Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
61/21.9T9CLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: CRIME DE FALSIDADE DE TESTEMUNHO
PERÍCIA
INTERPRETAÇÃO OU TRADUÇÃO
REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO POR PARTE DO ASSISTENTE
DIREITO DE DEFESA DO ARGUIDO
Data do Acordão: 05/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 32.º, N.º 1 E 5, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGO 283.º, N.º 3, ALÍNEAS B) E C), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ARTIGO 360.º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I – A realização da justiça, enquanto função do Estado, é o bem jurídico tutelado pelo crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução.

II – São elementos constitutivos do crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução,

quanto ao tipo objectivo:

- que o agente, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, i) na qualidade de testemunha preste depoimento falso, ii) na qualidade de perito, apresente relatório falso, iii) na qualidade de técnico, dê informações falsas, ou, iv) na qualidade de tradutor ou intérprete, faça traduções falsas;

- que o agente, sem justa causa, recuse depoimento ou recuse apresentar relatório, informação ou tradução;

quanto ao tipo subjectivo:

- o dolo – o conhecimento e vontade de praticar o facto -, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer uma das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal.

III – Este é um crime específico, porque o agente tem que ter uma determinada qualidade processual; de perigo abstracto, pelo que não é necessário que a declaração falsa afecte a descoberta da verdade, ou seja, o fundamento do ilícito é logo a própria declaração falsa; e de mera actividade, pois o tipo preenche-se com a mera execução da conduta.

IV – No que respeita ao tipo objectivo, o elemento comum às diferentes modalidades da acção é a falsidade da declaração, entendendo-se por declaração toda a comunicação feita por uma pessoa com base no seu conhecimento, quer sobre factos exteriores, quer sobre factos interiores ou subjectivos, que pode revestir a forma oral, a forma escrita e, mesmo, linguagem gestual.

V – Existe falsidade da declaração, na concepção objectiva de falsidade que se sufraga, quando existe desconformidade entre o declarado e a realidade ou verdade histórica.

VI – O dolo, que se traduz no conhecimento e vontade de praticar o facto objectivo, com consciência da sua censurabilidade, integra o elemento cognitivo ou intelectual, que deve abranger a totalidade dos elementos que constituem o tipo objectivo, da factualidade típica, e um elemento volitivo, integrando a decisão de realizar a conduta típica e o respectivo resultado, nos casos em que este é pressuposto da realização do tipo respectivo, como sucede nos crimes de resultado, nisto se traduzindo o dolo do tipo.

VII – O dolo da culpa, pressupondo a verificação do dolo do tipo, resulta da comprovação de uma atitude interna do agente de indiferença perante o bem jurídico violado, não obstante a sua representação, deste modo sobrepondo a satisfação do seu interesse ao desvalor do ilícito, daqui resultando que o agente, para além de agir com dolo do tipo, actua também com consciência da ilicitude da conduta e, portanto, com consciência da sua censurabilidade. 

VIII – A viabilidade processual do requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente depende de o mesmo conter a narração dos factos preenchedores do tipo objectivo do crime imputado, bem como a narração dos factos preenchedores do tipo subjectivo, portanto do dolo do mesmo crime.

IX – Dado que o RAI deve consubstanciar uma acusação alternativa à omitida pelo Ministério Público, deste modo definindo o objecto do processo e a vinculação temática da instrução, sem prejuízo do disposto no art. 303º do C. Processo Penal, e no final desta, em caso se despacho de pronúncia, o objecto do processo para a fase do julgamento, o pleno exercício do direito de defesa do arguido e o efectivo exercício do contraditório, constitucionalmente garantidos pelo art. 32º, nºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, só se mostrarão verdadeiramente realizados quando a narração factual definidora do objecto do processo se mostre feita com referência ao tipo de ilícito imputado, de forma precisa, clara, rigorosa e completa.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO



No processo nº 61/21.... que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo de Instrução Criminal de Leiria – Juiz ..., em que é assistente, AA, a Digna Magistrada do Ministério Público proferiu, em 31 de Janeiro de 2022, despacho de arquivamento relativamente aos factos objecto da queixa apresentada pela assistente contra a denunciada BB [com fundamento, relativamente à prática de crimes, p. e p. pelos arts. 360º e 361º do C. Penal, em não resultar dos autos que os relatórios elaborados pela denunciada, qualificados pela assistente como contendo inveracidades, contenham uma desconformidade dolosa quanto aos factos neles relatados, pois que tais inveracidades deverão, antes, ser estabelecidas no âmbito do processo de promoção e protecção que corre termos no Juízo de Família e Menores ..., relativo à filha da assistente, e não antes, no momento da sua elaboração e entrega às técnicas da segurança social].

A assistente requereu a abertura da instrução, pretendendo que, a final, fosse proferido despacho de pronúncia da denunciada, pela prática de dois crimes falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução agravados, p. e p. pelos arts. 360º, nº 1 e 361º, nºs 1, b) e 2 do C. Penal.

Por despacho de 31 de Janeiro de 2023, a Mma. Juíza de instrução proferiu despacho de rejeição do requerimento para abertura da instrução por inadmissibilidade legal desta fase do processo.


*

            Inconformada com a decisão, recorreu a assistente, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

               a) O presente recurso, vem interposto do douto despacho que indeferiu o requerimento de abertura de instrução, com o fundamento de este não ter a estrutura de uma acusação. Posição essa, com a qual a Assistente não pode concordar.

b) Para melhor compreensão, far-se-á um pequeno resumo da situação que deu origem aos presentes autos.

c) Em 26 de Junho de 2020, a Recorrente deu entrada no Centro Hospital do Oeste, em ..., já se encontrando em trabalho de parto, tendo a filha da Recorrente nascido naquele mesmo dia.

d) Desde o momento que a Recorrente deu entrada naquele centro hospitalar que as coisas correram mal. Tendo havido desde a data do internamento até à data da alta diversas situações que consubstanciam crime. Sendo que, relativamente ao que se passou dentro do hospital encontra-se a correr o respectivo processo crime, pelo que nos absteremos de descrever as várias situações ali sucedidas e que não estão em discussão nos presentes autos.

e) Devido às falsas informações que foram transmitidas pelos médicos, enfermeiras e Assistentes Sociais do referido hospital, foi instaurado pelo Ministério Público um processo de promoção e protecção nº 802/20.... do Juízo de Família e Menores ..., comarca de Leiria, a favor da filha da Recorrente, tendo sido decidido a medida cautelar de institucionalização da referida menor.

f) No âmbito desse processo foi designada como gestora do Processo a Denunciada BB, que no âmbito das suas funções a Denunciada foi incumbida pelo tribunal de realizar relatórios e, é nas informações que transmitiu ao tribunal de 1ª Instancia onde se encontrava o processo de promoção e protecção que a Denunciada comete, por escolha sua, salvo melhor opinião, os actos que constituem crime.

g) Senão vejamos, no relatório por esta elaborado em 20/07/2020, a Denunciada vem afirmar que no momento em que a menor ia ser entregue na Instituição em ..., se instalou um clima de grande confusão e que teve de ser chamada a PSP.

h) Acontece que, a Denunciada não podia afirmar essa situação, em primeiro porque esta nem sequer estava presente, uma vez que tinha ficado em ... e, em segundo por essa informação é falso, tal como consta do relatório da PSP ..., junto aos autos, não houve nenhuma confusão. Mas mesmo sabendo que essa informação era falsa, decidiu transmiti-la no relatório enviado ao tribunal.

i) No mesmo relatório, a Denunciada afirma que a Recorrente, entre o dia 06/07/2020 (data do acolhimento da menor) e 13/07/2020 (data mencionada pela Denunciada), não efectuou qualquer contacto com a instituição onde a menor se encontrava, CAR de ... para onde a menor tinha sido transferida, o que é completamente falso, já que a Recorrente esteve sempre em contacto com a instituição, conforme consta dos documentos juntos aos autos. Da mesma forma a família da Recorrente e da menor também estiveram sempre em contacto com a instituição. Contactos esses, efectuados por telefone e, assim que permitidos pelo Covid-19, pessoalmente.

j) Mas, mesmo sabendo desse facto, a Denunciada escolheu e transmitiu a informação contrária ao tribunal.

k) Também nesse relatório, a Denunciada escreveu que no dia 06/07/2020, durante a viagem de ... a ..., no carro onde seguia a Denunciada, a Recorrente com a filha e uma outra Assistente Social, a Recorrente nunca estabeleceu qualquer contacto com a bebé. O que, além de ser falso, era impossível a Denunciada ter visto, uma vez que seguia no banco na frente da recorrente e nunca olhou para trás.

l) Relativamente a este facto vem a Denunciada vem dizer que foi a sua percepção. Acontece que, quando transmitiu por escrito essa informação ao tribunal, não o fez como sendo uma percepção, mas sim como um facto comprovado e, deu essa informação sabendo que a mesma não correspondia à verdade dos factos.

m) Ao transmitir todas as informações supra referidas, da forma que o transmitiu, a Denunciada tinha perfeito conhecimento que iria transmitir uma imagem negativa da Recorrente e, em consequência iria prejudicar a Recorrente no processo de promoção e protecção. Mesmo assim, não se inibiu de o fazer.

n) Como se não bastasse o que a Denunciada escreveu no primeiro relatório, no relatório de 09/10/2020, esta voltou a escrever e transmitir informações que não correspondem à verdade, nomeadamente, que a Recorrente teria concordado num primeiro momento com a sua institucionalização, algo que nunca correspondeu à verdade, uma vez que, a Recorrente sempre disse que nunca iria para uma instituição e nem concordava que a sua filha o fosse. Nem sequer existe qualquer documento ou depoimento da Recorrente que diga o contrário. Situação que a Denunciada tinha perfeito conhecimento, mas mesmo sabendo da oposição da Recorrente a essa hipótese, não se inibiu de transmitir essa informação falsa no seu relatório.

o) Por último, a Denunciada tomou conhecimento da opinião da directora da CAR de ..., que era de que a menor devia ser entregue à família, com alguma supervisão, mas devia ser entregue à família. Entendimento este, que a Directora da CAR transmitiu pessoalmente à Denunciada e, esta decidiu omitir essa informação e, nem sequer fazer menção do mesmo no seu relatório e, transmitido ao tribunal a sua opinião de que a menor devia continuar institucionalizada. O que a Denunciada não pensou, foi que a Directora da CAR transmitisse por escrito esse entendimento ao tribunal, mencionando que o tinha transmitido à Denunciada.

p) Verifica-se que a Denunciada, decidiu incluíram informação completamente falsa, o que fez sabendo perfeitamente de que essa informação não correspondia à verdade.

q) Todos os factos descritos integram a prática do crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução agravado previstos e punidos pelos artigos 360º nº 1 e 361º nº 1 al. b) e nº 2 do Código Penal e, que são imputáveis à Denunciada.

r) Apesar de todos os factos e provas juntas aos autos, a Digníssima Procuradora resolveu arquivar o processo, e como a Recorrente não se podia conformar com a decisão, deduziu e deu entrada no requerimento de abertura de instrução e, requerendo como consequência que fosse proferido despacho de pronúncia contra as Arguidas.

s) Tendo sido agora surpreendida com a douta decisão da Meritíssima Magistrada do Juízo de Instrução Criminal de Leiria em que indefere liminarmente o requerimento de instrução deduzido pela Recorrente com o fundamento de este não cumprir os requisitos legais. Decisão com a qual a Recorrente não se pode conformar e da qual vem recorrer.

t) Ora vejamos e analisemos os requisitos necessários cumprir no requerimento de abertura de instrução e que se encontram estipulados no artigo 287º nº 2 e nº 3 do 283º do C. Penal e supra descritos. Ora se analisarmos o caso concreto, verifica-se que o requerimento de abertura de instrução deduzido pela Recorrente, salvo melhor opinião, cumpre todos os requisitos exigidos por lei, como a seguir se explicará.

u) O primeiro requisito que o requerimento de abertura de instrução deve cumprir diz respeito à identificação dos Arguidos, ora no requerimento de abertura de instrução deduzido pela Recorrente consta os elementos de identificação da Denunciada, nomeadamente o nome e profissão, sendo que as restantes informações constam dos autos. Pelo que, salvo melhor opinião, este requisito encontra-se preenchido. Não sendo por falta deste requisito que poderia ser indeferido o requerimento de abertura de instrução deduzido pela Recorrente.

v) O segundo requisito, e provavelmente o mais importante, é fazer constar do requerimento de instrução a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

w) Ora no caso concreto, verifica-se que também este se encontra preenchido, ou seja, como se pode ver do supra exposto, onde constam os factos para melhor compreensão, consta do requerimento de instrução a narração de todos os factos que foram praticados pela Denunciada e que levaram a Recorrente a apresentar queixa nos órgãos judiciais.

x) Factos esses que se encontram identificados, localizados no tempo e no espaço. Isto porque, no referido requerimento de abertura de instrução verifica-se que os factos aconteceram durante o período em que a Denunciada foi gestora do processo de promoção e protecção, nomeadamente nos relatórios por esta elaborados em 20/07/2020 e 09/10/2020, logo estão localizadas temporalmente. Já quanto à localização espacial vemos que os factos praticados pela Denunciada e, foram-no nos referidos relatórios, ou seja quando a Denunciada quis e escreveu situações e factos que sabia não corresponderem à realidade e os entregou no processo de promoção e protecção. Sendo que, salvo melhor opinião, também a localização no espaço está preenchida.

y) Outro ponto deste requisito, é a ligação dos factos ao arguido que os praticou e a sua motivação. Ora no caso concreto, e salvo melhor opinião, também essa parte daquele requisito se encontra preenchida, já que consta do referido requerimento de instrução quais os factos que foram praticados pela Denunciada, ou seja, consta do requerimento de abertura de instrução, objectivamente quais os factos que a Recorrente entende que foram praticados pela Denunciada e que consubstanciam a pratica do crime denunciado.

z) Ou será, que se pode escrever em relatórios sociais, informações que se sabe que são falsos e transmiti-los de forma a convencer terceiros de que são verdade. Já que foi isso que aconteceu, isto porque a Denunciada transmitiu factos, que sabia serem falsos e completamente distorcidos da verdade, no processo de promoção e protecção que correu no Juízo de Família e Menores ..., e fê-lo de forma a convencer o tribunal de que eram verdadeiros.

aa) Resumindo, a Denunciada transmitiu ao tribunal competente pelo processo de promoção e protecção os supra descritos factos falsos, que tinha perfeito conhecimento não serem verdadeiros ou reais.

ab) Quanto à motivação, a real apenas a Denunciada poderá dizer, mas verifica-se que tudo o que foi feito pela Denunciada foi-o feito com a intenção conseguida de denegrir a imagem da Recorrente e, de manter a menor institucionalizada longe da mãe, aqui Recorrente. Tendo agido com consciência de que estava a violar a lei ao transmitir factos que sabia serem completamente falsos, logo agiu com dolo. Encontrando-se preenchidos todos os requisitos, tanto objectivos como subjectivos do crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução agravado. Pelo que, salvo melhor opinião, este requisito legal também se encontra preenchido na íntegra.

ac) Também, do requerimento de abertura de instrução deduzido pela Recorrente, consta todas as disposições legais que esta entende serem aplicáveis ao caso concreto e relativamente a cada situação, que são nomeadamente, e salvo melhor opinião, os crimes de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução agravado previstos e punidos pelos artigos 360º nº 1 e 361º nº 1 al. b) e nº 2 do Código Penal.

ad) tendo terminado o requerimento de abertura de instrução, pugnado pela condenação da Denunciada e requerendo que fosse proferido despacho de pronuncia da Denunciada. Logo, e salvo melhor opinião, também este requisito se encontra preenchido.

               ae) Relativamente ao requisito da prova, salvo melhor opinião, também o mesmo se encontra cumprido, ou seja quanto à prova documental a mesma remete para a prova existente nos autos, já que não havia necessidade de requer a junção aos autos de documentos repetidos. Também o requisito da prova testemunhal foi cumprido, já que foi requerido a inquirição de uma testemunha.

               af) Relativamente aos outros requisitos os mesmos não se aplicam ao caso concreto.

               ag) Vem o Meritíssimo Juiz de Instrução, dizer que não são alegados factos que integrem o disposto do artigo 360º nº 1 e 361º nº 1 al. b) do C. Penal, posição com a qual a Recorrente não pode concordar, isto porque de acordo com o referido artigo 360º nº 1 do Código Penal, cujos os requisitos se encontram supra descritos, no requerimento de abertura de instrução constam factos, supra descritos, praticados pela Denunciada na qualidade de técnica da Segurança Social, que foram por esta escritos nos seus relatórios que foram entregues em tribunal, e que esta tinha conhecimento serem falsos. Sendo que, tinha perfeito conhecimento que ao faze-lo iria prejudicar a Recorrente e, mesmo assim, não se coibiu de o fazer.

               ah) Já relativamente ao artigo 361º nº 1 al. b) do Código Penal onde consta os requisitos da agravação do crime, e salvo melhor opinião, no requerimento de abertura de instrução constam factos que comprovam essa agravação, nomeadamente, que no caso concreto, fica claro que com a pratica dos supra referidos factos por parte da Denunciada, esta destruiu as relações sociais da Recorrente, prejudicando-a, nomeadamente no âmbito do processo de promoção e protecção, ao denegrir a sua imagem dando como facto provado que a Recorrente não se interessava pela menor e que não devia ser boa mãe.

               ai) Mas, mesmo que se entenda que não foram alegados factos suficiente para a agravação, o que só por mera hipótese se concebe, foram alegados factos que obrigavam a uma acusação pelo artigo 360º nº 1 do Código Penal.

               aj) Face a todo o exposto e, contrariamente à posição do Meritíssimo Juiz de Instrução e, salvo melhor opinião, o requerimento de abertura de instrução preenche todos os requisitos exigidos por lei.

               ak) Já que, do mesmo consta as identificações da Denunciada, os factos imputáveis a esta, estando descrito os factos que constituem os crimes por esta praticado, factos esses que estão localizados tanto no tempo como no espaço, indicando a motivação, bem como as disposições legais que se entendem ter sido violadas com os comportamento da Denunciada, já que esta agiu com a consciência das suas atitudes e das consequências das mesmas.

               al) Logo, encontra-se balizado o objecto do processo que deverá ser tido em conta em fase de julgamento, caso aí chegasse.

               am) Pelo que, e salvo melhor opinião, o requerimento de abertura de instrução cumpre todos os requisitos legais e por isso deveria ter sido admitido e a fase de instrução ter-se iniciado, com produção de prova requerida e com a realização do debate instrutório, e consequentemente proferido despacho de pronuncia.

               an) Sendo que, deve o douto despacho de indeferimento do requerimento instrutório ser revogado e substituído por outro que admita o requerimento de instrução e dê seguimento ao processo.

Assim, se fará Justiça.


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            O recurso foi admitido.

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            Respondeu a recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

               1º – Sendo a instrução requerida pelo Assistente, como sucede no caso em análise, é aplicável ao respetivo requerimento, por força da parte final do n.°2 do artigo 287.°, o disposto no artigo 283.°, n.°3, alíneas a) e b), ambos do CPP, o que significa que o mesmo terá de conter, sob pena de nulidade: “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e “As indicações tendentes à identificação do arguido”.

2º – No requerimento de abertura de instrução deduzido nos autos deparamos com a omissão relativa à narração dos elementos subjetivos respeitantes aos crimes concretos.

3º – Assim sendo, não se mostrando cumpridos todos os requisitos previstos nos artigos supramencionados, enferma aquele de nulidade, a qual não é uma nulidade meramente formal, mas afeta a própria instrução, e, portanto, seria sempre inexequível e legalmente inadmissível. 

4º – Tal requerimento não é suscetível de aperfeiçoamento, não podendo o juiz suprir as omissões como a que se verifica no caso concreto, e que consubstancia uma nulidade. Admitir o anómalo aperfeiçoamento da acusação ou do requerimento da abertura de instrução, constituiria uma violação do princípio do acusatório, ao ver a entidade julgadora a ter funções de investigação antes do julgamento, o que o atual C.P.P. não pretende. 

5º – Pelo exposto, não se verificando a violação de qualquer preceito legal, nomeadamente os mencionados, entendemos que deverá o presente recurso ser julgado improcedente. 

Porém, decidindo, V. Exas. farão a costumada Justiça.


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            Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.


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            Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente – que, para além da sua extensão, repetem, em alíneas, praticamente, todos os parágrafos do corpo da motivação, e que, por isso, dificilmente cumprirão o papel que a norma supra referida lhes atribui [não se tendo feito uso da faculdade prevista na segunda parte do nº 3 do art. 417º do C. Processo Penal, por ser evidente a questão submetida ao conhecimento da Relação] – a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se o requerimento para abertura da instrução apresentado, observou, ou não, o disposto no nº 2 do art. 287º do C. Processo Penal, designadamente, se contém, ou não, a narração fáctica preenchedora do tipo subjectivo dos crimes nele imputados à denunciada e, sendo negativa a resposta, qual a respectiva consequência.


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Para a resolução da questão enunciada, importa ter presente o teor da decisão instrutória recorrida [na parte relevante], que é o seguinte:

“ (…).

II – Requerimento apresentado para a abertura de instrução.

Veio a assistente requerer a abertura de instrução visando a pronúncia de BB pela prática de dois crimes de Falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução agravados, p. e p. pelo artigo 360º, nº. 1 e 361º, nº. 1, al. b) e nº. 2 do Código Penal.

Impõe-se, pois, apreciar e decidir se o requerimento apresentado pela assistente para a abertura de instrução cumpre os requisitos exigidos para ser admitido nos autos.

De acordo com o disposto no artigo 286º, nº. 1 do Código do Processo Penal “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.

De acordo com o disposto no artigo 287º do Código de Processo Penal:

1 – A abertura de instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:

a) (…)

b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente aos factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

De acordo com o disposto no artigo 287º, nº. 2 do Código de Processo Penal, o requerimento para abertura da instrução “não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda, aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e d) (...)”.

Dispõe a alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal que “a acusação contém, sob pena de nulidade a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.

Sendo que de acordo com a al. d) do artigo 283º, nº. 3 do Código de Processo penal a acusação contém, sob pena de nulidade “A indicação das disposições legais aplicáveis.”.

Do cotejo dos preceitos legais citados resulta que o requerimento da abertura de instrução apresentado pela assistente tem de conter a indicação dos factos que fundamentam a sujeição do arguido a julgamento, assim como a indicação das disposições legais aplicáveis.

Deve assim ser semelhante a uma acusação pública, por força da remissão operada pelo art. 287.º, n.º 2 para o art. 283.º, n.º 3, alíneas b) e d), ambos do Código de Processo Penal.

Importa referir que abstendo-se o Ministério Público de acusar, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente terá de conter uma verdadeira acusação, para possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório, bem como a elaboração da decisão instrutória.

Compreende-se tal exigência já que, não havendo acusação pública, cabe ao assistente no requerimento de abertura da instrução delimitar os factos que serão objecto de apreciação em sede de instrução.

Desta delimitação do objecto do processo resulta o estabelecido nos art. 303º, nº. 3 e 4 e artigo 309º, nº. 1, ambos do C.P.P., que proíbe a pronúncia do arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para a abertura de instrução, assim como os factos que representem uma alteração não substancial dos alegados nesse requerimento só podem ser atendidos caso seja observado o mecanismo processual previsto no nº. 1 desse art. 303º.

Os factos que não constem do requerimento apresentado para a abertura de instrução não podem ser considerados pelo juiz de instrução na decisão a proferir.

Ora a referência ao elemento subjectivo constitui um elemento indispensável ao preenchimento dos elementos típicos do crime p. e p. pelo artigo 360º, nº. 1 e 361º, nº. 1, al. b) e nº. 2 do Código Penal.

A este respeito importa ter ainda em consideração o Acórdão nº. 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 20.11.2014 e publicado no DR, I, série de 27.01.2015, o qual uniformizou jurisprudência nos seguintes termos “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358º do CPP”.

Ora como já se deixou exposto na instrução, requerida pelo assistente, na sequência de uma decisão de arquivamento, o requerimento apresentado para esse efeito pelo assistente constitui uma acusação alternativa.

Os factos alegados pela assistente não se afiguram suficientes para se poder considerar que o requerimento apresentado contém uma narração ainda que sintética e precisa dos factos constitutivos do crime.

Quanto ao tipo subjectivo o crime em causa é um crime doloso.

O dolo, como conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal.

Note-se que não se exige um qualquer elemento subjectivo específico, uma intenção de atentar contra a justiça, de beneficiar ou prejudicar uma das partes, apenas o dolo genérico sob qualquer das suas modalidades, nos termos atrás referidos.

No caso concreto a assistente apenas refere que a denunciada preferiu transmitir informações distorcidas da verdade, podendo concluir-se que por alguma razão que a assistente desconhece a mesma actuou com a intenção de prejudicar a mesma, agindo de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a conduta era proibida por lei.

Num crime doloso da acusação tem de constar quanto ao elemento volitivo a descrição do que efetivamente foi querido pelo agente e que coincida com os elementos objectivos do crime.

Da análise do requerimento apresentado para a abertura de instrução, resulta que por referência ao relatório elaborado e datado de 20.07.2020, a assistente refere nos factos 9º a 14º que a situação a que aí faz menção foi transmitida erradamente pela denunciada e que a mesma sabia que lida em juízo iria criar a convicção errada sobre os intervenientes no processo de promoção e protecção.

 No facto 15º a 19º a mesma refere outra situação, mencionando que a informação distorcida da realidade prestada pela denunciada iria prejudicar a ofendida.

 No facto 20º a 25º a assistente faz menção a outra situação que a denunciada fez constar no relatório que elaborou com base na percepção que a mesma teve dessa situação. A assistente insurge-se contra o facto de a mesma ter prestado uma informação com base numa percepção que a mesma não poderia ter tido, sendo que a informação prestada iria prejudicar a ofendida aos olhos dos responsáveis pela PPP.

 No facto 26º a 29º a assistente menciona algumas omissões no relatório elaborado pela denunciada.

 Relativamente ao relatório elaborado em 09.10.2020 a assistente refere no facto 33º que no mesmo foram transmitidas informações que não correspondem à verdade.

 Refere que nesse relatório se fez constar que a assistente concordou com a institucionalização, o que não corresponde à verdade, pois a mesma nunca concordou com a institucionalização, quer sua, quer da sua filha, facto que era conhecido da denunciada.

 A assistente refere ainda que a denunciada omitiu informação juridicamente relevante dada pela técnica do CAT da St.ª Casa da Misericórdia das ..., Dr.ª CC.

 A assistente em jeito de conclusão menciona que as percepções da denunciada são sempre no sentido de prejudicar a ofendida, quanto a factos que a mesma poderia apurar e não apurou, preferindo transmitir informações distorcidas da verdade.

 A assistente não alega no requerimento de instrução factos que integrem o disposto no artigo 361º, nº. 1 al. b) e nº. 2 do CP.

 O artigo 361.º do CP prevê a agravação das penas previstas no 360.º do CP se do facto resultar demissão de lugar, perda de posição profissional ou destruição das relações familiares ou sociais de outra pessoa (al. b)), sendo que no nº. 2 do referido preceito legal se consigna que se das condutas descritas no artigo 360.º resultar privação da liberdade de uma pessoa, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

A falsidade de declaração a que se refere o artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal corresponde à desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida (a sua ciência), independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja ela, não se exigindo, pois, que a verdade histórica objectiva tenha de ser apurada (e deva, para tanto, constar da acusação).

Ora no caso concreto e face ao alegado no RAI resulta que a assistente se insurge contra imprecisões e omissões que na sua opinião afectam os relatórios elaborados pela denunciada, as quais resultam de informações prestadas por terceiros ou da percepção da pessoa que elaborou o relatório.

Refere a assistente que a denunciada deveria ter confirmado alguns factos antes de os fazer constar nos relatórios.

Por outro lado, a assistente refere que a denunciada fez constar factos errados pois de acordo com o alegado pela assistente os mesmos não correspondem ao que sucedeu e nem traduzem o que era a sua vontade, a qual era conhecida da denunciada.

No entanto entende-se que a forma como a assistente descreve a factualidade a mesma não traduz que a denunciada tenha actuado com dolo.

O que resulta é que o teor dos factos referidos traduzem o que foi a percepção da denunciada.

O nº. 3 do artigo 287º do Código de Processo Penal estabelece que o requerimento para a abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Na inadmissibilidade legal da instrução insere-se o requerimento apresentado para a abertura de instrução apresentado pelo assistente e que não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos imputados ao arguido e pelos quais se pretende que o mesmo seja pronunciado.

Face à omissão mencionada e no que concerne ao elemento subjectivo necessário à verificação do crime, não se pode considerar válido o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, já que não respeita o disposto no art.º 283º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal, aqui aplicável por remissão do n.º 2 do art.º 287º do mesmo diploma legal.

Assim sendo, rejeita-se por inadmissibilidade legal o requerimento apresentado pela assistente para a abertura de instrução (art. 287º, nº. 3 do CPP).

(…).

            Releva, igualmente, para o conhecimento da questão sub judice, o teor do requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente, e que é, na parte em que agora importa, o seguinte:

            “(…).

               ABERTURA DE INSTRUÇÃO:

3º Em Junho de 2020, a Ofendida deu à luz a sua filha DD no Hospital de ...,

4º Devido a uma sinalização, baseada em factos falsos, que já se encontram em investigação, foi aberto um processo de promoção e protecção à menor que deu origem ao processo 802/20.... no J... do Juízo de Família e Menores ..., comarca de Leiria.

5º No âmbito desse processo, a Denunciada foi designada como gestora do processo, tendo elaborado o relatório datado de 20/07/2020 e,

6º É no teor desse relatório que se verifica que foram dadas informações que não correspondem à verdade ou não são totalmente correctos.

7º Vem a Denunciada dizer em declarações prestadas à Digníssima Procuradora. que elaborou o relatório com base em percepções,

8º Acontece que, alguns dos factos que não foram transcritos correctamente. são factos que podiam ser confirmados e, o que a Denunciada não fez, conforme melhor se explicará.

9º No douto relatório elaborado pela Denunciada, esta afirma que em frente da instituição de ... instalou-se um clima de grande confusão e instabilidade, pelo que foi necessário solicitar a intervenção da PSP.

10º Algo que esta não pode afirmar com toda a certeza porque a Denunciada não se encontrava presente, tendo deixado de acompanhar a Ofendida em ..., como esta muito bem afirmou no seu depoimento.

11º Tendo afirmado que pôs no relatório o que a colega lhe transmitiu, o que fez sem qualquer confirmação,

12º Quando facilmente poderia ter confirmado com a PSP, que esteve presente no local.

13º E, conforme auto elaborado por essa força policial, já junto aos autos, a situação não aconteceu como a Denunciada descreveu no relatório.

14º Sendo que, a Denunciada optou por transmitiu no seu relatório informação totalmente errada e, que muito bem sabia que quando fosse lida em juízo iria criar uma convicção errada sobre os intervenientes no processo de promoção e protecção.

15º Outra situação que também foi transmitida propositadamente de forma errada, foi o facto de a Denunciada ter dito que desde o dia .../.../2020 (data do acolhimento da menor) até ao dia 13/07/2020 (data referida pela Denunciada) a Denunciante e respectiva família não ter contactado a instituição,

16º Facto que, não corresponde à verdade, já que a Ofendida desde o primeiro dia esteve em contacto com a instituição, quer por telefone, conforme comprovativos juntos aos autos, quer presencialmente, assim que lhe foi permitido pela própria instituição,

17º Vindo agora a Denunciada alegar que a informação lhe foi dada pela directora da instituição,

18º O que a Ofendida não acredita ser verdade, já que a directora da instituição terá conhecimento destas comunicações e deslocações da Ofendida à instituição, uma vez que esteve em contacto com a família desde o inicio.

19º Mas. mais uma vez a Denunciada optou por colocar informação destorcida da realidade e, que sabia ir prejudicar a Ofendida.

20º Alega também a Denunciada no seu relatório, que a Ofendida na deslocação de ... até ..., já que não fez o restante percurso, que a Ofendida não estabeleceu contacto visual com a bebé, vindo agora alegar que foi a percepção que teve,

21º Informação que esta não pode afirmar, uma vez que a Denunciada ia no banco da frente do carro onde se deslocavam e não ia constantemente a olhar para trás para verificar isso,

22º Como se pode ter uma percepção sem observar,

23º Como se põe afirmar, com base numa suposta percepção, algo que não se observou?

24º Pelo que, não tinha de colocar essa percepção no relatório.

25º O que fez, sabendo que com essa informação iria prejudicar a Ofendida aos olhos dos responsáveis pela PPP.

26º Tendo ainda nesse relatório, omitido diversas informações referente ao percurso escolar da Ofendida,

27º Sendo que, no inicio do relatório no ponto designado por "FONTES E METODOLOGIAS" que houve "Contato Telefónico com a Escola Técnica e Profissional do Oeste a 13/07/2020",

28º Mas depois, resolveu ignorar esse contacto e omitir o que lhe foi transmitido,

29º Podemos perguntar, porque era, na opinião da Denunciada, relevante uma escola e não outra?

30º Após a emissão deste relatório, a Ofendida procedeu ao contraditório, o qual foi notificado à Denunciada para se pronunciar,

31º Sendo que, a Denunciada não se deu ao trabalho de confirmar as informações que prestou ao tribunal, optando por mantê-las inalteradas, sabendo muito bem que as mesmas não correspondiam à verdade e realidade dos factos e,

32º Com isso prejudicava a Ofendida.

33º Em relação ao descrito pela Denunciada no seu relatório de 09/10/2020, relativamente à institucionalização, verifica-se que também neste foram transmitidas informações que não correspondem na verdade.

34º No seu relatório a Denunciada afirma que a Ofendida, num primeiro momento, concordou com a sua institucionalização,

35º Algo que não corresponde à verdade, já que a Ofendida sempre afirmou a toda a gente com quem falou, que queria regressar a casa na companhia da filha,

36º Nunca em momento algum esta concordou com qualquer tipo de institucionalização, quer sua quer da sua filha.

37º Facto que a Denunciada muito bem sabia, já que a Ofendida nunca o escondeu.

38º Até porque, como a Ofendida, tal como esta própria testemunhou, quando saiu do hospital acompanhada das Assistentes Sociais, estava convicta que estas a iriam levar a casa conjuntamente com a sua bebé.

39º Facto que a Denunciada muito bem sabe, mas não a se coibiu de colocar no relatório uma versão dos factos completamente distorcida da realidade.

40º Em 12/10/2020, foi enviado ao Processo de Promoção e Protecção uma resposta da Drª CC, Directora do CAR onde a menor se encontrava acolhida (fls. 269 dos autos nº 802/20.... do Juízo de Família e Menores ...), onde transmite e se transcreve:

"Ainda assim, considerando as deficientes condições de visitas, as inexistentes condições para proporcionar visitas diárias, e a recusa da AA em seguir com a filha para casa abrigo, esta equipa vem propor. tal como já fez junto da Srª Gestora do processo, tendo em conta a postura cuidadora da avó materna. observada em contexto de visita e, acreditando que os processos de a averiguação de paternidade não traga qualquer alteração no percurso e projecto de vida da bebé, a alteração da medida para "apoio junto de outro familiar" na pessoa da avó materna, sugerindo ainda, caso tal alteração seja bem aceite pelo tribunal, a supervisão dos cuidados prestados à DD, através dos serviços de saúde e da frequência de uma creche (assim que tenha idade para tal). permitindo que a bebé esteja coma família."

41º Pelo que, a Directora Técnica do CAR, transmitiu à Denunciada a concordância com a alteração da medida aplicada naquele processo.

42º Informação que a Denunciada deliberadamente omitiu, com a intenção de prejudicar a Ofendida e manter a menor institucionalizada.

43º Por último, vem a Denunciada dizer que limitou-se a referir a sua percepção dos factos,

44º Acontece que, ao analisarmos os actos praticados por esta verifica-se que as percepções da Denunciada são sempre no sentido de prejudicar a Ofendida e quanto a factos que facilmente esta poderia apurar a realidade dos factos, esta não o fez,

45º Preferindo transmitir informações completamente distorcidas da verdade.

46º Podendo-se concluir que, por alguma razão que a Ofendida desconhece, o fez com intenção de prejudicar a Ofendida.

47º Sendo que a Denunciada agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

48º Pelo que, se encontram preenchidos todos os requisitos do crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução agravado previstos e punidos pelos artigos 360º nº 1 e 361º nº 1 al. b) e nº 2 do Código Penal.

49º Face ao exposto deverá ser proferido despacho de pronúncia e a Denunciada julgada pelos dois crimes que cometeu.

TERMOS EM QUE MAIS REQUERER A V. EX" QUE SE DIGNE ADMITIR O PRESENTE REQUERIMENTO DE INSTRUÇÃO E, EM CONSEQUÊNCIA PROFERIDO DESPACHO DE PRONÚNCIA CONTRA A DENUNCIADA PELA PRATICA DO DOIS CRIMES DE FALSIDADE DE TESTEMUNHO, PERÍCIA, INTERPRETAÇÃO OU TRADUÇÃO AGRAVADO, PREVISTOS E PUNIDOS NOS TERMOS DOS ARTIGOS 360º Nº 1 E 361º Nº 1 AL. B) E Nº 2 DO CÓDIGO PENAL.

(…)”.


*

*

*


Do cumprimento pela assistente e ora recorrente, do disposto no nº 2 do art. 287º do C. Processo Penal, no requerimento para abertura da instrução, no que respeita à narração de factos preenchedores do tipo subjectivo dos crimes de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, ali imputados

1. Alega a recorrente – além de outras, conclusões q), s) a af) e aj) e ak) – que os factos por si descritos no requerimento para abertura da instrução integram o crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, agravado, p. e p. pelos arts. 360º, nº 1 e 361, nºs 1, b) e 2 do C. Penal, que cumpriu, em tal requerimento, todos os requisitos legais exigidos pelos arts. 287º, nº 2 e 283º, nº 3, b) e c) do C. Processo Penal, pois identificou a arguida, localizou no espaço e no tempo os factos que a esta imputou, ou seja, que a mesma, no relatório de 20 de Julho de 2020 e de 9 de Outubro de 2020, por si elaborados, no âmbito do identificado processo de promoção e protecção relativo à sua [da recorrente] filha, deles fez constar informações que sabia serem falsas, de forma a convencer o tribunal de que eram verdadeiras, com intenção de denegrir a sua imagem e de manter a menor institucionalizada e afastada da mãe, tendo, pois, agido dolosamente, indicou as disposições aplicáveis e a prova relevada.

Vimos já que a Mma. Juíza a quo rejeitou a abertura da instrução com fundamento na sua inadmissibilidade legal por falta de narração, no respectivo requerimento, dos factos preenchedores do tipo subjectivo do tipo dos crimes nele a assistente imputa à denunciada.

Sendo este, portanto, o objecto do recurso, não obstante a recorrente tenha alargado a sua argumentação a outros aspectos, apenas nos iremos debruçar sobre esta, eventual, desconformidade entre a matéria de facto descrita no requerimento para abertura da instrução e as exigências impostas pelas disposições conjugadas dos arts. 287º, nº 2 e 283º, nº 3, b) do C. Processo Penal.

Dito isto.

2. Enquanto fase intermédia, e facultativa, do processo penal na sua forma comum, a instrução tem por finalidade exclusiva, nos termos do disposto no nº 1 do art. 286º do C. Processo Penal, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Esta tarefa de corroboração das provas produzidas no inquérito e na própria instrução visa concluir, a final, pela existência, ou não, da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, conclusão esta a ser formalmente explicitada na decisão instrutória, de pronúncia ou de não pronúncia, como decorre do nº 1 do art. 308º do mesmo código, ao dispor que, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

Nos autos, a instrução requerida pela assistente visava a comprovação judicial do despacho de arquivamento do Ministério Público relativamente aos factos objecto da participação de fls. 2 a 9, onde foi visada a denunciada. Porém, uma vez que a decisão em crise rejeitou a sua abertura, com os indicados fundamentos, o presente recurso não tem por objecto verificação da suficiência ou insuficiência dos indícios existentes, mas antes questão que lhe é prévia, qual seja, a de saber se a imprescindível – porque exigida, sob pena de nulidade, pelo art. 283º, nº 3, b) do C. Processo Penal – narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, consta do requerimento apresentado pela assistente, mais concretamente, saber se dele consta a descrição factual dos elementos constitutivos do tipo subjectivo, do dolo, portanto, do crime imputado à denunciada.

Pois bem.

3. No requerimento para abertura da instrução que formalizou, imputa a assistente à denunciada a prática de dois crimes de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, na forma agravada, p. e p. pelos arts. 360º, nº 1 e 361º, nº 1, al. b), do C. Penal.

Tendo a realização da justiça enquanto função do Estado, como bem jurídico tutelado, são elementos constitutivos do tipo deste crime:

[Tipo objectivo]

- Que o agente, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, i) na qualidade de testemunha preste depoimento falso, ii) na qualidade de perito, apresente relatório falso, iii) na qualidade de técnico, dê informações falsas, ou, iv) na qualidade de tradutor ou intérprete, faça traduções falsas;

- Que o agente, sem justa causa, recuse depoimento ou recuse apresentar relatório, informação ou tradução;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade (em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal).

Trata-se de um crime específico, pois o agente tem que ter uma determinada qualidade processual, de perigo abstracto, não sendo, pois, necessário que a declaração falsa afecte a descoberta da verdade, ou seja, o fundamento do ilícito é logo a própria declaração falsa (Medina de Seiça, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, 2001, Coimbra Editora, pág. 462), e de mera actividade, pois o tipo preenche-se com a mera execução da conduta.

No que respeita ao tipo objectivo, o elemento comum às diferentes modalidades da acção é a falsidade da declaração.

Por declaração deve entender-se toda a comunicação feita por uma pessoa com base no seu conhecimento, quer sobre factos exteriores, quer sobre factos interiores ou subjectivos, que pode revestir a forma oral, a forma escrita e mesmo, linguagem gestual (cfr. aut. e op. cit., pág. 465 e seguintes).

Por outro lado, existe falsidade da declaração – sufragando-se a concepção objectiva de falsidade – quando existe desconformidade entre o declarado e a realidade ou verdade histórica (cfr. Medina de Seiça, op. cit., pág. 475 e seguintes e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª edição actualizada, 2015, Universidade Católica Editora, pág. 1130).

No que respeita ao tipo subjectivo, já sabemos que estamos perante um crime doloso, que admite qualquer espécie de dolo para o seu preenchimento.

Também já vimos que o dolo se traduz no conhecimento e vontade de praticar o facto objectivo, com consciência da sua censurabilidade.

Temos, assim, um elemento cognitivo ou intelectual, que deve abranger a totalidade dos elementos que constituem o tipo objectivo, da factualidade típica, portanto, e um elemento volitivo, integrando a decisão de realizar a conduta típica e o respectivo resultado, nos casos em que este é pressuposto da realização do tipo respectivo [como sucede nos crimes de resultado, o que não é o caso do crime em análise], nisto se traduzindo o dolo do tipo.

Já o dolo da culpa, pressupondo a verificação do dolo do tipo, resulta da comprovação de uma atitude interna do agente de indiferença perante o bem jurídico violado, não obstante a sua representação, deste modo sobrepondo a satisfação do seu interesse ao desvalor do ilícito (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 374 e seguintes e 529 e seguintes).Deste modo, o agente, para além de agir com dolo do tipo, actua também com consciência da ilicitude da conduta e, portanto, com consciência da sua censurabilidade. 

Considerando o que acabamos de dizer, temos por inquestionável que a viabilidade processual do requerimento para abertura da instrução, apresentado pela assistente, depende de o mesmo conter a narração dos factos, in casu, preenchedores do tipo objectivo do crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, bem como a narração dos factos preenchedores do tipo subjectivo portanto, do dolo do mesmo crime, uma e outra [narração], com o sentido supra exposto.

E porque tal requerimento deve consubstanciar uma acusação alternativa à omitida pelo Ministério Público, deste modo definindo o objecto do processo e a vinculação temática da instrução [sem prejuízo, como é óbvio, do disposto no art. 303º do C. Processo Penal] e, no final desta, em caso se despacho de pronúncia, o objecto do processo para a fase do julgamento (arts. 308º e 309º do C. Processo Penal), o pleno exercício do direito de defesa do arguido e o efectivo exercício do contraditório, constitucionalmente garantidos pelo art. 32º, nºs 1 e 5 da Lei Fundamental, só se mostrarão verdadeiramente realizados quando a narração factual definidora do objecto do processo se mostre feita, com referência ao tipo de ilícito imputado, de forma precisa, clara, rigorosa e completa. Com efeito, sem uma precisa descrição fáctica da matéria imputada ao arguido no requerimento para abertura da instrução não haveria vinculação temática do juiz de instrução, nem consequentemente estariam asseguradas as garantias de defesa do arguido (Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Setembro de 2019, processo nº 47/17.8YGLSB.S1, in www.dgsi.pt).

 Vejamos, então.

4. Não estando o requerimento para abertura da instrução sujeito a formalidades especiais, a circunstância de o mesmo dever conter, quando apresentado pelo assistente, os elementos previstos nas alíneas b) e c) do nº 3 do art. 283º do C. Processo Penal, exige especiais conhecimentos jurídico-penais a quem o redigiu, assim se justificando, além de outras razões, que o assistente tenha que estar representado por advogado (art. 70º, nº 1 do C. Processo Penal).

Lido o requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente, há que reconhecer que o mesmo, ressalvado sempre o respeito devido, apresenta uma estrutura em que se misturam considerações críticas relativas à omissão de acusação pelo Ministério Público, apreciações relativas à indiciação probatória e narrativa de factos de forma pouco clara.

Em todo o caso, e no que à narração de factos concerne, a assistente imputa à denunciada, em síntese, a seguinte factualidade:

i) Em Junho de 2020, a assistente foi mãe da menor DD, nascida no Hospital das ... [art. 3º];

ii) Devido a sinalização efectuada, foi instaurado o processo de promoção e protecção nº 802/20.... do Juízo de Família e Menores ..., Comarca de Leiria [art. 4º];

iii) Neste processo de promoção e protecção, a denunciada BB, tendo sido designada gestora do processo, elaborou um relatório datado de 20 de Julho de 2020 [art. 5º];

iv) No dito relatório a denunciada afirmou que em frente da instituição de ... se instalou um clima de grande confusão e instabilidade, determinando a intervenção da PSP, o que não pode saber com certeza, pois não se encontrava presente, e não confirmou o sucedido junto daquela polícia, sendo certo que aquele clima não aconteceu [arts. 9º a 13º]; tendo a denunciada optado por fazer constar do relatório uma informação errada, sabendo que quando fosse lida em juízo, iria criar uma convicção errada sobre os intervenientes do processo de promoção e protecção [art. 14º];

v) No mesmo relatório, a denunciada afirmou, de forma propositadamente errada e que sabia prejudicar a assistente, que desde a data do acolhimento da menor – 6 de Julho de 2020 – e até ao dia 13 de Julho de 2020, a assistente e respectiva família não contactaram a instituição, afirmação que não tem correspondência com a realidade, pois desde o primeiro dia que esteve em contacto com a instituição, quer por telefone, quer presencialmente, quando lhe foi permitido [arts. 15º, 16º e 19º];

vi) Também no mesmo relatório, a denunciada afirmou que a assistente, na deslocação entre as ... e ..., não estabeleceu contacto visual com a sua filha DD, quando não o podia fazer, pois ia sentada no banco da frente da viatura e não ia sempre a olhar para trás, verificando essa falta de contacto, colocando essa sua percepção no relatório, sabendo que a ia [à assistente] prejudicar aos olhos dos responsáveis pelo processo de promoção e protecção [arts. 20º, 21º e 25º];

vii) Ainda no mesmo relatório, relativamente ao percurso escolar da assistente, a denunciada referiu a existência de um contacto telefónico com a Escola Técnica e Profissional do Oeste, em 13 de Julho de 2020, mas depois, omitiu o que lhe foi transmitido nesse contacto [arts. 27º e 28º];

viii) Num outro relatório, datado de 9 de Outubro de 2020, a denunciada afirmou que, num primeiro momento, a assistente concordou com a sua institucionalização, afirmação esta que não tem correspondência com a realidade, pois que sempre disse, a todas as pessoas com quem falou, que queria regressar a casa na companhia da filha, não tendo, em momento algum, concordado quer com a sua institucionalização, quer com a institucionalização da sua filha, o que a denunciada sabia, não se coibindo de colocar no relatório  uma versão dos factos distorcida da realidade [arts. 34º a 37º e 39º];

ix) Em 12 de Outubro de 2020, a Directora Técnica da Casa de Acolhimento Residencial onde se encontrava a menor DD sugeriu, no processo de promoção e protecção, bem como, junto da denunciada, na qualidade de gestora do processo, a alteração da medida decretada para a de apoio junto de outro familiar, na pessoa da avó materna, com supervisão dos cuidados prestados à menor através dos serviços de saúde e da frequência de uma creche, logo que recomendável, permitindo que a menor esteja com a família, sugestão esta que a denunciada omitiu, com intenção de prejudicar a assistente e de manter a menor institucionalizada [arts. 40º a 42º];

x) Por alguma razão que a assistente desconhece, a denunciada preferiu transmitir informações completamente distorcidas da verdade, com intenção de a prejudicar [arts. 45º e 46º];

xii) A denunciada agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal [art. 47º]. 

Como se vê, a assistente imputa à denunciada, diferentes acções/omissões, todas tendo lugar no âmbito de um processo de promoção e protecção, no qual esta detinha a qualidade processual de gestora do processo, portanto, e para efeitos de tipicidade, a qualidade de técnica (cfr. art. 82º-A da Lei nº 147/99, de 1 de Setembro), umas, consistentes em afirmações levadas a um relatório de 20 de Julho de 2020 e a uma omissão de informação no mesmo relatório [pontos iv) a vii)], outra, consistente em afirmação levada a um relatório de  9 de Outubro de 2020 [ponto viii)], e outra ainda, consistente numa omissão de informação, não referida a qualquer relatório [ponto ix)].

Assim, em sede do tipo objectivo, a assistente imputa à denunciada a narração feita nos relatórios referidos, de factos sem correspondência com a realidade histórica, de factos não devidamente comprovados pela denunciada, e de factos omitidos pela denunciada, bem como lhe imputa, agora, sem referência a qualquer relatório, a omissão de um facto.

Ainda que este último aspecto não integre o objecto do recurso, até porque não foi fundamento do decidido no despacho recorrido, cumpre dizer que a imputada omissão de um facto, não referida a qualquer relatório elaborado pela denunciada, é factualmente irrelevante, atenta a composição do tipo objectivo do crime em causa.

 

Já em sede de tipo subjectivo, portanto, quanto ao dolo, a assistente limitou-se a alegar, com o sentido de uma cláusula geral, chamemos-lhe assim, ao que consta dos pontos x) e xii).

Começamos por notar que o segmento, a denunciada agiu de forma livre, deliberada e consciente, levado ao ponto xii), deve ser perspectivado no sentido de que a acção típica, para além de pressupor um comportamento humano, exige ainda que esse comportamento seja orientado por uma vontade lúcida, excluindo-se, portanto, os actos reflexos e os praticados em estado de inconsciência.

Acresce que o segmento, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, levado ao mesmo ponto, refere-se apenas ao dolo da culpa, à consciência da ilicitude da conduta e, portanto, à consciência da sua censurabilidade, como em 3., que antecede, se deixou dito. 

Por outro lado, o segmento, a denunciada preferiu transmitir informações completamente distorcidas da verdade, com intenção de a prejudicar, levado ao ponto x), não tem aptidão factual para preencher, quer o elemento cognitivo, quer o elemento volitivo, integrantes do dolo do crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução.

 Na verdade, face à pretensão da assistente de ver a denunciada pronunciada pela prática do referido crime, tendo em conta a definição do seu tipo legal, tal como se deixou feita em 3., que antecede, e considerando também que a denunciada, enquanto agente do crime, tinha a qualidade processual de técnica, deveria constar do requerimento para abertura da instrução apresentado – com a fórmula que segue, ou com qualquer outra com sentido idêntico –, ter a denunciada agido, em todas as condutas activas ou omissivas que se deixaram narradas, voluntária e conscientemente, sabendo que as identificadas afirmações que fez constar dos relatórios que elaborou e juntou ao processo de promoção e protecção, não tinham correspondência com a realidade, e querendo assim actuar, bem sabendo, também, que a sua conduta era proibida e punida por lei, e também sabendo que tinha recebido informação sobre o percurso escolar da assistente e que a omitiu no relatório de 20 de Julho de 2020, querendo assim actuar, bem sabendo que também esta sua conduta era proibida e punida por lei [neste aspecto, não é visada a omissão referida no ponto ix), por a mesma não se referir a qualquer relatório].

Cumpre ainda dizer que os segmentos, o que não pode saber com certeza e sabendo que quando fosse lida em juízo, iria criar uma convicção errada sobre os intervenientes do processo de promoção e protecção, que constam do ponto iv), de forma propositadamente errada e que sabia prejudicar a assistente, que consta do ponto v), sabendo que a ia prejudicar aos olhos dos responsáveis pelo processo de promoção e protecção, que consta do ponto vi), o que a denunciada sabia, não se coibindo de colocar no relatório  uma versão dos factos distorcida da realidade, que consta do ponto viii) e, sugestão esta que a denunciada omitiu, com intenção de prejudicar a assistente e de manter a menor institucionalizada, que consta do ponto ix), são insusceptíveis de, per se, consubstanciarem o elemento cognitivo e/ou o elemento volitivo do dolo do crime em causa, por referência às concretas condutas neles, pontos, descritas.

Em suma, não contendo o requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente a narração do dolo ou, melhor dito, de todos os elementos do dolo do crime por cuja prática pretende ver pronunciada a denunciada, há que concluir que nele deduziu numa acusação material – alternativa à acusação omitida pelo Ministério Público – por factos que, devido à apontada omissão, não constituem crime.

            Não é admissível, nestas circunstâncias, considerar implícitos na acusação, os elementos do tipo subjectivo nela omitidos, inferindo-os dos factos objectivos efectivamente narrados.

            Por outro lado, a sanação desta deficiência do requerimento para abertura da instrução não pode ser efectuada, mediante convite à assistente para o seu aperfeiçoamento, atenta a jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 7/2005, de 12 de Maio de 2005 (DR, I-A, de 4 de Novembro de 2005).

            Finalmente, ponderando os fundamentos do Acórdão nº 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Novembro de 2014 (DR, I-A, de 27 Janeiro 2015) – que fixou jurisprudência no sentido de que, a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do Código de Processo Penal –, não ser lícito que o juiz de instrução, por recurso ao mecanismo previsto no art. 303º, nº1 do C. Processo Penal, supra a referida omissão na decisão instrutória.

5. Atentas as sobreditas razões, a instrução requerida pela assistente carece de objecto, o que determina a sua inadmissibilidade legal, constituindo, nos termos do disposto no art. 287º, nº 3 do C. Processo Penal, causa de rejeição do requerimento para abertura da instrução (cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Março de 2023, processo nº 19/21.8TRGMR.S1, in www.dgsi.pt).

Deve, pois, ser mantida a decisão recorrida.


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            III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação, em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.


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Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art. 515º, nº 1, b) do C. Processo Penal e 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).


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Coimbra, 12 de Maio de 2023

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Acórdão integralmente revisto por Vasques Osório – relator – Maria José Guerra – adjunta – Helena Bolieiro – adjunta