere úteis. Se o juiz de instrução conclui que a acusação é incorrecta, ainda que por razões diversas das apontadas no requerimento instrutório, não recebe a acusação».

Se da instrução resultar suspeita de que se verificam factos que representam uma alteração substancial da acusação, não podendo o juiz tomá-la em conta na pronúncia, não poderá também receber a acusação, pois esta não foi comprovada; deverá então proferir despacho de não pronúncia, despacho que recusa a acusação deduzida»[17].

Esta posição ganha maior solidez com a nova redacção conferida ao artigo 303.º do Código de Processo Penal pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.

Dispõe agora o referido normativo:

«1 - Se dos autos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração não substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao defensor, interroga o arguido sobre ela sempre que possível e concede-lhe, a requerimento, um prazo para preparação da defesa não superior a oito dias, com o consequente adiamento do debate, se necessário.

2 - (…).

3 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância.

4 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.

5 - (….)».

Por sua vez, estatui o artigo 309.º do mesmo diploma:

«1 - A decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituem alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.

2 - (…)».

Na definição do artigo 1.º, alínea f), ainda do mesmo Código, constitui alteração dos factos «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».

Segundo Sousa Mendes, «o conceito de factos autonomizáveis resume-se à possibilidade de os desligar daqueloutros que já constituem o objecto do processo, de tal sorte que, sem prejudicar o processo em curso, sejam criadas as condições para se iniciar um outro processo penal sem violação do princípio ne bis in idem (…)»[18].

Para Frederico Isasca, «os factos são autónomos ou autonomizáveis quando podem, por si só e portanto independentemente dos factos que formam o objecto do processo, ser susceptíveis de fundamentar uma incriminação autónoma em face do objecto do processo»[19].

No mesmo sentido, Germano Marques da Silva alude a factos que podem «constituir objecto de novo processo, independentemente do resultado do processo em curso»[20].

Pelo contrário, os factos não são autonomizáveis quando «estão imbrincados nos factos constantes da acusação»[21], «quando não são destacáveis, quando não são cindíveis face ao núcleo essencial»[22], «quando não formam juntamente com os constantes da acusação ou da pronúncia, quando a houver, uma tal unidade de sentido que não permite a sua autonomização»[23].

Na esclarecedora formulação de Marques Ferreira, «factos não autonomizáveis são factos insusceptíveis de valoração jurídico-penal separados do objecto do processo penal em que foram descobertos»[24].

Se o actual regime do Código de Processo Penal, em caso de alteração substancial, não possibilita a comunicação ao Ministério Público para que ele crie novo procedimento pelos novos factos, quando estes não são autonomizáveis em relação ao objecto do processo, por acréscimo de razão, esta via também não pode utilizada no caso evidenciado nos autos, em que se verifica mais do que alteração substancial.

Efectivamente, a falta de narração, na acusação pública, do tipo subjectivo do crime de administração danosa, traduz uma pura inexistência de tipicidade, não sendo, por maioria de razão, neste contexto, admissível, como bem refere o arguido B..., na sua resposta aos recursos, a alteração dos factos da acusação, neste ou noutro procedimento, por forma a que daquela passem a constar factos integrantes de um comportamento típico dos agentes, uma vez que tal alteração, neste caso, consubstanciaria a convolação de uma conduta atípica em conduta típica.

A possibilidade de, após a dedução da acusação pública, na qual não constam todos os elementos típicos do crime imputado, se poder reformular essa peça processual, seria manifestamente violadora do princípio do acusatório e das mais elementares garantias de defesa do arguido.

Sem desprimor para os fundamentos constantes do despacho recorrido, são estes os motivos essenciais que impõem, inexoravelmente, a prolação de despacho de não pronúncia.


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 4.4. Patentemente, a decisão instrutória de não pronúncia não violou os princípios do acusatório e do inquisitório.

É sabido que o processo penal não é um processo acusatório puro, antes se apresenta com estrutura basicamente acusatória integrado por um princípio de investigação, na linha do imperativo constitucional (artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa).

Mas essa estrutura basicamente acusatória é quanto basta para que se consagre a vinculação temática do Tribunal.

Essencialmente, o referido princípio significa que o arguido só pode ser pronunciado e julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do juiz de instrução ou do julgador, sendo a acusação condição e limite da instrução e do julgamento.

A dedução da acusação é, deste modo, pressuposto de toda a actividade jurisdicional de investigação, conhecimento e decisão. Ela afirma publicamente que sobre alguém recai uma suspeita tão forte de responsabilidade que impõe uma decisão judicial; é, deste modo, a afirmação pública e solene de que a comunidade jurídica chama um seu membro à responsabilidade penal.

Todavia, o princípio do acusatório é mitigado pelo princípio da investigação. Este traduz o poder-dever que ao tribunal pertence de esclarecer e instruir autonomamente - isto é, independentemente das contribuições da acusação e da defesa - o facto sujeito a julgamento, criando ele próprio as bases necessárias à sua decisão. Com o mesmo logra-se acentuar convenientemente o carácter indisponível do objecto e o do conteúdo do processo penal, a sua intenção dirigida à verdade material, as limitações indispensáveis que não ponham em causa a liberdade e o direito de defesa do arguido.

Volvendo ao caso dos autos, é apodíctico que o Ministério Público foi o órgão que dirigiu o inquérito e que, a final, deduziu acusação pública.

Por outro lado, não vislumbramos diligência probatória relevante que tivesse sido omitida pelo Sr. Juiz de Instrução.


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4.5. Posto o que já ficou dito, e sem necessidade de maiores considerações, não se verificou violação da norma constitucional vertida no artigo 32.º, n.º 5.

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4.6. Em face de todo o exposto, os recursos são improcedentes, embora, em parte, com base em fundamentos diversos dos contidos no despacho recorrido.

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5. Dispositivo:
Posto o que precede, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento aos recursos do Ministério Público e da assistente VV... -, confirmando, embora, em parte, com base em diversos fundamentos, o despacho recorrido.
Taxa de justiça pela assistente, cujo quantitativo se fixa em 6 UC [artigos 515.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, 82.º, n.º 1 e 187.º, n.ºs 1, al. b) e 3, do Código das Custas Judiciais].
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Alberto Mira (Relator)

Elisa Sales


[1] In Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 203.
[2] Direito Processual Penal, Coimbra, 1974, p. 45.
[3] Ac. do STJ de 06-12-2002, CJ/STJ, Ano X, Tomo III - 2002, pág. 240.
[4] Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 2000, vol. III, pág. 114.
[5] In Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVIII, Tomo II/2003, pág. 291 e ss. No mesmo sentido, consultar, em http://www.dgsi.pt., os Acs. da Relação do Porto de 5 de Julho de 1995 (apenas o sumário), e 13-12-2006, e na CJ, tomo V, 2005, pág. 54, e tomo I, 2007, pág. 45, respectivamente, os Acs. da Relação de Coimbra de 21-12-2005 e 17-01-2007.  
[6] Publicado em http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido podem ver-se os Acs. da Relação de da Relação do Porto de 20-04-1994 e 02-02-2005, e da Relação de Lisboa de 26-09-2001, também publicados na base do ITIJ.
[7] Cfr, a título meramente exemplificativo, os Acs. de: 07-03-2002, proc. n.º 2358/08 - 5.ª Secção; 07-11-2002, proc. n.º 3105/02 - 5.ª Secção; 26-03-2003, proc. n.º 511/03 - 3.ª Secção, e, mais recentemente, 12-03-2009, proc. n.º 08P3781, e 17-02-2011, proc. n.º 227/07.4JAPRT.P2.S1, estes dois últimos publicados, em texto integral, in www.dgsi.pt.
[8] Cfr. Rui Filipe Serra serrão Patrício, O dolo enquanto elemento do tipo penal (no direito português actual): questão-de-facto ou questão-de-direito, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, 1998. Na mesma linha de rumo, v.g., Castanheira Neves, Questão-de-facto/Questão-de-Direito ou o Problema Metodológico da Juridicidade (Ensaio de uma proposição crítica).
[9] Direito e Justiça, pág. 107 e ss.
[10] Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, Vol. II, pág. 180.
[11] Jesheck, Tratado de Derecho Penal, Vol. II, pág. 400 e 421.
[12] Ac. do STJ de 11-02-1998, CJ/STJ, Ano VI, Tomo I, pág. 202, citando Teresa Pizarro Beleza, in Ilicitamente Comparticipando”, 13 “Textos Actualizados de Direito Penal, Vol. 2.
[13] Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, pág. 542.
[14] Manuel da Costa Andrade, idem, págs. 544.
[15] Manuel da Costa Andrade, ibidem, pág. 546.
[16] Num sentido mais restritivo, de que o dolo directo é extensível à conduta e resultado típicos, Cfr. P...Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Portuguesa, anotação ao artigo 235.º, pág. 645, e Acs. do STJ de 02-07-1993, proc. n.º 045981, de 11-06-1997, proc. n.º 97P1191, in www.dgsi.pt, e de 11-02-1998, publicado na CJ/STJ, Tomo I, pág. 199 e ss.
[17] Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 2000, pág. 127.
[18] “O Processo Penal em Acção: Hipótese e Modelo de Resolução”, in Sousa Mendes, Questões avulsas de processo penal, Lisboa, AAFL, 2000, pág. 112.
[19] Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, pág. 203.
[20] Do Processo Penal Preliminar, pág. 369.
[21] Sousa Mendes, idem, pág. 115.
[22] Ivo Barroso, “Estudos sobre o Objecto do Processo Penal”, pág. 71.
[23] Frederico Isasca, idem, pág. 203.
[24]Da Alteração dos Factos Objecto do Processo Penal”, pág. 253.