Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
769/06.9TBOHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
ESTADO
DIREITO A ALIMENTAÇÃO
INÍCIO
Data do Acordão: 05/05/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: LEI Nº 75/98 DE 19 DE NOVEMBRO, DL Nº 164/99 DE 13 DE MAIO E ARTIGOS 2º, 63º Nº 3 E 69º Nº 2 DA CRP
Sumário: 1) A Lei nº 75/98 de 19 de Novembro que criou Fundo de Garantia de Alimentos devidos a menores e o DL nº 164/99 de 13 de Maio que a regulamenta surgem-nos como a primeira tentativa de concretizar na prática a intenção programática fixada nos artigos 2º, 63º nº 3 e 69º nº 2 da Lei Fundamental quanto à efectiva protecção de crianças em situação de carência.

2) Em situações de falta ou diminuição de meios de subsistência por parte de um menor, o Estado tem o dever de criar os pressupostos materiais indispensáveis ao exercício do direito a alimentos.

3) A criação do Fundo de Garantia de Alimentos de­vidos a Menores insere-se no escopo de concretização na prática do imperativo constitucional nesta matéria.

4) A intervenção daquela entidade só tem lugar quando a carência do beneficiário a alimentos é feita sentir em juízo através do requerimento que vai desen-cadear o processo em ordem à fixação de uma prestação mensal a cargo do Fundo que se pretende adequada a col-matar as necessidades do menor.

5) Nesta conformidade o pagamento das prestações alimentares por parte do Fundo de Garantia muito embora só se inicie com a notificação da decisão do Tribunal, reporta-se ao momento em que foi formulado o pedido visando conseguir aquele Apoio.

Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO.

Acordam na Secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

Por decisão proferida em 13.04.07, já transitada em julgado e constante de fls. 32 e seguintes, determinou-se que os menores A... e B... , ficassem à guarda e cuidados da tia materna, C... , a quem foi incumbido o exercício do poder paternal, e ainda que o progenitor, D... , contribuísse para o sustento do menor com a pensão mensal global de € 100,00.

Por decisão de 21.06.07, foi declarada a situação de incumprimento por banda do progenitor da sua obrigação de prestar alimentos, tendo-se julgado em dívida todas as prestações vencidas. A progenitora, E... , veio, entretanto a falecer.

Não foi possível, apesar das inúmeras diligências feitas ao longo dos últimos meses, obter informação acerca de bens ou rendimentos que o progenitor possua.

O Sr. Juiz por decisão de fls. 100 determinou que a pensão de alimentos devida aos menores A...e B..., passe a ser processada pelo Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores e que seja actualizada para € 100,00 relativamente a cada menor.

Mais se determinou que o pagamento a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a menores das prestações que se vencerem a partir de Junho de 2007 inclusive.

Daí o presente recurso de agravo interposto pelo Fundo de Garantia de Alimentos, o qual no termo da sua alegação pediu que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra na qual o FGADM do IGFSS seja obrigado a efectuar o pagamento das prestações apenas a partir do mês seguinte ao da notificação da decisão do Tribunal.

Foram para tanto apresentadas as seguintes,

Conclusões.

1) A douta decisão ora recorrida interpretou e aplicou de forma errónea, ao caso sub iudice, o artº 1º da Lei 75/98, de 19/11, e o artº 4º nºs 4 e 5 do Dec-Lei nº 164/99, de 13 de Maio.

2) Com efeito, o entendimento da meritíssima Juiz “a quo", de que no montante a suportar pelo FGADM devem ser abrangidas as prestações já vencidas e não pagas pelos progenitores judicialmente obrigados a prestar alimentos) não tem, salvo o devido respeito, suporte legal.

3) O Dec-Lei nº 164/99, de 13 de Maio, é taxativo quanto ao início da responsabilidade do Fundo pelo pagamento das prestações.

4) No nº 5 do artº 4 do citado diploma, é explicitamente estipulado que "o Centro Regional de Segurança Social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do Tribunal, nada sendo dito quanto às prestações em dívida pelo obrigado a prestar alimentos.

5) Existe uma delimitação temporal expressa que estabelece o momento a partir do qual o Fundo deve prestar alimentos ao menor necessitado.

6) Não foi intenção do legislador dos supra mencionados diplomais legais, impor ao Estado, o pagamento do débito acumulado pelo obrigado a prestar alimentos.

7) Tendo presente o preceituado no artº 9º do Código Civil, ressalta ter sido intenção do legislador, expressamente consagrada, ficar a cargo do Estado, apenas o pagamento de uma nova prestação de alimentos a fixar pelo Tribunal dentro de determinados parâmetros – artº 3º nº 3 e artº 4º nº 1 do Dec-Lei 164/99, de 13/5, e artº 2º da Lei 75/98, de 19/11.

8) A prestação que recai sobre o Estado é, pois, uma prestação autónoma, que não visa substituir definitivamente a obrigação de alimentos do devedor, mas, antes, proporcionar aos menores a satisfação de uma necessidade actual de alimentos, que pode ser diversa da que determinou a primitiva prestação.

9) O FGADM não garante o pagamento da prestação de alimentos não satisfeita pela pessoa judicialmente obrigada a prestá-los, antes assegurando, face à verificação cumulativa de vários requisitos, o pagamento de uma prestação “a forfait” de um montante por regra equivalente – ou menor – ao que fora judicialmente fi­xado.

10) Só ao devedor originário é possível exigir o pagamento das prestações já fixadas, como decorre do disposto no artº 2006º do CC, constatação que é reforçada no artº 7º do Dec-Lei 164/99 ao estabelecer que a obrigação principal se mantém, mesmo que reembolso haja a favor do Fundo.

11) Não há qualquer semelhança entre a razão de ser da prestação de alimentos fixada ao abrigo das disposições do Código Civil e a fixada no âmbito do Fundo. A primeira consubstancia a forma de concretização de um dos deveres em que se desdobra o exercício do poder pa­ternal; a última visa assegurar, no desenvolvimento da política social do Estado, a protecção do menor, proporcionando-lhe as necessárias condições de subsistência.

12) Enquanto o artº 2006º do Código Civil está in­timamente ligado ao vínculo familiar – artº 2009º do CC – e daí que quando a acção é proposta, já os alimentos seriam devidos, por um princípio de Direito Natural, o Dec-Lei 164/99 “cria” uma obrigação nova, imposta a uma entidade que antes da sentença, não tinha qualquer obrigação de os prestar.

13) A obrigação de prestação de alimentos pelo FGADM (autónoma da prestação alimentícia decorrente do poder paternal) não decorre automaticamente da Lei, sendo necessária uma decisão judicial que a imponha, ou seja, até essa decisão não existe qualquer obrigação.

14) Se é diferente a natureza das duas prestações, diferente é também o momento a partir do qual se começam a vencer:

15) a prestação de alimentos, visto haver norma substantiva que o prevê, começa a vencer-se a partir da propositura da acção que fixou o quantitativo a satisfazer pelos progenitores do menor,

16) Já a prestação a satisfazer pelo FGADM começa a vencer-se no mês seguinte ao da notificação da decisão judicial que fixa o seu montante.

17) Muito bem decidiu o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra – agravo nº 1386/01, de 26-06-01, no sentido de o Estado não responder gelo débito acumulado do obrigado a alimentos, tratando-se de prestações de diversa natureza. No mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos citados no ponto 53 das presentes alegações.

18) Não colhe o argumento de que o menor não pode ficar à mercê das contingências do processo e seu arrastamento pelos Tribunais, porquanto, como é do co­nhecimento geral, no entretanto, e enquanto o processo se encontra pendente do Tribunal, a verdade é que al­guém tem de alimentar o menor, sob pena de este não sobreviver.

19) O pagamento das prestações relativas ao período anterior não visaria propriamente satisfazer as ne­cessidades presentes de alimentos a menor, constituindo, antes, um crédito de quem, na ausência do requerido, custeou unilateralmente (ao longo do anos) a satisfação dessas necessidades.

20) O Estado substituiu-se ao devedor, não para pagar as prestações em dívida por este, mas para assegurar os alimentos de que o menor necessita; para que este não volte a ter frio, não volte a ter fome (e não, para evitar que ele tivesse frio ou fome, pois tal é impossível. Já passou. É tarde de mais).

21) Daí a necessidade de produção de prova sobre os elementos constantes da Lei nº 75/98, de 19 de No­vembro, e do Dec-Lei nº 164/99, de 13 de Maio, que o Tribunal deve considerar na fixação da prestação a efectuar pelo Estado, prestação essa que não é necessariamente equivalente à que estava em dívida pelo progenitor.

22) Há ainda que salientar, que as atribuições de cariz social do Estado não se esgotam no FGADM, o qual constitui uma ínfima parte das mesmas, sendo certo que a todas o Estado tem de dar satisfação.

23) Não pode proceder-se à aplicação analógica do regime do artº 2006º, dada a diversa natureza das prestações alimentares.

24) O FGADM somente deverá ser responsabilizado pelo pagamento das prestações fixadas e devidas, a partir do mês seguinte ao da notificação da respectiva de­cisão judicial, e não pelo pagamento do débito acumulado dos obrigados.

25) O que se entende facilmente se atentarmos na finalidade da criação do regime instituído pelos supra citados diplomas legais, que é o de assegurar (garantir) os alimentos devidos a menores e não o de substituir a obrigação alimentícia que recai sobre o obrigado a alimentos.

Não houve contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

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2. FUNDAMENTOS.

2.1. Os Factos.

2.1.1. Os menores vivem com a tia materna e com o marido e um filho desta e ainda com mais dois sobrinhos da mesma.

2.1.2. Este agregado extenso conta com o vencimento do marido de C... no valor de € 440,90 mensais, com abono de família no valor global de € 160,00 com apoio alimentar que se traduz em cerca de € 200,00 mensais e ainda com os rendimentos de valor não apurado, mas não inferiores ao correspondente ao salário mínimo nacional que a tia materna dos menores obtém do trabalho que desenvolve em diversas casas particulares como doméstica.

2.1.3. Dos elementos recolhidos nos autos retirados do teor do Relatório Social de fls. 93 resulta claramente que os menores se encontram em condições de verem assegurado pelo Fundo de Garantia dos Alimentos devidos a Menores o pagamento dos alimentos que lhe são devidos pelo progenitor.

2.1.4. Desde logo são menores, têm nacionalidade portuguesa e residem em território português.

2.1.5. Por outro lado, decorre igulamente que os menores não dispõem directamente ou por referência a outra pessoa, de montante superior ao fixado para o salário mínimo nacional.

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2.2. O Direito.

Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

- O Fundo de Garantia de Alimentos devidos a meno­res suporta as prestações devidas desde a data da sen­tença que fixa a sua contribuição ou desde a data da entrada do pedido em Juízo?

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2.1.1. O Fundo de Garantia de Alimentos devidos a menores suporta as prestações devidas desde a data da sentença que fixa a sua contribuição ou desde a data da entrada do pedido em Juízo?

                     

Por decisão proferida em 13.04.07, já transitada em julgado e constante de fls. 32 e seguintes, determinou-se que os menores A...e B..., ficassem à guarda e cuidados da tia materna, C..., a quem foi incumbido o exercício do poder paternal, e ainda que o progenitor, D..., contribuísse para o sustento do menor com a pensão mensal global de € 100,00.

Por decisão de 21.06.07, foi declarada a situação de incumprimento por banda do progenitor da sua obrigação de prestar alimentos, tendo-se julgado em dívida todas as prestações vencidas. A progenitora, E.., veio, entretanto a falecer.

Não foi possível, apesar das inúmeras diligências feitas ao longo dos últimos meses, obter informação acerca de bens ou rendimentos que o progenitor possua.

O Sr. Juiz por decisão de fls. 100 determinou que a pensão de alimentos devida aos menores A...e B..., passe a ser processada pelo Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores e que seja actualizada para € 100,00 relativamente a cada menor.

Mais se determinou que o pagamento a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a menores das prestações que se vencerem a partir de Junho de 2007 inclusive.

O agravante discorda do decidido, entendendo que a sua obrigação vigora apenas para o futuro cobrindo tão só as prestações que se forem vencendo desde a data da sentença.

Vejamos:

O artigo 2º da Lei Fundamental refere que a Repú­blica Portuguesa é um Estado de direito demo­crático baseado na soberania popular, no pluralismo de expres­são e organização política democráticas, no res­peito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fun­damentais e na separação e interdependên­cia de pode­res, visando a realização da democracia eco­nómica, so­cial e cultural e o aprofundamento da demo­cracia par­ticipa­tiva". Este princípio genérico é em seguida con­creti­zado nos artigos 63º nº 3 e 69º nº 2 da Constitui­ção da República onde é cometida ao Estado a protecção dos cidadãos no que toca à falta ou diminuição dos meios de subsistência assegu­rando nomeadamente especial protec­ção às crianças órfãs, abandonadas ou por qual­quer forma privadas de um ambiente familiar normal.

No desenvolvimento da ideia programática de Estado social, consagra a Constituição vários direitos dessa índole no título III, sob a epígrafe de Direitos e Deve­res económicos sociais e culturais; no elenco dos direitos e deveres sociais, ali se patenteia todo um conjunto de princípios ordenadores votado a uma cober­tura protectora daqueles direitos de que são exemplos as medidas a tomar no campo da saúde – artigo 64º, habitação e urbanismo – artigo 65º, ambiente e quali­dade de vida – 66º, famí­lia, paternidade e maternidade, infância, juventude e terceira idade – artigos 69º a 72º. No que toca a alimentos, nomeadamente devidos a menores (e que são objecto da nossa análise), esse di­reito aparece claramente consagrado no artigo 63º nº 2 e 69º nº 2 do Diploma Fundamental como uma obrigação do Estado em situações de falta ou diminuição de meios de subsistência; existe nestes casos um direito origi­nário a prestações[1]; o Estado tem aqui o dever de criar os pressupostos mate­riais indispensáveis ao exercício do direito a alimentos. Não se trata na verdade aqui de sugerir um objectivo; muito embora reconhecendo ao legislador ordinário liberdade na esco­lha de meios com vista à realização do programa social neste domínio, a Constituição compromete os poderes públicos na consecu­ção dos seus objectivos, mau grado considerando os con­dicionalismos econó­micos que rodeiam a respectiva con­cretização[2]. A ausên­cia de legislação neste domínio é mesmo susceptível de enqua­drar "incons­titucionalidade por omissão". Na verdade e nos termos do preceituado no artigo 293º da CRP "o Tribunal Cons­titu­cional aprecia e verifica o não cumprimento da Consti­tuição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exe­quíveis as normas constitu­cionais.

2. Quando o Tribunal Constitucional verificar a existência de inconstitucionalidade por omissão, dará disso conhecimento ao órgão legislativo competente".

A Lei nº 75/98 de 19 de Novembro que criou Fundo de Garantia de Alimentos devidos a menores e o DL nº 164/99 de 13 de Maio que a regulamenta surgem-nos como a primeira tentativa de concretizar na prática a inten­ção programática fixada na Lei Fundamental.

Do artigo 1º da referida Lei ressalta a função pri­mária do Fundo i.e. de suprir as necessidades do menor quando não for possível obter alimentos da pessoa judicialmente obrigada a tal pelas formas a que alude o artigo 187º do DL 314/78 de 27 de Outubro e o menor não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional; Por seu turno, o DL 164/99 de 13 de Maio, veio no artigo 3º nº 1 alínea a), a acrescentar um ou­tro pressuposto da intervenção estadual "não benefi­ciar [o menor] de rendimentos de outrem a cuja guarda se encon­tre, superiores ao salário mínimo nacional". Exige-se ainda para que o Fundo intervenha, a falta de pagamento voluntário e que tenham resultado infrutífe­ros os esforços envidados para obter o pagamento, no âmbito de um processo de incumprimento a que alude o artigo 189º da Organização Tutelar de Menores.

À semelhança do que sucede nos ordenamentos jurídi­cos europeus congéneres e nomeadamente o alemão, como frisámos, também a lei veio sub-rogar o Fundo no lugar em todos os direitos do menor a quem sejam atri­buídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso.

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A questão que nos ocupa não vem expressamente regu­lamentada em qualquer dos Diplomas que regulam a intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a menor, pelo que não é possível recolher através do ele­mento literal da Lei nº 75/98 de 19 de Novembro ou do DL nº 164/99 de 13 de Maio, a solução que se pretende; tal só será viável através da interpretação teleológica das normas em causa com inserção no sistema de que fazem parte. Em abono da sua tese, sustenta o agravante nunca ter sido intenção do Legislador suprir as prestações em falta que o obrigado a tanto não satisfez, argumentando assim com o teor literal o artigo 4º do DL nº 164/99 de 13 de Maio.

No nosso entendimento não colhem as considerações do agravante nesta parte. Em parte alguma da Lei se pode inferir que o Legislador pretendeu consagrar tal entendimento; nomeadamente tal não se deduz, ao contrá­rio do que o agravante sustenta, do artigo 4º do DL nº 164/99 de 13 de Maio, ao estatuir que "o Centro Regional de Segurança Social inicia o pagamento das prestações por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do Tribunal". Na verdade, o facto de a enti­dade iniciar o pagamento numa determinada data, não sig­nifica necessariamente que o mesmo se reporte apenas a prestações futuras, já que admite perfeitamente que na respectiva interpretação nos orientemos pelo dis­posto no "lugar paralelo" a que se reporta o artigo 2 006º do Código Civil; "Os alimentos são devidos desde a propo­sição da acção ou, estando já fixados pelo tri­bunal ou por acordo, desde o momento em que o devedor se consti­tuiu em mora, sem prejuízo no disposto no artigo 2 273º". É bem certo que o paralelismo de situa­ções não é total, desde logo devido à natureza da intervenção do Fundo de Garantia, cuja obrigação não está, como temos vindo a decidir ao abordar esta temá­tica, necessaria­mente dependente da do primitivo obri­gado[3]. E é precisa­mente esta relativa independência de obrigações e par­tindo para já do estatuído no citado normativo legal que nos permite desde logo concluir que ao caso que apreciamos não é aplicável a 2ª parte do normativo supra-referido. Concretizando, não compete ao Fundo asse­gurar as prestações que antes da propositura da acção eventualmente estejam em dívida. A intervenção daquela entidade só tem lugar quando a carência do beneficiário a alimentos é feita sentir em juízo atra­vés do requeri­mento que vai desencadear o processo em ordem à fixação de uma prestação mensal a cargo do Fundo que se pre­tende adequada a colmatar as necessida­des do menor em montante que se bem que tendencialmente equivalente à do obrigado, não está em princípio limi­tada pela mesma. Na verdade é sobre a factualidade exposta no requeri­mento que em princípio vai incidir primordialmente o inquérito a que alude o artigo 4º do DL 164/99, sendo certo que o Fundo não tem nem pode ocupar-se de neces­sidades e faltas ocorridas anteriormente à sua solici­tação, as quais que têm de presumir-se superadas. Seria na verdade incomportável para o Estado colmatar carências pretéri­tas do menor, bem como pedagogicamente inadequado subs­tituir o originário obrigado a alimentos no seu inalie­nável dever de prover ao sustento e educação do menor a seu cargo. Tal incen­tivaria o desleixo do obrigado, sabendo o mesmo a priori que o Estado supriria as suas faltas. Trata-se tão só de ponderar o pagamento de retroactivos reportados à data do pedido de intervenção do Fundo de Garantia, os quais visam colmatar uma necessidade actual e cujos fundamentos se pretende que sejam de averiguação célere. Este entendi­mento, que se impõe como o único correcto face à Lei, é também um postulado "princípio constitucional da igual­dade", a que se reporta o artigo 13º da Lei Fundamen­tal, cuja violação se verificaria sistematicamente, caso entendêssemos que a prestação do Fundo cobria ape­nas as prestações pos­teriores, decorridos que fossem 30 dias após a prolação da sentença; é que os processos incorporam casos da vida real com a sua peculiaridade, que postula trâmites de averiguação mais ou menos com­plexos. Também por razões diversas que se prendem com o funcionamento dos Tribunais de comarca, o andamento dos processos não é uniforme, daí resultando, caso optásse­mos pelo entendi­mento da agravante, um tratamento desi­gual para os beneficiários.

Por último a posição que defendemos in casu é a única que não deixa margens para hipotéticas manobras dilatórias, em evidente prejuízo daqueles que a Lei deve proteger.  

No caso vertente existe a fls. 84 com data de 7 de Fevereiro de 2008 um requerimento do Ministério Público no sentido de que a quantia de € 100,00 relativa à prestação de alimentos devida por Paulo Jorge de Almeida Pinto passe a ser suportada pelo Fundo de Garantia de Alimentos. Assim e coerentemente com a metodologia que acima referimos e temos adoptado as importâncias em causa serão devidas a partir da de entrada data do referido requerimento em Juízo, pelo que os retroactivos da prestação mensal de € 100,00 reportar-se-ão àquela data[4].

O agravo irá assim parcialmente provido nos termos expostos.

Do exposto poderá concluir-se o seguinte:

1) 1) A Lei nº 75/98 de 19 de Novembro que criou Fundo de Garantia de Alimentos devidos a menores e o DL nº 164/99 de 13 de Maio que a regulamenta surgem-nos como a primeira tentativa de concretizar na prática a intenção programática fixada nos artigos 2º, 63º nº 3 e

69º nº 2 da Lei Fundamental quanto à efectiva protecção de crianças em situação de carência.

2) Em situações de falta ou diminuição de meios de subsistência por parte de um menor, o Estado tem o dever de criar os pressupostos materiais indispensáveis ao exercício do direito a alimentos.

3) A criação do Fundo de Garantia de Alimentos de­vidos a Menores insere-se no escopo de concretização na prática do imperativo constitucional nesta matéria.

4) A intervenção daquela entidade só tem lugar quando a carência do beneficiário a alimentos é feita sentir em juízo através do requerimento que vai desen-cadear o processo em ordem à fixação de uma prestação mensal a cargo do Fundo que se pretende adequada a col-matar as necessidades do menor.

5) Nesta conformidade o pagamento das prestações alimentares por parte do Fundo de Garantia muito embora só se inicie com a notificação da decisão do Tribunal, reporta-se ao momento em que foi formulado o pedido visando conseguir aquele Apoio.

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3. DECISÃO.

Pelo exposto acorda-se em julgar parcialmente provido o agravo e revogando nessa medida o despacho em crise, determina-se que o pagamento a cargo do fundo de Garantia de Alimentos devidos a menores das prestações que se venceram a partir de 7 de Fevereiro de 2008.

Mantém-se em tudo mais o decidido.

Sem custas.

 

[1] Cfr. implicações do direito originário a prestações in Gomes Canotilho "Direito Constitucional e Teoria da Constituição", Almedina, Coimbra 5ª Edição pags. 473 ss.

[2] O direito a uma vida digna não se encontra constitucionalmente contemplado em todos os ordenamentos jurídicos; assim em Espanha este direito só indirectamente se reconhece; sirva de exemplo também naquele País o reconhecimento do direito ao trabalho, de onde, no dizer de Jordi Ribot Igualada o direito que apreciamos se pode inferir – cfr. A. citado "Alimentos entre Parientes e Subsidiariedade de la Proteccion Social" Tirant lo Blanch 1999, pags. 21 ss. No que concerne à Alemanha, o Tribunal Constitucional tem-se pronunciado mesmo na ausência de lei específica sobre a constitucionalidade daquele direito; Apud Ribot Igualada ob. cit. pags. 22. Na senda desta tomada de posição somos em crer que no que toca aos alimentos concernentes a menores face ao Estado, o respectivo direito poderá até do artigo 6º nsº 1 e 4º da Constituição Alemã, onde se refere expressamente que "Ehe und Familie stehen unter dem besonderen Schutze der staatlichen Ordnung" e "Den unehelichen Kindern sind durch die Gesetzgebung die gleichen Bedingungen für ihre leibliche und seelische Entwicklung und ihre Stellung in der Gesellschaft zu schaffen wie den ehelichen Kindern" ou seja em tradução nossa: "casamento e família devem estar debaixo da protecção da ordem estatal; e aos filhos ilegítimos deverão proporcionar-se legalmente as mesmas condições para o seu desenvolvimento físico e psíquico e sua inserção na sociedade como se filhos legítimos se tratassem".

[3] Cfr. o nosso Ac. desta Relação de 05-03-2002 (R. 3431/01) in Col. de Jur., 2002, 2, 5 e o que o ora relator defende in Lex Familiae Revista Portuguesa de Direito da Família "Algumas Considerações acerca do Papel dos Organismos de Segurança Social em matéria de Alimentos a Menores e a Função dos Tribunais" pags. 81 ss. Realçando a relativa independência de ambas as obrigações ali se sustente inclusive que a prestação de alimentos a efectuar pelo fundo de Garantia muito embora com o limite máximo de 4 UC – não tem de confinar-se ao montante que foi fixado ao responsável por sentença proferida em acção de alimentos ou regulação do poder paternal, podendo o Juiz elevá-la ou diminuí-a mau grado tenha sempre que conter-se aquém do limite máximo referido na lei que não poderá ultrapassar.

 

[4] Cfr. o nosso Ac. desta Relação de 12-4-2005 (R. 265/2005) in Col. de Jur., 2005, II, 21; da Rel. de Évora de 3-5-2007 (R. 178/2007) in Col. de Jur., 2007, III , 237.