Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
228/05.7TATND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
SEGURANÇA SOCIAL
DESCRIMINALIZAÇÃO
Data do Acordão: 10/28/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TONDELA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 113.º DA LEI N.º 64-A/2008, DE 31 DE DEZEMBRO, 105.º, N.º1 DO RGIT,
Sumário: A alteração introduzida pelo art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, ao art.105.º, n.º1 do RGIT, não descriminalizou a não entrega total ou parcial, à segurança social de prestação igual ou inferior a € 7500.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Por despacho de 21/5/2009 o Exmo Juiz do 2º Juízo de Tondela, invocando a descriminalização da conduta dos arguidos A..., M... e “T... – Transportes, Lda”, operada pelas alterações introduzidas no crime de abuso de confiança contra a Segurança Social pela lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro e o disposto no art 20 no 2 do CPenal decidiu declarar extintas as penas de prisão e de multa em que os arguidos foram condenados, determinando o arquivamento dos autos.

O Ministério Público, em obediência ao despacho nº 5/2009, de 5 de Fevereiro da PGR de Coimbra, interpôs recurso do despacho, sendo que na respectiva motivação formulou as seguintes conclusões:

1.° Os argumentos aduzidos pelo Mmº Juiz "a quo" não poderão, em circunstância alguma, fazer concluir por uma descriminalização das condutas por referência ao art. 2.º, n.º 2 de Código Penal.

2.° Com a Lei n.º 60-A/2005, de 30-12, os ilícitos contra a segurança social começaram o ter menor benevolência no tratamento sancionatório, razão pela qual pelo que não surpreenda que a Lei n.º 64-A/2008, de 31-12, acentue essa menor benevolência.

3. ° Os bens jurídicos protegidos pelos crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra o segurança social não são coincidentes, como decorre da maior protecção constitucional concedido ao direito à segurança social e do facto de, nas contribuições para a segurança social, existir uma maior proximidade, senão coincidência, entre contribuinte e beneficiário.

4.° Os princípios do unidade do sistema e da presunção de que o legislador consagrou os melhores soluções não consentem o interpretação de que a Lei n.º 64-A/2008 de 31-12, operou uma alteração legislativo em que, por força da não previsão legal de responsabilidade contra-ordenacional, se desproteja o bem jurídico tutelado pelo crime de abuso de confiança contra a segurança social, quando em causa estejam prestações tributárias de valor igual ou inferior a € 7.500.

5.° A interpretação segundo a qual a remissão do n.º 1 do artigo 107.°, n.º 1 do R.G.I.T. se faz, quanto aos valores, apenas para o n.º 5 e já não para o n.º 1 do artigo 105.° do R.G.I.T., e a mais consentânea com o disposto no artigo 9.° n.º 2 do Código Civil uma vez que, no primeiro caso, tal remissão apenas tem sentido, porque em causa estão, precisamente, valores contributivos que o legislador reputou de merecerem uma maior punição, ao passo que, no segundo caso, é perfeitamente admissível que a remissão se faça exclusivamente para a pena, dado que em causa está o remissão para um tipo matricial (artigo 105.°, n.º 1) ao qual o legislador introduziu uma especialização que não quis estender, como podia, ao tipo matricial do artigo 107.°, n.º 1, como bem se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 4/03/2009, proferido no âmbito do processo n.º 257/03.5TAVIS.

6.° - Em face do exposto deve ser revogado o despacho recorrido, mantendo-se inalteradas as penas aplicadas aos arguidos.

Porém, V.ªs Ex.as, Senhores Juízes Desembargadores, decidirão, como sempre, fazendo Justiça.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

A... e M… foram condenados, pela prática, em co-autoria material de uma crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelo art. 107º nº 1 do RGIT, por referência ao artº 105 do mesmo diploma legal, em conjugação com os arts 26º, 30º, nº 2 e 79º do CPenal, na pena, cada um deles, de seis meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de uma ano sujeita à condição de nesse período efectuarem o pagamento das contribuições e respectivos acréscimos legais devidos à Segurança Social e em cujo pagamento haviam também sido condenados na mesma sentença.

A arguida “T... – Transportes, Lda” foi condenada pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelo artº 107º, nº 1 do RGIT, por referência aos arts 105 nº 1, 12º e 7º, nº 1, todos do RGIT, em conjugação com os arts 30º, nº 2 e 79º do CPenal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de € 10 (dez euros), num total de € 1.200. (fls 445 a 510).

A decisão transitou em julgado a 18/6/2008 (fls 511).

Por despacho de 21/5/2009 o Sr Juiz declarou extintas, devido ás alterações operadas no tipo legal do crime de abuso de confiança em relação à segurança social pelo qual os arguidos foram condenados, p. e p. pelo artº 107º, nº 1, com referência ao artº 105º, nº 1 do RGIT, pela Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, lei do Orçamento de Estado para 2009, e ao disposto no artº 2º, nº 2 do CPenal, as penas de prisão e de multa em que foram condenados os arguidos A..., M... e “T... – Transportes, Lda”,

Determinando o arquivamento dos presentes autos.

Entendeu o Mmo Juiz que a Lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro operou a descriminalização do crime de abuso de confiança em relação à segurança social nos casos em que a prestação não entregue seja inferior a € 7.500.

A Lei nº 64-A/2008 introduziu uma alteração ao nº 1 do artº 105 do RGIT pela qual só constituem crimes de abuso de confiança fiscal as faltas de entrega à administração tributária de prestações tributárias deduzidas de valor superior a € 7.500 (art.113 da referida Lei).

A interpretação da alteração introduzida ao artº 105º, nº 1 do RGIT pelo artº 113º da Lei nº 64-A/2008 está a provocar divergências na jurisprudência.

No entanto, cremos que é de seguir a posição daqueles que defendem que o limite de € 7.500 estabelecido no artº 105º, nº 1 do RGIT, na redacção que lhe foi dada pelo artº 113º da Lei nº 64-A/2008, não tem aplicação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social. Esta foi a posição que defendemos já no acórdão de 8/7/2008, proferido no proc. 590/02.3TAVIS-A.C1 e 340/07.8TATND.C1 relatado pelo Exmo desembargador Orlando Gonçalves (de que fui adjunta).

Estatui o art.107.º: « 1. As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do art.105.º.

2. É aplicável o disposto nos n.ºs 4, 6 e 7 do artigo 105.º.».

Por sua vez o art.105.º do RGIT tinha, à data da prolação da sentença que condenou os arguidos, a seguinte redacção:

« 1. Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2. (…)

3. (…).

4. Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;

b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

5. Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a € 50 000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.

6. Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder € 2000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável, pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.

7. Para os efeitos do disposto nos números anteriores os valores a considerar são os que , nos termos da legislação aplicável, devam constar da cada declaração a apresentar à administração tributária.».

À data dos factos imputados aos arguidos na acusação do Ministério Público ( Novembro de 2001 a Novembro de 2005 ) parece-nos ser pacífico que o crime de abuso de confiança contra a segurança social a que alude o art.107.º, n.º 1 do RGIT , limitando a remissão para as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do art.105.º, do mesmo regime legal, queria apenas aproveitar as penas aqui previstas.

Os elementos constitutivos do crime de abuso de confiança fiscal, previstos no art.105.º, n.º1 do RGIT e do crime de abuso de confiança contra a segurança social, previstos no art.107.º, n.º1 do mesmo Regime eram diversos.

Entendendo-se que eram crimes tributários de natureza diversa, o crime de abuso de confiança contra a segurança social não ia buscar qualquer elemento objectivo ou subjectivo ao art.105.º, n.º1 do RGIT, para o preenchimento do tipo.

Efectivamente, o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social tinha, à data dos factos, autonomia relativamente ao crime de abuso de confiança fiscal.

No crime de abuso de confiança contra a Segurança Social está em causa o desvalor das entidades empregadoras que tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros de órgãos sociais as contribuições legais, não as entregam às instituições de Segurança Social.

As Instituições de Segurança Social são pessoas colectivas de direito público, dotadas de autonomia administrativa, financeira e patrimonial. – cfr. Lei n.º 2/2007, de 16 de Janeiro e DL n.º 214/2007, de 29 de Maio.

Os objectivos do sistema de segurança social, que dentro do orçamento do Estado, tem um orçamento próprio (art.105.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa), são específicos, resumindo-se, no essencial, à protecção social dos trabalhadores e suas famílias nas situações de falta ou diminuição de capacidade de trabalho, de protecção das pessoas que se encontrem em situação de falta ou diminuição de meios de subsistência, e protecção da família através da compensação de encargos familiares. – Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro.

No crime de abuso de confiança fiscal está em causa a não entrega à Administração Fiscal, pelo devedor tributário, de prestações tributárias, de impostos, que em regra não estão afectos a fins específicos.

O crime de abuso de confiança fiscal pode ser punido como crime simples ( n.º1) ou como crime agravado, em função da entrega da prestação não efectuada ser de valor superior a € 50 000 ( n.º 5).

Correspondentemente, por força da remissão do art.107.º do RGIT, também o crime de abuso de confiança contra a segurança social pode ser punido como crime simples (n.º1) ou como crime agravado, em função da entrega da prestação não efectuada ser de valor superior a € 50 000 (n.º 5).

Sendo diferentes os bens jurídicos protegidos, também a inserção sistemática dos crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a segurança social integravam capítulos diferentes: aquele o capitulo III e este o capitulo IV, do Título I da Parte III, do RGIT.

O art.113.º, n.º 1 da Lei n.º 64-A/2008, veio entretanto aditar ao art.105.º, n.º 1 do RGIT um novo elemento respeitante ao valor da prestação tributária, passando este tipo legal a ter seguinte redacção:

« 1. Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.».

A Lei n.º 64-A/2008 não procedeu a qualquer alteração do art.107.º do RGIT.

Uma vez que a Lei n.º 64-A/2008 não alterou o disposto no art.107.º, n.º1 do RGIT, parece-nos medianamente claro que a remissão que este faz para o art.105.º, n.º 1 do RGIT é apenas para as penas aí previstas e nada mais.

Mantendo-se a autonomia e diversa natureza dos crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a segurança social, reflectida na já aludida sistematização dos crimes, não há razão alguma para ir buscar ao n.º1 do art.105 do RGIT , além das penas, o elemento do tipo traduzido no “valor superior a € 7500”.

Ao descriminalizar o abuso de confiança fiscal relativamente à não entrega de prestação tributária de valor igual ou inferior a € 7500, legislador sancionou essa conduta como contra-ordenação ( art.114.º, n.º5 , al. a) do RGIT, na redacção dada pela Lei n.º 64-A/2008).

A entender-se que o limite de € 7500 estabelecido no art.105.º, n.º1 do RGIT, na redacção que lhe foi dada pelo art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, tem aplicação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, a não entrega de contribuições devidas à segurança social não seria punida como crime tributário, nem como contra-ordenação uma vez que nenhuma norma sanciona esta conduta como tal.

Sabendo-se que as contribuições para a Segurança Social que constam de cada declaração a apresentar a esta instituição são frequentemente de valor inferior a € 7 500 – como acontece com todas as declarações apresentadas pelos arguidos – ficaria seriamente comprometida a defesa do bem jurídico tutelado pelo crime de abuso de confiança contra a segurança social e os objectivos do sistema de segurança social.

Sabendo-se que os objectivos do sistema de segurança social são cada vez mais alargados aos cidadãos com dificuldades económicas e que as receitas não param de cair, fruto designadamente da grave crise económica e da baixa natalidade, dificilmente se concebe que o legislador quisesse deixar sem sanção a não entrega de contribuições à segurança Social de valor igual ou inferior a € 7 500.

Entre os crimes de fraude fiscal (art.103.º do RGIT) e os crimes de fraude contra a segurança social (art.106.º do RGIT), nota-se existir também um regime sancionatório mais severo nestes últimos.

Resulta do art.103.º, n.º2 do RGIT, na redacção actual, que lhe foi dada pela Lei n.º 60-A/2005, de 30-12, que os factos previstos no n.º1 não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 15 000. Já constitui crime de fraude contra a segurança social a prática dos factos previstos no art.106.º do RGIT se a vantagem patrimonial ilegítima for de valor superior a € 7 500.

A revogação do n.º6 do art.105.º do RGIT, pelo art.115.º da Lei n.º 64-A/2008, é o resultado da redacção dada ao n.º4, al. b), daquele art.105.º pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, uma vez que esta abrande as prestações não pagas sem referência a qualquer valor.

Não tendo o legislador querido modificar o crime de abuso de confiança contra a segurança social, com a revogação daquele n.º6 do art.105.º do RGIT a remissão do n.º2 do art.107.º do RGIT para aquele n.º6 , torna-se vazia, inútil.

Daí porém não resulta que o legislador tenha querido descriminalizar a não entrega total ou parcial, à Segurança Social de contribuição igual ou inferior a € 7500.

Em suma, o Tribunal da Relação entende que o valor de € 7 500 a que alude o art.105.º, n.º1 do RGIT, na actual redacção, que lhe foi introduzida pelo art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, é um elemento não aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto no art.107.º, n.º1 do RGIT.

Consequentemente, a alteração introduzida pelo art.113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, ao art.105.º, n.º1 do RGIT, não descriminalizou a não entrega total ou parcial, à segurança social de prestação igual ou inferior a € 7500.

Não estando o crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto no art.107.º, n.º1 do RGIT sujeito aos elementos objectivos e subjectivos do crime de abuso de confiança a que alude o art.105.º, n.º1 do mesmo diploma, impõe-se a revogação do despacho recorrido, que decidiu declarar descriminalizados os crimes pelos quais os arguidos vinham acusados e que determinou extintas as penas aplicadas aos arguidos e ordenou o arquivamento dos autos.

Revogado o despacho recorrido deve ser proferido pelo Tribunal a quo um outro que, dando seguimento ao processo, deverá manter inalteradas as penas aplicadas aos arguidos.

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso e, em consequência revoga-se o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que dando seguimento ao processo mantenha inalteradas as penas aplicadas aos arguidos.

Sem custas.

Coimbra,

Alice Santos

Belmiro Andrade