Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
347/08.8JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ACTO SEXUAL DE RELEVO
PORNOGRAFIA DE MENORES
Data do Acordão: 04/02/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 171º E 176º Nº 4 CP
Sumário: 1.- Pratica ato sexual de relevo, e assim o crime de abuso sexual de crianças, o arguido que:

- de forma repetida e continuada, acariciou as costa do menor de 14 anos de idade, passando a sua mão no sentido descendente e ascendente até ao pescoço, a cabeça e as coxas, deslocando a extremidade dos dedos da mão para o interior das mesmas;

- durante cerca de uma hora, enquanto a criança estava sentada no meio dos bancos da frente do veiculo, com uma perna esticada para a frente em cima da consola central do mesmo, e a outra para trás, e parcialmente virado na direção do arguido, este acariciou o corpo da referida criança, designadamente no pescoço, nos braços e nas pernas, dava-lhe beijos no pescoço e metia a mão do menor no interior da sua camisa, ao nível do peito e com ela ia acariciando-se;

- introduzindo parte do seu corpo, através de uma janela da porta traseira do veículo onde se encontrava o menor, durante cerca de 10 minutos acaricia o corpo deste no peito e na parte inferior do tronco;

- no hipermercado, abraça e acaricia o corpo do menor, fazendo-lhe festas no rosto, agarrando-o pela cintura, ou puxando-lhe o corpo contra o dele.

2.- Preenche o crime de pornografia de menores o arguido que guarda no seu computador imagens de crianças do sexo masculino, nuas e em poses de exibição dos órgãos sexuais.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

Nos presentes autos, após audiência pública de discussão e julgamento com exercício amplo do contraditório, foi proferida decisão final, de mérito, na qual o tribunal colectivo, julgando a acusação parcialmente procedente, decidiu:

- Condenar o arguido, A...: - pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, na forma continuada, p.p. pelos artigos 14º, 26º, 30º, nº 2 e 171º, nº1, na pena de 4 anos de prisão; e - pela prática de um crime de pornografia de menores, p.p. pelos art.ºs 14º, 26º e 176º, n.ºs 1, al. b) e 4, todos do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão; ----

- Em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão. ---

*

Inconformado com tal acórdão, dele recorre o arguido.

Na motivação são formuladas as seguintes CONCLUSÕES:

1. Atentos os princípios que norteiam o direito Penal, mormente o princípio do in dubio pro reo, deveria, o Douto Tribunal aquo, ter ABSOLVIDO o Arguido, de TODOS OS CRIMES de que vinha acusado.

2. Houve insuficiência para a decisão, da matéria de facto provada (Art. 410º nº 2 a) do CPP) e erro notório na apreciação da prova (alínea c) da mesma disposição legal).

3. O Arguido (discorda) que tenham sido dados como provados, os factos numerados sob Item 2.1.1. da Matéria de Facto Provada, com os n° 1, 14, 16, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 35, 36, 37, 38, 39, 47, 55, 58, 59, 60, 65, 67, 68 e 69, quando, em evidente contradição, foram considerados como não provados outros factos do Despacho de Acusação, e melhor enunciados no Item 2.1.2. alíneas d) a z) da Douta sentença recorrida (fls. 949-952).

4. O processo penal deve ser um processo eficaz, capaz de permitir ao Estado a punição dos criminosos. Mas deve também ser um processo justo, por forma a oferecer aos cidadãos garantias efectivas de defesa contra eventuais acusações injustas. É, na verdade, preferível deixar de punir um criminoso do que correr o risco de punir um inocente. Por isso, dispõe o N°1 do Artigo 32° da Constituição que «o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso».

5. Conforme prova produzida, o abuso sexual de crianças, resumiu-se a "carícias" e "abraços", que o Tribunal a quo considerou, contra a Jurisprudência existente, como actos sexuais de relevo.

6. A Lei não dá uma definição do que deva entender-se por acto sexual de relevo. Porém, segundo diversa jurisprudência, "acto sexual de relevo" é todo aquele que tenha uma natureza objectiva estritamente relacionada com a actividade sexual, ou seja, que normalmente apenas seja praticado no domínio da sexualidade entre pessoas.

7. Não ficou, em lado algum dos autos, provado que o Recorrente adoptava tais gestos com intuitos sexuais e libidinosos - tal conclusão e interpretação, foi, já, resultado da sensibilidade, ilações, conclusões e opiniões de que viu.

8. É necessário que esses actos tenham uma conotação sexual e sejam suficientemente relevantes para ofender a livre disposição sexual da vítima. o que implica um contacto corporal com conotações sexuais.

9. Do mesmo modo, também, em lado algum, provado, que tais gestos do Recorrente fossem interpretados, pelos menores, como gestos de cariz sexual, ou, sequer, ficou provado que os mesmos incomodassem ou afectassem os menores.

10. A matéria da acusação pela prática de um crime de pornografia de menores, não foi, sequer, discutida em Audiência de Julgamento, como se prova pela gravação áudio em CD apensada ao processo, pelo que nada podia, subsequentemente, ter sido dado como provado.

11. Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em Audiência" (Art. 355º do CPP), pelo que, deve, o Recorrente, ser absolvido desta acusação.

12. O Tribunal a quo decidiu, erroneamente, considerar como não provados todos os factos aduzidos pelo Recorrente, respectivamente xx), zz), aaa), bbb), ccc) e ddd).

13. Todos estes factos não provados, relevantes para a subsunção jurídico-penal, podiam ser facilmente investigados, o que o Tribunal a quo não fez, tendo podido fazê-lo, incorrendo assim no vício de insuficiência para decisão da matéria de facto provada.

14. Não se aplica, ao caso sub Júdice, o vertido nos Arts. 176° n° 1 al. b) (porque não utilizou nem aliciou qualquer menor para este fim, nem se encontra nada nos autos que o indicie) nem o Art. 176° n° 4 (não adquiriu nem deteve materiais provenientes da utilização ou aliciamento de um menor, nem se encontra nada nos autos que o indicie)

15. Não basta que constem menores: é preciso que o Arguido tenha utilizado menores para fazer essas imagens, ou que os tenha aliciado para esse fim, e detido as imagens obtidas nessas condições.

16. O Douto Tribunal a quo errou, grosseiramente, na apreciação da prova.

17. Outros factos considerados como não provados, e que eram essenciais para a defesa do Recorrente, eram os seguintes (que o Tribunal, pura e simplesmente, desvalorizou): nn), oo), pp), qq), rr), ss), tt), uu) e vv), porquanto se escusou a aplicar o estipulado no Art. 340º N° 1 do CP.

18. A sentença não foi justa, adequada e proporcional.

19. O Tribunal negou o direito ao arguido a ser julgado com equidade.

20. O erro mais flagrante da sentença é uma desproporção entre o alegado crime e a pena imposta. Não se provou, nem sequer foi indiciado nos autos, que o Recorrente tivesse praticado cópula, coito anal, coito oral ou introdução anal (Art. 171º N° 2 do CP), masturbação singular ou mútua (Art. 171 ° N° 1 do CP), importunação sexual (Art. 170º do CP), exibição de filmes ou material impresso pornográficos, ou até mesmo conversas pornográficas (Art. 171º N° 3 al. b) do CP), e muito menos coacção (Art. 163º do CP) ou importunação (Art. 179º do CP).

21. Foi dado como provado, a prática de actos sexuais de relevo, mais concretamente carícias na cabeça, braços e costas, mas não em zonas erógenas.

22. O Tribunal quo condenou o Recorrente, não pelos factos dados como provados, mas pelos que imaginou que se pudessem ter passado, embora não constem do processo. Aplicou aqui, à sua maneira, o Art. 127° do CPP.

23. A livre convicção não pode nem deve significar um arbítrio impressionista-emocional ou a decisão irracional "puramente assente num incondicional subjectivismo alheio a fundamentação e à comunicação".

24. A determinação da medida da pena, além da sua injustificável severidade, visto tratar-se de um delinquente primário, não levou em conta as condições pessoais do Recorrente nem a sua conduta anterior ao facto e posterior a este (Art. 71 ° N° 2 al. d) e c) do CP).

25. Ainda que viesse a ser aplicada uma pena de prisão ao Recorrente, impunha-se que esta tivesse sido suspensa na sua execução, conforme Art. 50° n° 1 do CP, aplicável ao Recorrente, visto militarem a seu favor todos os pressupostos de facto de que depende a suspensão da pena.

26. Ao contrário do que o Tribunal a quo afirma, não se encontra nada nos autos que indique que o Recorrente seja um predador compulsivo, e o Tribunal a quo não possui conhecimentos científicos que lhe permitam ter tirado conclusões diferentes daquelas a que médicos e psicólogos chegaram com referência ao Recorrente.

27. O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão em princípios teóricos, que não se baseiam cm nada que conste dos autos, que não se referem directamente ao Recorrente, e que só lhe poderiam eventualmente ser aplicados por um médico especialista após um exame rigoroso, o que um Magistrado, por mais insigne jurista que seja, não tem competência para fazer.

28. Os Tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei (Art. 203° da CRP), Os Magistrados Judiciais "julgam apenas segundo a Constituição e a Lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções" (Art. 4° N° 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais). Não estão, nem podem estar, pois, sujeitos a pressões exteriores, mesmo que venham da "comunidade envolvente" e "nos feitos submetidos a julgamento não podem os Tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou nos princípios nela consignados" (Art. 204º da CRP).

29. Foram aqui violadas as normas jurídicas acima indicadas, que, só por si, invalidariam as razões apresentadas para a efectividade da pena da prisão (Art. 412° N° 2 do CPP).

30. O Recorrente deve ser absolvido dos crimes de que vem acusado, e, mesmo que assim não se entenda, e ainda que se mantenha uma penalização em pena de prisão, deve, a mesma, ser suspensa da sua execução.

Termos em que deve ser revogada a sentença proferida pelo Tribunal a quo e, em consequência, absolvido o recorrente.

*

Respondeu o digno magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido rebatendo a motivação do recurso, para dizer, em síntese conclusiva:

1- Na discordância que manifestou quanto ao decidido em matéria de facto, o recorrente limitou-se a alegar a existência de dúvidas, a desvalorizar alguns depoimentos ou a transcrever excertos de um ou outro testemunho que, em seu entender, justificariam interpretação que, sendo diversa daquela a que o tribunal chegou, corresponderia àquela por si pretendida. Fê-lo, porém, de forma não integrada, descontextualizada de uma análise de cada meio probatório no seu todo e de uma apreciação concertada de todos eles, apenas de modo a fundamentar uma opinião diferenciada e que mais lhes conviria.

2- No entanto, a impugnada decisão em matéria de facto resultou de uma livre e fundamentada apreciação da prova, privilegiada pela oralidade e imediação na sua produção e aferida pelas regras da experiência, constituindo o julgamento de facto não apenas uma das possíveis soluções, segundo essas regras da experiência comum, mas a única que estas poderiam, no caso, justificadamente aceitar.

3 - A essa apreciação da prova veio a corresponder uma acertada enumeração da factual idade provada e não provada, devidamente fundamentada, e um subsequente e correcto enquadramento dos factos no direito.

4- Não há ofensa ao princípio do ln dublo pro reo, porquanto e na apreciação dos factos que vieram assentes, não se colocou, ao tribunal, qualquer situação de dúvida que, para além do razoável, se tornasse irremovível.

5- Ainda relativamente ao decidido, em matéria de facto, pelas razões desenvolvidas nesta resposta, não se vislumbra que o acórdão enferme de qualquer dos vícios elencados no artigo 410°, nº 2, do C.P.P., e, concretamente, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, invocado pelo recorrente.

6- Assim e perante a prova produzida e decorrente da factual idade estabelecida, concluiu, o Tribunal, como se impunha, pela verificação de todos os elementos (objectivos e subjectivo) constitutivos dos crimes imputados e censurados ao arguido.

7- Tendo presente as finalidades da punição, a culpa do arguido e as exigências de prevenção, sem haver deixado de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depunham a favor ou contra aquele, o Tribunal determinou, com critério, a pena concreta aplicada ao arguido/recorrente.

8- Essa pena de quatro (4) anos e seis meses (6) meses de prisão, mostra-se ajustada à gravidade dos factos em ponderação e a uma personalidade que evidencia propensão para o crime, total indiferença pelas regras jurídicas que disciplinam a vida em sociedade e por elevados bens jurídicos merecedores da tutela do direito penal.

9- Não é viável formular, no caso do recorrente e face ao afirmado em c) 39 a 47, um juízo de prognose favorável à adequação e suficiência da simples censura do facto e da ameaça da prisão para assegurar as finalidades da punição. Pelo que soçobra o mais contido nas alegações da recorrente.

10- O douto acórdão recorrido fez correcta interpretação dos preceitos legais que havia a aplicar, não se mostrando ofendido qualquer normativo.

*

No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer essencialmente coincidente com a resposta apresentada em 1ª instância.

Corridos vistos, após conferência, cumpre decidir.

***

II. Fundamentação

1. Vistas as conclusões, que definem o objecto do recurso, verifica-se o recorrente invoca: Em matéria de facto: - a falta de discussão de meios de prova em audiência; - omissão de diligências probatórias; - contradição entre matéria provada e não provada; - erro notório de apreciação da prova; - insuficiência; - violação do princípio in dubio pro reo. Em matéria de direito, invoca a errada qualificação jurídica da matéria provada que tem por insuficiente para o preenchimento dos elementos dos tipos de crime e questiona, ainda a pena aplicada.

A apreciação obriga a que se convoque a decisão da matéria de facto.

2. A decisão do tribunal recorrido em matéria de facto, com a motivação probatória que a suporta, é a seguinte:

A) Matéria de facto provada:

1 - O arguido é solteiro e características específicas de personalidade que revelam uma sintomatologia patológica acentuada, consubstanciada em transtorno da personalidade.

2 - No decurso dos anos de 2008 e 2009, ( altura em que se encontrava de baixa médica desde 2006) não lhe eram conhecidos parceiros sexuais adultos.

3 – O arguido tem vindo a aceder a sites da internet com conteúdos pornográficos, manifestando interesse por materiais contendo fotografias de crianças e adolescentes, nus ou semi-nus, exibindo os seus órgãos genitais e em poses eróticas e sexuais .

4 - O arguido conquistava a atenção dessas crianças oferecendo-lhes bens materiais (como por exemplo pequenas quantias monetárias, refeições confeccionadas, brinquedos, telemóveis, jogos e material informáticos ou peças de vestuário do agrado dessas faixas etárias).

5 -Fazendo uso da sua capacidade financeira, o arguido ganhava também a confiança dos familiares das mencionadas crianças, dando-lhes contrapartidas com valor económico – designadamente veículos automóveis, pagando os consumos domésticos das casas onde residiam, adquirindo LCD e outros electrodomésticos, criando e alimentando a dependência dessas crianças e dos seus familiares relativamente aos bens materiais que lhes ia facultando.

6 - Em data não apurada, situada na primeira metade do ano 2008, o arguido conheceu B..., nascido em 08-06-1997, de nacionalidade romena, filho de C... (que também usava o nome C...), e D... (nascido em 01-05-1998, também de nacionalidade romena, filho de E..., companheira de C...) e do seu primo F... (nascido em 04-03-1997, também de nacionalidade romena e filho de G...).

7 - A partir dessa altura, B..., D..., F..., H... e outra criança, familiar destas, cuja identidade não foi possível apurar, passaram a frequentar a casa do arguido.

8 - Era também frequente as aludidas crianças e os respectivos pais utilizarem o telemóvel do arguido, designadamente aquele onde funcionava com o cartão número (...) e o telefone fixo que se encontrava instalado na sua casa, fazendo telefonemas designadamente para a Roménia, onde se encontravam a residir alguns dos seus familiares e, no que concerne às crianças, para contactarem os pais, utilizando habitualmente nessas conversas – cujo conteúdo não foi possível traduzir para português - um dialecto ciganoromeno.

9 - B... passou a visitar o arguido com regularidade, no apartamento daquele acompanhado de outras crianças (designadamente de D..., de F... e de H...) ou acompanhado de adultos - os quais, por vezes, se limitavam a conduzir tais crianças, em veículos automóveis, até junto do prédio onde o arguido vivia, deixando-as naquele local ou aguardando no interior do veículo, enquanto o arguido se aproximava das viaturas e aproveitava para lhes acariciar o corpo.

10 - O arguido passou também a frequentar as casas onde residiam aquelas crianças.

11 - Na sequência dos contactos que teve com B..., o arguido começou a demonstrar especial interesse por ele, enquanto que o B... passou então a tratar o arguido por “avô” (cfr. produtos 1965, 2031, 2070, 2071, 2195, 2409, 2425 e 2444, no CD nº 5, do alvo 1R684M).

12 - Para se relacionar com o B..., o arguido aprendeu expressões em língua romena, as quais utilizava quando falava com ele, designadamente no decurso de algumas das conversas que mantinham ao telefone, tais como “te iubesc”, que significa “amo-te ou “gosto muito de ti” (cfr. produtos 2411, 2477, 2639, 2640, 2681, 2693 e 2694, no CD nº 8, do alvo 1R684IE).

13 - Com o propósito de obter e de manter a confiança das referidas crianças e dos adultos que as tinham a seu cargo, o arguido presenteava uns e os outros, comprando, para as primeiras, designadamente, jogos, consolas, MP3, televisores, bicicletas, vestuário, livros e material escolar, refeições confeccionadas no restaurante Mac Donald´s e telemóveis – providenciando depois pelos respectivos recarregamentos – ou dando-lhes ainda pequenas quantias monetárias e, aos segundos, o arguido comprava produtos alimentares, vestuário, electrodomésticos e veículos automóveis, pagando ainda as rendas das casas onde habitavam, as despesas com a electricidade, a água e o gás que aí consumiam, bem como as revisões e os seguros dos veículos automóveis que utilizavam (cfr. produtos 2, 5, 6, 7, 8, 11, 12, 13, 44, 51, 52, 53, 54, 55, 73, 89, 90, 94, 102, 103, 104, 110, 151, 157, 165, 168, 180, 187, 204, 220, 242, 272, 283, 286, 287, 292, 299, 300, 314, 333, 338, 339, 397, 409, 428, 504, 515, 524, 526 e 527).

14 - Nessa altura, era habitual o arguido levar para o interior da sua casa sacos com refeições confeccionadas, designadamente do restaurante Mac Donald´s ou levar sacos cheios de alimentos, do mesmo restaurante, para o interior do estabelecimento comercial denominado “Café x...”, onde se encontrava com adultos que conduziam as mencionadas crianças à sua casa, os quais entregava os aludidos sacos.

Era através dos telemóveis que oferecia ás crianças, que o arguido e tais crianças efectuavam contactos telefónicos entre si, designadamente para combinarem encontros e, no que diz respeito ás crianças e seus familiares, para fazerem pedidos e exigências ao arguido.

15 - Porém, não obstante a frequência dos contactos telefónicos que o arguido mantinha com tais crianças e com os respectivos familiares, aquele rodeava-se de especiais cautelas, designadamente quanto ao teor das conversas, alegando que “podem estar a ouvir” ( cfr. as intercepções referidas no auto de intercepção de fl. 169 e 170).

16 - Como contrapartida pelos “avanços” do arguido, quer as mencionadas crianças, quer os seus pais faziam exigências crescentes ao arguido, tendo-se ele visto na necessidade de se desfazer do seu património para satisfazer tais exigências, vendo-se pressionado a adquirir-lhes bens materiais, por vezes de elevado valor (produtos 1339, 1393, 1424, 1425, 1510, 1654, 1668 e 1678, do alvo 1R684IE – transcrição das sessões de fls. 126, 146, 169, 233, 258, 286, 288, 308 e 360).

17 - Com efeito, apesar de, em finais de Julho de 2008, o arguido ter oito veículos automóveis registados em seu nome [de marcas, modelos e matrículas, Renault 11 GTC Super, OD (...), Fiat 182, (...)GS, Fiat 182, (...)HI, Fiat Punto 55, (...)FT (este habitualmente utilizado por G...), Renault Clio, XM (...), Citroen ZX, (...)FR, Rover 214 SLI, (...)ER, Alfa Romeo 146, (...)NX, respectivamente], em Agosto do mesmo ano, o arguido adquiriu outros dois veículos automóveis (tendo adquirido um no dia 05, de marca e modelo Fiat Punto 55, de matrícula (...)IJ e outro no dia 25, de marca e modelo Opel Corsa B, com a matrícula (...)IG).

18 - No dia 08-08-2008, o arguido transferiu o registo da propriedade do seu veículo automóvel de marca e de modelo Alfa Romeo 146, de matrícula (...) NX, para C..., pai de B....

19 - Em 10-11-2008, o arguido contratou a utilização do veículo com a matrícula (...)RM, de marca e modelo Ford Galaxy, cuja propriedade se encontra registada a favor do Banco Santander e, em 03-03-2009, adquiriu o veículo automóvel de marca e modelo Mercedes-Benz.

20 - Contudo, o arguido acumulava dívidas, designadamente com as despesas do condomínio da fracção onde residia, em quantia não concretamente apurada mas que ascendiam a vários meses;

21 - No dia 24-07-2008, cerca das 14h e 45m, o arguido dirigiu-se para o centro comercial w(...), sito na (...), em (...), no veículo automóvel de matrícula (...)NX, de marca e modelo Alfa Romeo, acompanhado de duas crianças do sexo masculino, de nacionalidade romena, com idades aparentes compreendidas entre os 8 e os 12 anos, sendo uma delas o B.... Dirigiram-se então para o interior do hipermercado Continente, onde tais crianças seleccionaram diversos bens, os quais foram pagos, na sua totalidade, pelo arguido.

22 - Nessa data, enquanto as aludidas crianças e o arguido permaneceram nas instalações do referido centro comercial, aquele, de forma repetida e continuada, quanto ao B..., acariciou as costas, passando a sua mão no sentido descendente e ascendente até ao pescoço, a cabeça e as coxas, deslocando a extremidade dos dedos da mão para o interior das mesmas.

23 - Cerca das 15h e 20m, quando já se encontravam no parque de estacionamento do centro comercial, enquanto o arguido guardava os bens adquiridos no veículo automóvel, uma das mencionadas crianças, sentada ao volante, colocou o veículo em funcionamento e fez várias acelerações. Após ter arrumado no veículo os bens trazidos do hipermercado, o arguido dirigiu-se para junto do referido rapaz (que se encontrava sentado no lugar do condutor) e ocupou o lugar do condutor. Passados breves momentos, abandonaram aquele local, seguindo os três no referido veículo automóvel.

24 - No dia 11-08-2008, cerca das 13h e 50m, o arguido encontrava-se no estacionamento existente entre a frontaria do prédio onde residia e as traseiras do n.º 61, sentado no lugar lado do do condutor do seu veículo automóvel de matrícula (...)IJ, de marca e modelo Fiat Punto, encontrando-se ao volante, ao seu lado um indivíduo adulto, com cerca de 30 anos de idade e, no banco traseiro o menor B....

25- Durante cerca de uma hora, enquanto a criança estava sentada no meio dos bancos da frente do veiculo, com uma perna esticada para a frente em cima da consola central do mesmo, a outra para trás, e parcialmente virado na direcção do arguido, este acariciou o corpo da referida criança, designadamente no pescoço, nos braços e nas pernas, dava-lhe beijos no pescoço e metia a mão do menor no interior da sua camisa, ao nível do peito e com ela ia acariciando-se.

26 - No dia 13-08-2008, C... conduziu o veículo de marca e modelo Fiat 55, de matrícula (...)FT, pertencente ao arguido, até à Rua (...), levando no banco traseiro o seu filho B....

27 - Seguidamente imobilizou o aludido veículo junto do prédio onde residia o arguido e aguardou a chegada deste. Depois de se ter aproximado do veículo, o arguido introduziu ali parte do seu corpo, através de uma janela da porta traseira, tendo assim ficado, durante cerca de 10 minutos a acariciar o corpo de B... no peito e na parte inferior do tronco.

28 - Nesse mesmo dia, depois de C... ter saído daquele local, no mesmo veículo automóvel, levando consigo B..., foi fiscalizado por um gente da PSP. Nessa altura, C... informou o aludido agente que usava aquele veículo pelo motivo de o arguido – que era amigo do seu filho – lho ter doado, em troca de “favores” que lhe devia, acrescentando que o arguido iria registar tal veículo em seu nome.

29 - No dia 21-08-2008, cerca das 19h e 49m, o arguido dirigiu-se ao hipermercado Continente, sito no centro comercial w(...), acompanhado de uma criança do sexo masculino e de um adulto, ambos morenos, sendo o adulto um indivíduo ligeiramente calvo. Cerca das 20h e 33, dirigiram-se os três para as caixas self service, tendo o arguido pago a totalidade dos bens que tinham levado para caixa.

30 - No dia 23-08-2008, cerca das 14h e 43m, o arguido dirigiu-se novamente para o hipermercado Continente, no mesmo centro comercial, acompanhado de duas crianças do sexo masculino, as quais seguiam em cima do carro das compras, que o arguido empurrava. Cerca das 20h e 12m, dirigiram-se os três para as caixas, onde o arguido efectuou o pagamento da totalidade dos bens que levavam no carro das compras.

31 - No dia 25-08-2008, cerca das 12h e 37m, o arguido dirigiu-se novamente para o hipermercado Continente, no mesmo centro comercial, acompanhado de uma criança do sexo masculino, com idade aparente de cerca de 12 anos. Cerca das 13h e 12m, juntou-se-lhes - ao arguido e à aludida criança - um indivíduo adulto, do sexo masculino, de tez morena, com o cabelo escuro, ligeiramente calvo.

32- Nesse mesmo dia, cerca das 20h, o arguido, acompanhados dos mesmos indivíduos, reentraram no mesmo hipermercado, de onde saíram cerca das 20h e 54m.

33 - Durante o período temporal em que ali permaneceram, andaram designadamente pelos corredores onde se encontravam expostos os livros e o material escolar. Aí, o indivíduo adulto escolhia bens, que retirava das prateleiras e colocava no carro das compras, depois de ter obtido a concordância do arguido. Enquanto ali permaneceram, o arguido encontrava-se junto da aludida criança, acariciando-a em diversas partes do corpo.

34 - Os bens adquiridos nesse dia, naquele hipermercado, pelos referidos indivíduos, foram pagos, na totalidade, pelo arguido.

35 - No dia 29-08-2008, cerca das 19h, o arguido entrou novamente ao mesmo hipermercado, acompanhado de C... e de B..., dirigindo-se todos para a secção de vestuário. Nesse local, B... escolheu um blusão e colocou-o dentro do carro das compras. Seguidamente, dirigiram-se para os corredores onde se encontrava o material de escritório, onde a criança experimentou uma cadeira, que foi depois colocada também no carro das compras.

36 - Seguidamente, dirigiram-se para as secções de padaria e de frutaria, onde C... escolhia bens alimentares que colocava no carro das compras, depois de obter o assentimento do arguido, tendo procedido de igual modo com bens que foi buscar à secção de charcutaria, com pacotes de leite e com sacos de caramelos.

37 - Durante o período temporal em que aí permaneceram, o arguido manteve-se junto de B..., abraçando-o, acariciando-lhe o corpo, fazendo-lhe festas no rosto, agarrando-o pela cintura, ou puxando-lhe o corpo contra o dele.

38 - Cerca das 19h e 45m, dirigiram-se os três para a linha de caixas, tendo o arguido efectuado o pagamento da totalidade dos bens colocados no carro das compras, os quais foram levados por C..., que se ausentou do centro comercial. O arguido, porém, permaneceu no interior do centro comercial, acompanhado de B..., a observar as montras de algumas lojas, enquanto abraçava a criança e lhe acariciava o corpo.

39 - Em data não apurada do mês de Agosto de 2008, pelo menos por duas vezes, duas crianças do sexo masculino, cuja identidade não foi possível apurar, com idades aparentes compreendidas entre os 10 e os 11 anos, dirigiram-se ao apartamento onde o arguido se encontrava a residir e, depois de terem tocado a campainha da respectiva porta sem terem obtido qualquer resposta, dirigiram-se a I..., que se encontrava a efectuar a limpeza do prédio, questionando-a acerca do “senhor do 2º andar”, cujo nome desconheciam, esclarecendo-a que aquele lhes tinha prometido “uma prenda”.

40 - No dia 19-09-2008, cerca das 18h e 17m, um indivíduo do sexo masculino, conduzindo o veículo automóvel de matrícula (...)IJ, de marca e modelo Fiat Punto 55 (que o arguido adquirira no dia 05-08-2008 e cuja propriedade se encontrava registada em seu nome), saiu da rua (...) enquanto o arguido, na entrada frontal do prédio onde vivia, acenava à criança do sexo masculino que seguia no banco traseiro do aludido veículo automóvel e que igualmente acenava ao arguido.

41 - No dia 07-10-2008, cerca das 15h e 45m, B... e D..., encontravam-se junto da escola que então frequentavam - a Escola (...), sita na (...) - tendo-se ambos dirigido para um local referenciado como sendo frequentado por indivíduos consumidores de substâncias estupefacientes. Nessa altura, foram abordados por J..., vice-presidente da referida escola, tendo B... esclarecido que “estavam à espera do avô, o Dr. A...”.

42 - Passados breves instantes, aproximou-se daquelas crianças um veículo automóvel de marca Chevrolet, conduzido pelo arguido.

43 - Depois de ter sido informado, por uma das funcionárias da escola, de que as crianças não poderiam ser levadas dali sem a autorização dos pais, aquele tentou obter esse consentimento através de um telefonema, que logo efectuou.

44 - A aludida funcionária esclareceu então o arguido de que tal consentimento teria de ser dado por escrito, nas cadernetas dos alunos.

45 - No dia 05-12-2008, cerca das 18h e 10m, o arguido dirigiu-se, acompanhado de duas crianças do sexo masculino, com identidades não concretamente apuradas, para a loja denominada (...), com o nº (...), no centro comercial (...), tendo aí permanecido, durante algum tempo, a ver jogos. Seguidamente, dirigiram-se os três para a zona de estacionamento, levando uma das crianças um objecto na mão, que aparentava ser um jogo, e ausentaram-se daquele local no veículo automóvel de marca e modelo Daewoo Klass, conduzido pelo arguido, mas cuja propriedade se encontrava registada em nome da empresa de consultoria, (...), Lda.

46 - No dia 21-01-2009, cerca das 14h e 40m, o arguido estacionou o veículo automóvel de matrícula (...)VB, de marca e modelo Daewoo Klass, no parque de estacionamento situado nas traseiras do prédio onde residia. Seguidamente, dirigiu-se para o interior do prédio, tendo regressado ao exterior, pela porta das traseiras, cerca das 14h e 50, encontrando-se então a falar, através do seu telemóvel, com B... (produto 3045, do alvo 1R684M, correspondente ao produto 2134, do alvo 1R684IE).

47 - Nessa altura, entrou novamente no prédio, tendo regressado ao exterior cerca das 15 horas. O arguido encontrou-se então, nas traseiras do prédio, com B... e com o seu irmão H.... Seguidamente, dirigiram-se os três para o aludido veículo automóvel, de cujo interior B... retirou um saco de supermercado, cheio, o qual entregou a H.... Este exteriorizou então gestos reveladores de intimidade, para com o arguido, abraçando-o demoradamente, de forma aparentemente calorosa.

48 - Nessa altura, regressaram os três para a entrada das traseiras do prédio, local onde o arguido abraçou B... e lhe fez carícias no rosto, repetindo depois tal comportamento com H....

49 - Cerca das 15h e 06 m entraram os três no prédio onde residia o arguido, pela aludida porta das traseiras, tendo as crianças permanecido no interior da casa do arguido por um período temporal não apurado, mas superior a duas horas (cfr. relato de diligência externa de fls. 280 a 283).

50 - Após o falecimento da mãe (em 09-11-2008), o arguido afastou-se, temporariamente, do convívio com as crianças, tendo retomado tais contactos, passado pouco tempo, encontrando-se então já com mais tempo disponível por não ter já necessidade de prestar cuidados a quem quer que fosse (cfr. produtos 1543, 1566, 1618, 1656, 1657, 1721, 1724, 1783, 1803 e 1817, no CD nº 4 do alvo 1R684M).

51 - No dia 18-03-2009, cerca das 14h e 20m, o arguido retirou parte dos móveis que tinha na casa onde habitava, na Rua (...).

52 - Nesse mesmo dia, cerca das 17h e 40m, o arguido dirigiu-se no veículo automóvel de marca e modelo Dewoo Klass, de matrícula (...)VB, para a casa onde residia F..., na (...), nº (...), em (...), de onde saiu, pouco tempo depois, acompanhado de F..., dirigindo-se então ambos, no mesmo veículo, para a loja Worten sita no centro comercial w(...), com um computador portátil, permanecendo aí cerca de 40 minutos.

53 - Seguidamente, dirigiram-se ambos para a Rua (...), tendo o arguido entrado sozinho na porta com o número (...), de um prédio ali existente, regressando ao veículo automóvel pouco tempo depois, indo daí para junto do prédio onde o arguido residia. O arguido entrou nesse prédio, permanecendo F... no interior do veículo automóvel. Cerca das 19h e 30m, o arguido regressou ao veículo, dirigindo-se então ambos para o centro comercial (...), tendo aí adquiridos alimentos confeccionados no restaurante de fast food (...), os quais ingeriram naquele local.

54 - No dia 19-03-2009, cerca das 17h e 50m, depois de regressar a (...) da sua casa, em (...), o arguido dirigiu-se, no veículo automóvel de matrícula (...)VB para a casa onde residia F..., o qual já se encontra à entrada da porta, acompanhado do pai, G..., à espera do arguido.

55 - Momentos depois, F... entrou no referido veículo automóvel e dirigiu-se com o arguido para as lojas da Optimus e da TMN, situadas no centro comercial w(...). Passado pouco tempo, saíram ambos da loja da TMN, transportando uma caixa de marca “Sapo” (acesso à internet), abandonado o centro comercial cerca das 19h e 10m.

56 - O arguido seguiu então, acompanhado de F..., para a casa onde este residia, saindo daí cerca das 20 horas. (cfr. relatório de diligências externas de fls. 419 a 424).

57 - Porém, nessa altura, o arguido encontrava-se com dificuldades financeiras.

58 - Acresce que, em Fevereiro de 2009, pelo motivo de ter faltado ao exame médico que lhe prolongaria a baixa médica, o arguido não recebeu o ordenado correspondente a esse mês e passou à situação de licença sem vencimento.(produtos 4493 e 4690, no CD nº 10, do alvo 1R684M).

59 - Assim, a fim de poder continuar a satisfazer as exigências que lhe eram feitas pelas crianças e pelos seus familiares, o arguido viu-se na necessidade de alienar alguns bens pessoais (como livros, objectos de pau preto, objectos em ouro e prédios rústicos), de pedir financiamentos a instituições de crédito, de recorrer ao auxílio da sua irmã e de um sobrinho (aos quais pedia dinheiro emprestado), de fazer traduções, tendo finalmente, acabado por vender o apartamento onde vivia, em (...), tendo passado a residir em (...), (...) (cfr. produtos 541, 542, 543, 553, 559, 560, 568, 569, 570, 625, 643, 667, 682, 706, 768, 775, 781, 845, 851 e 932, no CD nº 2, do alvo 1R684M, produtos 1543, 1566, 1618, 1656, 1657, 1721, 1724, 1782, 1803 e 1817, nº CD nº 4 do Alvo 1R684M, produtos 2059, 2068, 2128, 2163, 2196 e 2200 e produtos 2411, 2477, 2639, 2640, 2681, 2693, 2694, nº CD nº 8, do alvo 1R684IE e 4493 e 4690, no CD nº 10, do alvo 1R684M).

60 - Em face das pressões a que era sujeito - por parte das aludidas crianças e dos seus pais - no sentido de obter quantias monetárias, para aquisição de bens materiais que desejavam e para pagamento das despesas que tinham, o arguido ficava, por vezes, impossibilitado, por falta de recursos económicos, de adquirir bens de primeira necessidade para si (cfr. produtos nºs 2748, 2749, 2750, 2752, 2766, 2779, 2783 e 2789, no CD nº 6, do alvo 1R684M e 2411, 2477, 2639, 2640, 2681, 2693 e 2694, no CD nº 6, do alvo 1R684IE; produtos 3933, 4015 e 4424, no CD nº 9, do alvo 1R684M).

61 - O arguido era ainda telefonicamente contactado por outras crianças, cujas identidades não foi possível apurar, as quais lhe diziam que queriam falar pessoalmente com ele. Porém, o arguido furtava-se a tais contactos pessoais, alegando que tinha “ordens” que o impediam de o fazer (produtos 1013, 1033, 1079, 1106, 1107, 1151, 1154, 1198, 1212, 1226, do alvo 1R684IE - transcrição das sessões de fls. 148, 157, 190 e 192).

62 - No dia 14-04-2009, cerca das 10h e 30m, foi levada a cabo uma busca, na casa de habitação do arguido, sita na Rua (...), nº (...), no decurso da qual foram encontrados e apreendidos, além do mais:

No quarto onde o arguido dormia:

- Um artigo de jornal com o título “Pianista condenado por crime sexual” (que se encontrava no interior de uma secretária);

- Um resumo de fotografias de um rolo fotográfico;

- 14 negativos fotográficos.

Na casa do arguido, sita na Rua (...), nº (...), em (...), (...), foram encontrados e apreendidos, além do mais:

- Um computador, tipo desktop, sem marca e modelo visíveis, com caixa de marca AMD – Athlon XP, com o nº de série WXE907F62673, com um disco de marca e modelo Seagat ST380011A, com o nº de série 5JV2N88D e 80GB de dimensão;

- Duas máquinas fotográficas descartáveis de marca Fugi, um rolo fotográfico para 27 fotos, 12 fotografias e duas fitas com negativos.

63 - Na mesma data, foi igualmente realizada uma busca domiciliária na casa onde residia B... e no veículo automóvel de matrícula (...)RM, de marca e modelo Ford Galaxy, cuja propriedade se encontrava registada em nome do arguido, mas que era habitualmente utilizado por C....

64 - No decurso dessas buscas foram encontrados e apreendidos, além do mais, bens com valor comercial muito superior ao poder económico dos indivíduos que ali residiam (atendendo a que não lhes era conhecida qualquer actividade profissional lícita remunerada), bem como os documentos comprovativos da respectiva compra, emitidos em nome do arguido, designadamente:

1 - Na sala:

- Documentos e papéis;

- Um cartão de cliente da Fnac, com o número (...), emitido em nome do arguido;

- Uma unidade GPS, de marca Garmin, modelo nüvi 250W, com o nº (...), com o respectivo manual de início rápido e caixa de cartão para o seu acondicionamento, sem unidade de montagem em veículo, cabo de alimentação do veículo e plataforma para painel de instrumentos;

2 - No quarto de C... e da companheira:

- Uma réplica de uma espada medieval, com cabo em metal dourado e uma lâmina em metal cromado com cerca de 80cm de comprimento;

- Uma pasta em pele, preta, com documentos;

- Um equipamento PDA, de marca e modelo HTC P3300, com o número de série SZ803FL00989 e IMEI B351695018570327, com os respectivos manuais, bateria e caixa de cartão de acondicionamento e contendo, no seu interior um cartão SIM da operadora OPTIMUS, com o número 116101744281;

- Uma câmara de vídeo digital, de marca e modelo Samsung VPDX10/ XEF, com o nº de série AD1W6W6VKQ100777E, com os respectivos manuais, carregador, cabos de ligação e caixa de cartão de acondicionamento;

- Um disco duro externo de marca e modelo Western Digital WD1600XMS-OO, com o número de série WXE907F62673, com diversas pastas e ficheiros gravados em memória e com o respectivo cabo de ligação de dados;

- Três filmes do tipo UMD Vídeo para PSP (consola Playstation portátil), de marca Sony, com o nº de série 03-27401022-2196224-PSP2004, com os respectivos manuais, cabos de ligação e caixa de cartão de acondicionamento;

-Catorze jogos do tipo UMD para PSP (consola Playstation Portátil), com títulos diversos;

- Uma consola Playstation Portátil de marca Sony, com o nº de série 03- 27401022-2196224-PSP2004, com os respectivos manuais, cabos de ligação e caixa de cartão de acondicionamento;

- Um combi DVD+vídeo, de marca e modelo Worten WT8806, com o nº de série 502020874;

- Um televisor com ecrã plasma, de marca Samsung, modelo PS-42Q91H, com o nº de série Z57D3SRP900612K;

3 - No quarto de dormir das crianças:

- Uma consola Playstation 2, de marca e modelo Sonny SCPH-30004r, com o número de série C4590913 e respectivo cabo de ligação;

- Um cartão de memória de marca e modelo Sony SCPH-10020, com 8MB de capacidade;

- Um controlo Joystick, de marca e modelo Sony SCPH-10010.

4 - No interior do veículo automóvel de matrícula (...)RM:

- Um cartão de memória do tipo Micro SD, de marca EMTEC, com o número M4GR512UACY-PA, com 512 MB de capacidade e com os espectivos adaptadores para os tipos Mini SD e SD. Neste cartão de memória ncontravam-se gravados vários ficheiros, designadamente de fotografias de B... com o arguido.

65 - O computador encontrado na casa do arguido (em (...)) foi sujeito a exame pericial do qual resultou que continha dois mil trezentos e noventa e umM ficheiros de imagem com extensão BMP contendo, na sua quase totalidade, imagens de crianças do sexo masculino, nuas, em poses eróticas e pornográficas, as quais se encontravam em duas pastas, “Pen Pix” e “Pix”, existentes na pasta Desktop (área de trabalho) e oitenta e nove ficheiros de imagem com extensão JPG contendo, imagens de crianças do sexo masculino, nuas e em poses pornográficas, as quais se encontravam nas pastas de ficheiros temporários da aplicação informática Internet Explorer.

66 - Extraído o histórico de acessos existentes nos ficheiros do sistema do computador, constatou-se a existência de acessos à Internet, existindo no histórico a referência aos ficheiros de imagem com extensão JPG, “a771229305_704049_7918.jpg” e “n771229305_2178.jpg”, com as referências 13395 e 13400, respectivamente.

67 - O arguido agiu de modo livre, deliberado e conscientemente, no decurso do aludido período temporal, com o propósito reiterado e concretizado de satisfazer as suas intenções libidinosas, actuando de forma essencialmente homogénea e no quadro de circunstâncias exteriores que facilitaram a reiteração da sua conduta criminosa, consubstanciada na prática, com as referidas crianças, de actos de natureza sexual, sabendo que tais crianças tinham idades inferiores a 14 anos, designadamente com B..., o qual sujeitava à prática de tais actos – beijando-o no pescoço, acariciando-lhe e apalpando-lhe as coxas- sabendo que se tratava de uma criança com apenas 11 anos de idade.

68 - O arguido sabia que a sua conduta, atentava de forma significativa, contra a liberdade e autodeterminação sexual de B..., pondo em risco o seu livre desenvolvimento físico e psíquico e o livre desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual, o que quis.

69 - O arguido sabia ainda que lhe estava legalmente vedada a aquisição e a detenção das mencionadas fotografias de crianças, em poses pornográficas.

70 - O arguido sabia que a conduta que adoptava era proibida e punida por lei penal.

71 – O arguido é solteiro, não tem filhos nem qualquer pessoa a seu cargo, vivem em casa própria resultante de uma herança, aufere uma pensão de reforma.

72 – O arguido não tem antecedentes criminais averbados no seu CRC.

73 – Não há conhecimento de que ao arguido tenha sido diagnosticada, em termos médicos, qualquer parafilia de pedofilia;

74 – Para além da situação referida em 41, 42 e 43, já de outras vezes o arguido tinha ido à escola recolher os menores B... e o D..., o que fazia com o conhecimento do pai do B..., o C....

B) Matéria de facto não provada:

Para além da consignada supra, nenhuma outra matéria de facto, da alegada na acusação, para onde remete o despacho de pronuncia, ou da alegada na contestação, ficou provada, designadamente:

a) Que, desde a fase inicial da sua adultez, o arguido tem demonstrado apetência sexual por crianças, principalmente do sexo masculino, com idades a partir dos 11 ou 12 anos,

b) Que, desde data não concretamente apurada, o arguido tem vindo a seduzir crianças muito novas, principalmente do sexo masculino, negligenciadas e pertencentes a estratos sócio-económicos muito baixos, por serem mais vulneráveis, tornando-se alvos mais fáceis.

c) Que o arguido tem vindo a estimular aquela sua apetência e aqueles seus comportamentos, com recurso à pornografia infantil;

d) Que, no decurso da relação que mantinha com as crianças, o arguido estabelecia, em regra, uma relação de paridade, partilhando com elas os seus problemas pessoais e episódios do seu quotidiano.

e) Que para isso o arguido fazia uso do seu estatuto social;

f) Que era precisamente em troca do recebimento dos bens materiais, que as crianças se disponibilizavam para a prática de actos de natureza sexual, com o arguido, normalmente no interior da casa onde aquele residia, sita na Rua (...), nº (...), 2º, em (...) ou no interior de outra casa de sua pertença, sita em (...), (...).

g) Que o arguido escolhia escolhendo espaços definidos para se encontrar com cada uma das crianças;

h) Que era normalmente através das crianças com as quais se ia relacionando que o arguido acabava por conhecer outras crianças, da mesma faixa etária, criando assim a sua rede de contactos.

i) Que na primeira metade de 2008 o arguido estabeleceu diálogo com B..., com D... e com o F..., levando-os a falarem-lhe das suas vidas particulares e a relatarem-lhe os seus problemas pessoais e familiares, tendo-lhe B... falado designadamente acerca do facto de ter sido abandonado pela progenitora, encontrando-se então a residir com o seu pai, com a companheira deste, com um seu irmão e com D....

j) Que o arguido perguntou então a B... se o seu pai precisava de trabalho e convidou-os a irem á sua casa, com a promessa de que lhes daria presentes.

l) Que ma sequência da intimidade assim criada, o arguido sugeriu então a B... que lhe apresentasse os seus familiares (o pai, o seu irmão H... C..., nascido em 04-06-1992 e E..., mãe de D...), prometendo-lhe logo, nessa altura, que lhes daria alguma quantia em dinheiro.

m) Que, quando aquelas crianças se encontravam no interior da casa do arguido,

este - a fim de as reter por maiores períodos temporais junto de si – facultavalhes o acesso ao seu computador e à internet, deixando-os igualmente utilizar a impressora, brincar com legos ou fazer desenhos.

n) Que o arguido se encontra com as crianças também, no interior da casa que possuía em (...), sendo aquelas para aí conduzidas, por vezes, por indivíduos adultos,

em diferentes veículos automóveis.

o) Que o arguido desenvolvei interesse particular pelo B..., por se tratar de uma criança particularmente vulnerável.

p) Que, durante as estadias de B... na casa do arguido, este passou a fazer-lhes frequentemente abordagens de cariz sexual, mesmo quando se encontravam outras pessoas no interior do apartamento - alturas em que o arguido chamava a criança, à parte, para um dos quartos da casa.

r) Que tais abordagens iniciaram-se com carícias que o arguido fazia a B..., em diversas partes do corpo, designadamente na cabeça e no tronco.

s) Que em dia e hora não concretamente apurados, no interior da casa onde o arguido residia e pouco tempo depois de B... ter começado a frequentar tal casa, aquele colocou as mãos nos ombros de B... e puxou o corpo dele contra o seu, tendo então tentado beijá-lo na boca.

t) Que a partir do referido episódio, em dias e horas não apuradas, no interior da mesma casa, o arguido tocava no corpo de B..., como se estivesse a acaricia-lo, beijava-o na boca e colocava as suas mãos na zona genital da criança, por vezes por cima das roupas que usava e apalpava-lhe o pénis.

u) Que também em data que não foi possível apurar, no interior da mesma casa o arguido, aproveitando o facto de B... se encontrar distraído com um jogo da PSP2, despiu-lhe as calças que aquele usava, baixou-se e encostou a sua boca ao pénis da criança, altura em que ela o afastou.

v) Que em data não apurada, no decurso do aludido período temporal, B... encontrava-se na casa do arguido acompanhado do seu primo F.... O arguido chamou-o então à parte, para o interior de um quarto e pediu-lhe que se deitasse na cama. Pelo motivo de B... ter exteriorizado desagrado com tal pedido, o arguido mostrou-se ofendido e amuado, tendo-lhe perguntado “porque não me deixas fazer?”, acrescentando que “gostava de fazer essas coisas, … que não as fazia por mal”.

x) Que nessas alturas, quando B... questionava o arguido acerca de tais comportamentos este, mostrando-se magoado e alegando que B... não confiava nele, dizia-lhe que “gostava de dar beijos na boca” e que “gostava de meninos”.

z) Que as crianças com quem o arguido se relacionava, que até essa altura deambulavam pelas ruas da cidade e pelos centros comerciais a pedirem dinheiro e a tentarem vender almanaques, pensos rápidos e porta-chaves, deixaram de ter necessidade de se dedicarem a tais actividades, pois o arguido providenciava pela aquisição de todos os bens de que iam tendo necessidade bem como de outros bens supérfluos.

aa) Que, para além das referidas em 39 ( de 2.1.1.) outras situações, com idênticos contornos, ocorreram pelo menos por mais cinco vezes, em que em datas posteriores, também não apuradas, primeiro duas crianças e depois três, todas do sexo masculino, dirigiram-se ao aludido prédio à procura do arguido, não o tendo encontrado. Noutra altura, em data posterior, não apurada, o arguido foi procurado por quatro crianças, três do sexo masculino e uma do sexo feminino. No dia 06-10-2008, a mesma rapariga, acompanhada de uma criança do sexo masculino procuraram igualmente o arguido no referido prédio, tendo ele vindo, nessa data, ao encontro de ambos.

bb) Que entre datas não concretamente apuradas, mas pelo menos durante o período compreendido entre os dias 08-11-2008 e 10-11-2008, o arguido encontrava-se a pernoitar na casa de uma sua irmã, O..., sita na Rua (...), em (...) e era detentor de uma garagem nas imediações.

cc) Que em datas não concretamente apuradas, durante o referido período temporal, o arguido recebeu, nesse prédio dois indivíduos do sexo masculino, um adulto e uma criança, que aparentavam ser de nacionalidade romena;

dd) Que o arguido não gosta indiscriminadamente de crianças - não gosta, por exemplo, de crianças mal educadas, estúpidas, mentirosas ou delinquentes;

ee) Que o arguido, é assexual, e por isso não tem qualquer comportamento ou expressão de natureza sexual;

ff) Quer quando o arguido fazia alguma compra no McDonald's - talvez uma vez por semana, se tanto - não trazia "sacos cheios", mas apenas um hambúrguer com batatas fritas, num pequeno saco de papel;

gg) Que o arguido nunca tinha ouvido falar no Café x... e nem sabia da sua existência;

hh) Que quem tocava à porta de casa do arguido já sabia o seu nome, e não precisaria de o perguntar à I... ou a qualquer outra pessoa;

ii) Bem como também não lhe perguntaria se o arguido estaria ou não em casa;

jj) Que quem fosse procurar o arguido a sua casa não precisava de perguntar a ninguém se estava ou não; bastava verificar se o carro do arguido se encontrava estacionado do lado da frente ou de trás do prédio, onde estaria se o arguido estivesse em casa;

ll) Que a I..., como qualquer outra funcionária da limpeza, só estava de serviço no prédio uma vez por semana;

mm) Que as "dificuldades financeiras" do arguido eram causadas pela sua passagem à situação de licença sem vencimento de longa duração, que lhe fora ilegalmente imposta pelo então Reitor ;

nn) Que o arguido não vendeu "objectos de pau preto" (supostamente móveis"), tanto mais que não os tinha nem nunca os teve;

oo) Que o arguido só vendeu um ou outro móvel, de valor comercial reduzido c sem interesse artístico, de que não precisava;

pp) Quer o arguido ofereceu - e não vendeu - vários móveis à família da empregada da sua Irmã, N..., que reside em (...) (...), e que pediu a um primo que os fosse recolher à casa do arguido, o que este fez, utilizando uma carrinha de caixa aberta;

qq) Que o arguido se desfez desses móveis, não por dificuldades financeiras, mas porque estava para se mudar para a casa do (...), que era mobilada, e não tinha uso, nem espaço para eles.

rr) Que o arguido ofereceu -- e não vendeu - uma quantidade de livros a uma pessoa sua conhecida, que tem uma loja sob o " (...)", livros esses que já constavam da sua biblioteca e de que não necessitava;

ss) Que o arguido ofereceu - e não vendeu - o frigorífico, fogão eléctrico, televisão e gravador de vídeo, mais uma vez porque não lhe faziam falta;

tt) Que o arguido vendeu uns prédios rústicos que possuía nas Freguesias do (...) e ele (...) (...), simplesmente porque estavam abandonados há mais de uma década, não havia quem os cultivasse, e só davam despesa, não só por o arguido ter que pagar imposto sobre eles, mas, sobretudo, porque era obrigado a gastar uma quantia bastante elevada, todos os anos, no princípio do Verão, para os mandar limpar, dem cumprimento dos regulamentos camarários de prevenção de incêndios;

uu) Que o arguido não pediu dinheiro emprestado à sua Irmã e muito menos a um seu sobrinho;

vv) Que o arguido referiu dificuldades económicas e supostos empréstimos, bancários ou não, em conversas com o C... ou o B..., e simplesmente para tentar moderar as despesas que faziam, não porque efectivamente existissem;

xx) Que, com os fotogramas existentes no seu computador e reproduzidos no apenso V Oo Arguido tencionava fazer uma nova abordagem da Biotipologia, numa perspectiva sociológica, para uma dissertação académica, para o que considerou três Universidades estrangeiras a quem proporia que aceitassem o trabalho, pedindo, em caso afirmativo, que nomeassem um orientador.

zz) Que o trabalho que tinha em mente era fazer uma súrnula do quc se tinha adiantado nos estudos biotipológicos desde a década de 1930, sobretudo a partir das pequisas do Prol'. Doutor L..., padrinho de baptismo do Arguido, apresentar as aplicações da Biotipologia no mundo de hoje; e delinear alguns desenvolvimentos possíveis para o futuro numa abordagem pluridisciplinar.

aaa) Que era neste enquadramento que iria utilizar imagens de jovens do sexo masculino, de idades entre os 9 e os 14 anos, depois do abandono das formas pueris e antes que se fizessem notar as evoluções morfológicas próprias da adolescência, para chegar a conclusões sobre a validade, oportunidade e aplicação da eugenia: não apenas classificar;

bbb) Que o número de imagens encontradas no computador do arguido devia-se ao facto de, para efeitos estatísticos, ser preciso haver uma amostra suficientemente grande, de modo a poder chegar-se a conclusões válidas;

ccc) Que as imagens recolhidas passariam por uma triagem, sendo classificadas por tipologias (endomorfo, mesomorfo e ectomorfo, com as respectivas subdivisões), e eliminadas as imagens duplicadas ou inúteis, que certamente ultrrapassariam os 50%;

ddd) Que a sua presença no computador era simplesmente devido ao facto de estarem assim mais fàcilmente acessíveis durante a composição do texto.

eee) Que não foi o arguido quem fez download delas;

fff) Que o arguido não fazia ideia do género e quantidade das imagens alegadamente encontradas no seu computador, porque, caso contrário, teria apagado as que não lhe fossem úteis ou que fossem, de algum modo, objeceionáveis.

ggg) Que o mais certo seria o arguido apagar todas as imagens, porque tinha acabado por desistir de escrever a dissertação a que se destinavam e, portanto, já não precisava delas.

hhh) Que ao ser-lhe mostrado pela primeira vez o Apenso V, o arguido exprimiu o seu espanto pela existência de imagens que não correspondiam aos tipos que lhe seriam úteis,

iii) Que o arguido pedira a uma pessoa amiga, o M.... que recolhesse as imagens, visto ter outros trabalhos em curso e muito que fazer, e não dispor de tempo.

C) Motivação probatória / análise crítica da prova:

1. Das irregularidades processuais que poderiam afectar a prova recolhida no inquérito:

Na contestação que apresentou a defesa veio arguir duas irregularidades processuais, a saber :

- A circunstância de a Sr.ª Juíza de Instrução não ter presidido às buscas que ordenou, em conformidade com o disposto no artigo 174.º, n.º 3 do C.P.P.; e,

- E a circunstância de só ter sido entregue ao arguido cópia do despacho que as determinou no fim da ultima delas e não antes, em conformidade com o preceitua no artigo 176.º, n.º1 do C.P.P.

Vejamos:

Compulsado o regime das nulidades – artigos 118º a 122º, do CPP -, concluímos que aí não cabe, manifestamente, as situações referidas pela defesa. Outrossim, essas eventuais omissões correspondem a uma mera irregularidade processual que, ao abrigo do disposto no artigo 123º, do CPP, deveria ter sido arguida, pelo menos no prazo de 3 dias após a notificação de qualquer termo do processo ou a intervenção em qualquer acto nele praticado.

Ora, na sequência das buscar realizadas, o arguido foi detido e sujeito a primeiro interrogatório judicial, no qual estiverem presentes, não só o arguido, mas também o seu defensor, e nenhuma irregularidade foi ali arguida.

Posto isto, se porventura as referidas irregularidades se verificaram, as mesmas encontram-se neste momento sanadas.

2. Da validade das declarações prestadas pelo menor B... perante os inspectores da Policia Judiciária e a valoração pela Sr.ª Juíza de Instrução das declarações para memória futura

Nos pontos 21 e 22 da sua contestação, cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido, o arguido, através da sua defesa, veio tecer uma série de considerações validade das declarações prestadas pelo menor B... perante os inspectores da Policia Judiciária e a valoração pela Sr.ª Juíza de Instrução das declarações para memória futura.

Sucede que, nesta sede, o Tribunal não irá valorar as primeiras das referidas declarações nem está vinculado ao entendimento da Sr.ª Juíza de Instrução.

Posto isto, nada temos a dizer acerca destas duas questões.

3. Da valoração da prova:

Na formação da convicção do Tribunal acerca dos factos provados e não provados o Tribunal teve em conta todos e cada um dos elementos de prova documental e pericial recolhidos na fase de inquérito e referidos na parte final do despacho de acusação para onde remete a pronuncia.

Com esses elementos relacionamos os depoimentos das testemunhas ouvidas em julgamento, sendo certo que, não obstante as considerações feitas a propósito das mesmas pela defesa na sua contestação, no sentido de as descredibilizar, o certo é que os referidos depoimentos, não obstante a erosão natural do tempo já decorrido, nos pareceram autênticos e objectivos.

Com estes elementos de prova relacionamos as regras da experiência e da normalidade do acontecer, designadamente em foi vectores essenciais: o que é o normal relacionamento físico e social entre um adulto e uma criança com a qual não se tem qualquer tipo de relação de parentesco, de nacionalidade estrangeira, que se conhece há muito pouco tempo e que mal fala a língua portuguesa; e o facto de dever merecer da parte do Tribunal a devida atenção o facto de diversos membros da comunidade envolvente, com diversos enquadramentos profissionais e sociais, sem qualquer relação directa com o arguido, em diferentes locais e circunstancias, terem achado anormal o tipo de relacionamento que aquele mantinha em publico com as crianças de que se fazia rodear.

Por fim, diremos que a circunstancia de o menor B... não ter confirmado, nas declarações que prestou para memória futura, os factos que aqui vão ser dados como provados, não significa que eles não tenha sucedido.

Com efeito, se é verdade que o arguido, para levar os menores e as suas famílias a fazerem o que ele cria através de presentes e dádivas, os conseguiu manipular, também não estranha ao Tribunal que aquele tenha conseguido instrumentalizar o depoimento do referido menor mediante uma qualquer promessa ou recompensa que o levou a produzir um depoimento que o ilibasse.

Assim, em concreto, o facto 1 foi firmado em função do que é admitido pelo próprio arguido na contestação e no resultado do relatório que está junto a fls. 725 a 729;

O facto 2, para além de admitido pelo arguido teve também a suportá-lo a informação de fls. 33;

O facto 3 é o corolário lógico do teor de fls. 746 a 748 e do que consta do apenso V;

Os factos 4 e 5 são a conclusão lógica da relacionação de todos os outros factos com as regras da experiencia e da normalidade do acontecer;

Os factos 6 e 7 são o resultado da relacionação das informações existentes a fls. 56, 57, 58, 70 com as fotografias recolhidas no apenso IV;

O facto 8 resulta da conjugação do teor das intercepções telefónicas com as informações de fls. 33 e 77 e o auto de fls. 134;

O facto 9 resulta dos diversos relatório de vigilância junta aos autos e das respectivas reportagens fotográficas;

O facto 10 resulta, para alem dos relatos de diligencias externa junto aos autos relativos aos seguimentos que foram feitos ao arguido também da observação das fotografias juntas ao apenso IV;

Os factos 11 e 12 são confirmados pelo teor das intercepções telefónicas ali referidas;

O facto 13, para além do teor das intercepções telefónicas ali referidas, tem a suportá-lo os mesmos elementos de prova referidos a propósito dos factos 62 a 64;

O facto 14 teve a suportá-lo o depoimento da testemunha Q..., a qual, pela posição em que se encontra a sua residência em relação à do arguido, quando este vivia na Rua (...), em (...), proporcionava-lhe uma visão privilegiada sobre a rotina daquele; quanto à parte final do referido ponto, esta fica demonstrada pelo teor das intercepções telefónicas.

Os factos 15 e 16 estão suportados na intercepções ali mencionadas;

Os factos 17 e 18 resulta das informações de fls. 3 a 5, 781 a 803 e da informação de fls. 27;

O facto 19 resulta da leitura dos documentos relativos a esses veículos encontrados nas buscas efectuadas no dia 14.04.2009;

O facto 20 resulta do teor do depoimento da testemunha P...., administrador do condomínio do prédio do n.º (...) da Av. (...) em (...);

Os factos 21 a 23 tiverem a suportá-los o teor do auto de fls. 9 e 9 vs., e o depoimento da testemunha R..., quer em audiência quer no próprio local conforme auto de reconstituição efectuado aquando do julgamento;

Os factos 24 e 25 tiveram a suportá-los o depoimento da testemunha Q..., quer em audiência quer no próprio local, em conformidade com o que fizemos constar do auto de reconstituição a que procedemos na audiência de julgamento, e bem assim o teor da participação de fls. 14 e 14 vs, e de fls. 15, quando relacionado com o depoimento do agente T..., tudo relacionado com o esquema de fls. 42 e 43;

Os factos 26 e 27 tiveram a suportá-los o depoimento da testemunha R..., quer em sede de julgamento quer aquando da reconstituição a que procedemos e para cuja acta se remete, tudo relacionados com o teor do aditamento de fls. 11 e as fotos de fls. 12.

Não nos passou despercebido o facto de a testemunha referir que o arguido se debruçou sobre o vidro da porta traseira do veículo e na foto de fls. 12 aquele estar debruçado sobre o vidro da porta dianteira.

Porém, isso, só por si, não serve para descredibilizar o depoimento, pois que bem pode suceder que o arguido, que numa fase inicial ( a da foto de fls. 12) estivesse a falar com o adulto que estava ao volante e, num momento posterior, tivesse vindo debruçar-se no vidro da porta traseira. Uma coisa é certa: a testemunha foi ouvida por duas vezes ( na sala e na reconstituição) e sempre repetiu a mesma coisa;

O facto 28 está documentado no aditamento de fls. 11 e no depoimento da testemunha R...;

Os factos 29 a 38 resulta do teor do auto de visionamento do sistema de videovigilância junto a fls. 30 e 31, e no que diz respeito aos factos 31 e 32, também da informação de fls. 29;

O facto 39 está suportado pelo teor da informação de fls. 29 e pelo depoimento da testemunha I..., que nos pareceu autentico;

O facto 40 está documentado no relatório de vigilância de fls. 34 a 36;

Os factos 41 a 44 resulta do teor da informação de fls. 74 e são também referidos pela testemunha S...;

O facto 45 está suportado no relatório de vigilância de fls. 167;

Os factos 46 a 49 estão suportados pelo teor do depoimento da testemunha Teresa Sargento, inspectora da policia judiciária, e no teor do relatório de vigilância de fls. 280 a 283.

O facto 50 resulta do teor das intercepções telefónicas ali mencionadas;

Os factos 51 a 53 são suportados pelo teor dos relatórios de vigilância externa de fls. 419 e 420;

Os factos 54 a 57 resultam do teor do relatório de vigilância externa de fls. 421 a 424;

Os factos 58 a 61 são suportados pelo teor das intercepções telefónicas ali mencionadas;

Os factos 62 a 66 resultam dos autos de busca de fls. 436 a 456, do auto de exame de fls. 504 a 507, do auto de depósito de fls. 508 e 509, da informação de fls. 670 a 673.

No que diz respeito, em particular aos factos 65 e 66, tivemos em conta também a informação de fls. 746, 748 e o teor do apenso V, bem como o resultado do relatório pericial do exame ao computador do arguido;

Os factos de fls. 67 a 70 são o corolário de todos os outros factos anteriores, quando relacionados com as regras da experiência e da normalidade do acontecer, designadamente a circunstancia de haver intercepções telefónicas em que o arguido revela o receio de estar a ser escutado ( cfr. fls. 169 e 170).

Os restantes factos resulta do depoimento do arguido e da demais prova documental unta aos autos.

Já a matéria consignada como não provada foi assim valorada em virtude de estarem em contradição lógica com aquela outra consignada como provada e os respectivos fundamentos, e bem assim, de não haver qualquer meio de prova que suporte a sua demonstração.

***

*

3. Questões relativas à matéria de facto

3. 1. Omissão de apreciação / diligências instrutórias / discussão em audiência

Alega o recorrente (conclusão nº17) que “Tribunal, pura e simplesmente (…) se escusou a aplicar o estipulado no art. 340º N° 1 do CP”.

Tal dispositivo reporta-se à “produção de meios de prova” que o tribunal, pela discussão da causa, em audiência, tenha por necessário à descoberta da verdade e boa decisão da causa.

Ora, o recorrente não identifica – muito menos justifica a necessidade e a possibilidade da sua produção em audiência - qualquer diligência probatória que se tivesse revelado relevante durante a discussão da causa e que o tribunal tenha rejeitado.

Aliás durante a audiência o arguido requereu novas diligencias complementares de prova, às quais se procedeu em conformidade com o auto elaborado no dia 09.07.2013.

Pelo contrário, o fundamento invocado é que “o Tribunal, pura e simplesmente, desvalorizou” a matéria dada como não provada, sob as alíneas: nn), oo), pp), qq), rr), ss), tt), uu) e vv).

Não, portanto, omissão de qualquer diligência probatória surgida como relevante durante e por efeito da discussão da causa, mas de valoração da matéria apreciada.

Alega que (conclusão 10) a matéria da acusação pela prática de um crime de pornografia de menores, não foi, sequer, discutida em Audiência de Julgamento.

A prova da matéria relativa a este crime é de natureza documental que consta dos apensos juntos aos autos – referenciados, aliás, pelo recorrente na motivação do recurso, designadamente os Apensos IV e V.

Ora trata-se de Apensos incorporando prova documental, arrolados, como meio de prova, na acusação.

Fazendo, como tal, formal e substancialmente, objecto do processo a submeter à discussão em julgamento e á subsequente apreciação do tribunal.

Por outro lado, tratando-se de provas pré-constituídas (incorporadas nos autos e arroladas como meio de prova na acusação) não podem, ser produzidas em julgamento porque já se encontram incorporadas nos autos quando o processo entra na fase de julgamento. Apenas ali sendo examinadas e discutidas, objecto de contraditório – cfr. designadamente: Simas Santos / Leal Henriques, CPP Anotado anotação ao art. 355º; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao CPP, 3ª ed., p. 851; Acórdão do T. Constitucional n.º 87/99 de 10.02, DR IIS de 01.07.99; Acórdão do T. Constitucional n.º 110/2011, DR IIS de 06.04.2001 (onde se conclui: que “não é indispensável às garantias de defesa a leitura de toda a prova documental pré-constituída e junta ao processo” salvaguardando que “há-de facultar-se à parte não apresentante a impugnação”); Ac. STJ de 10.11.1993, CJ/STJ, tomo III/93, p. 233; Ac. STJ de 25.02.1993, BMJ 442º, p. 535; Ac. STJ de 10.07.1996, CJ/STJ, tomo II/96, p. 229; Ac. STJ de 27.01.1999, SASTJ n.º27, p. 83; AC. TC n.º 87/99 de 10.02, DR IIS de 01.07.99; outra jurisprudência citada Por Maia Gonçalves no seu Código de Processo Penal Anotado em anotação ao art. 555º.

Ora, no caso, não sofrendo dúvida – da própria motivação do recurso emerge que tal conteúdo foi discutido exaustivamente, quando volta a discutir o relevo do conteúdo dos Apensos em causa – cfr. além do mais fls. 1334, relativamente ao Apenso IV e fls. 1347, relativamente ao Apenso V.

Assim tratando-se de meios de prova incorporados nos autos, arrolados na acusação, que foram objecto de discussão em audiência, nada há a apontar á decisão recorrida sob este prisma.

3. 2. Vícios previstos no art. 410º, 2 do CPP

No âmbito da matéria de facto vêm invocados os vícios de: - “insuficiência para a decisão, da matéria de facto provada”; e - erro notório na apreciação da prova” (conclusão 2ª). Bem como a “evidente contradição” entre matéria dada como provada e matéria dada como não provada (conclusão 3ª).

Postula o art. 410º n.º2 do CPP:

Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de fato provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

Estes vícios, previstos no art. 410º, n.º2 incidem sobre a decisão da matéria de facto, como resulta não só da letra da lei [“matéria de facto”, “apreciação da prova” constantes das alíneas a) e c)], como ainda do espírito ou ratio do mencionado preceito, permitindo a chamada revista alargada, em que o tribunal de recurso, embora conhecendo exclusivamente de direito [““Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal à matéria de direito” - cfr. corpo do citado n.º2], possa sindicar a matéria de facto naquelas três situações, reenviando, se necessário, o processo para novo julgamento da matéria de facto correspondente, nos termos do art. 426º, n.º1.

Trata-se de vícios relativos à estrutura interna da sentença que há-de emergir do texto da decisão propriamente dito e/ou do mero confronto da decisão com as regras da experiência comum. Repercutindo todavia os seus efeitos ao nível da decisão de mérito, na medida em que a sua consequência típica é o reenvio para novo julgamento - cfr. art. 426º do CPP.

Constituem “vícios ao nível da lógica jurídica da matéria de facto, da confecção técnica do decidido, apreensíveis a partir do seu texto, a denunciar incoerência interna com os termos da decisão” – cfr. Ac. STJ de 07.12.2005, CJ-STJ, tomo III/2005, p. 224.

No entanto, em conformidade com o corpo do preceito, os aludidos vícios apenas se verificam quando “resultem do texto da própria decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum” – cfr. SIMAS SANTOS / LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 5ª ed., p. 68 e jurisprudência ali citada.

O vício da “insuficiência … da matéria de facto provada”, embora parcialmente coincidente, não se confunde com a mera omissão de pronúncia geradora de nulidade da sentença. Radicando na insuficiência de investigação/apuramento de matéria de facto relevante - resultante da acusação, da contestação, da discussão da causa ou que o Tribunal tivesse o dever de investigar oficiosamente dentro do objecto do processo e da aplicação da pena. E não da “insuficiência da prova” para a decisão da matéria de facto apreciada pela sentença.

Verificando-se quando o tribunal não investigou/apurou matéria de facto alegada na acusação ou na contestação ou de que lhe competisse conhecer oficiosamente, essencial para o apuramento dos pressupostos do crime e aplicação da pena.

Como referem Simas Santos/Leal Henriques (Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 5ª ed., p. 61) “Trata-se de uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito (…) havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher”.

Resultando de o tribunal não ter esgotado os seus poderes de indagação da descoberta da verdade material, deixando por investigar factos essenciais cujo apuramento permitiria alcançar a solução legal e justa” – cfr. AC. STJ de 14.11.1998 citado por Simas Santos /Leal Henriques, Recursos, cit., p. 63. Ou “da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou tenham resultado da discussão” - AC. STJ de 30.06.99, citado por Simas Santos/ Leal Henriques no seu CPP Anotado, 2ª ed., 2º vol., p. 759.

O vício de erro notório na apreciação da prova constitui “um vício de raciocínio na apreciação das provas evidenciado pela simples leitura da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio” – cfr. Ac. STJ de 03.06.1998, processo n.º 272/98, citado por SIMAS SANTOS / LEAL HENRIQUES, Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 5ª ed., p. 68.

Devendo tal conceito, como decidiu o Ac. STJ de 06.04.1994, na CJ/STJ, t.2/1994, p. 186 “ser interpretado como o tem sido o conceito de facto notório em processo civil, ou seja, de que todos se apercebem directamente, ou que, observados pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório”.

Verificando-se, por ex., quando se dão como provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica do homem médio, não se poderiam ter verificado ou são contraditados por documentos que fazem prova plena não arguidos de falsos – cfr. Ac. STJ 10-03.99, SASTJ n.º 29, p. 73. Ou quando se dão como provados factos que face às regras da experiência comum e à lógica corrente não se podiam ter verificado Ac. STJ 02.06.99, proc. 354/99, citado por Maia Gonçalves, em anotação ao art. 41º do seu C. Anotado, 13ª ed..

O vício de contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão verifica-se quando são afirmadas, em simultâneo, duas proposições que reciprocamente se excluem logicamente, em que portanto se uma é verdadeira a outra não o pode ser, tendo por referência, como se disse, o texto da decisão por si ou conjugado com as regras da experiência comum. Existindo quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que a fundamentação justifica precisamente decisão oposta; entende-se o facto de afirmar e negar ao mesmo tempo uma coisa, ou a emissão de duas proposições que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas – Cfr. Ac.s do STJ de 13.03. 1996 e de 08.05.1996, citados por SIMAS SANTOS / LEAL HENRIQUES, Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 5ª ed., Recursos, p. 65.

Os vícios previstos no art. 410º, nº2 do CPP são, pois, de natureza lógica, devendo emergir do texto e estrutura da decisão em si, por si só ou do mero confronto da mesma com elementares regras da experiência comum.

O recorrente invoca os aludidos vícios com base, por um lado, em razões relativas à prova produzida e por outro com base em fundamentos de direito. Com efeito

Alega a existência de contradição (insanável?) entre Matéria de Facto Provada (pontos 1, 14, 16, 21 a 28, 35 a 39, 47, 55, 58, 59, 60, 65, 67, 68 e 69) e matéria dada como não provada [sob as alíneas d) a z)] pelo acórdão recorrido.

Não obstante, embora invocando a contradição entre os referenciados pontos (entre a generalidade da matéria de facto relevante e a matéria não provada, sem especificar pontos concretos) o recorrente não explicita fundamentos de incompatibilidade lógica ou de impossibilidade de verificação (melhor dizendo não verificação), simultânea, entre uns e outros. Muito menos entre especificados pontos concretos. Pelo contrário, limita-se a invocar a sua discordância com a matéria provada.

Por outro lado, apenas pode haver contradição entre facto dado como provado e facto dado como não provado quando se trate, fundamentalmente, do mesmo facto ou de facto que, pela sua natureza, exclui a possibilidade de verificação ou não verificação do seu oposto.

Acresce que, percorrendo a aludida matéria, verifica-se que não existe incompatibilidade lógica porquanto não existem pontos concretos da matéria de facto (que vem da acusação) afirmados e negados, simultaneamente.

Com efeito, além de uns contarem da matéria provada e outros da matéria não provada, trata-se de factos distintos, pelo que nada impede que uns estejam provados e outros o não estejam.

Pelo que, tratando-se de factos distintos e de possível verificação autónoma – como é o caso - não há contradição.

No que toca ao vício de insuficiência, o recorrente confunde a “insuficiência de matéria de facto” com “insuficiência de prova” da matéria de facto investigada – e dirimida - pelo tribunal recorrido. Com efeito os fundamentos invocados são relativos à prova produzida que, na perspectiva do recorrente deve levar a que se tenha por não provada a matéria nuclear da acusação (daí que impugna também, com os mesmos fundamentos, a apreciação da prova).

Na sua perspectiva a matéria provada é, ainda, “insuficiente” para o preenchimento dos elementos dos tipos de crime – o que constitui matéria de direito / qualificação jurídica da matéria provada.

Também o vício de erro notório assenta não em qualquer - não identificado - erro lógico aparente, emergente da simples leitura da decisão e do seu confronto com dados elementares, adquiridos, da experiência comum. Pelo contrário os fundamentos invocados centram-se na mesma ordem de razões da contradição e da insuficiência. Todos eles centrados na discordância da apreciação da prova efectuada em relação aos factos dados como provados que constitui o fundamento subsequente e nuclear da motivação do recurso e que a matéria provada não preenche os elementos típicos dos crimes imputados.

Neste âmbito invoca o erro notório acerca do facto descrito sob o nº1 com o fundamento de que “deturpa” o relatório do exame médico cujo relatório se encontra a fls. 729.

O aludido ponto 1 reporta as “características específicas de personalidade que revelam uma sintomatologia patológica acentuada, consubstanciada em transtorno da personalidade”.

E tem por fundamento probatório - invocado na motivação probatória do acórdão recorrido - precisamente o aludido exame.

Por outro lado, compulsando as conclusões do mesmo (Relatório de Observação Psicológica do arguido, subscrito pela Psicóloga Dra. Margarida Barreto, da Delegação do Centro do IML), verifica-se que ali se refere – cfr. última conclusão – “personalidade com sintomatologia patológica acentuada que poderá consubstanciar transtorno da personalidade”.

Assim, não só não contraria, como, pelo contrário, confere suporte à questionada personalidade com sintomatologia patológica acentuada de que o transtorno da personalidade é mera consequência.

Pelo que, em conclusão, sem prejuízo da apreciação das razões probatórias e de qualificação jurídica que seguem, improcedem todos os invocados vícios do art. 410º, nº2 do CPP.

*

3.3. Além de questionar a decisão recorrida numa perspectiva dos vícios do art. 410º, nº2 do CPP, reporta na motivação de suporte fundamentos de natureza probatória e excertos de depoimentos prestados em audiência.

Os tribunais da relação conhecem de facto e de direito – art. 428º do CPP.

A decisão da matéria de facto pode ser impugnada/sindicada com fundamento nos vícios do art. 410º, n.º2 do CPP – nos termos a que já se fez referência - ou com base na efectiva reapreciação dos meios de prova, nos termos previstos nos artigos 431ºdo CPP.

Já no que toca ao recurso com base na reapreciação da prova, postula o art. 431º do CPP: Sem prejuízo do disposto no art. 410º, a decisão do tribunal e 1ªinstância sobre matéria de facto pode ser alterada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do art. 412º n.º3 do CPP.

No recurso com base na reapreciação dos meios de prova, ao contrário do que sucede com os vícios do art. 410º (aparentes, manifestos, de conhecimento oficioso) incide sobre o recorrente o ónus de identificar o erro apontado á decisão recorrida, como ainda o de o comprovar, especificando o conteúdo dos meios de prova tido por não valorado ou valorado erradamente pela decisão posta em crise, capaz de, numa apreciação conforme aos critérios legais em vigor, “impor” a revogação e/ou a substituição da decisão recorrida em conformidade com a pretensão formulada.

Com efeito, sobre a motivação do recurso com base na reapreciação da prova, dispõe o art. 412º do CPP (redacção introduzida pela Lei 48/2007 de 29.08):

(…)

3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em acta, nos termos do disposto no n.º2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

O recurso não se confunde, como sucede na praxis diária, com um novo ou segundo julgamento da mesma coisa. Constituindo antes o instrumento para obter a correcção de erros de procedimento ou de julgamento – concretos, identificados e comprovados, com base numa argumentação minimamente persuasiva, na motivação do recurso – cometidos na decisão recorrida.

Com efeito, parafraseando Cunha Rodrigues (Jornadas de Direito Processual Penal, Centro de Estudos Judiciários, p. 387) “Como remédios jurídicos os recursos não podem ser utilizados com o único objectivo de melhor justiça. O recorrente tem que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida. A motivação dos recursos consiste exactamente na indicação daqueles vícios que se traduzem em erros in operando ou in judicando. A pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulta de violação de direito material. Esta natureza dos recursos justifica, por outro lado, que se lhes aplique o princípio dispositivo e que se reconheça às partes um importante papel conformador”.

O recurso com base no disposto no art. 431º do CPP poderá ter como fundamento:

- a atribuição, pelo tribunal recorrido, aos meios de prova convocados como suporte da decisão, de conteúdo diverso daquele que efectivamente têm ou daquele que foi realmente produzido em audiência; ou

- a violação de critérios legais de valoração e apreciação da prova incorporada nos autos ou produzida oralmente em audiência): - pela valoração de meios de prova ilegais ou nulos; - pela violação de critérios de apreciação da prova vinculada (vg. prova documental e pericial) - pela violação de princípios gerais de apreciação da prova, designadamente o princípio da livre apreciação previsto no art. 127º do CPP e o princípio in dubio pro reo.

A reprodução da gravação dos depoimentos, no tribunal de recurso, como instrumento de garantia/comprovação da genuinidade dos mesmos e da eventual divergência entre o conteúdo material do depoimento prestado em audiência e o pressuposto na decisão recorrida, apenas tem sentido no caso de, segundo a motivação do recurso, a decisão recorrida ter atribuído, aos depoimentos prestados oralmente em audiência, conteúdo/afirmações relevantes, materialmente diversas daquelas que foram efectivamente produzido em audiência. Afinal quando o fundamento do recurso é o de que a testemunha ou o depoente afirmou em audiência “coisa” materialmente diversa daquela que é reportada/valorada como suporte da decisão recorrida e que, como tal, inquinou a decisão, impondo, por isso, a sua correcção pelo tribunal de recurso. Pois que, como instrumento de reprodução, apenas permite corrigir erros de “audição” do tribunal recorrido.

Competindo ao recorrente, em tal situação, especificar as “passagens” que confirmam a apontada desconformidade entre aquilo que foi dito em audiência e aquilo que foi valorado pelo tribunal recorrido como suporte da decisão impugnada.

A gravação (como instrumento de garantia da genuinidade dos depoimentos) nada adiantará quando o fundamento do recurso radica na violação de critérios de valoração – não reproduzidos pela gravação. Pois que, pela sua natureza, a gravação apenas reproduz e comprova o teor dos depoimentos gravados. Nada adiantando para efeito de apreciação da obediência aos critérios (legais) de ponderação/avaliação/valoração da prova - que resultam da lei e dos princípios gerais de direito processual penal.

Em termos de valoração material da prova, apesar da minuciosa regulamentação das provas efectuada pelo CPP, salvos os casos em que a lei define critérios legais de apreciação vinculada (vg. prova documental, prova pericial) vigora princípio geral de que a prova é apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador - art. 127º do Código de Processo Penal.

Liberdade de convicção não pode nem deve significar o impressionista-emocional arbítrio ou a decisão irracional “puramente assente num incondicional subjectivismo alheio à fundamentação e a comunicação” – cfr. Castanheira Neves, citado por Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 1, 43.

Pelo contrário, o princípio da livre apreciação da prova, conjugado com o dever de fundamentação das decisões dos tribunais, exige uma apreciação motivada, crítica e racional, fundada nas regras da experiência mas também nas da lógica e da ciência. Devendo ser objectivada e motivada, únicas características que lhe permitem impor-se a terceiros.

A livre convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque para a sua formação concorrem a actividade cognitiva e ainda elementos racionalmente não explicáveis como a própria intuição.

Esta operação intelectual, não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis) e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente — aqui relevando, de forma especialíssima, os princípios da oralidade e da imediação — e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” - cfr. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss..

A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade: o juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» e, por outro, os limites que a ordem jurídica lhe marca - derivados da(s) finalidade(s) do processo (Cristina Libano Monteiro, “Perigosidade de inimputáveis e «in dubio pro reo»”, Coimbra, 1997, pág. 13).

Sendo certo que a certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica – crf. Climent Durán, La Prueba Penal, ed. Tirant Blanch, p. 615.

O princípio in dubio pro reo constitui um princípio de direito relativo à apreciação da prova/decisão da matéria de facto. Princípio atinente ao direito probatório, como tal relevante em termos da apreciação da questão de facto e não na superação de qualquer questão suscitada em matéria de direito – cfr. entre outros Cavaleiro Ferreira, Direito Penal Português, 1982, vol. 1, 111, Figueiredo Dias Direito Processual Penal, p. 215, Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967-1968, p. 58. Constituindo um princípio geral de direito (processual penal) cuja violação conforma uma autêntica questão-de-direito – Cfr. Medina Seiça, Liber Discipulorum, p. 1420; Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1974, p. 217 e segs.), criticando o entendimento contrário do STJ.

A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do Tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável – neste sentido, Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (19966), p. 25.

De onde que o tribunal de recurso “só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a esse estado escolheu a tese desfavorável ao arguido” – cfr. AC. STJ de 02.05.1996, CJ/STJ, tomo II/96, p. 177. Ou quando, após a análise crítica, motivada e exaustiva de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, é de concluir que subsistem duas ou mais perspectivas probatórias igualmente verosímeis e razoáveis, havendo então que decidir por aquela que favorece o réu.

Assim, mais do que uma limitação da livre convicção pela dúvida razoável, o critério da livre apreciação e o critério da dúvida razoável é o mesmo, têm o mesmo cerne - que há-de orientar “o fio da navalha” da decisão judicial sobre a prova do facto: a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio in dubio pro reo impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. Em ambos os casos, após a produção de toda a prova e da sua valoração em conformidade com os critérios de apreciação vinculada e, na falta deles, numa apreciação motivada, razoável, objectiva e racional.

No que toca especificamente à prova produzida oralmente em audiência – campo privilegiado de aplicação do critério do art. 127º do CPP - assume a maior relevância o princípio da oralidade e imediação, na plenitude da discussão cruzada, no exercício amplo do contraditório. Princípio que enfatiza a constatação de que o tribunal de recurso não procede a um novo julgamento mas apenas procede à sindicância de um julgamento previamente realizado em 1ª instância, na plenitude da audiência, nos termos supra identificados. Sabendo-se a voz apenas representa uma perspectiva parcelar do processo global da comunicação entre as pessoas.

Daí que “só os princípios da oralidade e da imediação permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só eles permitem uma plena audiência desses mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso” – Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, p. 233-234.

Como pondera criteriosamente Germano Marques da Silva (in Revista Julgar, n.º1, Janeiro-Abril 2007 p.150) “Nem sequer parece importante o registo audiovisual da prova, porque no recurso não está em causa o princípio da livre convicção do julgador, mas apenas a correcção de julgamento em função das provas produzidas em audiência. Não se trata tanto da interpretação de provas produzidas, mas da comprovação de que o juízo se fundou nas provas produzidas ou examinadas em audiência”.

Daí que os julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, apenas poderão afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da 1ª instância, naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art. 347º, n.º2 do CPP – Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, p. 126 e 127, que por sua vez cita o Prof. Figueiredo Dias – jurisprudência uniforme desta Relação, designadamente acórdãos 19.06.2002 e de 04.02.2004, nos recursos penais 1770/02 e 3960/03; 18.09.2002, recurso penal 1580/02; 13.02.2008, recurso 76/05.4PATNV.C1 2º Juízo Torres Novas. Como decidiu, entre outros, o Acórdão da Relação de Coimbra de 06.03.2002, publicado na CJ, ano 2002, II, 44.... “quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face ás regras da experiência comum”.

No caso, como emerge da motivação probatória da decisão recorrida, supra reproduzida, a matéria dada como provada tem apoio – descriminado, ponto por ponto - na conjugação dos elementos de prova de natureza documental, complementados/esclarecidos pelos depoimentos produzidos em audiência, de conteúdo identificado e apreciado criticamente.

Com efeito, numa primeira fase, aplicável a toda a matéria refere, além do mais que “o Tribunal teve em conta todos e cada um dos elementos de prova documental e pericial recolhidos na fase de inquérito e referidos na parte final do despacho de acusação para onde remete a pronuncia. Com esses elementos relacionamos os depoimentos das testemunhas ouvidas em julgamento, sendo certo que, não obstante as considerações feitas a propósito das mesmas pela defesa na sua contestação, no sentido de as descredibilizar, o certo é que os referidos depoimentos, não obstante a erosão natural do tempo já decorrido, nos pareceram autênticos e objectivos.

Com estes elementos de prova relacionamos as regras da experiência e da normalidade do acontecer, designadamente em foi vectores essenciais: o que é o normal relacionamento físico e social entre um adulto e uma criança com a qual não se tem qualquer tipo de relação de parentesco, de nacionalidade estrangeira, que se conhece há muito pouco tempo e que mal fala a língua portuguesa; e o facto de dever merecer da parte do Tribunal a devida atenção o facto de diversos membros da comunidade envolvente, com diversos enquadramentos profissionais e sociais, sem qualquer relação directa com o arguido, em diferentes locais e circunstancias, terem achado anormal o tipo de relacionamento que aquele mantinha em publico com as crianças de que se fazia rodear”.

De seguida, passa a especificar, ponto por ponto, os elementos de prova valorados em relação a cada facto concreto, procedendo á discussão dos mesmos quando discutíveis, numa apreciação criticamente fundamentada.

Em contrapartida, nas conclusões o recorrente não invoca o recorrente qualquer excerto de depoimento que o tribunal recorrido tivesse “ouvido” mal ou a que tivesse atribuído afirmações distintas das valoradas como suporte da decisão de qualquer facto, ou erro de audição que pudesse ser corrigido pela reprodução dos depoimentos gravados. Invocando os meios de prova, aliás, na perspectiva dos vícios do art. 410º, nº2 do CPP que não da atribuição, pelo tribunal recorrido de conteúdo diverso daquele que efectivamente resultou da audiência e se mostra registado em suporte digital.

Certo é que na motivação de suporte invoca múltiplas afirmações de depoimentos mas sem especificar concretos conteúdos probatórios a que o tribunal recorrido pudesse ter atribuído conteúdos probatórios diversos daqueles que foram efectivamente produzidos em audiência, registados pela gravação.

Em relação aos “4 episódios” da matéria provada (1º, pontos 21 a 23; 2º, pontos 24 e 25; 3º pontos 26-28; 4º, pontos 35-39) invoca excertos de depoimentos prestados em audiência.

Reproduz múltiplas afirmações das testemunhas, em relação às quais, entende que deve prevalecer o seu ponto de vista. Mas, por um lado, não põe em causa o teor dos depoimentos valorados pelo tribunal. E, por outro lado, trunca os aludidos depoimentos ou retira afirmações do seu contexto e da dimensão global que resulta do interrogatório, contra-interrogatório, instâncias e esclarecimentos complementares.

Ora, no que toca ao depoimento da testemunha R... (1º e 3º episódios), certo é que a certa altura a testemunha referiu que o arguido se debruçou sobre o vidro da porta traseira do veículo e nas fotos de fls. 12 aquele aparece debruçado sobre o vidro da porta dianteira.

No entanto, como observa a decisão recorrida, em asserção não rebatida, tal só por si, não serve para descredibilizar o depoimento, correspondendo as fotos a “instantâneos” relativos a um comportamento, prolongado, em que num momento posterior veio a debruçar-se no vidro da porta traseira.

E não há dúvida que a testemunha - ouvida por duas vezes (na sala e na reconstituição), repetiu a mesma coisa, nos precisos termos que o tribunal recorrido veio a decidir.

Radicando ainda a decisão na articulação desse depoimento com o auto de fls. 9 e verso, a reconstituição efectuada em audiência e o teor de fls. 11 e 12.

O mesmo se diga relativamente ao depoimento de Q... (2º episódio), do qual o recorrente retira excertos de anterior depoimento, obliterando o prestado em audiência, que confere suporte objectivo e racional à apreciação efectuada pelo tribunal recorrido. Além do auto da reconstituição bem como o ter de fls. 14, 14 –v, 15, 42 e 43, tudo complementado pelo depoimento do agente da PSP T...

No que toca ao 4º episódio, além de não especificados meios concretos de prova que contrariem pontos específicos da matéria dada como provada, não é posta em causa a motivação probatória em que repousa – depoimento da testemunha I... e informação de serviço de fls. 29.

Não foi violado o princípio in dubio pro reo porquanto não se mostra, minimamente, que a decisão recorrida, entre duas ou mais perspectivas probatórias plausíveis tenha aceitado aquela que é desfavorável ao arguido.

Com relevo em matéria de facto relativa ao crime de pornografia [invocando simultaneamente, com o mesmo fundamento, o vício de erro notório (cfr. conclusão 16) e direito (conclusões 14 e 15)] alega “que as fotografias e negativos apreendidos, que se encontram no Apenso IV, não têm nada de incriminatório” – cfr. motivação a fls. 1344, verso, in fine.

Ora, se é certo que do Apenso IV não constam fotografias com conteúdo sexual ou de conotação sexual, não é menos certo que o Apenso V, que o recorrente também se refere na motivação do recurso.

Com efeito, na sequência das buscas efectuadas à casa do arguido foi-lhe apreendido um computador, mais tarde sujeito a exame pericial do qual resultou a existência de múltiplos ficheiros de imagem.

Constando do aludido Volume V a impressão de múltiplas imagens de crianças do sexo masculino, nuas, em poses eróticas e pornográficas. Entre eles oitenta e nove ficheiros de imagem com extensão JPG contendo, imagens de crianças do sexo masculino, nuas e em poses de exibição dos órgãos sexuais – veja-se, fls. 6,7,8,10,11,12,65, por mais relevantes, por conterem, cada uma, 60 fotografias diferentes, todas elas com crianças do sexo masculino, nuas, ou exibindo os órgãos sexuais. Além das restantes páginas reproduzindo centenas de fotografias de menores nus e ou em poses de exibicionismo dos órgãos sexuais

Por outro lado, embora questionando-se como foram lá parar as fotografias, não invoca qualquer fundamento probatório que pudesse por em causa a apreensão do computador e o exame pericial subsequente ou a reprodução, subsequente dos mesmos consubstanciada nas imagens que constam do aludido Apenso.

A decisão recorrida tem pois apoio exuberante, não questionado, sequer, relativamente aos conteúdos das fotografias, nas aludidas impressões.

**

4. Qualificação jurídica

4.1. Pressupostos dos crimes

Com fundamentos imbricados com os do recurso da matéria de facto nos termos a que já fez referência, questiona o recorrente a qualificação jurídica da matéria provada – preenchimento dos elementos dos tipos de crime imputados

Nos termos o art. 171.º, n.º 1 do Código Penal, pratica o crime de abuso sexual de crianças “Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos”.

A interpretação do sentido do tipo apenas se satisfaz mediante uma perspectivação teleológica do âmbito de aplicação dos seus elementos típicos normativos, no respeito do “padrão de adequação social” da respectiva conduta, apurando se o facto submetido a juízo satisfaz o “limiar mínimo” de ofensa do bem jurídico tutelado pela norma, verificando se, em concreto, se mostra preenchida a ofensividade abstracta do bem jurídico suposta no tipo de crime. Num juízo de causalidade adequada sobre a ofensa, pela conduta, do quadro abstracto suposto pela norma, perspectivada no seu enquadramento histórico e na sua inserção sistemática na unidade da ordem jurídica e na confluência dos princípios superiores de natureza constitucional.

A solução terá de se alcançar por uma via que aponta para a “descoberta” (hoc sensu a ”criação”) de uma solução justa do caso concreto e simultaneamente adequada ao (ou comportável pelo) sistema jurídico-penal. O que supõe a “penetração axiológica” do problema jurídico-penal, a qual tem que ser feita por apelo ou com referência teleológica a finalidades valorativas e ordenadoras de natureza político-criminal, numa palavra, a valorações político-criminais imanentes ao sistema. – cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 27.

O bem jurídico tutelado incide na protecção da sexualidade durante a infância e começo da adolescência e na preservação de um adequado desenvolvimento sexual nestas fases de crescimento. Só mediatamente se pode dizer que se protege a liberdade e autodeterminação sexual até porque naquelas idades a capacidade de avaliação e autodeterminação está ainda em fase de formação e desenvolvimento, sofrendo, em tal caso, traumas irreparáveis nesse processo.

O conceito de “acto sexual de relevo” não constava da versão originária do Código Penal – que consagrava antes (cfr. o então artigo 205º) o conceito de “atentado ao pudor”.

Conceito definido como “um acto que viola, em levado grau, os sentimentos gerais da moralidade sexual”.

Na perspectiva de erradicar dos crimes de natureza sexual qualquer conceito com conotação de dogmatismo moral, tido por arcaico, os crime de natureza sexual passaram a ser erigidos exclusivamente sobre os valores da liberdade e da dignidade humana, na vertente da liberdade de auto-determinação.

O Capítulo V do C. Penal prevê agora, precisamente, os “crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual”. O que, quando estão em causa menores, cujo desenvolvimento físico, intelectual e moral está em fase de formação, equivale ao direito ao desenvolvimento são e sem constrangimentos da sua personalidade, aqui na vertente da sexualidade.

Devendo partir-se da perspectiva objectiva, importa atender à multiplicidade de formas que a sexualidade pode revelar, ao enquadramento cultural / modo de vivência da sexualidade nesta fase de crescimento dos ofendidos, analisando todas as circunstâncias do caso e / ou conhecidas do agente, numa perspectiva de adequação do caso concreto ao juízo valorativo suposto no tipo de crime. Para concluir não só sobre a objectividade da ofensa do bem jurídico tutelado, atingindo do patamar de dignidade penal, da representação do agente e do efeito do acto sobre a vítima, no sentido de apurar se o acto foi conotado sexualmente e como ofensivo dos bens jurídicos tutelados.

A acção, além da sua conotação sexual (acto sexual) deverá ser suficientemente relevante (de relevo) para ofender o livre desenvolvimento sexual da criança

As considerações relativas ao antecedente histórico permitem estabelecer, desde logo, que não se trata de “acto sexual” estricto sensu. Aliás, quando é o caso, o legislador, di-lo com clareza utilizando termos como cópula, coito, introdução, masturbação, constantes dos múltiplos tipos legais de crimes inseridos no mesmo capítulo.

Na busca do sentido do tipo (acto sexual de relevo) surge assim como relevante:

- o antecedente histórico, atentado ao pudor;

- como argumento sistemático, por contraposição, os restantes conceitos mais restritivos utilizados pelo legislador na definição dos múltiplos tipos de crime previstos no mesmo Capítulo V.

- o apelo à teoria da causalidade adequada – que preside á construção de todo o tipo de crimes, conforme consagrado no art. 10º: “acção adequada” a produzir o resultado típico.

Ora, no caso, como matéria susceptível de integrar actos sexuais de relevo, são identificados na decisão recorrida quatro episódios dos quais resulta, como síntese mais relevante:

Do episódio 1:

“No dia 25-07-2008, cerca das 14h e 45m, o arguido dirigiu-se para o centro comercial w(...) (…)“de forma repetida e continuada, quanto ao B..., acariciou as costas, passando a sua mão no sentido descendente e ascendente até ao pescoço, a cabeça e as coxas, deslocando a extremidade dos dedos da mão para o interior das mesmas

Do episódio 2:

“No dia 11-08-2008, cerca das 13h e 50m, o arguido encontrava-se no estacionamento existente entre a entrada do prédio onde residia (…) no banco traseiro o menor B.... Durante cerca de uma hora, enquanto a criança estava sentada no meio dos bancos da frente do veiculo, com uma perna esticada para a frente em cima da consola central do mesmo, e a outra para trás, e parcialmente virado na direcção do arguido, este acariciou o corpo da referida criança, designadamente no pescoço, nos braços e nas pernas, dava-lhe beijos no pescoço e metia a mão do menor no interior da sua camisa, ao nível do peito e com ela ia acariciando-se”.

Do episódio 3:

“No dia 13-08-2008, C... conduziu o veículo de marca e modelo Fiat 55, de matrícula (...)FT, pertencente ao arguido, até à Rua (...), levando no banco traseiro o seu filho B... (…) imobilizou o aludido veículo junto do prédio onde residia o arguido e aguardou a chegada deste (…) o arguido introduziu ali parte do seu corpo, através de uma janela da porta traseira, tendo assim ficado, durante cerca de 10 minutos a acariciar o corpo de B... no peito e na parte inferior do tronco

Do episódio 4:

“No dia 29-08-2008, cerca das 19h, o arguido entrou hipermercado w(...) o arguido (…) manteve-se junto de B..., abraçando-o, acariciando-lhe o corpo, fazendo-lhe festas no rosto, agarrando-o pela cintura, ou puxando-lhe o corpo contra o dele (…) O

Arguido permaneceu no interior do centro comercial, acompanhado de B..., a observar as montras de algumas lojas, enquanto abraçava a criança e lhe acariciava o corpo”.

Por outro lado, ficou provado que o arguido, ao praticar os aludidos factos, agiu “com o propósito reiterado e concretizado de satisfazer as suas intenções libidinosas (…) sabendo que tais crianças tinham idades inferiores a 14 anos, designadamente com B..., o qual sujeitava à prática de tais actos – beijando-o no pescoço, acariciando-lhe e apalpando-lhe as coxas - sabendo que se tratava de uma criança com apenas 11 anos de idade (…) sabia que a sua conduta, atentava de forma significativa, contra a liberdade e autodeterminação sexual de B..., pondo em risco o seu livre desenvolvimento físico e psíquico e o livre desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual”.

Dos aludidos 4 episódios - únicos tidos por relevantes para a caracterização dos pressupostos do crime – ainda que não constem factos de natureza estritamente sexual, tem-se como certo que traduzem actos com relevo sexual, vistos no seu enquadramento concreto, na perspectiva das crianças envolvidas e dos elementos conhecidos pelo agente. Pois que se trata de actos conotados sexualmente – além do mais apalpamentos na parte interior das coxas, beijos, passagem da mão da criança no corpo do arguido por dentro da roupa numa postura que somente pode ser de excitação sexual – tanto mais quando praticados por um adulto, para com uma criança estranha ao meio familiar e afectivo do arguido, em locais públicos.

Conclui-se assim que a matéria provada preenche os elementos do tipo de crime em análise.

*

O crime de pornografia de menores é tipificado pelo art. 176º do Código Penal nos seguintes termos:

1 - Quem:

a) Utilizar menor em espectáculo pornográfico ou o aliciar para esse fim;

b) Utilizar menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte, ou o aliciar para esse fim;

c) Produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título ou por qualquer meio, os materiais previstos na alínea anterior;

d) Adquirir ou detiver materiais previstos na alínea b) com o propósito de os distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos.

2 - Quem praticar os actos descritos no número anterior profissionalmente ou com intenção lucrativa é punido com pena de prisão de um a oito anos.

3 - Quem praticar os actos descritos nas alíneas c) e d) do n.º 1 utilizando material pornográfico com representação realista de menor é punido com pena de prisão até dois anos.

4 - Quem adquirir ou detiver os materiais previstos na alínea b) do n.º 1 é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa.

Nas alíneas a), b) estão previstas a utilização de menor em espectáculo pornográfico, em fotografia, filme ou gravação pornográficos ou o “aliciamento” para esses fins.

Na alínea c) a produção, distribuição, importação, exportação, mera divulgação oi exibição daqueles espectáculos, fotografias, filmes ou gravações.

Na alínea d) a sua mera aquisição ou detenção com propósito de distribui-los ou cedê-los, por qualquer forma,

O nº 2 agrava aqueles tipos de condutas, quanto assumam carácter de actuação profissional ou com finalidade lucrativa.

O nº 3 pune com uma pena mais suave a mera utilização de material pornográfico com representação realista de menores.

Por fim o nº 4 pune com pena de prisão até um ano, ou multa, meros actos de aquisição ou detenção “dos materiais previstos na alínea b)”. Ou seja a mera detenção de “fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte” produzidos com menores ou o “o aliciamento de menor para esse fim”.

È assim claro, em face do referido n.º4 (no qual foi integrada pela decisão recorrida a conduta do arguido) que ali se integra a mera detenção – mesmo sem fim ou intenção de divulgação perante terceiros - de fotografias, filmes ou gravações de conteúdo pornográfico em que haja representação de menores.

Ora, como se adiantou em sede de reapreciação da prova, na sequência das buscas efectuadas à casa do arguido foi-lhe apreendido um computador, mais tarde sujeito a exame pericial do qual resultou a existência de múltiplos ficheiros de imagem contendo imagens de crianças do sexo masculino, nuas, em poses eróticas e pornográficas.

Entre eles oitenta e nove ficheiros de imagem com extensão JPG contendo, imagens de crianças do sexo masculino, nuas e em poses de exibição dos órgãos sexuais - haja em vista, a impressão, das fotografias que enchem o volume V em apenso.

Tanto basta para que aquele deva ser responsabilizado por este tipo de crime – nº4 do preceito - pelo qual vem condenado.

*

4.2. Pena

Neste âmbito, alega o recorrente que “o erro mais flagrante da sentença é uma desproporção entre o alegado crime e a pena imposta. Não se provou coito oral ou introdução anal (…), importunação sexual (…), exibição de filmes ou material impresso pornográficos, ou até mesmo conversas pornográficas (…), muito menos coacção (…) ou importunação”.

Invocando ainda a “injustificável severidade” da pena aplicada e que “ainda que viesse a ser aplicada uma pena de prisão, impunha-se que esta tivesse sido suspensa na sua execução (…) não se encontra nada nos autos que indique que o Recorrente seja um predador compulsivo”.

A moldura abstracta da pena aplicável ao crime de acto sexual de relevo é de prisão de 1 a 8 anos de prisão.

E a aplicável ao crime de detenção de pornografia de menores é de prisão até um ano ou multa.

O art. 71º do CP estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve fazer-se “em função da culpa do agente e das exigência de prevenção”. Critério que é precisado depois no nº2, que estabelece: na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele.

As circunstância a ter em conta são exemplificadas (“nomeadamente”) nas várias alíneas do citado nº2. Reconduzindo-se a três grupos ou núcleos fundamentais: factores relativos à execução do facto {alíneas a), b) e c) – grau de ilicitude do facto, modo de execução, grau de violação dos deveres impostos ao agente, intensidade da culpa, sentimentos manifestados e fins determinantes da conduta}; factores relativos à personalidade do agente {alíneas d) e f) – condições pessoais do agente e sua condição económica, falta de preparação para manter uma conduta lícita manifestada no facto}; e factores relativos à conduta do agente anterior e posterior a facto {alínea e)}.

O modo como estes princípios regulativos irão influir no processo de determinação do quantum da pena é determinado ainda pelo programa político-criminal em matéria dos fins das penas, que se reconduz a dois princípios, enunciados no art. 40º do C. Penal (redacção introduzida pela Reforma de 95): 1 A aplicação da pena... visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. 2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Disposição que consagra o entendimento mais recente do Prof. Figueiredo Dias sobre os fins das penas (cfr. Liberdade, Culpa e Direito Penal, Coimbra editora, 2ª ed., e Direito Penal Português, As Consequência Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, p. 227, este tendo já por referência o projecto que veio a ser plasmado no art. 40º da redacção actual do Código Penal): “A justificação da pena arranca da função do direito penal de protecção dos bens jurídicos; mas esta função de exterioridade encontra-se institucionalmente limitada pela exigência de culpa e, assim, por uma função de retribuição como ressarcimento do dano social causado pelo crime e restabelecimento da paz jurídica violada; o que por sua vez implica a execução da pena com sentido ressocializador – só assim podendo esperar-se uma capaz protecção dos bens jurídicos”.

A prevenção geral, no Estado de Direito, por se apoiar no consenso dos cidadãos, traduz as convicções jurídicas fundamentais da colectividade, e coloca assim a pena ao serviço desse sentimento jurídico comum; isto significa que ela não pode ser aplicada apenas para intimidar os potenciais delinquentes mas que, acima de tudo, deve dar satisfação às exigências da consciência jurídica geral, estabilizando as suas expectativas na validade da norma violada. Subordinada a função intimidatória da pena a esta sua outra função socialmente integradora, já se vê que a pena preventiva (geral) nunca poderá ser pura intimidação mas, sim, intimidação limitada ao necessário para restabelecer a confiança geral na ordem jurídica ou, por outras palavras, intimidação conforme ao sentimento jurídico comum.

Os princípios jurídico-penais da lesividade ou ofensividade, da indispensabilidade da tutela penal, da fragmentaridade, subsidiariedade e da proporcionalidade, quer os próprios mecanismos da democracia e os princípios essenciais do Estado de direito são garantias de que, enquanto de direito, social e democrático, o Estado não poderá chegar ao ponto de fazer da pena uma arma que, colocada ao serviço exclusivo da eficácia, pela eficácia, do sistema penal.

Sendo a prevenção geral positiva a finalidade primordial da pena mas, por outro lado nunca esta pode ultrapassar a medida da culpa, dentro da moldura penal aplicável ao caso concreto (“moldura de prevenção”) a pena concreta há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente. Entre os dois limites encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social.

No caso, numa moldura abstracta de 1 a 8 anos de prisão, a decisão recorrida aplicou, em concreto, 4 anos de prisão, pelo crime de acto sexual de relevo.

E pelo crime de detenção de pornografia de menores, numa moldura de prisão até um ano, aplicou, em concreto, um ano de prisão - limite máximo da moldura abstracta.

Como fundamento determinante das penas concretas aplicadas, refere a sentença recorrida:

Ora, no caso concreto dos autos cumpre desde logo por em evidencia que toda a conduta do arguido demonstrada nos autos se amolda com facilidade ao perfil do criminoso sexual junto aos autos na fase de inquérito, em termos de ser possível estabelecer com alguma facilidade uma correspondência entre muito do que ali se diz e a conduta do arguido.

Por outro lado, este tipo de crime são crime de “pulsão” e os seus autores agem movidos por impulsos que eles próprios não conseguem identificar e gerir completamente em termos de desenvolverem mecanismos de compensação que os leve a controlar-se a e evitar novo cometimento do crime. São autênticos predadores, que observam as suas vítimas, traçam um plano de acção e executam-nos de forma metódica e cautelosa até chegaram àquelas de forma insidiosa. Ora, todas estas características estão presentes na conduta do arguido. Por forma a conseguir satisfazer os seus instintos libidinosos, o arguido despojou-se de todos os seus bens, ficou literalmente na miséria, vivendo do auxilio de familiares e, mesmo quando já tudo isso assim era, aquele continuava a procurar proporcionar aos menores e aos seus familiares contrapartidas económicas que lhe permitissem chegar até as suas vitimas. Por outro lado, a pulsão criminosa do arguido era tal que aquele já nem se coibia de praticar os seus actos de forma publica e notória, à vista de toda a gente, fosse na rua, fosse num hipermercado, fosse num estacionamento, tudo em plena luz do dia”.

Daqui resulta que o grau de ilicitude e de culpa suposto pelas penas concretas arbitradas, repousa em duas premissas:

- “perfil do criminoso sexual junto aos autos na fase de inquérito”; e

– “por forma a conseguir (…) despojou-se de todos os seus bens”.

Ora, no que toca à primeira premissa (“perfil de criminoso sexual junto aos autos na inquérito”) verifica-se que, embora junto aos autos na fase de inquérito o aludido perfil (cfr. fls. 371-381) verifica-se que o mesmo tinha por fundamento a matéria de facto indiciada na fase de inquérito preliminar – matéria que foi levada à acusação.

No entanto, a dimensão da actuação do arguido, emergente da fase de inquérito preliminar (com base em aturada vigilância policial ao arguido, ao longo de meses) descrita na acusação, não resultou provada em audiência – cfr. matéria dada como não provada pela decisão recorrida ao longo das alíneas a) a iii), em especial as alíneas a) a i).

Por outro lado, além de se reportar a uma actuação que emergia indiciariamente dos autos naquela fase preliminar mas que não obteve comprovação em audiência, o arguido não foi sequer acusado “formalmente” pelo aludido “perfil” – nenhum ponto da acusação (que define o objecto do âmbito de vinculação temática do tribunal).

Assim, atenta da natureza do direito penal – do facto – e o princípio da presunção de inocência do arguido, com assento constitucional, não pode o arguido ser sancionado pela dimensão da factualidade suposta na acusação mas que não logrou provar-se em julgamento nem por um eventual perfil psicológico não manifestado nos actos pelos quais foi acusado, apurados após audiência pública de discussão e julgamento. E, como se viu no âmbito da qualificação jurídica da matéria provada, apenas se provaram os 4 episódios referenciados como suporte do crime da prática de acto sexual de relevo e a detenção de ficheiros informáticos no computador pessoal do arguido contendo fotografias de menores em poses pornográficas como suporte do segundo crime.

Por outro lado, no que toca à segunda premissa (por forma a conseguir (…) despojou-se de todos os seus bens) verifica-se que a matéria como provada não estabelece - nem permite estabelecer - qualquer relação de causalidade entre os actos de cariz sexual dados como provados e o “despojou-se de todos os seus bens”. Pelo contrário, aquele aludido “despojamento de todos os seus bens” tem pressuposta, mais uma vez, aquela dimensão (indiciária, do inquérito preliminar) que não resultou provada em audiência.

As penas concretas aplicadas pelo acórdão recorrido apresentam-se, pois, na economia da decisão recorrida como tendo por fundamento uma dimensão ou grau de ilicitude da conduta do recorrente (da fase de inquérito preliminar) que a matéria de facto provada, não suporta. Aliás, em caso de mera dúvida fundada entre a relação entre despojamento dos bens e o crime, o tribunal teria que aceitar a perspectiva mais favorável ao arguido (presunção de inocência/in dubio pro reo) como suporte da culpabilidade daquele.

A medida concreta das penas aplicadas supõe a montanha erigida na fase de inquérito preliminar (que apontava para uma espécie de predador compulsivo de largo espectro) a qual não obteve comprovação em julgamento. Tendo, ao invés, ficado reduzida aos referenciados 4 episódios subsumidos ao crime de acto sexual de relevo e à manutenção no computador de ficheiros com fotografias de menores em poses de exibição sexual.

Assim, mostrando-se afastadas a duas enunciados premissas, importa daí retirar consequências a nível da definição das penas a aplicar em concreto. Dando-se por reproduzidos, em tudo o mais, por não rebatidos, os fundamentos da decisão recorrida.

Tudo ponderado, atentos os demais fundamentos, não rebatidos, da decisão recorrida, têm-se por proporcionadas e ajustadas ao grau de ilicitude e de culpa e às finalidades da pena, as seguintes penas:

- pelo crime de abuso sexual de crianças, na forma continuada, a pena de três anos de prisão;

- pelo crime de detenção de pornografia de menores a pena de 8 (oito) meses de prisão.

Tendo em vista o disposto no artigo 77º, nº1 do C. Penal, importa proceder ao cúmulo jurídico das penas “considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

O critério do n.º1 teve em conta, no dizer de Figueiredo Dias (Direito Penal, Consequências Jurídicas do Crime, p. 291) “a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no 1º caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente – exigências de prevenção especial de integração”.

No caso, tendo em vista os factos no seu conjunto e a personalidade que neles se revela, vista ainda a relação existente entre os dois crimes (em ambos os casos está em causa o livre desenvolvimento sexual de crianças), vistos ainda os demais fundamentos não rebatidos da decisão recorrida, entende-se ajustada, em cúmulo, a pena unitária de 3 anos e 6 meses de prisão.

*

4.3. Reclama o recorrente a suspensão da execução da prisão

Nos termos do art. 50º, n.º1 do C. Penal “O tribunal suspende a execução da pena de prisão não superior a 5 anos de prisão (redacção introduzida pela Lei 59/2007 de 04.09) se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Obrigando assim à formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no futuro, e sobre se a suspensão realiza, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, tendo em vista a personalidade do agente, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime, as circunstâncias do crime, tudo em função da matéria de facto provada no caso concreto.

Na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose favorável ao agente, baseada num risco prudencial. A suspensão da pena funciona como um instituto em que se une o juízo de desvalor ético-social contido na sentença penal com o apelo, fortalecido pela ameaça de executar no futuro a pena, à vontade do condenado em se reintegrar na sociedade. O tribunal deve estar disposto a assumir um risco prudente; mas se existem sérias dúvidas sobre a capacidade do condenado para compreender a oportunidade de ressocialização que se oferece, a prognose deve ser negativa, o que supõe, de facto, um in dubio contra reo” – cfr. Jeschek, Tratado de Direito Penal, Parte Geral, 2º vol., p. 1152, ed. espanhola.

Sendo certo que o juízo de prognose não deve assentar necessariamente numa «certeza», bastando uma «expectativa» fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição e, consequentemente, a ressocialização em liberdade do arguido – cfr. Ac. STJ de 08.07.1998, CJ/STJ, tomo II/98, p. 237.

Como salientou o AC. do STJ de 25 de Junho de 2003, Col. Jur. Acs do STJ , ano XXI, tomo II, 2003, p. 221, “Na suspensão da execução da pena (de prisão) não são as considerações sobre a culpa do agente que devem ser tomadas em conta, mas antes juízos prognósticos sobre o desempenho da sua personalidade perante as condições da sua vida, o seu comportamento e bem assim as circunstâncias de facto, que permitam ao julgador fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas”.

Ora, no caso, nada permite concluir que esteja em causa um acto isolado que traduza, de alguma forma, uma situação de excepção na vida do recorrente. Pelo contrário, a pluralidade de ocorrências, a relação da detenção de pornografia de menores com o crime – continuado – de acto sexual de relevo com menores, evidenciam uma personalidade muito deformada, perante o livre desenvolvimento da sexualidade de menores, com assinalável tendência para práticas desviantes no âmbito do mesmo bem jurídico violado.

A própria circunstância de os actos que integram o crime de acto sexual de relevo, além de múltiplos, terem decorrido em espaços abertos ao público, evidencia a forma ostensiva como foram postos em causa os bens jurídicos e a desdenhado o sentido da proibição ínsita nas normas violadas.

Assim, atenta a multiplicidade de actos relativos ao crime de acto sexual de relvo, a sua prática em locais públicos, a quantidade de pornografia infantil detida pelo arguido, a relação entre ambos os crime, a natureza dos crimes (contra crianças), a perspectiva intransigente da sociedade contra este tipo de crimes que põem em causa crianças, o bem mais precioso de qualquer sociedade, tanto mais num Estado de Direito Democrático, entende-se que a suspensão não satisfaria o patamar mínimo de necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contra-fáctica das expectativas comunitárias, enfim de prevenção geral quer na vertente positiva quer na vertente negativa.

Por outro lado, em termos de juízo de prognose sobre o comportamento futuro do arguido, apesar da ausência de antecedentes criminais, a personalidade revelada nos factos não permite qualquer conclusão no sentido de que a mera ameaça da execução da pena seja adequada a prevenir a prática de novos factos da mesma natureza, pelo arguido. Pelo contrário, a tendência da personalidade do recorrente (cfr. designadamente os pontos 1 a 5 da matéria provada) aponta no sentido de que a suspensão seria sentida como não sancionamento, além de manifestamente inadequada para afastar aquela tendência.

Aliás, o arguido não revelou qualquer postura de censura do facto que legitime a construção de uma expectativa minimamente fundada de que interiorizou o sentido da proibição, e que, por isso, a ameaça da pena seja suficiente para satisfazer as finalidades preventivas especiais da pena.

Conclui-se assim pela insubsistência de fundamentos para a reclamada suspensão.

***

*

III. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se:

1. Julgar parcialmente procedente o recurso – procedência restrita à medida das penas aplicadas - condenando o arguido, A...:

- pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, na forma continuada, p. p. pelos artigos 30º, nº 2 e 171º, nº1 do CP, na pena de 3 (três) anos de prisão; e ---

- pela prática de um crime de detenção de fotografias pornográficas de menores, p. p. pelo art. 176º, nº4, com referência ao nºs 1, al. b) do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão. ---

2. Efectuando o cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão. ---

Sem tributação (decaimento parcial).

Belmiro Andrade (Relator)

Abílio Ramalho