Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2884/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: PODER PATERNAL
INIBIÇÃO DO PODER PATERNAL
REGIME DE VISITAS A FAVOR DOS PAIS E DEVER DE PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS POR PARTE DESTES
Data do Acordão: 11/25/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA EM PARTE
Área Temática: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Legislação Nacional: ART. S 1410° DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, EX VI ART. 150° DA O. T.M.
Sumário:
I - A inibição total exercício do poder paternal não obsta a que possa ser estabelecido um regime de visitas a favor dos pais do menor, ao abrigo do disposto nos art. s 1410° do Código de Processo Civil, ex vi art. 150° da O. T.M., dependendo do motivo que levou ao decretamento dessa inibição e de aquele regime não pôr em causa a segurança, saúde e educação do mesmo menor.
II - No caso de ser decretada a inibição do exercício do poder paternal, não obstante o disposto nos art. s 1917° do Código Civil e 198° da O. T.M., os pais são obrigados a prestar alimentos ao filho se tiverem possibilidades económicas para o efeito, de acordo com o estatuído no art. 2004° do Código Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
Ana Maria ... requereu, em 26/1172001, no Tribunal da comarca de Nelas, contra Ana Paula ... e José Manuel ..., a regulação do exercício do poder paternal da menor Isabel ..., com a entrega da menor aos cuidados da requerente, alegano, em síntese, o seguinte:
A menor nasceu a 16/01/2001, na Maternidade do Hospital de S.Teotónio, em Viseu, sendo filha dos requeridos.
A menor nunca esteve à guarda e cuidados de qualquer dos requeridos, antes estando com a requerente desde que saiu dos Hospital, já que ambos os requeridos sofrem de problemas físicos e de desequilíbrios emocionais e psíquicos que os impedem de poder dar à filha uma vida estável e um desenvolvimento harmonioso e saudável.
A requerente foi contactada pelos Serviços Sociais do Hospital de S. Teotónio, na sua qualidade de irmã do requerido, tendo assumido que tudo faria para o bem-estar da sua sobrinha.
A requerente tem prestado á menor todos os cuidados de saúde e esta está a frequentar a creche do Centro Paroquial de Canas de Senhorim.
Os pais da menor têm-se mantido totalmente alheados do desenvolvimento e da vida da filha, nunca qualquer tendo contribuído com a mais pequena coisa para a filha.
Termina, pedindo que se proceda à regulação do exercício do poder paternal da menor nos seus vários aspectos, com a confiança desta à requerente.
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Foi designada uma conferência com intervenção dos pais e da tia da menor Isabel, na qual foi determinado que, dado que os pais da menor vivem em união de facto e não estão de acordo quanto a confiar a menor à guarda da requerente, os autos prossigam sob a forma preconizada nos artºs 194º e ss. da O.T.M.. como processo de limitação do poder paternal, fixando-se um regime provisório quanto à situação da menor no que respeita à guarda e visitas.

Os requeridos apresentaram alegações, defendendo que a menor deverá ser confiada à requerente, que aqueles deverão ser isentados do pagamento de qualquer pensão alimentar por manifesta incapacidade para o fazer e que deve ser-lhes concedido o direito de visita à menor.

Obtidos relatórios sociais dos pais da menor e da requerente, foi efectuado julgamento e proferida sentença, que decretou a inibição total do exercício do poder paternal de ambos os progenitores da menor e os condenou a pagar a quantia mensal de 75,00 euros, a título de prestação de alimentos devidos à mesma menor.

Inconformados com a decisão, interpuseram os requeridos recurso de apelação, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1. Os recorrentes não se conformam com a decisão proferida, pois que em face dos factos dados como provados a decisão não deveria ter-se decretado a inibição total do poder paternal pelos mesmos.
2. Em face da prova documental junta aos autos os factos dados como provados são manifestamente insuficientes para ser decretada a inibição total do exercício do poder paternal.
3. Deveriam ter sido dados outros factos como assentes, nomeadamente que a menor não tem contactos com os progenitores e irmão, por culpa ou atitude impeditivas da requerente Ana Maria, não devendo ser dado como assente apenas o que consta da al. j), e ainda os encargos dos recorrentes.
4. Não obstante as deficiências motoras dos recorrentes não pode ser dado como assente que existe por parte dos recorrentes violação dos seus deveres parentais.
5. O que se verifica em face dos documentos juntos e alegações dos recorrentes é uma impossibilidade em terem consigo a menor, sem contudo tal possa significar o abdicar de qualquer direito de visitas ou de estar com o menor, dando-lhe amor e carinho de verdadeiros progenitores.
6. Entendem assim os recorrentes que ao ser decretado a inibição total do poder paternal relativo à menor, não podem os recorrentes em face da OTM reclamar processualmente esse direito de visitas, ficando assim coarctados os seus direitos enquanto progenitores e os direitos da criança.
7. Violando-se assim o disposto nos artºs 1885º, 1915º, 1918º e 1919º do C.Civil, artºs 26º, 36º nº 5 da Constituição da República, artº 9º da Convenção dos Direitos das Crianças e princípio 6º da Declaração dos Direitos da Criança.
8. Atendendo a que se está perante um processo de jurisdição voluntária, poderia ter sido fixado um regime de visitas a favor dos progenitores no presente processo, em obediência ao artº 1410 do C.P.Civil, norma que se violou.
9. Deve a presente decisão ser revogada, substituindo-se por outra que iniba apenas parcialmente ou limite o exercício do poder paternal relativo à menor pelos seus progenitores, fixando-se o regime de visitas solicitado pelos mesmos.
10. Deve ainda a presente decisão ser revogada na parte em que condenou os recorrentes na prestação alimentar a favor da menor no montante de 75 euros, dispensando-se os recorrentes, atentas as suas dificuldades económicas, do pagamento dessa prestação, ou se assim se não entender que a mesma seja reduzida a uma quantia meramente simbólica.
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Contra-alegaram, separadamente, o Mº Pº e a requerente, defendendo a confirmação da sentença recorrida.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Na 1ª instância foi dado como assente o seguinte:
A) – Isabel Ferreira da Fonseca, nascida a 16/01/2001, é filha dos ora requeridos Ana Paula Ferreira da Fonseca e de José Manuel Sampaio Amaral.
B) - O nascimento da menor resultou de um relacionamento entre os progenitores que, ao tempo, frequentavam um curso de formação profissional, tendo, posteriormente, ambos passado a compartilhar o mesmo apartamento, em condições análogas às dos cônjuges.
C) - O menor, desde que saiu do Hospital S.Teotónio, encontra-se à guarda e cuidados da requerente Ana Maria Sampaio Amaral Pereira, face à indisponibilidade dos tios maternos da requerida para assumirem a guarda de mais uma filha da requerida.
D) - Ambos os requeridos têm deficiências físicas acentuadas, sendo a requerida portadora de deficiência motora, caminhando com o auxílio de um aparelho, e o requerido sofreu um acidente de viação no qual perdeu massa encefálica, factos estes impeditivos de poderem dar à menor Isabel uma vida estável e um desenvolvimento harmonioso e saudável.
E) - Ambos os requeridos estão reformados por invalidez, sendo beneficiários do rendimento mínimo garantido no montante de 17,86 euros, recebendo ainda a requerida, a título de pensão, a quantia mensal de 151, 44 euros e o requerido 258,67 euros.
F) - A requerida tem uma filha mais velha, que se encontra à guarda e cuidados dos tios maternos Vasco Lima da Costa e Maria Onélia Ferreira da Fonseca, por aquela (requerida) não demonstrar capacidade para assumir o exercício do poder paternal.
G) - A requerente possui recursos para educar a menor Isabel numa atmosfera de afecto e segurança moral e material com vista ao desenvolvimento da sua personalidade.
H) - A requerente tem um rendimento líquido de 400,00 euros e o seu marido um rendimento de 515,00 euros, recebendo ainda o casal a quantia de 52,48 euros de prestações familiares dos seus filhos e a quantia de 26,24 euros de prestação familiar da menor Isabel.
I) - A requerente e o marido têm como despesas mensais com electricidade, gás e água a quantia de cerca de 75,00 euros e pagam mensalmente a quantia de 23,00 euros pela creche que a Isabel frequenta no Centro Paroquial de Canas de Senhorim.
J) - Os requeridos apenas esporadicamente vêem a menor, assim como esta não mantém quaisquer contactos com a sua irmã que vive com os tios maternos aludidos em F).
L) - Os requeridos nunca contribuíram para o sustento da menor Isabel, por não terem capacidade económica para o efeito.
Com interesse para a decisão do recurso importa ainda ter em consideração, face ao teor da informação policial de fls. 70, mais o seguinte:
M) – Os requeridos residem em casa arrendada, pagando 234,00 euros mensais a título de renda e despendem 50,00 euros por mês em água e electricidade.
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Sabido que o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal da Relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil), são duas, essencialmente as questões suscitadas pelos recorrentes, a saber:
- Não deveria ter sido decretada a inibição total do poder paternal, mas apenas a inibição parcial ou a limitação do exercício do poder paternal, fixando-se um regime de visitas a favor dos progenitores da menor; e
- Os recorrentes devem se dispensados de prestar alimentos a favor da menor, atentas a suas dificuldades económicas, ou, quando muito, reduzida a prestação a uma quantia simbólica.

I – Na sentença recorrida foi decretada a inibição total do exercício do poder paternal de ambos os progenitores da menor Isabel, por se verificarem os fundamentos a que alude o artº 1915º do Código Civil, visto que aqueles não cumprem com as suas responsabilidade parentais, nomeadamente quanto ao contributo para o seu sustento, assim como assumem que não têm capacidade para terem a seu cargo a menor Isabel.
Não sofre censura a sentença nessa parte, parecendo-nos, no entanto, que, de acordo com a prova constante dos autos, a inibição tem a sua fundamentação essencialmente na 2ª parte do nº 1 daquele normativo, em virtude de os pais, ora recorrentes, não se mostrarem em condições de cumprir os seus deveres para com a filha devido à enfermidade que ambos apresentam
Com efeito, ambos têm deficiências físicas acentuadas, sendo a requerida portadora de deficiência motora, caminhando com o auxílio de um aparelho, e o requerido sofreu um acidente de viação no qual perdeu massa encefálica, factos estes impeditivos de poderem dar à menor uma vida estável e um desenvolvimento harmonioso e saudável (cfr. al. D).
Isso mesmo reconhecem os recorrentes, quando afirmam na conclusão 5ª da sua alegação que “o se verifica (...) é uma impossibilidade em terem consigo a menor”.
Justificada a aplicação da medida de inibição do exercício do poder paternal, não pode ela deixar de ser total, como se fez na sentença.
É que, de acordo com o nº 2 do aludido artº 1915º, a inibição pode ser total ou limitar-se à representação e administração dos bens dos filhos.
Não constando dos autos que a menor Isabel possua quaisquer bens, não se levanta, in casu, a questão da representação e administração de bens, por forma a que a inibição se restrinja a tal aspecto., devendo, por isso, a inibição ser total.

Pretendem os recorrentes que, não obstante isso, seja fixado um regime de visitas a seu favor, em obediência ao artº 1410º do Código de Processo Civil.
É certo que fixação de um regime de visitas não está prevista expressamente no artº 198º da O.T.M., que estatui sobre a sentença a proferir no processo de inibição.
Mas, também não está excluída.
As visitas dos progenitores não contendem, em princípio, com o exercício do poder paternal.
Por isso, a menos que o interesse do menor o desaconselhe – como se sabe, é a este interesse que, exclusivamente, deve atender-se, quer na regulação, quer na inibição do exercício do poder paternal -, parece-nos que pode ser benéfica para o menor a fixação de um regime de visitas, que permita a convivência com os pais naturais, nomeadamente em casos como o presente em que não consta dos autos que os recorrentes tenham tido qualquer atitude menos própria para com a filha, de forma a pôr em causa a sua segurança, saúde ou educação, e face aos fundamentos que estão na base do decretamento da inibição do exercício do poder paternal.
À semelhança do que se passa com a regulação do exercício do poder paternal, em que, mesmo que o menor seja confiado à guarda de terceira pessoa, pode ser estabelecido um regime de visitas (cfr. artº 180º da O.T.M.), entendemos que também aqui se pode fixar tal regime, ao abrigo do disposto no artº 1410º do Código de Processo Civil, ex vi do artº 150º da O.T.M.
Esse regime terá, como é óbvio, de ser muito restritivo, devido à idade da menor Isabel.
Assim, os pais, ora recorrentes, poderão visitar a filha durante duas horas, aos sábados, da parte da tarde, das 16 às 18 horas, podendo, no entanto, este regime ser alterado por acordo com a requerente Ana Maria.
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II – Na sentença recorrida fixou-se a prestação de 75,00 euros a título de alimentos à menor a pagar pelos requeridos, não obstante se reconhecer que estes não têm prestado qualquer contributo para o sustento da menor, por incapacidade de os prestar.
E isto seria assim por força do disposto nos artº 198º da O.T.M., 36º da Constituição da República Portuguesa, 1874º, nº 2, 1878º, nº 1 e 2009º, nº 1 do Código Civil e 27º, nº 2 da Convenção sobre os Direitos da Criança.
Dispõe aquele primeiro normativo (artº 198º da O.T.M.) que na sentença deve o tribunal (...) fixar os alimentos devidos aos menores.
Estatui, por sua vez, o artº 1917º do Código Civil que a inibição do exercício do poder paternal em nenhum caso isenta os pais do dever de alimentarem o filho.
Estes normativos têm, no entanto, que ser entendidos cum granu salis, uma vez que têm de ser conjugados com o disposto no artº 2004º, nº 1 do Código Civil, que estabelece a medida dos alimentos e, segundo o qual, os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los.

Portanto, mesmo no caso de inibição do exercício do poder paternal os pais só são obrigados a prestar alimentos ao filho se tiverem possibilidades económicas para o efeito.
No presente caso deu-se como provado que os requeridos, ora recorrentes, nunca contribuíram para o sustento da menor Isabel, por não terem capacidade económica para o efeito (v. al. L); ambos estão reformados por invalidez, sendo beneficiários do rendimento mínimo garantido no montante de 17,86 euros, recebendo a requerida, a título de pensão, a quantia mensal de 151,44 euros e o requerido 258,67 euros (al. E); residem em casa arrendada, pagando mensalmente 234,00 euros de renda, e despendendo 50,00 euros por mês em água e electricidade (al. M).
Os requeridos auferem os rendimentos mensais de 427,97 euros e têm despesas comprovadas, em renda de casa, água e electricidade, de 284,00 euros.
Resta-lhes a quantia de 143,97 euros, a que teriam de retirar 75,00 euros para a prestação alimentícia da filha Isabel, ficando, assim, com 68,97 euros.
O que é manifestamente pouco para fazer face a outras despesas, que, embora não comprovadas, certamente que existem, com a sua alimentação, vestuário, calçado e assistência médica e medicamentosa.
Entendemos, por isso, à semelhança, aliás, do que aconteceu com a sentença recorrida, que os requeridos não têm condições económicas para contribuir para o sustento da filha Isabel e, portanto, para pagar a prestação de 75,00 euros - em que foram condenados na 1ª instância -, ou qualquer outra importância, a título de alimentos à mesma menor.
Por isso, terá a sentença recorrida que ser revogada nessa parte.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em dar parcial provimento ao recurso, fixando um regime de visitas a favor dos pais da menor Isabel nos termos a trás indicados, e revogando a sentença recorrida na parte em que condenou aqueles a pagar a prestação mensal de 75,00 euros, a título de alimentos a favor da filha, no mais mantendo tal sentença.
Custas por requerente e requeridos na proporção de metade.