Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1998/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: LIVRANÇA
LIVRANÇA INCOMPLETA
LIVRANÇA EM BRANCO
CONTRATO DE PREENCHIMENTO
CURSO LEGAL DA MOEDA
EURO
Data do Acordão: 07/11/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1.º, 2º, 75.º, 76.º, 77.º E 41.º DA LEI UNIFORME SOBRE LETRAS E LIVRANÇAS (LULL), ARTIGOS 1º, 5º, 6.º N.º2, 11.º, 13.º, 14.º E 17.º DO REGULAMENTO (CE) N.º 974/98, DE 3 DE MAIO DE 1998 E ARTIGOS 1.º DO REGULAMENTO (CE) N.º 1103/97 DO CONSELHO, DE 17 DE JUNHO DE 1997.
Sumário: 1. A livrança que incorpora, pelo menos, uma assinatura com intenção de contrair uma obrigação cambiária, que é entregue ao credor, constitui uma livrança incompleta, por apenas conter os requisitos mínimos formais exigidos. Transforma-se numa livrança em branco quando lhe são acrescentados os requisitos materiais, ou seja, quando o subscritor dá ao credor autorização para o seu preenchimento e a entrega ao tomador.

2. Quando a livrança é emitida em branco a obrigação cambiária por ela titulada considera-se constituída desde o momento da sua assinatura e entrega. Porém, a sua eficácia fica dependente do seu preenchimento, no momento do vencimento.

3. Pese embora a livrança em branco não pressupor, necessariamente, um prévio contrato de preenchimento, já quando este existe o preenchimento da livrança em branco tem de realizar-se dentro dos limites e termos ajustados.

4. Face ao princípio de direito que a estabilidade dos contratos e de outros instrumentos jurídicos não é prejudicada pelo aparecimento de uma moeda nova, a introdução do euro não teve por efeito alterar qualquer termo previsto num instrumento jurídico, em que a livrança se traduz, não sendo necessário redenominar os instrumentos jurídicos que ainda contenham referências às antigas unidades monetárias nacionais, para assegurar a respectiva validade.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A..., Ldª”, com sede em Mogofores, Anadia, deduziu os presentes embargos de executado, sob a forma de processo ordinário, contra “B..., SA”, com sede na Rua Áurea, nº 88, em Lisboa, pedindo que, na sua procedência, seja declarada desobrigada do pagamento da livrança e da quantia por ela titulada, alegando, para o efeito, e, em síntese, na parte que ainda interessa à apreciação e decisão do objecto do recurso, que a livrança dada à execução foi subscrita, no âmbito de um contrato de conta caucionada, e entregue em branco, com excepção do local relativo ao subscritor (carimbo e assinatura), sendo os restantes elementos escritos da responsabilidade do embargado, além de que a dita conta nunca foi cancelada ou saldada e o contrato não foi revogado, sendo abusivo o preenchimento da livrança, e arbitrária a data nela colocada, não tendo a embargante sido avisada do seu preenchimento e da apresentação a pagamento, para além de que os títulos de crédito não poderem circular em escudos, a partir de 1 de Janeiro de 2002, em virtude da entrada em circulação do “Euro”, devendo a livrança ser considerada, juridicamente, inexistente.
Na contestação, a embargada, neste particular, alega, em suma, que a letra foi preenchida, em conformidade com o acordado no referido contrato de abertura de crédito, não se verificando o seu preenchimento abusivo, nem a nulidade invocada pela embargante, sendo legal a moeda em que foi preenchida e devida a quantia dela constante, condenando-se a embargante como litigante de má-fé, em multa e indemnização, e julgando-se improcedente a excepção e os embargos.
A sentença julgou os embargos improcedentes, por não provados, determinando que a execução prossiga os seus regulares termos, não condenando a embargante como litigante de má-fé.
Desta sentença, a embargante interpôs recurso de apelação, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, formulando as seguintes conclusões:
1ª – É matéria assente que a livrança dos autos foi entregue pela embargante ao Banco embargado em 21/12/1992 para caucionar um contrato de abertura de crédito em conta-corrente (cfr. fls. 28a a 31a dos autos que aqui se consideram integralmente reproduzidas para todos os devidos e legais efeitos).
2ª - Que foi entregue quanto aos dizeres de local e data de emissão, local de pagamento e domiciliação e ainda quanto ao valor e morada do subscritor.
3ª - Está ainda provado que essa conta corrente nunca foi saldada ou sequer cancelada pelo banco embargado e que desde 09/2001 que a embargante não liquida qualquer prestação de quanto deva relativamente ao contrato em causa.
4ª - Está ainda provado que o Banco embargante apenas preencheu - emitiu, nos termos da LULL - essa mesma livrança em 03/09/2001 com data de 11/09/2001. A ser assim, e salvo o devido respeito,
5ª - A livrança em causa deveria ter sido preenchida e emitida imediatamente a seguir à verificação do incumprimento, sempre podendo depois ser accionada no momento que o embargado entendesse, nos termos do clausulado em 6o, 7o e 9o do contrato de preenchimento que sustenta a entrega deste título, pois de outra forma desprotege-se de forma insustentada a embargante que poderia ver a sua situação juridicamente indeterminada por tempos infindos, com a consequente contagem de juros a favor do banco embargado.
6ª - Por outro lado, como ficou demonstrado, a obrigação cartular desta execução surge para caucionar essa outra assumida pelo contrato de conta-corrente, consubstanciando uma "datio pro solvendo", passando a existir duas relações: a subjacente e a cartular.
7ª - A serem as coisas deste modo, a presente situação enquadra-se juridicamente nos arts. 344° a 350° e 362° do Código Comercial, bem como nos arts. 380° e 381° do Código Civil quanto à repartição do ónus da prova.
8ª - E, a ser assim, competia ao Banco alegar e provar o montante devedor, saldo e a sua correctude à data do preenchimento o que não fez. Haveria de provar quer o saldo devedor, o seu montante, o que não é possível fazer uma vez que a referida conta não se encontrava cancelada ou sequer saldada no montante devedor.
9ª - Por fim, no momento (03/09/2002) em que a livrança dos autos foi preenchida, maxime, emitida para os termos da LULL, o escudo já não tinha curso legal e já não era permitido emitir qualquer título de crédito em escudos (o que sempre será diferente daquela outra situação de um título de crédito emitido e preenchido em escudos no momento do seu curso legal e só após ser colocado no comércio jurídico, v.g. executada/accionada judicialmente).
10ª - Nos termos do art. 550° do Código Civil as obrigações devem ser satisfeitas em moeda com curso legal no país - pelo que, e salvo o devido respeito, não poderia a livrança dos autos, em 03/09/2002, ser preenchida e emitida em escudos quando desde/após 28/02/2002 já não poderiam ser subscritos e emitidos quaisquer títulos nesta moeda (escudo).
11ª - Salvo o devido respeito, e pelo que se vem de expor, a douta decisão em recurso violou o disposto nos arts. 344º a 350° e 362° do Código Comercial, bem como o art. 550° e 380° e 381° do Código Civil, pela sua não aplicação aos autos, bem como os arts. 45°n° 1 e 46° do CPC, bem como todas as normas que vão referidas na douta sentença com e por aplicação e interpretação contrária ao ora alegado e pugnado pela recorrente.
Nas suas contra-alegações, o exequente entende que deve ser mantida a sentença recorrida.
Na sentença recorrida, declararam-se demonstrados, sem impugnação, os seguintes factos, que este Tribunal da Relação aceita, nos termos do estipulado pelo artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
A 21 de Dezembro de 1992, foi celebrado entre embargante e embargado um contrato de abertura de crédito em conta-corrente, junto a folhas 28 a 31 – A).
Quando foi entregue ao embargado B..., a livrança ajuizada não exibia quaisquer escritos relativos ao local e data de emissão, ao local de pagamento e domiciliação, ao valor e à morada do subscritor – B).
Na presente data, ainda se encontra em branco, quanto ao local de pagamento e sua domiciliação – C).
A conta caucionada, subjacente a tal titulo, nunca foi cancelada ou sequer saldada pelo embargado – D).
Pelo menos, desde Setembro de 2001, que a embargante não liquida qualquer prestação de quanto deva relativamente a tal contrato – E).
O contrato, referido em A), celebrado entre embargante e embargado, foi assinado, em 21 de Dezembro de 1992, e alterado, em 12 de Agosto de 1996, quanto ao limite de crédito e taxa de juros, com reconhecimento presencial das assinaturas dos sócios-gerentes da embargante – F).
Estipularam as partes, embargante e embargado, na cláusula 6ª de tal contrato, que: «Como caução e garantia do bom pagamento das responsabilidades emergentes do presente contrato será entregue ao Banco, nesta data, uma livrança, em branco, convenientemente subscrita pelo Primeiro Outorgante (Moreira Capela & Filhos, Ldª, hoje Vinhos Capela, Ldª), podendo o Banco proceder ao seu completo preenchimento, fixar o seu vencimento e apresentá-la a desconto ou a pagamento pelo valor total das importâncias em dívida até ao limite do crédito aberto …» - G).
A embargante tomou conhecimento, aquando da celebração do contrato de crédito em conta corrente, que este previa, expressamente, a existência de uma livrança em branco, para pagamento das responsabilidades em dívida, no caso de incumprimento do clausulado – 7º.
Data em que a entregou, subscrita e assinada, ao Banco embargado – 8º.
O Banco embargado já figurava na livrança como beneficiário do futuro e eventual pagamento da mesma, quando a embargante a subscreveu, em 21 de Dezembro de 1992 – 9º.
O embargado, com respeito à reputação da embargante, pela confiança que nela depositava, por força do relacionamento profissional entre eles existente, comunicou, por várias vezes, à embargante a situação de incumprimento, solicitando a sua resolução – 10º.
A embargante admitiu a situação de incumprimento, perante o embargado, aquando de uma reunião havida em 2001, a pedido do embargado, para resolução desta situação – 11º.
E, em correspondência trocada, nomeadamente, pela carta de 24 de Janeiro de 2002, com proposta de resolução amigável – 12º.
O Banco embargado avisou a embargante da não aceitação de tal proposta, denunciando o contrato em apreço – 13º.
Aguardando ainda uma eventual resolução amigável, em 3 de Setembro de 2002, e, previamente à cobrança judicial dos valores em divida, o embargado interpelou, novamente, a embargante para liquidar as quantias em divida, sob pena de recurso à via judicial, no prazo de oito dias – 14º.
Daí advindo a data de vencimento da livrança, em 3 de Setembro de 2002, acrescido de 8 dias, que conduz à data de 11 de Setembro de 2002 – 15º.

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Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão do preenchimento abusivo da livrança.
II – A questão do curso legal da moeda.

I

DO PREENCHIMENTO ABUSIVO DA LIVRANÇA

Defende a embargante que a livrança deveria ter sido preenchida e emitida, imediatamente a seguir à verificação do incumprimento, sob pena de ficar desprotegida, vendo a sua situação, juridicamente, indeterminada, por tempos infindos, com a consequente contagem de juros, a favor do banco embargado.
Efectuando uma síntese do essencial da matéria de facto consagrada que interessa à decisão do objecto do recurso, importa reter que a conta caucionada, subjacente à livrança subscrita pela embargante, nunca foi cancelada ou sequer saldada pelo embargado, sendo certo que aquela, pelo menos, desde Setembro de 2001, não liquida qualquer prestação da sua responsabilidade, relativa ao aludido contrato assinado pelas partes, em 21 de Dezembro de 1992, e alterado, em 12 de Agosto de 1996, onde se consagrou, nomeadamente, que, como caução e garantia do bom pagamento, seria entregue ao Banco uma livrança, em branco, subscrita pela embargante, podendo aquele proceder ao seu completo preenchimento, fixar o seu vencimento e apresentá-la a desconto ou a pagamento, pelo valor total das importâncias em dívida, até ao limite do crédito aberto, tendo o embargado comunicado, por várias vezes, à embargante a situação de incumprimento, solicitando a sua resolução, enquanto que esta admitiu a situação, perante o embargado, aquando de uma reunião havida, em 2001, chegando a formular uma proposta escrita de resolução amigável, por carta datada de 24 de Janeiro de 2002, que o Banco não aceitou, avisando a embargante e denunciando o contrato, interpelando-a, de novo, em 3 de Setembro de 2002, para liquidar as quantias em divida, sob pena de recurso à via judicial, no prazo de oito dias, donde resultou a data de vencimento da livrança de 3 de Setembro de 2002, acrescida de 8 dias, que conduziu à data de 11 de Setembro de 2002.
Dispõe o artigo 10º, também aplicável à livrança, por força do preceituado pelo artigo 77º, ambos da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL), que “se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservãncia desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave”.
A livrança em branco é aquela a que falta algum dos requisitos indicados pelos artigos 1º e 77º, da LULL, mas que incorpora, pelo menos, uma assinatura feita com a intenção de contrair uma obrigação cambiária.
A livrança, assim passada, deve ser entregue pelo subscritor ao credor, constituindo, então, ainda uma livrança incompleta, que só se transforma numa livrança em branco quando o subscritor dá ao credor autorização para o seu preenchimento[ Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio, III, 1966, 124.], podendo, então, conjuntamente com a assinatura e a sua entrega pretéritas, ser lançada em circulação[ Vaz Serra, RLJ, Ano 61º, 264; Ano 109º, 263; Oliveira Ascensão, Direito Comercial, III, 113 e 116.].
Com efeito, a embargante, para garantia do débito resultante do contrato de abertura de crédito com conta corrente caucionada, entregou ao Banco exequente uma livrança, por si, previamente, subscrita, autorizando-o a proceder ao seu completo preenchimento, em obediência às condições ajustadas pelas partes, ou seja, fixando o seu vencimento e apresentando-a a desconto ou a pagamento, pelo valor total das importâncias em dívida, até ao limite do crédito aberto.
Assim sendo, tendo a livrança sido, posteriormente preenchida, nos termos acordados e, em conformidade com o estitpulado pelo artigo 1º, da LULL, passou a produzir todos os efeitos que lhe são próprios, não sendo necessário que contenha já a totalidade dos seus requisitos constitutivos, no momento de ser passada.
Efectivamente, verificados os requisitos mínimos, formais, exigidos pelos artigos 75º e 76º, da LULL, para que se possa considerar a existência de uma livrança em branco, a assinatura do documento, de que conste a palavra «livrança», e materiais, o acordo do seu preenchimento e a sua entrega ao tomador, resulta insofismável a sua qualificação como título cambiário e, portanto, como título de crédito[ António Pereira de Almeida, Direito Comercial, 3º, 145 e 152.].
Porém, podendo a livrança ser emitida em branco, a obrigação que incorpora só se efectiva, desde que, no momento do vencimento, este título se mostre preenchido, sob pena de não produzir os efeitos que lhe são próprios, atento o estipulado pelos artigos 1º e 2º, da LULL, porquanto o momento decisivo da afirmação da livrança não é o da sua emissão, mas antes o do seu vencimento.
Ora, quem emite uma livrança em branco atribui aquele a quem a entrega o direito de a preencher, em certos e determinados termos, pelo que o preenchimento da mesma só é abusivo, se for efectuado com desrespeito pelo contrato de preenchimento.
Embora a eficácia da livrança fique dependente do seu preenchimento, a obrigação cambiária por ela titulada considera-se constituída, desde o momento da sua assinatura e entrega.
E, se a livrança em branco não pressupõe, necessariamente, um prévio contrato de preenchimento, já quando este exista o preenchimento da livrança em branco, condição imprescondível para que possam verificar-se os efeitos, normalmente, resultantes das livranças, tem de realizar-se dentro dos limites e termos ajustados.
Com efeito, o contrato de preenchimento é o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede do pagamento, a estipulação dos juros, etc[ Abel P. Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, 1984, 82. ].
Assim sendo, carece de qualquer consistência fáctica a alegação da embargante, segundo a qual a livrança deveria ter sido preenchida e emitida, imediatamente, a seguir à verificação do incumprimento.
Por outro lado, a embargante vem, em sede de alegações de recurso, defender que competia ao Banco alegar e provar o montante devedor, o saldo e a sua correcção, à data do preenchimento, o que não fez, mas sem que, oportunamente, na petição inicial, tenha focalizado esta questão que, consequentemente, a sentença não apreciou.
Assim sendo, trata-se de uma questão nova aquela que foi suscitada no recurso, e não perante o Tribunal «a quo», como deveria ter acontecido, e porque, também, não constitui matéria indisponível, encontra-se vedada ao conhecimento do Tribunal da Relação, por força do preceituado nos artigos 660º, nº 2, 664º e 684º, nºs 2 e 3, do CPC[ STJ, de 2-2-88, BMJ, nº 374, 449; de 14-10-86, BMJ nº 360, 526; de 16-7-81, BMJ, nº 309, 283. ].
Com efeito, os recursos destinam-se a reapreciar e, eventualmente, a modificar as decisões impugnadas, a obter o reexame dos problemas nelas tratados, a reapreciar questões já decididas, mas nunca a decidir sobre questões novas ou a criar decisões sobre matéria nova, porquanto visam modificar decisões e não emitir juízos de valor sobre matéria nova.
De todo o modo, não há que fazer intervir as regras da distribuição do ónus da prova, sendo certo que, vencida que está a obrigação resultante do contrato de abertura de crédito com conta corrente caucionada, o saldo devedor da responsabilidade da embargante compreende a importância do capital devido, na data do vencimento, acrescida dos juros, vencidos e vincendos, e de outras despesas a que a operação bancária em causa tenha dado lugar.

II

DO CURSO LEGAL DA MOEDA

Sustenta ainda a embargante que, no momento da emissão da livrança, não era permitido emitir qualquer título de crédito em escudos, em virtude desta moeda já não ter, então, curso legal.
Revertendo ao caso dos autos, registe-se que, com data de 21 de Dezembro de 1992, a embargante, aquando da celebração do contrato de crédito em conta corrente, subscreveu uma livrança, em branco, que, então, entregou ao Banco, como seu beneficiário, com a faculdade deste poder fixar o seu vencimento, para pagamento de responsabilidades em dívida, no caso de incumprimento do seu clausulado, que aquele estabeleceu, em 3 de Setembro de 2002, que, com o acréscimo de 8 dias, conduziu à data de 11 de Setembro de 2002.
A promessa de pagamento constante da livrança deve conter uma soma pecuniária determinada, o que significa que tem que ser expressa em dinheiro e o seu montante, explicitamente, determinado[ Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio, III, 1966, 99. ].
Preceitua o artigo 41º, da LULL, que ”se numa letra se estipular o pagamento em moeda que não tenha curso legal no lugar do pagamento, pode a sua importância ser paga na moeda do país, segundo o seu valor no dia do vencimento….”.
Porém, este normativo legal, relativo às obrigações cambiárias em moeda estrangeira, nada tem a ver com a hipótese em discussão, porquanto pressupõe que a moeda do pagamento tenha curso legal em algum lugar, o que não acontece, já que o “escudo” português não tem curso legal, em qualquer local.
A livrança, emitida em branco, com data de 21 de Dezembro de 1992, incorporava uma promessa de pagamento de quantia expressa em “escudos” que, então, era a moeda com curso legal em Portugal.
Entretanto, em 1 de Janeiro de 1999, iniciou-se, nos Estados-Membros da União Europeia, um período transitório que terminou a 31 de Dezembro de 2001, durante o qual coexistiram as moedas nacionais dos vários países e a nova moeda europeia, tendo a referência à unidade monetária nacional a mesma validade que teria uma referência à unidade euro, de acordo com a taxa de conversão oficial, e passando, nos instrumentos jurídicos já existentes, no final desse período, desde então, a ser consideradas referências à unidade euro, em conformidade com a taxa de conversão oficial, atento o disposto pelos artigos 1º, 5º, 6º, nº 2, 11º, 13º, 14º e 17º, do Regulamento (CE) nº 974/98, de 3 de Maio de 1998[ Calvão da Silva, Euro e Direito, 1999, 14 e ss. (3) e 62 e ss (20); Simões Patrício, Regime Jurídico do Euro, 17 e ss. (1. e 2.) ].
Com efeito, findo o período de transição, as referências às unidades monetárias nacionais, em instrumentos jurídicos existentes no final desse período, são consideradas referências à unidade euro, aplicando-se as respectivas taxas de conversão, por força do preceituado nos artigos 13º e 14º, do aludido Regulamento, sendo certo, outrossim, que a livrança integra os aludidos instrumentos jurídicos, atento o disposto pelo artigo 1º, do Regulamento (CE) nº 1103/97 do Conselho, de 17 de Junho de 1997, que, nos respectivos considerandos nºs 7 e 8, define como princípio de direito, geralmente, aceite que a estabilidade dos contratos e outros instrumentos jurídicos não é prejudicada pela introdução de uma moeda nova, razão pela qual a confirmação expressa do princípio da estabilidade implica o reconhecimento da estabilidade dos contratos e de outos instrumentos jurídicos, como resulta do disposto no artigo 3º do mesmo Regulamento.
Assim sendo, a introdução do euro não teve por efeito alterar qualquer termo previsto num instrumento jurídico, não sendo necessário redenominar os instrumentos jurídicos que ainda contenham referências às antigas unidades monetárias nacionais, para assegurar a respectiva validade[ Simões Patrício, Regime Jurídico do Euro, 210 e 211. ].
Improcedem, pois, com o devido respeito, as conclusões constantes da alegações da embargante.

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CONCLUSÕES:

I - A livrança que incorpora, pelo menos, uma assinatura feita com a intenção de contrair uma obrigação cambiária, que seja entregue pelo subscritor ao credor, constitui ainda uma livrança incompleta, por apenas conter os requisitos mínimos, formais, exigidos, que só se transforma numa livrança em branco quando lhe são acrescentados os requisitos materiais, ou seja, quando o subscritor dá ao credor autorização para o seu preenchimento e a entrega ao tomador, podendo, então, como título cambiário, ser lançada em circulação.
II - Podendo a livrança ser emitida em branco, a obrigação que incorpora só se efectiva, desde que, no momento do vencimento, este título se mostre preenchido, sob pena de não produzir os efeitos que lhe são próprios, porquanto o momento decisivo da afirmação da livrança não é o da sua emissão, mas antes o do seu vencimento.
III – E, se a livrança em branco não pressupõe, necessariamente, um prévio contrato de preenchimento, já quando este exista o preenchimento da livrança em branco, condição imprescondível para que possam verificar-se os efeitos, normalmente, resultantes das livranças, tem de realizar-se dentro dos limites e termos ajustados.
IV - Sendo princípio de direito, geralmente, aceite que a estabilidade dos contratos e de outros instrumentos jurídicos não é prejudicada pelo aparecimento de uma moeda nova, a introdução do euro não teve por efeito alterar qualquer termo previsto num instrumento jurídico, em que a livrança se traduz, não sendo necessário redenominar os instrumentos jurídicos que ainda contenham referências às antigas unidades monetárias nacionais, para a ssegurar a respectiva validade.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmam, inteiramente, a douta sentença recorrida.

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Custas, a cargo da embargante.

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Notifique.