Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
770/07.5TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME CARLOS FERREIRA
Descritores: SEGURO AUTOMÓVEL
SEGURO FACULTATIVO
NEXO DE CAUSALIDADE
CONDUÇÃO SOB EFEITO DO ÁLCOOL
Data do Acordão: 10/25/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA– 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 19º, AL. C) DO DL 522/85 (ENTRETANTO REVOGADO, SENDO AGORA DIFERENTE A LETRA DA LEI, NOMEADAMENTE O TEOR DO ARTIGO 27º, Nº1 C) DO DL 291/07,DE 21 DE AGOSTO); ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA Nº 6/2002, PUBLICADO NO DR – 1ª SÉRIE A, DE 18/07/2002.
Sumário: I - O contrato de seguro é um contrato sinalagmático, por virtude do qual é transferida para a seguradora a responsabilidade civil, no caso, emergente de acidente de viação relativa a determinado veículo automóvel, mediante o pagamento do prémio é, precisamente, a contrapartida do risco assumido pela seguradora.

II - Não são comparáveis, nem se pode, sem mais, estender as normas que regem o seguro obrigatório aos contratos de seguro facultativos, que as pessoas entendam celebrar entre si.

III - Os princípios e razão de ser subjacentes ao seguro obrigatório não se aplicam, naturalmente, e com os mesmos fundamentos, ao seguro facultativo.

Neste último está essencialmente em causa a liberdade contratual das partes e, por esse motivo, poderão no mesmo fazer incluir as cláusulas que lhes aprouver.

IV - Não poderá, pois, aplicar-se aos seguros facultativos o disposto no artigo 19º, al. c) do DL 522/85 (entretanto revogado, sendo agora diferente a letra da lei, nomeadamente o teor do artigo 27º nº1 c) do DL 291/07,de 21 de Agosto), que dispõe que “(…) satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso (…) contra o condutor, se este (…) tiver agido sob a influência do álcool”, sendo apenas a propósito deste que se decidiu no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 6/2002, publicado no DR – 1ª série A, de 18/07/2002, que é exigível para a procedência do direito de regresso a prova por parte da seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


I

No Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, a sociedade “T…, L.da”, com sede em …, intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra a “Companhia de Seguros …, S.A.”, com sede no …, pedindo a condenação desta a pagar-lhe o montante de € 167.464,62, acrescida de juros desde a citação até integral pagamento.

Para tanto e muito em resumo, alega que se dedica ao transporte rodoviário de mercadorias tendo celebrado com a Ré, em 01/04/2002, um “Contrato de Seguro de Responsabilidade Civil do Transportador C.M.R”, através do qual esta passou a garantir a responsabilidade civil da Autora, na sua qualidade de transportadora, que nos termos da convenção CMR, da lei e do contrato em referência lhe fosse imputável em consequência da perda, destruição ou avaria pelas mercadorias transportadas, o qual em 11/04/2006 se encontrava em vigor, mediante a apólice nº ...

Que tal contrato cobria os transportes de mercadorias efectuados pela Autora através, entre outros, dos seus veículos com as matrículas QH (tractor) e VI (semi-reboque).

Que no dia 11/04/2006, cerca das 18 horas, na EN 16, ao KM 168,80, no sentido Guarda - Porto da Carne, o conjunto dos referidos veículos, ao descrever uma curva para a direita, despistou-se, indo tombar na faixa de rodagem contrária, tendo sido a causa do acidente o rebentamento do fole de suspensão do eixo de pule do lado esquerdo do veículo QH.

Que o referido conjunto transportava 126 motores para automóveis, acondicionados em 21 paletes, tendo tais motores o valor de € 167.464,62, os quais foram carregados em França, na Peugeot Citroen Automobilies, S.A e destinavam-se à Peugeot Citroen Automóveis Portugal, S.A, em Mangualde, tendo o seu transporte sido solicitado à Autora pela “G…, Lda”, os quais ficaram totalmente danificados.

Que o referido veículo era conduzido, na ocasião, pelo motorista da autora de nome H…, que apresentou uma TAS de 1,18 g/l de álcool no sangue, o que levou a Ré a declinar a responsabilidade pela reparação dos danos resultantes desse acidente.

Que, todavia, o dito acidente não ocorreu devido à taxa de álcool do motorista, o qual conduzia o veículo com todo o cuidado e prudência, em respeito pelos limites de velocidade impostos por lei, mas sim pelo motivo já exposto, pelo que é a Ré responsável pelo ressarcimento dos danos sofridos no acidente e pela A. alegados.

Que a A. já suportou o pagamento do valor dos ditos danos perante a sua cliente, pelo se justifica a propositura da presente acção afim de se poder ser também ressarcida pela Ré, como pede e pretende.


II

            Contestou a Ré “Companhia de Seguros …, S.A.”, onde alega, muito em resumo, que a Autora propõe a acção contra a Ré, invocando um acidente alegadamente provocado pelo seu motorista e peticionando o ressarcimento dos danos sofridos, em virtude de terem ficado danificados os motores que transportava, com base no contrato de seguro celebrado.

Que, todavia, o contrato de seguro que liga as partes (CMR) é um contrato de seguro facultativo, tendo ficado expressamente acordado e clausulado no mesmo que dele estão excluídos os danos ocorridos em sinistros quando praticados sob a influência do álcool.

Que no caso em apreço o condutor do referido veículo havia ingerido bebidas alcoólicas antes do acidente, pelo que, tendo sido submetido ao teste de pesquisa de álcool no sangue, o dito condutor do veículo, que actuava sob as ordens, direcção, por conta e no interesse da Autora, acusou uma TAS de 1,18 g/l, pelo que conduzia com depressão das funções do sistema nervoso central e com acentuada diminuição da atenção, da capacidade de concentração e dos reflexos, sem a noção exacta do contorno e das formas das coisas, tendo efeitos psíquicos e neuro-musculares que afectam todo e qualquer condutor, tendo o acidente ocorrido exactamente devido a tal taxa de álcool no sangue.

Acrescenta não ser à Ré que cabe a prova do nexo causal, atenta a cláusula já mencionada, não se aplicando ao caso o Acórdão para Fixação de Jurisprudência 6/2002 de 28/05/2002, em virtude de se tratar de um seguro facultativo, pelo que sempre a Ré seria parte ilegítima na acção.

Quanto ao mais impugna o alegado pela Autora e conclui pela procedência da excepção que alega e pela improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.


III

A Autora apresentou réplica, onde sustentou que a Ré é parte legítima na causa, atento o modo como a A. alegou a causa de pedir na acção, ter ocorrido o acidente e as invocadas causas do mesmo.

Conclui, quanto ao mais, como na petição inicial.


IV

            Terminados os articulados foi proferido despacho saneador, no qual foi reconhecida a regularidade processual da acção, tendo também sido seleccionada a matéria de facto alegada pelas partes e tida como relevante para efeitos de instrução e de discussão da causa.

            Seguiu-se a realização da audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova testemunhal aí produzida, finda a qual decidida a matéria de facto constante da base instrutória, com indicação da respectiva fundamentação, conforme consta de fls. 84 a 95.

Proferida a sentença sobre o mérito da causa, nela foi decidido julgar a acção improcedente, com a absolvição da Ré do pedido.


V

            Dessa sentença interpôs recurso a A., recurso que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo.

            Nas alegações que apresentou a Apelante concluiu da seguinte forma:


VI


            Contra-alegou A Ré/Apelada, defendendo a total improcedência do recurso interposto, quer na impugnação que no dito se faz à decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto da base instrutória, quer na aplicação do direito, concluindo pela confirmação da sentença recorrida.

VII

            Nesta Relação foi aceite o recurso interposto, tal como foi admitido em 1ª instância, tendo-se procedido à recolha dos necessários “vistos” legais, sem qualquer observação, nada obstando ao conhecimento do seu objecto, o qual passa pela apreciação das duas seguintes questões:

A- Apreciação da impugnação apresentada pela Recorrente sobre a decisão de 1ª instância que apreciou/decidiu a matéria de facto.

B- Reapreciação da decisão de mérito.

Começando a nossa abordagem pela apreciação da dita questão A, …

            Face ao que a matéria de facto tida como assente e como provada passa a ser a seguinte:

...


***


            Prosseguindo com a abordagem da questão BReapreciação da decisão de mérito, o que se nos oferece dizer é que tal alteração da matéria de facto em nada colide com a dita decisão de mérito, já que não está em causa, afigura-se-nos, o apuramento de um nexo de causalidade ou da sua inexistência entre o acidente e a taxa de alcoolémia de que era portador, na ocasião do sinistro, o condutor do veículo sinistrado.

            Com efeito, estamos em total acordo com o que se escreveu, a este respeito, na dita sentença: “

O direito que se pretende fazer valer nesta acção, assenta, pois, no contrato de seguro celebrado entre a seguradora ora ré e a segurada, aqui autora, tendo resultado que no acidente interveio (sozinho) um seu motorista e também que do acidente resultaram danificados os motores que transportava.

Alega também a autora que a ré não assumiu a responsabilidade, dado que o condutor conduzia com uma TAS de 1,18, acrescentando ainda que não foi esta a causa do acidente, mas antes o rebentamento do fole da suspensão do eixo de puxe do lado esquerdo do veículo QH.

Já a ré sustenta que o acidente se ficou, efectivamente a dever ao facto do condutor ter as suas capacidades, reflexos e atenção diminuídos em virtude da taxa de álcool, que, necessariamente, o determinaria.

De todo o modo, acrescenta a ré que não estamos no âmbito do seguro obrigatório, mas antes facultativo e, por esse motivo, não tem que ser demonstrada a causalidade do acidente relativamente à taxa de álcool apresentada, existindo, pois, em seu entender, diferença significativa entre o seguro automóvel obrigatório e este seguro facultativo.

Reportando-nos, desde logo, ao contrato de seguro, diremos que é um contrato sinalagmático, por virtude do qual é transferida para a seguradora a responsabilidade civil, no caso, emergente de acidente de viação relativa a determinado veículo automóvel, mediante o pagamento do prémio é, precisamente, a contrapartida do risco assumido pela seguradora.

Traduz, nas palavras de Moitinho de Almeida “o descarregar na seguradora, pelo segurado da incerteza do an ou do quando da verificação do evento, recebendo em troca do prémio, a segurança ou cobertura do risco”.

Trata-se de um sinalagma, traduzido pela relação prémio-protecção do risco.

Reportando-nos, agora, à distinção que, de facto, existe entre um e outro seguro (obrigatório e facultativo), diremos que na base do seguro automóvel obrigatório, estão duas ordens de interesses: o interesse do segurado, que pretende proteger o seu património, de molde a não suportar pesadas indemnizações e o interesse da vítima, cujos direitos ficam fortemente garantidos.

Actualmente, atenta a natureza obrigatória do seguro automóvel, atribui-se prevalência, designadamente, ao interesse da vítima, que muitas vezes ficava desprotegida, atenta a insolvência do devedor.

Nos dias de hoje, o seguro obrigatório tem também uma função económico-social relevante, tendo em vista oferecer ao lesado um rápido ressarcimento dos danos que sofreu.

Neste sentido, poder-se-á dizer que não prevalece apenas a obrigação da companhia de seguros de liberar o segurado do montante que este deve pagar ao lesado, mas antes a garantia de uma pronta e célere indemnização do lesado, a quem a lei dá a possibilidade de exercer uma acção directa contra a seguradora.

O seguro obrigatório, actualmente vigente, quanto à circulação de veículos automóveis, visa, como referimos, proteger, o mais possível, os lesados, tendo por finalidade a satisfação imediata dos seus interesses.

Temos, pois, que no seguro obrigatório existem três relações distintas, não obstante estarem sujeitas a um vínculo que é comum: uma de índole contratual, que dimana do contrato de seguro, existente entre a seguradora e o segurado; outra de natureza extracontratual, proveniente do facto lesivo que deu origem à obrigação de indemnizar que existe entre o segurado e o lesado; por último, existe uma terceira relação, “ex lege”, entre o lesado e a companhia de seguros, que tem por base os pressupostos atrás referidos.

É esta que dá ao lesado a possibilidade de fazer valer o seu direito, directamente, contra a seguradora.

Em Portugal o regime do seguro obrigatório, foi introduzido pelo DL 522/85, prevendo o seu artigo 29º, nº1 que “as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil, quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser exercidas obrigatoriamente: a) só contra a seguradora quando o pedido formulado se contiver dentro dos limites fixados para o seguro obrigatório” (sendo que, entretanto, entrou em vigor o DL 291/2007 de 21 de Agosto, em 21 de Outubro).

Neste seguro obrigatório existem, pois, estes fundamentos e estas razões de ser que estão na sua origem e, designadamente na origem da sua obrigatoriedade e que já não se verificam no âmbito do seguro facultativo e, também por esse motivo as diferenças de regimes a que adiante nos reportaremos.

Regressando, agora, ao caso dos autos, provou-se que a autora “T…, Lda” dedica-se ao transporte rodoviário de mercadorias e a Ré “Companhia de Seguros …l, S.A.” dedica-se à actividade seguradora.

Autora e a Ré celebraram, em 1 de Abril de 2002, um “Contrato de Seguro de Responsabilidade Civil do Transportador C.M.R.”, através do qual a Ré passou a garantir a responsabilidade civil da Autora, na sua qualidade de transportadora, que nos termos da Convenção C.M.R., da lei e do contrato em referência lhe fosse imputável em consequência da perda, destruição ou avaria sofrida pelas mercadorias transportadas.

A tal contrato foi atribuída a apólice n.º …, que à data de 11 de Abril de 2006 se encontrava validamente em vigor e cobria os transportes de mercadorias efectuados pela Autora através, entre outros, dos seus veículos com as matrículas QH (tractor) e VI e o capital seguro ajustado entre a Autora e a Ré no âmbito do contrato sujeito foi de €199.519,15 por sinistro, não estando sujeito a qualquer franquia.

Em tal aludido contrato de seguro, cujas condições gerais constam de fls. 30 a 34 e que aqui se dão por integralmente reproduzidas, convencionou-se designadamente sob a cláusula 4.1., al. h), sob o título "Exclusões" que "Para além das exclusões previstas na Convenção, não cabem no âmbito do presente contrato as perdas ou danos que derivem, directa ou indirectamente, de actos ou omissões do tomador de seguro, do segurado, dos seus empregados, colaboradores ou de pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis, quando praticados em estado de demência ou sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas.".

Ora, é, assim, com base neste contrato de seguro, nos termos do qual autora e ré acordaram, que a autora funda a sua pretensão.

Trata-se, pois, como decorre do teor de tal apólice, de um seguro de responsabilidade civil do transportador, garantindo a responsabilidade civil do segurado, na sua qualidade de transportador.

Reportando-nos directamente a este contrato, diremos que tal contrato abrange apenas a actividade da autora como transportadora e reporta-se somente aos veículos ali definidos, incluídos em tal seguro.

Deste modo, facilmente se concluirá que estamos perante um contrato de seguro facultativo, e isto porque apenas cobre a actividade de transportadora e não também a actividade de transitária (sendo que esta última está já abrangida pela necessidade de seguro obrigatório - cfr. Ac. da RP de 17/01/2005 in www.dgsi.pt).

Assim, temos por assente que o contrato aqui em causa é um contrato de seguro facultativo.

A ré, em sede de contestação, vem referir que atendendo à taxa de alcoolemia apresentada pelo condutor, único interveniente e culpado pela produção do acidente, não há lugar ao pagamento peticionado, em virtude da exclusão, por esse motivo, prevista nas condições gerais deste seguro facultativo.

Por seu turno, a autora alegou e sustentou que a taxa de álcool não foi causal do acidente, mas antes o foi o rebentamento do fole da suspensão do eixo de puxe do lado esquerdo do veículo QH.

Retira-se, pois, da posição assim assumida pela autora, que entende esta ser necessária a prova do nexo de causalidade para assim se excluir a indemnização da seguradora, ou seja, a presente acção acaba por ser intentada preconizando-se a mesma tese contemplada para a acção de regresso, quando o segurado conduz com taxa de álcool superior à legalmente prevista.

Importa, portanto, decidir se no âmbito do seguro facultativo aqui em causa é ou não necessário que a taxa apresentada seja causal à produção do acidente e, em caso afirmativo, se o foi.

Por outro lado, importará ainda decidir se esta exclusão prevista nas condições gerais da apólice teria de ser expressamente comunicada ao segurado, sob pena de não lhe ser oponível, questão que tem sido também objecto de tratamento jurisprudencial.

No que à primeira das referidas questões concerne, repetimos, não estamos agora já no âmbito do seguro obrigatório, mas antes de um seguro facultativo.

Ora, os princípios e razão de ser subjacentes ao seguro obrigatório, a que já nos reportámos supra não se aplicam, naturalmente, e com os mesmos fundamentos, ao seguro facultativo.

Neste último está, essencialmente, em causa a liberdade contratual das partes e, por esse motivo, poderão no mesmo fazer incluir as cláusulas que lhes aprouver.

Deste modo, entendemos que não são comparáveis, nem se pode, sem mais, estender as normas que regem o seguro obrigatório aos contratos de seguro facultativos, que as pessoas entendam celebrar entre si.

Não poderá, pois, em nosso entender, aplicar-se aos seguros facultativos, como é o caso, o disposto no artigo 19º, al. c) do DL 522/85 (entretanto revogado, sendo agora diferente a letra da lei, nomeadamente o teor do artigo 27º nº1 c) do DL 291/07,de 21 de Agosto, mas que não interessa considerar), que dispõe que “(…) satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso (…) contra o condutor, se este (…) tiver agido sob a influência do álcool”, sendo apenas a propósito deste que se decidiu no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 6/2002, publicado no DR – 1ª série A, de 18/07/2002, que é exigível para a procedência do direito de regresso a prova por parte da seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.

Efectivamente, o artigo 19º, c) do DL 522/85, estatui que há direito de regresso se o condutor tiver agido sob a influência do álcool, sendo a propósito da interpretação desta expressão que, durante muito tempo, existiram divergências, nomeadamente ao nível da jurisprudência, que levaram à prolação do Acórdão Uniformizador a que aludimos (o qual, refira-se, não veio, pelo menos de modo cabal, resolver a questão, já que a jurisprudência continua dividida, mesma na aplicação que é feita da Jurisprudência Uniformizadora do dito Acórdão, mas que não importa, sequer, neste momento, analisar por não considerarmos aplicável aos presentes autos, atenta a natureza já referida do seguro em causa).

Com efeito, e como já ficou por demais dito, a pretensão da autora funda-se na celebração de um seguro facultativo, não estando em causa a apreciação de qualquer direito de regresso da seguradora sobre o responsável pelo acidente que conduzia o veículo com determinada taxa de álcool, mas é antes a aqui autora, tomadora do seguro, cujo empregado foi o único responsável e interveniente no acidente, que vem, com base no seguro facultativo que abrange a cobertura de perda, destruição ou avaria sofrida pelos bens transportados durante o transporte das mesmas, requerer o pagamento da indemnização pela seguradora.

Neste termos, diremos que os danos apenas seriam ressarcidos se estivessem, por um lado, abrangidos pelo objecto do seguro e, por outro lado, se a tal não existir qualquer impedimento, designadamente por força das cláusulas contratadas pelas partes intervenientes na celebração do contrato de seguro.

Ora, no contrato de seguro aqui em causa, nas condições gerais que integram a apólice que se encontra junta aos autos, consta, no seu artigo 4º, nº1 que “para além das exclusões previstas na Convenção não cabem no âmbito do presente contrato as perdas ou danos que derivem directa ou indirectamente de  (…) h) actos ou omissões do Tomador do Seguro, do Segurado , dos seus empregados, colaboradores ou de pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis, quando praticados em estado de demência ou sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas”.

Assim, diremos que este contrato de seguro é um contrato consensual, pese embora a sua validade dependa da redução a escrito, nos termos do artigo 426º do Código Comercial, sendo, efectivamente, regulado pelas disposições da respectiva apólice e, apenas no que esta for omissa, se aplica o disposto no Código Comercial.

Deste modo, a exclusão assim prevista no artigo 4º das condições gerais (que se reporta, precisamente, às exclusões) ocorre quando o condutor conduza sob a influência do álcool.

Importa, pois, analisar esta cláusula e determinar o que se pretendeu dizer ao excluir a protecção do seguro quando o condutor conduza sob a influência do álcool.

No caso dos autos, provou-se que conduzia com uma T.A.S de 1,18 g/l, ou seja, muito superior à legalmente prevista.

Deste modo, e ponderando tal taxa, não se nos suscitam quaisquer dúvidas de que, neste caso, o condutor conduzia sob a influência do álcool, independentemente de se ter ou não apurado se tal condução sob a influência do álcool foi ou não causal ao acidente.

E dizemos, independentemente de se ter ou não apurado se foi a condução com esta taxa de álcool a causa do acidente, dado que tal se mostra absolutamente irrelevante na situação que agora nos ocupa, ou seja, quando estamos perante um contrato de seguro facultativo.

Isto porque, em nosso entender, não tem aplicação nestes seguros, mas apenas no seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, o Acórdão de fixação de Jurisprudência a que aludimos supra.

Aliás, do mesmo decorre de forma inequívoca, que o seu âmbito de aplicação é somente ao direito de regresso exercido pela seguradora no seguro obrigatório, apenas aqui sendo necessário a seguradora provar o nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.

Com efeito, apenas na área do seguro obrigatório estão subjacentes as considerações de justiça social ou “socialização do dano” a que já aludimos, que não se justifica no seguro facultativo.

Neste, pelo contrário, deve sobrepor-se o princípio da liberdade contratual e a faculdade das partes auto-regularem os seus interesses nos termos e condições que entenderem, pelo que não faz sentido que tenha de seguir as mesmas regras e princípios norteadores do seguro obrigatório.

Mas, mais do que isso, não estamos aqui perante um direito de regresso, ou seja, não se está a apreciar a culpa de um acidente no qual a seguradora tenha invocado a exclusão da sua responsabilidade perante um terceiro lesado pelo facto do condutor do veículo segurado conduzir sob o efeito do álcool e não está também em causa a invocação de um direito de regresso sobre o tomador do seguro derivado da condução em tais circunstâncias.

Com efeito, nesta situação concreta, foi a aqui autora, enquanto tomadora do seguro, que intentou esta acção, para exigir da seguradora a reparação dos danos sofridos, neste caso, em virtude dos motores que transportava terem ficado destruídos, o que, de modo algum, se reconduz à justificação e razão de ser do seguro obrigatório.

Assim, esta cláusula, contrariamente ao que acontece quando está em causa a apreciação do direito de regresso da seguradora no âmbito da responsabilidade civil obrigatória, não deverá ser interpretado no sentido de exigir a prova pela seguradora do nexo de causalidade entre o efeito do álcool ingerido pelo condutor e a ocorrência do acidente, mas tão só que conduzia sob o efeito do álcool, não subsistindo qualquer dúvida de que um condutor que conduz com uma taxa de 1,18 g/l, o faz sob o efeito do álcool.

Quer isto dizer, e citando, a propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (proferido na Apelação nº 2800/05.C1, do Tribunal da Comarca de Pinhel), em situação idêntica à dos presentes autos “ (…) a interpretação da cláusula exclusiva em causa não está sujeita ao critério interpretativo do artigo 19º, c) do DL 522/85 e/ou o Acórdão de Fixação de Jurisprudência de 18/07/2002, estando sim sujeita às regras interpretativas traçadas pelos artigos 236º e 238º nº1 do CC, bastando-se para funcionar com o acto do condutor conduzir em violação da legislação aplicável à condução sob o efeito de álcool (…).

Daí que a prova ou não do nexo causal não tenha qualquer relevância em termos de requisito necessário ao funcionamento da cláusula de exclusão, não relevando, consequentemente, para a decisão a proferir nestes autos.

Em síntese, diremos que in casu, tendo-se provado que o motorista da autora e condutor do veículo, H… conduzia o veículo com uma taxa de álcool no sangue de 1,18 g/l, é óbvio que o fazia em desrespeito pela legislação aplicável, designadamente do disposto no artigo 81º nº2 do CE, na versão vigente à data do acidente, que estatuía que se considerava sob a influência do álcool o condutor que apresentasse uma taxa de álcool no sangue superior a 0,5 g/l e, consequentemente, que conduzia sob o efeito o álcool, independentemente de se apurar se essa condução sob o efeito do álcool foi causal ao acidente.

Em conclusão, dir-se-á que à luz da mencionada cláusula, devido à exclusão acabada de referir, não serão indemnizáveis os danos peticionados pela autora, na medida em que o condutor conduzia com uma taxa de álcool superior à legalmente permitida, ou seja, sob o efeito do álcool.

Por fim, parece-nos óbvio que esta cláusula de exclusão do seguro não pode deixar de ser oponível à autora neste âmbito do seguro facultativo, não podendo deixar de se considerar que também a inoponibilidade a terceiros da condução sob o efeito do álcool com o consequente direito de regresso, apenas tem lugar e se justifica no âmbito do seguro obrigatório, atentas as finalidades do mesmo a que já aludimos, não devendo ser estendida ao seguro facultativo (cfr. Ac. RC de 18/03/2003, in www.dgsi.pt).

Perante o que acabámos de referir deverá improceder o peticionado pela autora.”.

            E dizemos que estamos em total sintonia com o assim escrito e defendido porque também somos subscritores (o relator e o 1º adjunto do presente acórdão) – enquanto 1º e 2º adjuntos – do Acórdão desta mesma Relação proferido no Proc.º nº 531/06.9TBPBL.C1, do qual reproduzimos as seguintes passagens (disponível em www.dgsi.pt/jtrc):

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
531/06.9TBPBL.C1
Nº Convencional:JTRC
Relator:ARTUR DIAS
Descritores:SEGURO AUTOMÓVEL
SEGURO MISTO
SEGURO FACULTATIVO
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
EXCLUSÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURADORA
Data do Acordão:15-07-2008
Votação:UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL – 3º JUÍZO
Texto Integral:S
Meio Processual:APELAÇÃO
Decisão:CONFIRMADA
Legislação Nacional:ARTº 36º, Nº 1, AL. C), DAS CONDIÇÕES GERAIS DA APÓLICE DE SEGURO AUTOMÓVEL.
Sumário:I – O contrato de seguro, cuja regulação geral consta dos artºs 425º e segs. do Código Comercial, é um contrato formal, oneroso e de adesão.

II – Na interpretação das cláusulas do contrato de seguro o texto do documento que o formaliza (a apólice) constitui simultaneamente ponto de partida e limite de indagação, já que não pode a declaração valer com um sentido que nele não tenha um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa – artº 238º, nº 1, C. Civ.

III – As cláusulas contratuais gerais ambíguas (e inegociáveis por parte do tomador), constantes de um contrato de seguro de adesão, têm o sentido que lhes daria o contraente indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real, prevalecendo, na dúvida, o sentido mais favorável ao aderente.

IV – No que respeita ao chamado seguro automóvel misto (obrigatório até ao limite legal e facultativo daí para cima) e ao seguro automóvel totalmente facultativo, denominado de “seguro de danos próprios”, as seguradoras não estão constituídas na obrigação de indemnizar se o segurado, na ocasião do acidente, estiver sob influência do álcool (mera condução sob influência do álcool) – o que é causa de exclusão da responsabilidade civil contratual das seguradora.

V – Neste tipo de seguros não se coloca, pois, a questão do nexo de causalidade entre o efeito do álcool ingerido pelo condutor e a eclosão do acidente.

VI – O artº 36º, nº 1, al c), das Condições Gerais da Apólice de Seguro Automóvel, contém uma cláusula de exclusão segundo a qual “para além das exclusões previstas no artº 6, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações…c)sinistros resultantes de demência do condutor do veículo ou quando este conduza em contravenção à legislação aplicável à condução sob influência do álcool, ou sob a influência de estupefacientes, outras drogas ou produtos tóxicos”.

VII – Para que esta exclusão actue basta que o condutor seja portador, na altura do acidente, de uma T.A.S. superior à permitida por lei, não havendo que indagar se a correspondente alcoolemia foi ou não adequadamente causal do sinistro.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1. RELATÓRIO

Tendo em consideração que, de acordo com os artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada a questão da interpretação do artº 36º, nº 1, al. c) das Condições Gerais da Apólice de Seguro Automóvel (cfr. fls. 56 e seguintes dos autos), segundo o qual “para além das exclusões previstas no Artº 6º, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações ... c) sinistros resultantes de demência do condutor do veículo ou quando este conduza em contravenção à legislação aplicável à condução sob efeito de álcool, ou sob a influência de estupefacientes, outras drogas ou produtos tóxicos” (sublinhado nosso).


***

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. De facto

3.2. De direito

Na sentença recorrida foi entendido que o artº 36º, nº 1, al. c) das Condições Gerais da Apólice de Seguro Automóvel (cfr. fls. 56 e seguintes dos autos) deve, contrariamente ao que sucede com o artº 19º, al. c) do Dec. Lei nº 522/85, de 31/12[2], relativo ao seguro obrigatório de responsabilidade civil, ser interpretado no sentido de que a condução sob influência do álcool exclui o sinistro da cobertura do seguro facultativo de danos próprios independentemente de entre a sua ocorrência e a condução naquelas condições haver nexo de causalidade.

Os apelantes discordam, sustentando que é exigível a existência do aludido nexo de causalidade.

A questão que neste recurso importa dilucidar colocou-se também durante muito tempo relativamente ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, tendo gerado larga controvérsia jurisprudencial que só com o Acórdão de Uniformização do STJ, nº 6/2002, de 28/05/2002, publicado no D.R., I Série-A, nº 164, de 18/07/2002, foi resolvida[3].

O artº 19º, nº 1, al. c) do Dec. Lei nº 522/85, de 31/12, que regula aquele seguro, dispõe que “satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso ... contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado”. No caso de condução sob influência do álcool, uma corrente jurisprudencial defendia que bastava que a seguradora provasse que o segurado conduzia com uma T.A.S. superior à legalmente permitida para o direito de regresso operar; uma outra sustentava que, para tal, a seguradora deveria provar não apenas a T.A.S. superior à legalmente permitida, como também a existência de um nexo de causalidade adequada entre a condução sob influência do álcool e a ocorrência do acidente; e outra ainda entendia que, provada pela seguradora a condução com uma T.A.S. superior à legalmente permitida, competiria ao segurado provar a inexistência de nexo de causalidade entre tal condução e o acidente.

Através do referido Acórdão foi uniformizada a jurisprudência no sentido de que “a alínea c) do artigo 19.° do Decreto-Lei n.° 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”.

Não havendo argumentos novos, supervenientes, que permitam questionar a indicada jurisprudência, ela impõe-se aos tribunais e não pode deixar de ser acatada.

Mas a questão não se coloca apenas em relação ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. Pode colocar-se – e coloca-se – também, relativamente ao seguro misto (obrigatório até ao limite legal e facultativo daí para cima), bem como ao seguro totalmente facultativo, denominado de “seguro de danos próprios” – que não é já um seguro de responsabilidade civil, pois o segurado não transfere qualquer responsabilidade, antes sendo um simples seguro de danos – pois habitualmente é incluída na respectiva apólice uma cláusula de teor idêntico à al. c) do artº 19º do Dec. Lei nº 522/85.

E, tal como acontecera quanto ao seguro obrigatório, a jurisprudência não tem sido uniforme na interpretação de tais cláusulas insertas nas apólices dos seguros mistos (parte facultativa) e dos seguros integralmente facultativos (de danos próprios).

No que tange aos seguros mistos, o Ac. Rel. Coimbra de 18/03/2003[4] entendeu que “em sede de seguro facultativo e nos termos do artº 19º alínea c) das Condições Gerais da Apólice, a Ré, no que respeita à parte facultativa do seguro, não está constituída na obrigação de indemnizar os AA., uma vez que a mera condução sob influência do álcool é causa de exclusão da responsabilidade contratual da Ré”.

Esse acórdão foi, porém, revogado pelo Ac. STJ de 18/03/2004[5], cujo sumário se transcreve:

I- À luz do acórdão de uniformização de jurisprudência nº 6/02, de 28 de Maio de 2002, em sede do direito de regresso previsto na alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, do mesmo modo incumbe à seguradora demandada pelo lesado o ónus da prova do nexo de causalidade entre a condução do segurado sob o efeito do álcool – por ela oposta em via de excepção – e a eclosão do acidente (artigo 342º, nº 2 do Código Civil);
II- Na falta dessa prova, falha um dos pressupostos de aplicação da cláusula de exclusão da responsabilidade consignada na alínea c) do artigo 19º das Condições Gerais da apólice uniforme do ramo automóvel do contrato de seguro ajuizado, respondendo a seguradora perante o lesado por todos os danos compreendidos no capital, superior ao montante do seguro obrigatório, segurado a título facultativo.

No respeitante ao seguro integralmente facultativo (danos próprios), foi entendido no Ac. Rel. Porto de 14/06/1999[6] que “a cláusula desse contrato em que se convenciona que a seguradora não pagará indemnização se o condutor do veículo o conduzia sob o efeito do álcool deve ser interpretada no sentido de ser necessária a verificação de uma taxa de alcoolemia superior a 0,5 g/l e a ocorrência de nexo de causalidade entre a ingestão de álcool e o acidente”, sendo “à seguradora, que pretende ver excluída a responsabilidade, que incumbe provar aqueles requisitos”.

Em sentido oposto decidiu-se no Ac. desta Relação de 02/10/2001[7] e no Ac. Rel. Porto de 20/01/2005[8], lendo-se no sumário deste que, “se num contrato de seguro facultativo de responsabilidade civil por danos próprios relativos a um veículo automóvel e por danos pessoais e materiais é estabelecida uma cláusula em que se estipula que ficam excluídos os sinistros resultantes de... ou quando este conduza em contravenção à legislação aplicável à condução sob o efeito de álcool não são indemnizáveis as consequências directa ou indirectamente derivadas dos eventos envolventes quando o condutor se encontre sob o efeito do álcool, com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida”.

E, no mesmo sentido, afirmou-se no texto do Ac. do S.T.J. de 15/05/2003[9], tendo em mente o seguro facultativo, que “não se coloca nesta sede a questão do nexo de causalidade entre o efeito do álcool ingerido pelo recorrido e a eclosão do acidente, porque as partes definiram o limite da exclusão da cobertura contratual por referência ao volume da alcoolemia legalmente consentido pela lei portuguesa a quem conduzisse veículos automóveis”.

No caso dos autos, estamos perante um seguro inteiramente facultativo, de «danos próprios», cuja apólice, sob o artº 36º, nº 1, al. c), contém uma cláusula de exclusão segundo a qual “para além das exclusões previstas no Artº 6º, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações ... c) sinistros resultantes de demência do condutor do veículo ou quando este conduza em contravenção à legislação aplicável à condução sob influência do álcool, ou sob a influência de estupefacientes, outras drogas ou produtos tóxicos”.

Aquando do embate, o malogrado marido e pai dos AA. conduzia com uma T.A.S. de 0,71 g/l, superior à legalmente permitida, já que, de acordo com o artº 81º, nº 2 do Cód. da Estrada, se considera sob influência do álcool “o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/1 ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico”.

Importa, portanto, interpretar a aludida cláusula da apólice de seguro em termos de saber se a exclusão do sinistro da cobertura do seguro depende apenas da circunstância de o segurado conduzir com uma T.A.S. superior à legalmente permitida ou se, pelo contrário, é também indispensável a prova da existência de nexo de causalidade adequada entre tal condução e a eclosão do acidente[10].

Convém começar por referir que não estamos perante uma cláusula de exclusão da responsabilidade no sentido próprio da expressão, mas antes perante uma cláusula limitativa do objecto do contrato de seguro, já que o escopo da mesma não é afastar ou excluir a responsabilidade mas antes suprimir uma obrigação que, sem esse acordo de vontades, faria parte do contrato[11].

O contrato de seguro, cuja regulamentação geral consta dos artºs 425º e seguintes do Cód. Comercial[12], é um contrato formal, oneroso e de adesão.

Em matéria de interpretação e integração da declaração negocial regem os artºs 236º a 239º do Cód. Civil, normas que, com pequenas «nuances», consagram a doutrinalmente chamada teoria da impressão do destinatário, segundo a qual a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição concreta do real declaratário, lhe atribuiria. Considera-se o real declaratário nas condições concretas em que se encontra e tomam-se em conta os elementos que ele conheceu efectivamente mais os que uma pessoa razoável, quer dizer, normalmente esclarecida, zelosa e sagaz, teria conhecido e figura-se que ele raciocinou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário razoável[13].

Na interpretação das cláusulas do contrato de seguro o texto do documento que o formaliza (a apólice) constitui simultaneamente ponto de partida e limite de indagação, já que não pode a declaração valer com um sentido que nele não tenha um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa (artº 238º, nº 1 do Cód. Civil).

Não deve também olvidar-se que, sendo o contrato de seguro um contrato de adesão, contém cláusulas gerais, inegociáveis por parte do respectivo tomador, as quais, nos termos do artº 10º do Dec. Lei nº 446/85 de 25/10, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei nº 220/95, de 31/08, “são interpretadas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular, em que se incluam”. Sendo que as cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contraente indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real prevalecendo, na dúvida, o sentido mais favorável ao aderente ( artº 11º)[14].

Na sentença sob recurso aludiu-se à jurisprudência fixada pelo Acórdão de Uniformização nº 6/2002 do S.T.J., já referido, e entendeu-se que a interpretação ali dada à expressão «sob a influência do álcool», integrante da al. c) do artº 19º do Dec. Lei nº 522/85, não tem, em sede de seguro facultativo, aplicação.

Concorda-se inteiramente com esse julgamento.

É certo que, na parte relativa ao seguro obrigatório, a apólice de fls. 56 e seguintes contém o artº 25º, cuja al. c) reproduz “ipsis verbis” a al. c) do artº 19º do Dec. Lei nº 522/85. E que a al. c) do artº 36º, relativa ao seguro facultativo, se assemelha àquele dispositivo, utilizando a expressão «em contravenção à legislação aplicável à condução sob o efeito do álcool».

No entanto, as duas cláusulas situam-se em planos diversos e têm distintas finalidades.

Com efeito, uma situa-se na parte da apólice relativa ao seguro obrigatório e a outra na parte relativa ao seguro facultativo, sendo que no primeiro existe um claro interesse de ordem pública, justificado pela “socialização do risco”, completamente ausente do segundo, em que adquire maior realce a liberdade contratual[15].

A cláusula do artº 36º, n° 1, al. c) das Condições Gerais da Apólice deve ser interpretada “dentro do contexto do contrato singular em que se inclui” (artº 10º do Dec. Lei 446/85), ou seja, no âmbito do seguro facultativo de danos próprios, tendo nela as partes definido o limite da exclusão da cobertura contratual tão somente por referência ao grau de alcoolemia permitido por lei, sendo certo que a exigência do nexo de causalidade não aparece com um mínimo de correspondência no respectivo texto.

Na acção de regresso não está em causa a responsabilidade emergente do contrato de seguro, mas o exercício de um direito que surge de novo na titularidade da seguradora, que satisfez a indemnização ao lesado, situando-se no âmbito da responsabilidade extracontratual.

Na presente acção a causa de pedir consubstancia-se no alegado incumprimento do contrato de seguro e o que se discute é se o capital reclamado está ou não coberto, face ao teor da cláusula, e como se argumentou no Ac. do STJ de 15/5/2003, já atrás referido, “não se coloca nesta sede a questão do nexo de causalidade entre o efeito do álcool ingerido pelo recorrido e a eclosão do acidente, porque as partes definiram o limite da exclusão da cobertura contratual por referência ao volume da alcoolemia legalmente consentido pela lei portuguesa a quem conduzisse veículos automóveis”.

Ou seja, a cláusula em questão tem como escopo a delimitação do objecto do contrato de seguro facultativo de danos próprios e, de acordo com ela, não constituem objecto do dito contrato os sinistros que ocorram quando o condutor do veículo conduza sob a influência do álcool.

Para que tal exclusão actue basta que o condutor seja portador, na altura do acidente, de uma T.A.S. superior à permitida por lei, não havendo que indagar se a correspondente alcoolemia foi ou não adequadamente causal do sinistro.

Apesar da interpretação que, em diferente contexto, o Ac. de Uniformização nº 6/2002 fez da expressão «sob a influência do álcool», aquela é a interpretação que, a partir do texto da cláusula constante do artº 36º, nº 1, al. c) da Apólice e sem o exceder, faria um declaratário normal colocado na posição do real declaratário.

Não foram, pois, violados quaisquer princípios e/ou normas constitucionais ou legais, nomeadamente os indicados pelos recorrentes.

Soçobram, portanto, as conclusões da alegação dos recorrentes, o que conduz à improcedência da apelação e à manutenção da sentença recorrida.



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[1] Na petição inicial os AA. haviam feito referência à viatura automóvel da marca Volkswagen, modelo Golf, de matrícula 99-93-JP. Mas, face às condições particulares da apólice juntas a fls. 52 e 53 e ao despacho de fls. 99, procederam à pertinente correcção, no sentido de se tratar do veículo automóvel da marca Audi A3, com a matrícula 33-93-JP.
[2] Embora entretanto tenha entrado em vigor o Decreto-lei nº 291/2007, de 21/08, que revogou o Decreto-lei nº 522/85, é a este que teremos de nos reportar, atenta a data do acidente. No Decreto-lei nº 291/2007 regula, nesta matéria, o artº 27º, cujo nº 1, als. c) e d) estipulam que “satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso … c) contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos” e … “d) contra o condutor, se não estiver legalmente habilitado, ou quando haja abandonado o sinistrado”.
[3] Mal resolvida, segundo João Valente Martins, Contrato de Seguro, Notas práticas, Quid Juris 2006, pág. 103. Aí diz o Autor que “Ao obrigar-se as seguradoras a terem de provar o nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e a produção do acidente, este Acórdão veio pura e simplesmente desculpabilizar os condutores que habitualmente abusam do álcool e são causadores de muitos incapacitados e inúmeras mortes. E prossegue: “Efectivamente, não se compreende o objectivo, o sentido e menos ainda a justificação de um Acórdão desta natureza num país com uma taxa de sinistralidade automóvel tão elevada, causada em grande parte pela condução sob o efeito do álcool”. Finalmente, depois de apelar à intervenção do legislador, conclui que “nos casos da condução sob o efeito do álcool deveria ser estabelecida uma presunção de culpabilidade do condutor.
[4] Processo 3162/02, Nº Convencional JTRC01933, Relator: Des. Távora Vitor, in www.dgsi.pt/jtrc.
[5] Processo 03B3041, Nº Convencional JSTJ000, Relator: Cons. Lucas Coelho, in www.dgsi.pt/jstj.
[6] Processo 9950626, Nº Convencional JTRP00026275, Relator: Des. Caimoto Jácome, in www.dgsi.pt/jtrp.
[7] CJ, Ano XXVI, Tomo IV, pág. 20.
[8] Processo 0436988, Nº Convencional JTRP00037606, Relator: Des. Gonçalo Silvano, in www.dgsi.pt/jtrp.
[9] In www.dgsi.pt/jstj (Relator: Cons. Salvador da Costa).
[10] Sobre interpretação das cláusulas do contrato de seguro veja-se Pedro Romano Martinez, Cláusulas contratuais gerais e cláusulas de limitação ou de exclusão da responsabilidade no contrato de seguro, Scientia Iuridica, Abril-Junho 2006, Tomo LV, Nº 306, págs. 241 a 261; e, do mesmo Autor, Direito dos Seguros, Principia, 2006, págs. 83 e seguintes.
[11] António Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, págs. 116/119. Ver tb. Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, págs. 431/432 e A Limitação Convencional da Responsabilidade Civil, Prof. Pessoa Jorge, BMJ, nº 281, págs. 18/19.
[12] O Decreto-lei nº 72/2008, de 16 de Abril, que aprova o regime jurídico do contrato de seguro, revogando os artºs 425º a 462º do Código Comercial, só no dia 1 de Janeiro de 2009 entrará em vigor.
[13] Prof. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1976, pág. 419.
[14] Há que ter presente também o disposto nos artºs 8º e 9º do Decreto-lei nº 176/95, de 26/07, sobre as regras de transparência para a actividade seguradora. Pedro Romano Martinez, em Direito dos Seguros, pág. 83 e em Cláusulas Contratuais Gerais …, pág. 246, faz a seguinte síntese: “Para o contrato de seguro, quanto à interpretação das suas cláusulas, vale o regime geral do Código Civil (artºs 236º e ss.), com as especificidades decorrentes dos artºs 7º, 10º e 11º da LCCG, a que acresce o disposto nos artºs 8º e 9º do Decreto-Lei nº 176/95, de 26 de Julho, sobre regras de transparência para a actividade seguradora”.
[15] Ac. STJ de 25/01/2005, disponível em www.dgsi.pt, referido na sentença recorrida.


            Por conseguinte, afigura-se-nos que apenas nos resta formular um juízo de total concordância com a sentença recorrida, como, aliás, também é defendido em outros arestos desta Relação nela citados, pelo que temos de concluir pela não atribuição de razão à tese defendida pela Apelante, o que decidimos, assim se julgando improcedente o presente recurso.


IX

            Decisão:

            Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o presente recurso, confirmando-se a sentença recorrida, apesar da alteração havida/decidida à matéria de facto dada como provada.

            Custas pela Apelante.


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Jaime Carlos Ferreira (Relator)

Jorge Arcanjo

Isaías Pádua