Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2368/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: ACÇÕES AO PORTADOR
TRANSMISSÃO ENTRE VIVOS
Data do Acordão: 10/04/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 4ª JUÍZO CÍVEL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 327º, Nº 1, DO C.S.COMERCIAIS ; E 101º, Nº 1, DO CVM .
Sumário: I – A transmissão de acções ( títulos mobiliários) ao portador faz-se através da entrega dos títulos, como decorre do disposto nos artºs 327º, nº 1 do C.S.C. e 101º, nº 1, do C.V.M. .
II – O possuidor de títulos de acções deve ser considerado como seu legítimo proprietário, salvo prova em contrário .
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- Por apenso ao procedimento cautelar de arrolamento nº 207-A/2002 do 4º Juízo do Tribunal Judicial de Viseu movido por A..., residente na Estrada Nacional nº 2, Campo, Viseu, contra B..., na Estrada Nacional nº 2, Campo, Viseu, veio C..., residente em Canidelo, Cepões, Viseu, deduzir os presentes embargos de terceiro, pedindo o levantamento do arrolamento efectuado sobre as 200.000 acções que a requerente detém da sociedade comercial “D...”
Fundamenta este seu pedido, em síntese, dizendo que as 200.000 acções ao portador, que foram arroladas nos autos apensos, lhe pertencem por as haver adquirido a B... ( o requerido ), por dação em pagamento, já que este lhe entregou as ditas acções como pagamento dos vários empréstimos que lhe havia feito. O arrolamento ofende não só o seu direito sobre as acções, mas também a sua posse, sendo que é terceira em relação ao procedimento cautelar, visto que não é parte nele.
1-2- Recebidos os embargos e citados os embargados para contestar, veio-o fazer a embargada Maria de Lurdes, arguindo a excepção da caducidade do direito de embargar e impugnando a factualidade alegada pela embargante, sustentando que esta nunca efectuou qualquer empréstimo ao Manuel Duarte, nem este lhe deu quaisquer acções.
Termina pedindo a rejeição dos embargos, por intempestivos ou a sua improcedência por não provados.
1-3- O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido despacho saneador, em que foi julgada improcedente a excepção da caducidade invocada pela embargada.
Fixaram-se depois, os factos assentes e organizou-se a base instrutória.
1-4- Recorreu a embargada Maria de Lurdes da decisão que julgou improcedente a excepção da caducidade, recurso que veio, porém, a ser julgado deserto por falta de alegações.
1-5- Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e respondeu-se à base instrutória, após o que foi proferida a sentença.
1-6- Nesta consideraram-se improcedentes por não provados os presentes embargos de terceiro.
1-7- Não se conformando com esta sentença, dela veio recorrer a embargante, recurso que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo.
1-8- A recorrente alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- A embargante foi notificada que estavam arroladas as 200.000 acções que detinha, tendo sido nomeada depositária das mesmas.
2ª- A embargante era credora do embargado Manuel Duarte, crédito resultante de sucessivos empréstimos que ao longo do tempo lhe foi fazendo.
3ª- A embargante aceitou que o seu crédito fosse liquidado com as acções da “Asfalfama”.
4ª- Assim, com esta dação em cumprimento e a entrega das acções arroladas, a embargante era dona e legítima possuidora das mesmas.
5ª- Não se diga, como se disse na sentença, que a embargante não era dona e legítima possuidora das acções que detinha “por falta de causa de transmissão”.
6ª- A embargante além de ter provado ( e não tinha de o fazer ) a “causa de transmissão” ( dação em cumprimento ), a titularidade do direito sempre se presumia, dado que as acções lhe foram entregues, como decorre do art. 101º nº 1 do C.V.M.
7ª- A embargante após a entrega exerceu os direitos sociais, participando nas assembleias gerais da sociedade realizadas em 2002 e 2003.
8ª- Só faltaria causa de transmissão se o negócio translativo fosse inválido ou não tivesse chegado a existir.
9ª- Incumbia aos embargados alegar e provar a invalidade ou inexistência do negócio, sendo certo que o não fizeram.
10ª- Atenta a prova feita, a embargante é dona e legítima proprietária das ditas acções.
11ª- O arrolamento ofende o seu direito de propriedade e, sendo ela terceira, deveriam os embargos ter sido julgados procedentes.
12ª- A sentença recorrida, na fundamentação, incorreu num erro manifesto na valoração da matéria de facto, ao consignar que foi a embargante que efectuou o pagamento de dívidas do embargado, apesar de ter sido dado como provado que foi este que efectuou o pagamento.
13ª- Do mesmo modo, a sentença consigna que a embargante aceitou que o seu crédito, proveniente do pagamento de tais dívidas, fosse liquidado com o recebimento das ditas acções, quando o crédito daquela provem de sucessivos empréstimos feitos ao embargado ao longo do tempo e foi em relação a esse crédito que aceitou a liquidação com as acções da referida sociedade.
14ª- Ao julgar improcedentes os embargos, a sentença violou o disposto nos arts. 406º, 837º, 939º, 408º, 1251º e 1305º do C.Civil, o art. 101º do C.V.M. e os arts. 351º e 353º do C.P.Civil.
1-9- A parte contrária não respondeu a estas alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivos dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas ( arts. 690º nº1 e 684º nº 3 do C.P.Civil ).
2-2- Após a resposta à base instrutória, fixou-se a seguinte matéria de facto:
1- No âmbito dos autos de arrolamento especial – incidente de divórcio – nº 207-A/2002, em que é requerente A..., e requerido B..., procedeu-se ao arrolamento de 200.000 acções ao portador da sociedade comercial “D...”.
2- O arrolamento efectuou-se através da notificação da embargante, C..., por carta registada enviada a 10/3/2003, de que ficavam arroladas as acções referidas e de que era nomeada fiel depositária das mesmas, não as podendo alienar ou onerar a qualquer título, ficando com o encargo de as guardar e conservar.
3- A embargante, ao longo do tempo, foi fazendo sucessivos empréstimos ao embargado Manuel Duarte.
4- O qual se encontrava numa grave e difícil situação económica.
5- Tinha o crédito junto dos bancos esgotado.
6- Em virtude de vários mútuos que havia contraído para fazer face aos encargos da sua actividade profissional.
7- O embargado Manuel Duarte pagou dívidas resultantes da sua actividade profissional à Direcção Geral de Impostos.
8- A embargante aceitou que o seu crédito fosse liquidado com acções da “D...”.
9- A embargante é irmã do embargado Manuel Duarte.
10- A embargante trabalhou, em tempos, para as empresas do embargado.------------------------------------------------------
2-3- Na douta sentença recorrida e para o que aqui interessa, considerou-se que, da matéria provada, não resulta que a embargante ( ora recorrente ) tenha adquirido as acções em causa, por qualquer meio. Com efeito, provou-se apenas que a embargante, efectuou pagamentos de dívidas do embargado, à Direcção Geral de Impostos e aceitou, como liquidação desse seu crédito, receber as acções em causa. Não se provou, nem sequer foi alegado, o montante dos empréstimos feitos, nem o número de acções entregues, podendo ser duas ou duzentas mil. Acrescentou-se que, em bom rigor, nem sequer está assente que a embargante detenha em seu poder as 200.000 acções. Apenas resulta que o arrolamento foi notificado à mesma de que ficava depositária das acções, ficando com o encargo de as guardar e conservar. Mas mesmo que se considere que as acções estão, de facto, em poder da embargante, disso não decorre, nenhuma presunção de propriedade a seu favor. Isto porque um tal entendimento conduziria a uma prova muito difícil ou impossível para a embargada que, terceira em relação ao eventual negócio havido entre a embargante e o seu irmão, não está em condições de alegar e, muito menos provar, a ausência de relação jurídica subjacente à detenção das acções pela embargante. Disse-se, por fim, que no caso dos autos falta, manifestamente, a prova da transmissão das acções, sendo que se entende que este é um facto cuja prova compete à embargante, porque constitutivo do seu direito.
Por isso considerou-se improcedentes os embargos.
Por sua vez a embargante, considera que ela própria, ao longo do tempo, foi fazendo sucessivos empréstimos ao embargado Manuel Duarte. Este pagou dívidas resultantes da sua actividade profissional à Direcção Geral de Impostos, tendo aceite que o seu crédito fosse liquidado com acções da “D...”. Em virtude desta dação em cumprimento e a correspondente entrega das acções arroladas, a embargante é dona e legítima possuidora das mesmas. A embargante além de ter provado ( e não tinha de o fazer ) a “causa de transmissão” ( dação em cumprimento), a titularidade do direito sempre se presumia, dado que as acções lhe foram entregues, como decorre do art. 101º nº 1 do C.V.M.. Só faltaria causa de transmissão se o negócio translativo fosse inválido ou não tivesse chegado a existir, sendo que incumbia aos embargados alegar e provar a invalidade ou inexistência do negócio, sendo certo que o não fizeram. Assim sendo, a embargante é dona e legítima proprietária das ditas acções, ofendendo o arrolamento o seu direito de propriedade e, sendo ela terceira, razão por que embargos deveriam ter sido julgados procedentes.
Somos em crer que a embargante tem razão na sua pretensão.
Parece-nos que se deve ter como assente que a embargante estava na posse das ditas acções. Em primeiro lugar porque, como se vê pelos elementos juntos à presente apelação, o próprio requerido no arrolamento, B..., esclareceu que as acções em causa, estavam na posse da embargante. E depois porque se provou que o arrolamento de tais acções se efectuou, através de notificação da embargante para esse efeito, tendo sido nomeada ela fiel depositária das mesmas. Isto é, no próprio arrolamento, reconheceu-se a detenção das acções por banda da embargante. Aliás a embargada, nunca negou que a embargante tivesse a detenção das dita acções (vide contestação )11 Neste articulado a embargada limita-se a sustentar que as acções não pertencem ( e nunca pertenceram) à embargante. .
De sublinhar, por outro lado, que se trata de acções ao portador, como resulta do documento de fls. 223, junto pela própria embargada nos autos de arrolamento.
Sendo a embargante detentora das acções ( ao portador ), deve ter-se como proprietária delas, já que a transmissão desses títulos se faz ( precisamente ) através da entrega dos títulos, como decorre do disposto nos arts. 327º nº 1 do C.S.Comerciais e 101º nº 1 do C.V.M.22 O art. 327º nº 1 do C.S.Comerciais refere que “a transmissão entre vivos de acções ao portador efectua-se pela entrega dos títulos, dependendo da posse dos mesmos o exercício de direitos de sócio”. Por sua vez o art. 101º nº 1 do C.V.M. estabelece no mesmo sentido que “os valores mobiliários titulados ao portador transmitem-se por entrega ao adquirente ou ao depositário por ele indicado”..
Na douta sentença entendeu-se que a entrega material dos títulos não opera a transferência, no caso do negócio de transmissão ser nulo e não ter chegado a existir.
Não nos parece que este entendimento seja correcto, já que, como se viu, a entrega material das acções opera a transmissão dos títulos. O que pode suceder é que o negócio que levou à transmissão e entrega dos títulos ( negócio subjacente ), possa vir a ser declarado nulo ou ser anulável. Evidentemente que em resultado dessa nulidade ou anulabilidade, as acções terão que retornar ao transmitente, nos termos do art. 289º nº 1 do C.Civil. Porém, a prova dessa nulidade ou anulabilidade caberá, obviamente, àquele que invoca o respectivo vício, no caso à embargada, o que ela não fez nos autos ( nem sequer isso está em causa, como se vê pela posição dela assumida nos articulados ).
Mas há mais. A embargante logrou provar o negócio, mediante o qual, lhe foram entregues as ditas acções. Ou seja, demonstrou o negócio subjacente que levou à transmissão das acções. E não lhe era necessário efectuar tal prova, já que gozava da situação jurídica derivada de ser a detentora dos títulos. Evidenciou, na verdade, que estes lhe foram entregues em dação em pagamento, pelo requerido Manuel Duarte, em virtude sucessivos empréstimos que lhe fez33 Nesta conformidade, é incorrecta a asserção da sentença onde se diz que da matéria provada não resulta que a embargante tenha adquirido as acções em causa, por qualquer meio., operação juridicamente válida, como resulta dos arts. 1142º e 837º do C.Civil.
Em conclusão, estando em posse das acções, a embargante deve ter-se como proprietária delas. Por isso, os embargos de terceiros ( sendo que o arrolamento ofende obviamente o direito da embargante sobre as acções e sendo que ela é terceira em relação ao procedimento cautelar, dado não ser parte nele ) têm que proceder.
O recurso, será, pois, procedente.
III- Decisão:
Face ao exposto, dá-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, considerando os embargos de terceiros procedentes, ordenando-se o levantamento do arrolamento efectuado sobre as 200.000 acções que a embargante detém na sociedade comercial “D..."
Custas na acção, pela embargada e na apelação pelos apelados.