Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
243/20.0T8FND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE ACORDO DE PAGAMENTO
PEAP
CRÉDITOS DE PORTAGENS
COIMAS E CUSTAS
CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS
Data do Acordão: 01/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO– JUÍZO DO COMÉRCIO DO FUNDÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 222º-A DO CIRE; 3º DA LGT.
Sumário: 1. Os créditos respeitantes a portagens, coimas, custas e outros encargos constituem verdadeiros “créditos tributários”.

2. A indisponibilidade dos créditos tributários prevalece sobre qualquer legislação especial, aplicando-se, nomeadamente, aos planos de insolvência/recuperação/pagamento.

3. A posição dominante do Supremo Tribunal de Justiça tem sido no sentido de o plano de insolvência/recuperação/pagamentos (conforme nos encontremos no âmbito de Processo de Insolvência, PER ou PEAP) dever ser homologado, decretando-se a ineficácia da decisão homologatória em relação aos créditos fiscais e da segurança social, que não serão afetados, atenta a sua indisponibilidade.

Decisão Texto Integral:






Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

P... veio, ao abrigo do disposto no artigo 222.º-A do CIRE, intentar o presente Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP).

Admitido liminarmente o requerimento e nomeado Administrador Judicial Provisório, por este foi junta aos autos a lista provisória de créditos prevista no art. 222.º-D, ns. 2 e 3, aplicável por força do art. 17º-I, nº 3, ambos do CIRE.

Apresentado acordo de pagamentos e submetido a votação recolheu o voto favorável de credores cujos créditos representam 53,78% da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto.

A Autoridade Tributária (AT) veio comunicar o seu voto desfavorável, por:

- prever a redução dos créditos tributários – pagamento de apenas 40% da maior parte do crédito reconhecido à AT, bem como o perdão da totalidade dos juros vencidos e vincendos, pelo que requer a não homologação do plano ou que da eventual sentença de homologação venha a constar que o acordo não produzirá efeitos relativamente aos créditos da Fazenda Nacional.

Pelo juiz a quo foi proferido o Despacho, de que agora se recorre, a reconhecer que o mesmo se mostra aprovado pela maioria legalmente necessária, homologando o acordo de pagamentos respeitante aos devedores.

Inconformado com tal decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso de Apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

A – O presente recurso diz respeito à qualificação efetuada pelo Mmº. Juiz como créditos não tributários no que concerne às taxas de portagens, coimas, custas e outros encargos;

B - A sentença homologatória do acordo de pagamento não poderia incluir os referidos créditos – créditos devidamente reclamados – por se tratarem de verdadeiros créditos tributários e consequentemente não podem ser objeto de perdão, redução ou beneficiarem de prazos de pagamento para além do legalmente consagrado;

C - Os créditos tributários são indisponíveis conforme consagrado no art. 30º da Lei Geral Tributária aos quais subjazem valores de toda a comunidade não podendo a AT aceitar que os mesmos sejam submetidos ao regime dos créditos comuns conforme se considera na douta decisão recorrida.

Por todo o exposto e porque o douto despacho recorrido (despacho de fls.56 a 61) sentença homologatória do acordo de pagamentos viola os preceitos legais referenciados supra – normas legais de natureza imperativa – deve ser substituído por outro que proceda à homologação do acordo de pagamento excluindo os créditos reclamados pela AT do plano de pagamentos e que considere o mesmo ineficaz no que concerne aos mesmos como é de JUSTIÇA.

O Requerente/Devedor apresentou contra-alegações no sentido da improcedência do recurso.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Natureza dos créditos referentes a taxas de portagens, coimas, custas e outros encargos, para efeitos da sua inclusão nos créditos indisponíveis do art. 30º da Lei Geral Tributária.
2. Ineficácia do plano relativamente a tais créditos
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
A decisão recorrida teve por relevantes os seguintes factos, que não foram objeto de impugnação:
 1. A 21 de Maio de 2020 o requerente apresentou requerimento inicial com a manifestação da sua vontade de encetar negociações com os credores com vista à sua reabilitação, mediante a aprovação de um acordo de pagamento com aqueles credores.
2. A 25 de Maio de 2020 procedeu-se à nomeação de administradora judicial provisória.
3. A lista provisória de créditos foi junta aos autos apensos e publicitada a 17 de Junho de 2020.
4. As impugnações apresentadas no referido apenso de reclamação de créditos foram objeto de decisão a 27 de Julho de 2020.
5. As negociações foram objeto de prorrogação por um mês, conforme comunicado aos autos a 24 de Agosto de 2020, a qual foi devidamente publicitada.
6. A 23 de Setembro de 2020 foi apresentada proposta do acordo de pagamento do requerente devedor.
7. Consta da referida proposta, além do mais, que:
«(…)
4.1. CONTEÚDO DO PLANO RELATIVAMENTE À SATISFAÇÃO DOS CREDORES
O presente Plano Especial Para Acordo de Pagamentos (PEAP) prevê a satisfação dos credores através da viabilidade do requerente, sendo o pagamento aos credores efetuados à custa dos respetivos rendimentos gerados por essa mesma proveniência (rendimentos do trabalho e outros).
4.2. PROPOSTA DE PLANO DE PAGAMENTO
P... acredita que com a nova realidade de reestruturação reúne condições de poder regularizar as suas obrigações, sendo que propõe o seu pagamento da seguinte forma:
4.2.1. Autoridade Tributária
1. Pagamento do valor de 869,74 €, de uma só vez, até final do mês seguinte à data da Sentença homologatória do Plano, nos termos do artº 196º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT);
2. Pagamento dos Juros vencidos e vincendos à taxa legalmente fixada para os juros de mora aplicáveis às dívidas ao Estado;
3. Pagamento de coimas e custas.
4.2.2. Outros Créditos
4.2.2.1 Créditos Comuns
Os créditos comuns no valor de 42.110,90€ serão pagos em 40% do valor em divida, em 60 prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira prestação 6 meses após a sentença do despacho de homologação do presente Plano de pagamentos (PEAP), com perdão dos juros vencidos e vincendos.
Este mapa espelha os valores a receber pelos credores: Natureza Valores Perdão (60%) Valores a Receber pelos Credores
TABELA 2- VALORES A RECEBER PELOS CREDORES
Natureza                                  Valores        perdão 60%      valores a receber pelos credores
E.O.E.P    AT                                      869,74                                                  869,74
Outros Credores Comuns                42.110,94      25.266,56                     16.844,36   
Total                                                     42.980,68     25.266,56                     17.714,12
4.3. OUTROS CRÉDITOS.
Todos os créditos que vierem a ser constituídos, no âmbito deste PEAP, serão integrados na categoria onde se inserem, e pagos de acordo com as condições previstas no mesmo.
(…)
4.5. CLÁUSULA DE SALVO REGRESSO DE MELHOR FORTUNA
O PEAP fica subordinado à cláusula “salvo regresso de melhor fortuna” ao devedor, que produz efeitos durante o período da sua vigência, nos termos em que, se e quando, a sua situação económico-financeira melhorar permitindo a libertação de meios, que, para além das prestações do Plano de pagamentos, lhe possibilite efetuar pagamentos aos credores sem comprometer a sua sobrevivência, o devedor compromete-se a ratear esse excedente, por todos os credores, efetuando, assim, reembolso antecipado, total ou parcial dos valores em dívida.
(…)».
8. Foi efetuada a publicidade a que alude o artigo 222.º-F, n.º 2 do CIRE.
9. A 2 de Outubro de 2020 a Sra. Administradora Judicial Provisória juntou aos autos o resultado da votação do acordo e todos os elementos a que alude o artigo 222.º-F, n.º 4 do CIRE, onde se lê, para além do mais, que:
«(…) Artigo 222.º-F, n.º 3, al. a) do CIRE Percentagem de credores votantes Mínimo 33,33% 100,00% Percentagem de votos a favor sobre os Votantes, ignorando as abstenções Mínimo 66,66% 53,78% Percentagem de votos a favor, sem subordinados sobre os Votantes, ignorando as abstenções Mínimo 50%, 53,78%
Percentagem de votos a favor sobre a totalidade dos créditos relacionados com direito de voto Mínimo 50% 53,78%
(…)».
10. Votaram a favor do acordo de pagamento os credores A... Limited e F...
11. Votou contra o acordo de pagamento a Autoridade Tributária e Aduaneira.
Temos ainda por relevantes os seguintes factos, resultantes da reclamação de créditos apresentada pela ATA:
12. À ATA foram reconhecidos créditos no valor global de 19.866,55€, sendo o montante de 869,74 € respeitante a IUC e 18 996,81 € respeitante a portagens, coimas, custas e juros.
 1. Se os créditos reclamados pelo estado respeitantes a portagens, contraordenações e custas constituem créditos tributários para efeitos da sua indisponibilidade legal.
O tribunal a quo, considerando encontrarem-se preenchidos os quóruns constitutivos e deliberativos, veio a proferir despacho de homologação do plano aprovado pelos credores, nos seguintes termos, que aqui se reproduzem:
“Neste contexto, importará ainda aludir ao caso concreto dos créditos públicos, em face da posição assumida nos autos pela Autoridade Tributária e Aduaneira, começando, desde logo, por se esclarecer, em conformidade com o sumariado no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02/05/2016, proc. n.º 1749/14.GTBVCT-B.G1, in www.dgsi.pt, que:
“I – As taxas de portagem e os seus juros, os custos administrativos, as coimas e os seus encargos fazem parte do activo do concessionário, constituem um recurso deste, uma receita, um benefício económico que o mesmo usufrui por permitir, não só, mas também, a circulação de viaturas dos utentes por eixos viários sobre os quais possui exclusividade. O Estado assume a função de mero cobrador dessas receitas mas a titularidade das mesmas mantém-se na esfera jurídica do concessionário.
II – Os referidos créditos do concessionário não assumem, assim, natureza de créditos tributários, isto é, de créditos titulados pelo Estado.
III – Nessa medida, os concessionários ficam vinculados às condições de pagamento estabelecidas para os credores comuns no plano de revitalização aprovado e homologado por decisão judicial, mesmo que não tenham participado nas respectivas negociações.” (negrito nosso).
Em igual sentido, sumariou-se também no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22/03/2018, proc. 853/17.3T8OLH-A.E1, in www.dgsi.pt:
“(…) III – O crédito reclamado pela Autoridade Tributária a título de taxas de portagem, custos administrativos, juros de mora, coimas e repectivos encargos não assume natureza tributária, não se lhe aplicando a Lei Geral Tributária.”.
Releva esta definição do âmbito do conceito de créditos públicos, onde se inserem manifestamente os créditos tributários e da Segurança Social, face ao disposto nos artigos 30.º e 125.º da Lei Geral Tributária, visto ser entendimento jurisprudencial maioritário que aqueles créditos fiscais e aqueles créditos da Segurança Social devem considerar-se indisponíveis, pelo que não poderão ser objecto de redução, extinção ou moratória nos acordos de pagamento apresentados no âmbito de um PEAP, sem que o Estado tenha votado favoravelmente.
Em consequência, os acordos de pagamento aprovados que prevejam uma modificação ou extinção dos créditos públicos sem que o Estado tenha votado favoravelmente estão feridos de vício não negligenciável quanto ao seu conteúdo, sendo, por conseguinte, ineficazes quanto a esses credores públicos.
Dito isto e compulsado o acordo de pagamento apresentado, resulta do mesmo uma clara distinção dos créditos privilegiados/garantidos da Autoridade Tributária e Aduaneira para os demais créditos comuns, na medida em que para estes se prevê uma modificação do capital em dívida, um perdão (extinção) parcial do capital e um perdão (extinção) total dos juros vencidos e vincendos, uma moratória de pagamento e um plano de pagamento prestacional, enquanto que para os créditos fiscais se prevê um pagamento integral e instantâneo do capital e dos juros, sem qualquer modificação do capital ou extinção dos juros ou das respectivas garantias, salvaguardando dessa forma o preceituado no artigo 196.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
Note-se que o acordo do pagamento distingue, e bem, porque em conformidade com a jurisprudência acima citada, a medida dos créditos reconhecidos à Autoridade Tributária e Aduaneira a título de créditos fiscais (referentes a IUC), integrando os demais créditos fundados em coimas, taxas de portagens e outros encargos no conceito de créditos não tributários, não lhe aplicando, por isso, o regime dos créditos fiscais decorrente do supracitado artigo 196.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
Nesse sentido, a desigualdade denotada no acordo de pagamento encontra plena justificação à luz do regime exposto, inexistindo, por conseguinte, razões que justifiquem a declaração de ineficácia do acordo aprovado face aos créditos fiscais, pois, como se viu, as medidas de pagamento destes créditos salvaguardam o regime dos créditos públicos decorrente do Código de Procedimento e de Processo Tributário.”
Insurge-se o Ministério Público/Apelante, com a alegação de que da reclamação de créditos da AT, no valor de 19.866,54€, constam créditos referentes a impostos (IUC) e créditos referentes a taxas de portagens, coimas, custas e outros encargos e foram considerados pelo AI como créditos da AT e não de outras entidades: apesar do contrato celebrado entre o Estado e a concessionária, entidade privada, os serviços prestados mantêm a natureza de serviço público e a taxa cobrada é a forma de o Estado remunerar o concessionário o serviço público que presta. Em consequência, insurge-se contra a homologação do plano na parte em que qualifica tais créditos como comuns, sujeitando-os às restrições aí previstas para a generalidade dos créditos comuns.
A questão que aqui se coloca passa por determinar se os créditos reclamados pela Autoridade Tributária (AT) respeitantes a portagens, coimas, custas e outros encargos, constituem créditos tributários para efeitos de lhes ser aplicável ou não a norma da indisponibilidade dos créditos tributários, constante do artigo 30º da LGT.
A questão não tem sido isenta de dúvidas, com a jurisprudência dos tribunais judiciais algo dividida, mas com a clara dominância ao nível do Supremo Tribunal Administrativo do entendimento de que os créditos respeitantes a portagens, coimas, custas e outros encargos constituem verdadeiros “créditos tributários”.
Após alguma controvérsia a doutrina e jurisprudência assentaram na qualificação das portagens como taxas, entre outros o Tribunal Constitucional[1], o Supremo Tribunal Administrativo e Supremo Tribunal de Justiça.
As portagens constituem uma taxa e não um preço, pois é a contraprestação que é devida pela utilização individual de cada utente na autoestrada que constitui um bem público. Apesar da concessionária ser uma entidade privada, exerce funções públicas, sendo o respetivo financiamento, para que possam construir conservar e explorar, feito designadamente através da cobrança de taxas aos utilizadores e eventualmente, como é estabelecido nalguns contratos de concessão.
Apesar de constituírem receitas das concessionárias, as regras de cálculo e de atualização do seu valor é determinado nos contratos de concessão, incumbindo a uma entidade publica a Infraestruturas de Portugal, S.A., a responsável pela sua cobrança.
Como elementos indiciadores de que a portagem constitui uma taxa, temos ainda o enquadramento que lhe é dado pela Lei nº 25/2006, de 30 de junho – que aprova o regime sancionatório aplicável às transgressões ocorridas em matéria de infraestruturas rodoviárias onde seja devido o pagamento de taxas de portagens:
- a contrapartida da portagem pelo utilizador é denominada como taxa;
 - o não pagamento da taxa de portagem é configurado como uma infração à qual é atribuída a natureza de contraordenação, punível com coima (artigos 1º, 5º e 6º);
- atribui ao serviço de finanças da área do domicílio fiscal do agente da contraordenação a competência para a instauração de tais processos de contraordenação e aplicação das respetivas coimas;
- atribui à administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover à cobrança coerciva dos créditos relativos á taxa de portagem, dos custos administrativos, dos juros de mora devidos, bem como da coima e respetivos encargos (artigo 17º-A);
- às contraordenações previstas nesta lei e em tudo o que nela não se encontre regulado, é aplicado o Regime Geral das Infrações Tributárias (artigo18º).
Apesar de a concessionária ser uma entidade privada, esta exerce funções públicas e o financiamento destas entidades privadas, para que possam construir, conservar e explorar as autoestradas, é feito através de receitas púbicas, designadamente através da cobrança de taxas aos utilizadores e, eventualmente, como alguns contratos de concessão estabelecem, através de transferências do Estado, designadas de rendas para as concessionárias[2].
As receitas tributárias não são constituídas unicamente por impostos, como resulta expressamente do artigo 4º da Lei Geral Tributária, onde se distinguem três tipos de prestações tributárias: i) os impostos ii) as taxas – “assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares.”, e ii) as contribuições especiais.
E ao nível do STA é jurisprudência dominante a qualificação das taxas de portagens, juros de mora, bem como as respetivas coimas, custas e despesas, como verdadeiros créditos tributários[3], a par dos impostos e das chamadas contribuições especiais[4].
Em igual sentido se tem pronunciado a doutrina[5], considerando que a obrigação  tributária nasce com a utilização pelo sujeito passivo de uma infraestrutura rodoviária, sendo todo o procedimento tributário conducente à cobrança assente no ato administrativo de liquidação, em tudo semelhante à liquidação de um imposto, tendo apenas como grande diferença de que a taxa, enquanto obrigação tributária, nasce da utilização de um serviço público.
José Casalta Nabais[6] afirma que, sem qualquer margem para dúvidas, a taxa de portagem constituiu efetivamente uma taxa, um tributo bilateral, uma vez que tem por facto tributário, facto gerador ou pressuposto de facto um dos três tipos de factos tributários das taxas como eles se encontram previstos nas leis – nos termos do nº 2 do artigo 4º da Lei Geral Tributária, “as taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares”.
2. Consequências da homologação de um plano que afetou ilegalmente oc créditos relacionados com portagens
Dando razão ao Apelante ao configurar os créditos por portagens, coimas associadas e juros, como créditos tributários, veremos se é de declarar ineficazes relativamente a tais créditos as restrições previstas no plano aprovado para os créditos comuns, como sustenta o Apelante.
O artigo 196º, nº 1 do CIRE (aplicável ao PEAP por força do nº 5 do art.222º-F), prevê que o plano de insolvência/recuperação contenha providências de perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto aos juros, bem como a modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juros.
Porém, quanto aos créditos tributários, haverá que proceder à conjugação de tal norma com as disposições tributárias, nomeadamente com o nº 2 do artigo 30º da Lei Geral Tributária (LGT), segundo o qual “o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária”.
O princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, expressamente previsto no nº 2 do artigo 30º da LGT[7], apresenta concretizações em diversas outras normas, nomeadamente, no artigo 85º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), ns. 2 e 3 do artigo 36º e nº 2 do artigo 37º da LGT.
E se a jurisprudência até um dado momento era praticamente uniforme no sentido da possibilidade de o plano de insolvência prever regras para o pagamento dos credores públicos diversas das previstas nas legislações especiais respetivas, a Lei do Orçamento de Estado para 2011 (Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro), aditando um nº 3 ao artigo 30º da LGT, veio estabelecer a prevalência da indisponibilidade dos créditos tributários sobre qualquer legislação especial [8], vindo o nº 2 do artigo 125º da citada Lei a estender a aplicabilidade de tal norma “aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objeto de homologação”.
Também a Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, diploma que, para além de criar o processo de revitalização, introduziu vários ajustamentos ao CIRE, manteve a preocupação de respeitar as disposições da Lei tributária e a não afetação dos créditos fiscais, prevendo o legislador que os acordos celebrados no âmbito do processo especial de revitalização vinculem também os credores que aos mesmos não se vincularam “desde que respeitada a legislação aplicável à regularização de dívidas à administração fiscal e à segurança social (cfr. Exposição de motivos da Proposta de Lei nº 39/XII).
O plano de pagamentos em apreço operou uma distinção entre alguns dos créditos dos reclamados pela ATA, considerando como privilegiados unicamente os créditos de IUC e sujeitando os créditos por portagens, coimas, juros e demais encargos, ao regime que aí prevê para os demais créditos comuns.
Ora, não só, como já explicitámos, tais créditos assumem a natureza de taxas, constituindo créditos tributários, como gozam de privilégio mobiliário especial sobre os veículos com os quais hajas sido praticadas as infrações (nº 2 do artigo 17º-A da Lei nº 25/2006, de 30 de junho).
A sujeição de tais créditos por portagens, coimas e demais encargos ao regime que aí prevê para os demais credores comuns – redução a 40% do seu capital, perdão da totalidade de juros vencidos e vincendos, e o pagamento dos restantes valores em 60 prestações mensais, com duas moratórias –, viola o disposto nos arts. 30º, nº 2, 36º, nº 3, LGT, e artigos 85º, nº 3, 196º e 199º CPPT e art. 125º da Lei nº 55-A/2010, de 31.12.
Devendo o juiz recusar a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores só no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, a questão que se coloca consiste em saber se a violação das normas em causa constitui violação negligenciável ou não negligenciáveldas normas aplicáveis ao seu conteúdo” (artigo 215º, ex vi, 17º-F, nº 7, CIRE).
 No caso em apreço, o perdão de parte substancia do capital (reduzido em 60%),  de juros e as moratórias previstas, importam modificações significativas nos créditos tributários em causa, contra a vontade do respetivo credor e em total desrespeito da indisponibilidade dos créditos tributários, pelo que, se poderá afirmar que tal plano envolve, uma violação não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo, capaz de determinar sua recusa ao abrigo do artigo 215º do CIRE[9].
Contudo, e embora com algumas vozes discordantes na doutrina e na jurisprudência, a posição dominante do Supremo Tribunal de Justiça[10] tem sido no sentido de que plano de insolvência/recuperação/pagamentos (conforme nos encontremos no âmbito de Processo de Insolvência, PER ou PEAP) deve ser homologado, decretando-se que a decisão homologatória é ineficaz em relação aos créditos fiscais e da segurança social, que não serão afetados, atenta a sua indisponibilidade[11].
“A tese da ineficácia relativa é a solução que melhor satisfaz os interesses em jogo e supera a intransigência do legislador fiscal, obviando às drásticas consequências da não homologação do plano, possibilitando a recuperação do insolvente, as mais das vezes, à custa de pesados sacrifícios dos credores privados[12]”.
Concluindo, e embora no caso em apreço o peso dos créditos tributários (em valor quase igual ao da soma dos demais créditos reconhecidos) e a sua exclusão das reduções e moratórias nos leve a duvidar da recuperabilidade do devedor, poderia constituir fundamento de recusa de homologação do plano, o certo é tendo o mesmo sido homologado, apenas a Apelante se insurgiu contra tal homologação, conformando-se com a mera ineficácia do mesmo relativamente aos créditos tributários respeitantes a portagens, coimas e demais encargos.

A apelação é, assim, de proceder.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revoga-se a decisão recorrida, declarando-se a ineficácia do plano aprovado e homologado, relativamente aos créditos reclamados pela ATA relativamente a portagens, coimas, demais encargos e juros.

Custas pelo Apelado/devedor.         

                                                                Coimbra, 25 de janeiro de 2021

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº 7 do CPC.

1. Os créditos respeitantes a portagens, coimas custas e outros encargos, constituem verdadeiros “créditos tributários.

2. A indisponibilidade dos créditos tributários prevalece sobre qualquer legislação especial, aplicando-se, nomeadamente, aos planos de insolvência/recuperação/pagamento.

3. A posição dominante do Supremo Tribunal de Justiça tem sido no sentido de o plano de insolvência/recuperação/pagamentos (conforme nos encontremos no âmbito de Processo de Insolvência, PER ou PEAP) dever ser homologado, decretando-se a ineficácia da decisão homologatória em relação aos créditos fiscais e da segurança social, que não serão afetados, atenta a sua indisponibilidade.

 

                                                 ***


[1] Cfr., Acórdão do Tribunal Constitucional nº 640/95, de 14 de novembro de 1995, relatado por Ribeiro Mendes, disponível in https://blook.pt/caselaw/PT/TC/465797/.
[2] Acórdão do STJ de 14 de outubro de 2004, relatado por Oliveira Barros, disponível in www.dgsi.pt.
[3] Cfr., Acórdãos do STJ de 14-10-2020, relatado por José Gomes Correia, que qualifica tais créditos como tributários para efeitos de se encontrarem excluídos da exoneração do passivo restante, nos termos do artigo 245º, nº2, al. d), CIRE, de 03-06-2020, relatado por Paulo Antunes, de 30-04-2019, relatado por Aragão Seia, Acórdão do STJ de 14-10-2004, relatado por Oliveira Barros,
[4] Cfr. o Já citado Acórdão do Tribunal Constitucional nº 640/95, de 14 de novembro de 1995, relatado por Ribeiro Mendes.
[5] Cfr., Sousa Franco, “Finanças Publicas e Direito Financeiro”, 4ª ed. Coimbra, p.33, onde refere o caso das auto estradas com portagem, as quais dão origem à cobrança de taxas de natureza tributária, respeitando a bens coletivos impuros por o seu uso não ser coletivo, ficando o seu uso dependente do pagamento de uma taxa como meio de repartir o respetivo custo; Sílvia Rosa Santos, “Algumas Considerações sobre o Processo de Cobrança Coerciva da Taxa de Portagem”, Tese de Mestrado orientada por Rui Duarte Morais, Outubro 2015,  pp.18-21.
[6] “A representação da Administração Tributária pelo representante da Fazenda Nacional no processo de execução fiscal para a cobrança de portagens”, RLJ Ano 147º, Maio-Junho 2018, p.306.
[7] O disposto no nº 2 do artigo 30º tem o seguinte teor: o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária”.
[8] Cfr., Catarina Serra, “O Regime Português da Insolvência”, 2012, Almedina, pág. 149.
[9] Luís Menezes Leitão, “A Recuperação Económica dos Devedores”, Almedina, pp. 56-57 e 79.
[10] Cfr., entre outros Acórdãos do STJ de 18-02-2014 e de 10-05-2018, relatados por Fonseca Ramos, e de 17-04-2018, relatado por Pinto de Almeida, disponíveis in www.dgsi.pt.
[11] António Fonseca Ramos, “Os Créditos Tributários e a homologação do plano de recuperação da insolvência”, in III Congresso de Direito da Insolvência – 2015, Coord. Catarina Serra, Almedina, p. 377; também no sentido da unanimidade de tal posição na secção de comercio do STJ, cfr., Ana Paula Boularot, Apontamentos sobre os Efeitos do Processo Especial de Recuperação, Julgar – Nº31 – 2017, Almedina, pp.22-23.
[12] António Fonseca Ramos, artigo e local citados, p.378. Também no sentido de que a mera ineficácia se afigura melhor solução do que a da mera nulidade parcial, cfr., L. Miguel Pestana de Vasconcelos, “Recuperação de empresas: o processo especial de revitalização”, Almedina, p.131, nota 310.